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Os desmanches da Avenida Ricardo Jafet

Isabela Vianna Pinho

Texto para discussão no grupo dia 18/06/2018

Resumo
O presente texto busca apresentar, de forma muito inicial, as três frentes de investigação
escolhidas para tratar dos desmanches da avenida Ricardo Jafet no município de São Paulo;
são eles: (i) categorias de diferença; (ii) relações com o estado e (iii) dimensão mercantil.
Elencou-se as três dimensões para recortar e organizar os dados empíricos e, dessa forma,
enfatizar os pontos que parecem ser centrais e que se repetiram durante a pesquisa de campo.
Longe de serem três pontos rígidos e engessados, são frentes associadas que se interligam a
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todo momento. Enquanto pesquisadora da equipe , tenho a pretensão de olhar a partir dos
desmanches para avançar a graus mais elevados de abstração analítica e teórica,
principalmente no debate sobre desigualdade e violência no interior do mercado mais amplo
de (roubo de) carros, do mercado legal/ilegal de automóveis.

Introdução

​Pretendo fazer uma introdução aqui

i) Categorias de diferença

Zona Sul do município de São Paulo. Saia da estação de metrô Santos-Imigrantes e


siga caminhando pela avenida Dr. Ricardo Jafet sentido avenida Prof. Abraão Moraes por
quase um quilômetro. Logo no segundo quarteirão: duas concessionárias, uma da marca
Mercedez e outra da Jeep. Ao lado o primeiro desmanche Aquarius. Adiante uma loja de
pneus. Mais um desmanche: o Marcelinos. Depois, as autopeças TipoJ e Astral e, por fim, o

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Sobre este projeto, trata-se de uma pesquisa multimétodos em andamento e inscrita no projeto “As margens da
cidade”, que por sua vez integra o CEPID Centro de Estudos da Metrópole (projeto FAPESP 2013/07616-7).
Tem-se como objetivo mapear o mercado (i)legal de veículos e seus mecanismos de produção de desigualdades e
violência, a partir da cidade de São Paulo. A equipe é formada por pesquisadores em diferentes estágios de
formação, quais sejam: Gabriel Feltran, Deborah Fromm, Evandro Cruz, André de Pieri, Isabela Vianna, Janaína
Maldonado, Gregório Zambon e Lucas Alves.
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desmanche Só Japonês que encerra o quarteirão. Todos os estabelecimentos da mesma quadra


são relacionados ao mercado de carros. Próximo quarteirão, o terceiro: borracharia e
estabelecimentos abandonados que pareciam ser antigos desmanches ou autopeças. Quarta e
última quadra: lojas de pneus; desmanches EduCar, Energia e SportCar; por fim a
concessionária da BMW. No outro lado da avenida mais comércios de carros. Concessionária
da Volkswagen e Mitsubshi. Mais autopeças. Entre as mercadorias expostas, chama atenção a
predominância de lanternas, para-choques, retrovisores e pneus. Borracharias, oficinas
mecânicas, auto elétricos, consertos de carburadores, radiadores e câmbios também compõem
o ambiente dos dois lados da avenida. O cenário era quase inteiramente ocupado por clientes e
vendedores homens, exceto por uma ou outra vendedora mulher e por aquelas que passam
caminhando pela avenida.
Durante a primeira incursão etnográfica no dia 10 de janeiro foi basicamente este o
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território observado por mim e por Lucas , dois pesquisadores atentos e apreensivos com o
novo campo que tentávamos iniciar. Um cenário de diversos comércios relacionados ao
mercado de carros que compõem quase um quilômetro da importante, larga e movimentada
avenida Ricardo Jafet, caminho da Rodovia dos Imigrantes que liga São Paulo ao litoral
paulista. Dada a quantidade de comércios, especialmente de desmanches que nos interessava
propriamente, foi preciso delimitar onde faríamos o campo. O segundo quarteirão parecia uma
boa escolha. Optamos, então, por focar nas autopeças TipoJ e nos desmanches Aquarius,
SóJaponês e SportCar (o único fora deste quarteirão). Os motivos desta escolha se deram pela
abertura em tais estabelecimentos e por serem interessantes espaços para comparação.
Além desse breve mapeamento dos desmanches, decidimos arriscar um primeiro
contato. De início, tentamos o desmanche Aquarius. Este chamava mais atenção que os outros
pela sua organização e tamanho. Grande quantidade de carros desmontados poderiam ser
vistos de longe. Vendedores homens com camisetas e capacetes verdes atendiam clientes no
largo balcão da loja. Além deste balcão, outros dois menores, ao lado, separavam o
desmanche em três partes: balcão maior, uma loja apenas de motores e outra de lanternas.
Algumas paredes da parte exterior e interior da loja são pintadas na cor verde. Entre todos
aqueles homens no balcão, Fabrício vestia uma camisa social também verde com o nome da
loja bordado. Por sua postura e roupas diferentes dos demais, era perceptível que deveria ser
ou gerente ou dono da loja.

