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Eu sei que astrologia não é uma ciência […]. A astrologia de fato nada tem a ver com
a astronomia. Tem a ver com pessoas pensando sobre pessoas
(ADAMS, Douglas. Praticamente Inofensiva. Rio de Janeiro: Sextante, 2010, p. 20–
21)
Por que o Pirula ter comparado a terra plana com astrologia é tão incômodo, inclusive
para aquelas pessoas que não acreditam em astrologia? A razão é que a astrologia não é a “terra
plana” socialmente aceita pois são formas de conhecimento distintas. A astrologia propõe um
sistema simbólico místico que, a priori, não entra em conflito com outras formas de
conhecimento. Já as ideias da terra plana, dos movimentos anti-vacinação, e de negacionistas
do aquecimento global e do holocausto são uma forma de conhecimento paranoicas em si,
contestando qualquer ontologia que não seja a sua própria. Em outras palavras: são teorias da
conspiração.
Teorias da conspiração são tentativas de explicar como certos eventos são resultados
de ações de grupos poderosos, de modo que as explicações negam as narrativas aceitas sobre
os eventos sendo que, inclusive, versões oficiais são categorizadas como uma prova da
conspiração, um elemento para despistar da verdade, que seria a teoria da conspiração
propriamente dita (definição que eu traduzi da Encyclopædia Britannica). Esta negação da
realidade é apontada pelo Pirula em sua série de tuítes, onde ele apresenta seus argumentos para
tal. Ele também gravou um ótimo vídeo sobre teorias da conspiração, explicando como que a
própria teoria da Terra plana funciona como uma dessas paranoias. Em suma, o discurso
terraplanista aponta que o planeta não é uma esfera, e há respaldo que seus defensores admitem
ser científico.
A astrologia, por outro lado, não é uma fonte de conhecimento que se propõe a ser
científica. A lógica aqui é uma gramática para uma prática mística, pessoal e/ou coletiva, que
se baseia em aspectos simbólicos, metafóricos, de elementos astronômicos, determinados
originalmente pelos solstícios e equinócios no hemisfério norte, onde a regra fundamental é que
o que está acima é como está abaixo. Estas e outras ideias estão no Caibalion, livro que teria
sido escrito por Hermes Trismegisto, aquele da tábua de esmeralda que o Jorge Ben Jor gravou
um disco.
Não vou entrar em muitos detalhes para não ficar muito chato para aqueles que não
gostam do assunto, mas para ilustrar a dinâmica da coisa: o equinócio de primavera define o
primeiro dia do signo de Áries, período marcado pela tosa de ovelhas que estavam cheias de
energia depois do inverno, tem o auge no signo de Touro, onde bovinos eram utilizados para o
trabalho e plantio na terra, e encerrava-se no signo de Gêmeos, festividades antes do início do
verão que envolviam casamentos e apresentações teatrais. As características destes três signos,
a partir das práticas terrenas, é o ímpeto e energia de Áries, a força da materialidade em Touro,
e a comunicação em Gêmeos. O mesmo ocorre para outros signos. Os planetas são marcadores
de outros aspectos. Por exemplo: o Sol seria a personalidade brilhante e exposta (como o astro-
rei), enquanto Marte é a vontade belicosa (artes “marciais” são marcianas), e Mercúrio tem a
ver com o conhecimento (Hermes é o nome grego de Mercúrio, e por isso que a hermenêutica
tem esse nome). E ainda há outros desdobramentos simbólicos de elementos e várias outras
coisas que podem ser entendidas neste vídeo.
