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ENTRE MITO E POLITICA JEAN-PIERRE VERNANT Trad Cristina Muracheo 42. A “BELA MORTE” DE AQUILES Estas so as palavras que Sérpedon dirige a Glauco para incité-lo a pular com ele 0 muro de defesa por ts do qual esto postados os guerreiros inimigos, apesar do perigo: Giauco, por que nos honram, na Licia, com tants privilégios, lugares de honra,carnes « tagas cheias? Por que nos contemplam como deuses? Por que gozamnos, nas beiras do Xanto, dde um imenso dominio feito para nds, Wo bom para os pomares quanto para terras de trigo? Assim, no deverfamos desde j4 manter-nos na primeira linha dos licios, para responder 20 pelo da batalha ardento? Cada Icio de forte couraga poders dizer ent@o: no falta gléria aos reis que comandam em nossa Licia, comendo carneiros gordos e bebendo um doce vinho se lecionado, Tém para si o vigor dos Fortes posto que lutam na primeira fileira dos Ifios (Wiad, XII, 310-321), Podemos partir deste texto para situar © que os gregos entendiam por timé na epopéia homérica: o valor proeminente de um individuo, ou seja, ao mesmo tempo, sua hierarquia, os privilégios e as honras que tem direito de exigir e sua exceléncia pessoal, o conjunto das qualidades e dos_méritos que demonstram que ele faz parte de uma elite, do pequeno grupo dos dristoi, dos melhores. Em uma sociedade de confronto na qual, para ser reconhecido, é preciso der- rotar os rivais em uma competigio incessante pela gléria, cada individuo esté colo- cado sob o olhar do outro, cada individuo existe por este olhar. Ele é o que os outros véem dele. A identidade de um individuo coincide com sua avaliagio social: da derrisao a0 Jouvor, do desprezo & admiragiio. Se 0 valor de um homem permane- ENTRE MITO E POLITICA ce assim ligado& sua reputagdo, toda ofensa pablica 3 sua dignidade, todo ato ou comentiio que atinge seu presigio serio sentidos pela vtima, enquanto nfo fo- rem abertamentereparados, como uma forma de rebaixar ou de destruir seu Ser sua virtudefntima e de consumir sua queda. Desonrado, aquele que nlo conse guiu que 0 homem que o ofendeu pague pelo ultrajeperde, com sua tind, 0 eno= me, 0 lugar na’hierarquia e os privlégios. Separado das soldariedades antigas afastado do grupo de seus pares, o que resta dele? Cafdoabaixo do vil, do kakds aque ainda tem seu lugar entre a hostes do povo, oma-se um errant, sem pats ou raves, € um exilado desprezivel, um homem sem nenhum valor, para retomar os termos de Aquilesofendido por Agamémnon (Iiada, IX, 648 e 1,293). Para Sarpedon, a honra exige dos poderosos ¢ dos reis que, em troca das vantagens e do respeito de que gozam, mostrem-se 2 altura de sua gloriosa repu- tagdo na batalha, Assim, a primeira palavra que volta, como um leitmotiv, nas exortagSes dirigidas aos chefes dos contingentes, quando 0 ardor ao combate esmorece, para que o retomem e déem o exemplo pagando com sua vida, soa como tuma chamada de volta & ordem: Aidds! que podemos traduzir por “envergonhai- vos!". O aidds 6 o sentimento de indignidade que se sente quando uma falta no e6digo de honra corre o risco de expor um homem ao oprébrio piiblico. Existiria, como Sarpedon da a entender, uma reciprocidade plena entre a proeminéncia social e a superioridade do valor pessoal, especialmente no mundo dda guerra, para os grandes? Na verdade, agathés ou kalokagathds significa a0 mesmo tempo que um homem é de boa cepa, rico, belo e poderoso € que possti 4s virtudes e a nobreza de alma semelhantes ao ideal grego do homem completo, do homem de coragem. Parece ento que, para ser rei, seria preciso mostrar-se herdico, e que ndo seria possivel ser herGico se nfo se era rei Ota, de todos 0s reis gregos, o mais rei € Agamemnon: recebeu do préprio Zeus seu cetro de comando. Assim, seria ele © mais valoroso de todos os guerrei 0s aqueus? Vamos ouvir Diomedes e Aquiles, hersis exemplares do lado grego. Diomedes primeiro, a quem o Atrida cometeu a imprudéncia de tepreender Fizeste a primeira injria & minha forga na presenga dos Diinaos [..] Entretanto, eles sa bem a verdade, os jovens como 0s velhos, A ti mesmo, por outro lado, o filho de Crono astu-

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