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Graduando em Ciências Sociais pela UFSCar, também pesquisador da equipe.
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Fomos falar diretamente com o Fabrício, nos apresentamos e logo ele nos deu uma
revista da associação brasileira de reciclagem automotiva (ABCAR), talvez para nos situar
sobre sua empresa, já que havia na revista uma entrevista sua e toda uma matéria sobre a
Aquarius. Essa primeira conversa nos animou, chegamos até a conhecer o interior do
desmanche e ficamos por cerca de quarenta minutos conversando no balcão. Fabrício é
notavelmente articulado, se mostrou aberto e interessado na nossa pesquisa, passou seu
telefone e, desde então, voltamos todos os outros dias de campo ali (pelo menos para nos
cumprimentarmos) até que fizemos uma entrevista gravada com mais de uma hora de
duração.
Depois de sair da Aquarius, resolvemos entrar na TipoJ autopeças porque o balcão
estava vazio, os três vendedores (um deles era Rafael, herdeiro da loja) não atendiam nenhum
cliente naquele momento. Nos apresentamos, falamos da pesquisa e quando dissemos sobre o
interesse em analisar os desmanches, seu João - proprietário da loja que também se
encontrava no balcão - nos disse: ​“mas nós não somos desmanche, somos uma loja de
autopeças”. ​Mesmo assim, continuamos a conversar sobre diversos assuntos: carro, futebol,
política… Rapidamente ficou evidente que seu João tinha muita experiência, respondia nossas
perguntas sobre carros, seguradora, leilão, desmanche, etc. Além disso, sabia muito da
história daquela avenida. Mesmo não sendo dono de desmanche, o consideramos importante à
pesquisa, devido ao seu conhecimento e experiência de anos ali. Enquanto os vendedores
embalavam caixas, atendiam o telefone e atendiam quem aparecia no balcão, Seu João parecia
mais tranquilo. Conhecê-lo nos ajudou nesse início, pois nos disse o nome de todos os
desmanches e de seus respectivos donos, nos contou que Fabrício da Aquarius é irmão do
Neto da SportCar, além de ter tirado todas nossas dúvidas.
O último desmanche que fomos nesse mesmo dia foi o SóJaponês. Diferentemente dos
outros esse não possui balcão. Tal característica facilita nossa entrada e circulação pelo
espaço. Comparado aos outros, é visível que é menor em número de funcionários e carros,
além de parecer mais desorganizado. Logo que chegamos, nos apresentamos a Ismael que
pediu que falássemos com o Caio, gerente. Conversamos por cerca de meia hora com ele até
que seu Flávio, proprietário, chegou e nos conheceu. Estávamos cansados e resolvemos ir
embora. Assim, o desmanche que era referência para todos na avenida - o SportCar -
deixamos para conhecer outro dia.
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A Aquarius surgiu no início dos anos 80 já na avenida Ricardo Jafet, após Diamantino
- pai de Fabrício, nascido em Portugal - fechar sua padaria e decidir investir em outro ramo, o
de desmanche de carros. Abriu a Aquarius Autopeças e foi Fabrício quem continuou e
aumentou o negócio, atualmente sendo o único dono. Fabrício é de cor branca, possui olhos
claros e é o caçula com 31 anos entre os quatro filhos de Diamantino (três homens e uma
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mulher). Formado em engenharia mecânica, Fabrício começou a trabalhar com o pai aos 18
anos de idade, mas somente tornou-se proprietário aos 23. Sua trajetória de vida sempre foi
marcada por carros, nas suas memórias de infância o trabalho de seu pai na Aquarius é o que
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perdura. Presente de sua mãe, uma miniatura de Corcel branco enfeitava sua mesa. Segundo
ele, era uma lembrança da infância, pois seu pai tinha um Corcel. Apesar dessa aproximação
com carros, trabalhar nesse ramo não era o plano de Fabrício, nem o que Diamantino gostaria
para os filhos, pois considerava um mercado estigmatizado.
Seu João tem 59 anos, é de cor branca, casado, tem dois filhos homens e uma mulher,
três netos e é proprietário da TipoJ há 25 anos. Trabalha desde os 18 anos de idade com
carros, ou seja, há 41 anos. Começou como motorista de loja buscando peças, foi promovido a
vendedor, depois gerente, até que abriu o seu próprio estabelecimento já na avenida Ricardo
Jafet. Seu filho Rafael e sua filha Rosana trabalham com ele na loja. Hoje em dia seu João não
toca tanto o negócio, todos os dias ele fica um pouco por lá, mas seu filho Rafael é quem fica
mais responsável pela autopeças. A TipoJ passou a vender peças na internet pelo site Mercado
Livre graças ao herdeiro. Hoje saem cerca de 20 caixas por dia, segundo seu João. Seu filho
mais velho está internado há 5 anos após sofrer um acidente de carro na avenida dos
Bandeirantes. Somente abre os olhos.
O desmanche SóJaponês trabalha com peças de carros japoneses e asiáticos,
atualmente possui apenas quatro funcionários, além dos dois sócios proprietários Flávio e
Renato. O primeiro é um senhor de aproximadamente 60 anos e Renato que beira os 40, os
dois são brancos. Renato é advogado e somente há quatro anos se associou ao Flávio. Os
quatro funcionários são: Israel (desmonta e vende), Talita (desmonta e vende), filho do seu
Flávio (não lembro sua função) e Caio (gerente).