Em suma: existe uma correspondência simbólica para a compreensão da sociedade e
este conhecimento é utilizado para um entendimento pessoal. A astrologia em nada tem a ver
com as forças físicas, e a ideia de energia aqui é uma coisa que não é passível de detecção
material. Resumidamente, astrologia é um conhecimento místico e não necessariamente
religioso (são coisas diferentes), que não se propõe a ser uma ciência, mas é uma forma de
conhecimento muito bem ordenada que não nega a realidade presente — aliás, se inspira nesta
para precisão de ângulos em um mapa natal, radicalmente diferente de uma teoria da
conspiração como a terra plana que nega o formato do planeta. Aliás, Aleister Crowley, um
mago inglês e profeta da Nova Era, que recebeu um livro sagrado, fez um tarot próprio e o
escambau, criticou uma ideia de astrologia científica. Na minha opinião, não sei se há alguma
outra autoridade tão boa no assunto quanto ele.
Então os três pontos de comparação do Pirula da Terra Plana com a astrologia são que:
1) são antigas igual; 2) não possuem respaldo algum em evidência; 3) os argumentos dos
defensores se baseiam em viés de confirmação e péssima compreensão de leis da física. Bem,
o primeiro ponto não é possível de discordar. O terceiro argumento falha no desconhecimento
dele sobre a astrologia (não é baseada nas leis da física, mas em outras questões), algo que,
honestamente, não é prioridade para o Pirula (e não o julgo por isso). Mas o segundo argumento
(“não possuem respaldo algum em evidência”) tem a ver com a ideia central do próximo
assunto, que é a construção do conhecimento.
COSMOLOGIAS DA CIÊNCIA
Vamos assumir que existe A Ciência e a “pseudociência”, e cada uma possui formas
distintas de criação de conhecimento, onde a primeira privilegia a materialidade dos fenômenos
ao mensurá-las estatisticamente, algo que não é possível com as “pseudociências” (que admitem
ter um rigor científico). Contudo, estas não podem ser descartadas apenas por não utilizarem o
mesmo registro de conhecimento daquelas, assim como não se deve considerar “pseudociência”
qualquer forma de conhecimento que escape do método cosmológico científico.
“Cosmologia” é a forma de ordenamento dos seres, sujeitos e objetos, em uma forma
de concepção de mundo (cosmos). Existem diversas cosmologias, como ameríndias, religiosas
como judaica e cristã, e a ciência também é uma cosmologia que possui suas próprias
ontologias, marcadas pela materialidade. De fato, todos os avanços tecnológicos da
modernidade foram possíveis graças a esta forma de raciocinar o mundo. Particularmente, gosto
do GPS para ilustrar estes avanços em um sistema altamente sofisticado que é resultado das
aplicações da relatividade einsteiniana.
Uma outra cosmologia é a linguística. Um autor pós-moderno, Jacques Derrida,
afirmou que nada existe fora do texto e esta ideia traz consigo alguns resultados interessantes.
O primeiro deles é que apenas conseguimos conceber o mundo enquanto linguagem, enquanto
texto. Desafio a qualquer pessoa me mostrar um número 1, uma situação destinada ao fracasso
pois o número 1 não existe além de um conceito matemático ou como um sinal gráfico (1).
O ponto que quero trazer discutir aqui é que o método científico das “hard sciences” é
apropriado para uma forma específica de produção de conhecimento, que é aquele passível de
testes em laboratórios. Isolam-se as variáveis, observam-se os objetos, criam-se hipóteses,
aplicam-se os testes e repete-se o processo para alcançar um resultado determinado. Remédios
são produzidos desta forma, bem como outros exames são desenvolvidos, e novos materiais são
descobertos. Esta é a única forma de se fazer ciência? É óbvio que não.