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  ​Os quatro filhos de Diamantino já trabalharam com ele nesse ramo. Atualmente um dos irmãos homens foi para
outra área, Fabrício seguiu como proprietário da Aquarius e sua irmã é sua funcionária, “faz mais RH”. Neto, o
mais velho e também interlocutor da pesquisa, é proprietário da SportCar.
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Em poucos momentos da entrevista Fabrício falou de sua mãe, mesmo que tenhamos tentado obter informações
sobre ela.
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Natural de Belmonte, Bahia, Israel veio para São Paulo e desde o começo só trabalhou
“cortando” carro. Tem 31 anos, é negro, casado e possui uma filha. Parou de estudar com 13
anos. ​Podia estar ocupado, mas sempre parava para conversar com a gente, não sendo raras as
vezes que fez questão de nos mostrar o espaço, mas devido a sua importância para o
funcionamento do desmanche, foram poucas vezes que conseguimos conversar com ele sem
que alguém intervisse. ​Ismael trabalha há oito anos com desmanche. No começo foi
funcionário de um estabelecimento que mexia com carros roubados e disse que quando
descobriu, saiu de lá. Comentou que tal desmanche ainda existe na avenida Cursino. Hoje em
dia não aceita salário abaixo de 2500 reais, pois considera o trabalho de “cortar” carros muito
pesado. Nos disse em vários momentos que está cansado e quer parar, sente dores nas costas e
tem um dedo deslocado. Parece se orgulhar da SóJaponés depender tanto dele, porque apenas
ele sabe desmontar, além de saber muito sobre todo o trabalho feito ali.
O último e mais difícil de conseguir contato foi o desmanche SportCar que era
referência para todos da avenida. São ao todo três lojas: de carros franceses, outra de
importados e de peças novas. Uma nova loja, maior que as demais, acabou de ser construída.
É perceptível a diferença entre os carros de clientes que param na SportCar dos demais
desmanches. Os três filhos homens (todos brancos) do proprietário também trabalham com
ele. No início foi difícil conversar com Neto, o proprietário da loja e irmão (somente por
parte de pai) de Fabrício. Ficávamos receosos porque já haviam nos dito que era difícil falar
com ele. Até que um dia, por intermédio de Sueli sua funcionária, Neto nos recebeu de forma
muito simpática e conversamos por quase uma hora.
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Fotos do desmanche SportCar.