Darei um exemplo de objeto difícil de reproduzir em laboratório: racismo. Kimberle
Crenshaw é a criadora da teoria feminista interseccional, cunhando o termo em um artigo de
1989, onde ela faz aparecer os marcadores racial e misógino nos critérios de admissões e
demissões em empresas nos EUA (um texto em português onde ela menciona este trabalho pode
ser acessado neste link). Como reproduzir a experiência da demissão de mulheres negras em
laboratório para comprovar o racismo evidente? Existem outras formas de análise estatística,
como o cruzamento de dados das próprias demissões ou em ambientes controlados para
observar as reações dos sujeitos, mas isto não faz com que o racismo estrutural não seja
confessado, nem permite medir o nível de racismo de uma pessoa, e ambas informações seriam
dados objetivos. O mesmo vale para outras pressões da sociedade, como o machismo,
patriarcado e a própria exploração da economia capitalista. Citando Roy Wagner, a antropologia
(e estendo esta afirmação para as humanidades em geral) não possuem uma objetividade
absoluta como as “hard sciences” racionalistas se pretendem a ter, mas sim uma objetividade
relativa que é construída a partir de vários contrastes que não é evidente em um primeiro
momento. Isso não significa que as humanidades sejam terra de ninguém, sem qualquer tipo de
metodologia. Um clássico absoluto é Argonautas do Pacífico Ocidental (1992), de Bronisław
Malinowski, onde a introdução possui o título autoexplicativo “Objeto, método e alcance desta
pesquisa”.
Como alguém que consome conteúdos de divulgação científica, eu percebo uma certa
arrogância de divulgadores que utilizam o Método Científico (com eme e cê maiúsculos) como
um evangelho para determinar o que é ou não é ciência. A psicologia é outra área do
conhecimento que não é possível de ser reproduzida em testes laboratoriais, logo deve-se
categorizar a psicologia como uma pseudociência por isto e erradicar com o seu estudo
acadêmico? A ideia aqui é que existem formas de produção de conhecimento distintas que não
devem ser descartadas simplesmente por serem diferentes umas das outras. Se é o caso, então
o que pode ser definido como ciência ou não-ciência? Bem, esta é uma questão para a filosofia
da ciência e que, honestamente, não tenho calibre para responder, mas abre espaço para outra
questão que é relevante para pensarmos a respeito e chegarmos a alguma resposta.
DO OBJETIVO DA CIÊNCIA:
[…] É certo que com a ciência se pode favorecer um e outro objetivo. Talvez agora
se conheça mais a ciência por causa de sua faculdade de privar os homens de seu
prazer e de torná-los mais frios, mais insensíveis, mais estoicos […].
(NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 49)
Na minha leitura (que é nietzschiana), a grande crítica à ciência moderna é que esta
não resolve questões “da alma” humana. Nós, enquanto grande civilização humana, enviamos
artefatos para além do nosso sistema solar, conseguimos detectar doenças ainda em um nível
embrionário, somos capazes de produzir alimento para alimentar o planeta inteiro. Ainda assim,
desenvolvemos depressão, morremos de fome, nos matamos em guerras e suicídios. Esta crítica
ao pensamento moderno, que concebeu o mundo contemporâneo, aparece em diversas formas
que são menosprezadas pelas ciências “hard”. E há duas áreas do conhecimento que são
desprezadas por divulgadores de ciência, bem como acadêmicos “hard”, e que podem contribuir
para isto: homeopatia e filosofia pós-moderna.
Começo pelo primeiro. Não vou entrar no mérito dos testes clínicos da homeopatia,
que é bem demonstrada a ineficiência farmacológica, mas sim sobre a forma de tratamento. Um
médico homeopata observa o paciente como um sujeito e valoriza a “individualidade enferma
em seus aspectos bio-psico-sócio-espirituais”, e não como uma máquina defeituosa que precisa
ser consertada com remédios. O sucesso da homeopatia e sua resiliência como campo da
medicina não estão na eficácia do medicamento, mas sim no engajamento do paciente que é
tratado como um ser humano, algo que não ocorre nas clínicas médicas de um modo geral. O
canal Kurzgesagt — In a Nutshell tem um ótimo vídeo a respeito da homeopatia, abordando
lobby, farmacologia e as razões pelo seu sucesso (em inglês, mas com legendas).