Algumas questões saltam aos olhos quando se observa o cotidiano dos desmanches da
avenida Ricardo Jafet. Questões que se repetiram no campo e pareceram centrais para
analisá-los, bem como para analisar a desigualdade e violência no interior da enorme cadeia
que compõe o mercado legal/ilegal de carros. Como se pôde notar no texto, a Aquarius, TipoJ,
SóJaponês e SportCar são comércios familiares, pai e filho trabalham juntos, a experiência é
passada por geração, principalmente de homens. A categoria família, portanto, é essencial
para pensar tais desmanches. Além disso, os quatro comércios possuem proprietários brancos
e diversos funcionários negros. Dessa forma, raça é mais um marcador de diferença
fundamental aqui que não pode ser deixado de fora. Por fim, as categorias gênero e
masculinidade também são essenciais nesse contexto. O ambiente é bem masculinizado,
homens dos dois lados do balcão. A maioria (poucas) das mulheres ocupam cargos
administrativos. A relação de bastante alteridade entre eu e esses homens ficou evidente,
conforme pretendo demonstrar a seguir.
A pesquisa etnográfica tem sido bem peculiar e diferente de todas as outras
experiências de pesquisa que eu havia feito até então, porque praticamente só tive
interlocutoras mulheres em meus projetos individuais. Principalmente no começo eu sentia
que, na presença de Lucas, os vendedores ou donos dificilmente me olhavam ou dirigiam suas
palavras a mim. Eu precisava me colocar de forma mais enfática na interação, fazer certo
esforço para que a abertura fosse um pouco maior. Também era nítida a diferença nos
tratamentos daqueles homens com Lucas e comigo, isso ficava claro sempre que o vendedor
Ismael do desmanche SóJaponês, por exemplo, mostrava alguma peça ou quando explicava
qualquer serviço que realizava, pois chamava somente o Lucas. A categoria gênero e
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masculinidade surgem a todo momento naquele contexto, no cotidiano. Parecia não fazer
sentido uma mulher estar interessada em entender como funciona um desmanche. Não era
plausível, não fazia parte do universo de significação de Ismael, nem dos outros vendedores.
Mais de uma vez ouvi as brincadeiras que faziam com Lucas e não faziam comigo, como
quando convidavam o Lucas para se sujar de graxa, trabalhar, ajudar, carregar peso.
Eu e Lucas fizemos um total de seis incursões etnográficas nos desmanches da avenida
Ricardo Jafet no mês de janeiro deste ano. Geralmente passávamos quatro horas na avenida,
observando o cotidiano ou entrevistando nossos interlocutores (foram realizadas duas
entrevistas até o momento, uma com Fabrício e outra com Ismael). Tomamos certo
distanciamento do campo em fevereiro. Em março, agendamos com Fabrício uma visita com a
presença do Gabriel, Déborah, Evandro, Ana e mais quatro alemãs. Como não tinham
capacetes suficientes, eu e Lucas não acompanhamos o grupo e ficamos durante esse período
na TipoJ e na SóJaponês. Eles conheceram o desmanche Aquarius e conversaram por cerca de
duas horas em inglês com Fabrício. Em abril me distanciei novamente dos desmanches. Fazia
mais de um mês que não ia até que no início de maio fui sozinha, era a primeira vez que iria
sem o Lucas. Ele já havia ido sem minha presença outras vezes, em uma dessas visitas Lucas
soube que dois funcionários “puxavam carros” quando mais novos.
No dia 3 de maio cheguei sozinha na avenida e passei pela Aquarius, cumprimentei
Fabrício e agradeci pela atenção na visita em março. Disse a ele que estávamos com os
horários mais rígidos, Lucas tendo aula e eu com minha pesquisa de campo em São Carlos,
por esses motivos não conseguíamos ir na frequência que íamos em janeiro. A conversa não
fluiu quanto eu esperava, resolvi então seguir até a autopeças TipoJ, onde Maurício (ou
Magaiver, um dos funcionários) estava apoiado em sua moto. Cumprimentei todos que ali
estavam e me direcionei a Magaiver que logo fez algumas perguntas diretas a mim, como:
“Me fala, o que você quer saber?”. Fiquei um pouco desconcertada, mas expliquei
rapidamente sobre a pesquisa e a conversa foi fluindo, ficamos por quase uma hora ali.
Magaiver na verdade não é vendedor da TipoJ, ele faz reparações de peças, como
para-choques, lanternas e do cabo do step. Este último está diretamente associado ao mercado
de roubo de carros, pois é uma peça que frequentemente cortam para levar o step do carro. Eu
estava interessada em entender mais sobre esses reparos que ele fazia, mas a conversa seguia
para outros caminhos. Enquanto eu tentava direcionar para outros assuntos, como quais
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serviços de reparo ele fazia na TipoJ, ele rapidamente respondia e partia para o que parecia
lhe interessar, como curiosidades sobre minha vida.
Passei a perceber que Magaiver direcionava o assunto para sua e minha vida pessoal,
falou de relacionamentos, família, rolês e se interessava com quem eu morava em São Carlos,
por exemplo. Enquanto conversávamos, pegou seu celular e começou a me mostrar suas fotos
na praia, no clube de motos e, enquanto descia a tela vi algumas que me deixaram
extremamente constrangida. Fingi não ver. Naquele dia ele chegou até a pedir meu telefone
celular, mandou mensagens logo depois e nos dias que se seguiram. Não estava me sentindo
bem e resolvi ir embora. Despedi-me e segui para a direção contrária ao metrô. Passei em
frente a SportCar que já estava com a nova loja construída e funcionando. Parei na padaria,
pedi um café e fiquei por ali alguns minutos pensando no que fazer em seguida. Resolvi tentar
conversar com Neto na SportCar. Como sempre ele foi simpático mas estava ocupado. Disse
para eu ficar a vontade dentro do desmanche. Tirei fotos do novo espaço, conheci dois
funcionários, um que trabalhava na estocagem, outro estava há apenas um mês colocando
fotos das peças no sistema. Naquele mesmo dia conheci Fernando, engenheiro de produção
contratado por Neto para projetar a reforma e para otimizar os processos da nova loja.
Voltei no dia 14 de maio com o Gregório que ainda não conhecia os desmanches da
Ricardo Jafet. A ideia era apresentá-lo aos interlocutores. Chegamos na Aquarius e Fabrício
nos recebeu em sua sala, onde ficamos mais de uma hora conversando. Depois Gregório
conheceu a TipoJ e seus vendedores e, por fim, fomos à SportCar. (isso tá jogado)

(falta bibliografias - sobre diferenças, sobre família?, pedir indicações de leituras ao grupo,
texto do Gabriel sobre categorias como intervalo do pagu)

ii) Relações com o estado;

Essa frente da investigação pretende analisar as relações dos desmanches de carros


com as instituições e agentes estatais, com as regras, normas, Lei do Desmonte, Detran,
polícia, políticos. Quais os impactos da lei? Quais as saídas possíveis para burocratização e
fiscalização? O ponto de partida aqui enxerga o estado sendo reformulado e reconstruído sob
novas formas a todo o momento, nas interações e negociações da vida social. A bibliografia
de James Scott e Veena Das nos ajudam a pensar nessas questões.
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Cada vez mais a pesquisa demonstra que a cadeia do comércio de carros é bastante
complexa e envolve diferentes níveis de desigualdades, de violência, de conflito. A
importância da frente que investiga as relações dos desmanches com o estado está na
compreensão de como os sujeitos navegam pelas lacunas existentes entre as leis e sua
implementação, como negociam em torno das linhas tênues entre o legal e o ilegal. É
precisamente nas brechas que parecem incoerentes que as pessoas encontram recursos para
enxergar o Estado simultaneamente como “ameaça e garantia”. No reino da ilegibilidade é
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possível ler como o Estado se reencarna sob novas formas. Alguns relatos de campo nos
desmanches evidenciam isso.
Para Fabrício, antes as coisas eram diferentes, hoje está mais difícil. A crise impactou
no seu negócio, a lei também. Atualmente, há 15 funcionários trabalhando na Aquarius, antes
eram mais. Neto, diferentemente dos outros, considera que a lei foi positiva, mas também
comentou sobre o aumento dos preços de carros nos leilões. Os impactos da lei que
apareceram no campo foram, principalmente: (a) maior concorrência com outros estados e
com os desmanches “ilegais” ou “desonestos”; (b) para eles, a implementação da lei não
diminuiu o roubo de carros; (c) favorecimento de grupos como leilões e seguradoras; (d)
aumento dos preços dos carros nos leilões; (e) maior burocratização e fiscalização.
Nossas conversas com Renato do desmanche SóJaponês foram interessantes porque
ele possui vasto conhecimento sobre a lei do Desmonte e uma visão mais legalista. Seu Flávio
se aproxima do discurso de Fabrício, de que sua empresa já passou por momentos melhores e
faz duras críticas a nova lei que, em sua opinião, beneficiou grupos específicos, como leilões
e seguradoras. Já na visão de Renato, a lei do Desmonte tem seu lado positivo por conectar a
cadeia de carros. Faz ressalvas "a mão humana podre". Neste sentido, defende a interligação
eletrônica entre a rede (Detran, leilão, desmanche, gráficas). Segundo ele, esta seria a melhor
solução para o sistema proposto funcionar. Na sua opinião, toda vez que a mão humana puder
intervir, o sistema será corrompido. Foi neste momento que citou a fé pública e os acertos que
ocorrem entre os proprietários desses espaços e os agentes fiscalizadores, apontando estas
situações como empecilhos à funcionalidade da lei.Mesmo tendo fechado pela fiscalização
por um ano e meio, percebe-se que a SóJaponês ainda não se adequou às normas da lei, como
o piso, por exemplo.

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(DAS, 2004). DAS, Veena. The Signature of State: The Paradox of Illegibility In Life and Words: Violence
and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press, 2004.
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No dia que entrevistamos Israel, logo pela manhã, ele estava dando uma volta pelo
desmanche e explicou que todos os dias fazia o mesmo: olhava o espaço para verificar se
nenhuma peça havia sido jogada lá dentro. Explicou que uma vez policiais jogaram um vidro
de carro roubado dentro do desmanche, mas Flávio logo percebeu e o quebrou, antes que os
policiais voltassem. Lucas perguntou se havia alguma relação com o posto policial que existe
na Ricardo Jafet: "não é polícia militar que vem cobrar não. Eles não fazem nada" Neste
momento citou a DIVECAR como uma das responsáveis por essa cobrança. E seguiu
dizendo: "Não tem jeito. Todo mundo paga uma 'caixinha'. Tem que pagar se quiser trabalhar
tranquilo".
A utilização de mercadorias políticas (Michel Misse) como forma de negociação entre
polícia e desmanche já apareceram no campo. Além disso, apesar de todos os desmanches
estarem cadastrados devidamente no Detran e serem considerados “legais”, já nesse momento
inicial de incursão a campo observa-se os fluxos entre o legal-ilegal como uma linha tênue.
Práticas são tomadas cotidianamente para “burlar a lei”. Um exemplo: a proibição da venda
de itens de segurança pelos desmanches. A justificativa dos donos para venderem tais itens
mesmo sendo proibido é a de que qualquer item em um carro pode ser considerado de
segurança, ou seja, a lei possui brechas incoerentes. No próprio site da SportCar notei a venda
de kit airbag.
Nas falas de Fabrício e de outros interlocutores, é notável também a presença de um
discurso forte de honestidade e legalidade. Em muitos momentos dizia sobre a Aquarius como
sendo uma empresa honesta, que trabalha de forma correta, diferente de outros desmanches.
Muitas falas de nossos interlocutores apareceram o discurso da honestidade e legalidade como
forma de legitimar seu próprio desmanche, ou como forma de reconhecimento para fugir da
estigmatização que é atribuída a esse mercado. O estigma está associado ao mexer com peças
de carros roubados, essa questão apareceu em todos os espaços que tivemos contato e na
revista da ABCAR. Talvez por esse motivo os comércios não colocam em seus nomes a
palavra “desmanche”, sim “autopeças”.

Incluir aqui a discussão do texto do Matias Dewey


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iii) Dimensão mercantil

A SportCar de Neto é interessante à pesquisa como contraponto aos outros


desmanches que frequentamos. O discurso de Neto é de sucesso no ramo, ao contrário dos
outros interlocutores que dizem vivenciar situação pior que em outros momentos. Seu negócio
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parece crescer, diferente dos demais. Sua loja vende peças mais caras (de carros mais caros,
importados). Aqui aparece uma diferença de mercadorias e valores dentro do próprio mercado
de desmanches. Essa frente de investigação mercantil (ainda muito preliminar) pretende se
debruçar nos aspectos econômicos desses negócios na avenida para posteriormente avançar no
debate do grupo sobre a desigualdade e violência do mercado de (roubo de) carros.
Durante a pesquisa de campo, também apareceu em vários momentos o Mercado Livre
e as peças chinesas (“paralelas”). Interessa analisar e comparar os preços das peças nos
diferentes desmanches, na Renova Ecopeças, Mercado Livre, Mercado Car, lojas de peças
paralelas, de peças chinesas e das concessionárias. Pretende-se observar também como e
quem estabelece os preços das peças, como são negociados e pensados, quais variáveis são
levadas em consideração, etc. Nessa frente de investigação, também se deve observar as
relações com os leilões.
A dimensão mercantil, de circulação de dinheiro não foi tão explorada nas
bibliografias sobre o mundo do crime. O mercado (i)legal de carros, da mesma forma, nunca
foi central nas ciências sociais, apesar do automóvel ser mercadoria essencial no mundo
urbano contemporâneo. Falou-se muito pouco sobre dinheiro, muito embora as bibliografias,
os interlocutores e as produções musicais e visuais mostrassem que a circulação das notas,
carros, jóias, relógios estivessem cada vez mais presentes nos cotidianos. Com isso, surgiu a
ideia do grupo NaMargem estudar a dimensão econômica, principalmente associada ao
mercado de carros.
Altamente lucrativo para diferentes segmentos e atores, o carro conecta mercados
ilegais, informais com mercados legais, formais e oficiais. Além disso, assim como o
dinheiro, o carro media e, ao mesmo tempo, segrega as relações entre sujeitos que
evidentemente vivem em conflito nos planos da lei e da moral. Do menino que rouba carro à

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Neto chegou a comentar que depois da nova loja que está construindo, pretende investir em outra para vender
peças de segurança (cinto e airbag por exemplo)
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mão armada até o policial da Força Tática, do dono de desmanche ilegal até o presidente da
seguradora, todos compartilham desejos parecidos de ter os mesmos carros, motos e relógios.
 

As literaturas que lemos sobre dinheiro ajudarão nesse sentido, falta incluir.
Viviane Zelizer – a construção social do dinheiro, dinheiro não como mediador

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