Como é esperado, Pirula também fez um vídeo sobre homeopatia, especificamente o
debate que ocorreu na USP. Logo no início do vídeo, ele critica a “firme convicção de seus
usuários e praticantes”, dizendo que isto pode ser para qualquer crença. Novamente, não vou
discutir sobre a validade da homeopatia, mas sim discutir as possíveis motivações que levam a
alguém optar um tratamento que é alvo de críticas pela comunidade médica. E esta motivação,
cogito, estaria embasada numa descrença da ciência moderna que não é capaz de resolver
problemas humanos intangíveis, não quantificáveis. Ao mesmo tempo, esta mesma ciência
privilegia a materialidade dos fenômenos físicos, químicos e biológicos. Exemplos
contemporâneos de ambientes propícios para produção de mal-estar e doenças são a academia
(universidade) e o local de trabalho. Resultado: epidemias de analgésicos opioides e de
psicoestimulantes para lidar com a pressão produzida nestes locais, mas as causas não são
resolvidas.
Este é o meu argumento de porque as pessoas acabam se tornando “naturebas” e negam
a medicina moderna e é neste ponto que divulgadores científicos poderiam se pautar melhor:
tratar as pessoas como sujeitos complexos que estão inseridos em sociedades com pressões
diversas. A pretensão de uma pureza objetiva e clara para resolver problemas possui vantagens
(como avanços tecnológicos), mas também possui limites. A sociedade não é objetiva e as
pessoas tornam-se sujeitos nessas situações que fogem de modelos matemáticos. E aqui entra a
crítica pós-moderna, que aponta os limites da modernidade e a desconstrói, mas não chega a
apresentar uma solução. Para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, sugiro a leitura de
O mal-estar da pós-modernidade, do Zygmunt Bauman. Este Sonho de Pureza, este construto
ideal a ser atingido pela Ordem, este “meio regular e estável para nossos atos; um mundo em
que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuías ao acaso, mas arrumadas
numa hierarquia estrita — de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis,
outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis” (BAUMAN, p. 15), é buscado pela
ciência e medicina modernas, mas falham em alcançar outros locais além do laboratório. E isto
se agrava quando divulgadores científicos agem quase como proselitistas, afirmando
categoricamente que aquilo que escapa de um método determinado deve ser sumariamente
descartado. Eu discordo desta rejeição. O que deve ser feito é compreender estes outros modos
de pensar o mundo para buscar outras soluções que estão além dos nossos limites teóricos, como
tem sido o trabalho do Viveiros de Castro em torno do perspectivismo e do pensamento
indígena amazônico. A relação com a natureza destes povos é completamente diferente da
nossa — e temos muito a aprender com esta cosmologia.
Atualmente, não percebo uma boa ideia de divulgadores científicos em criticar a
astrologia e a homeopatia pelas razões que discuti até agora. Penso que seria muito mais
produtivo em compreender estas visões de mundo e incorporar na postura acadêmica, nem que
seja para admitir os limites do método científico, algo que não é feito e pode gerar algo bastante
nocivo como a ideia de eugenia. Não quero cair na Lei de Godwin aqui, mas a comparação feita
pelo Pirula de astrologia com eugenia foi bastante infeliz. O argumento é que a normalização
delas é nociva pois ambas são interpretações erradas da realidade, porém ele não aponta que a
fundamentação delas são diferentes. Enquanto o discurso da astrologia não nega a ciência e a
postura terraplanista tenta colocar em xeque o pensamento científico, a eugenia é justamente
uma hipervalorização das ciências biológicas. Este mesmo discurso, hipercientificista e
eugênico, ainda existe em círculos que vão além de supremacistas raciais, como os “incels”
(celibatários involuntários) que usam argumentos retirados de livros de eugenia, como a
formação do crânio, para determinar para sua solidão. Este é um discurso que busca evidências
na ciência e que pode levar pessoas a matar.
Bem, este texto já está muito maior do que eu planejei e de forma alguma é um ataque
ao Pirula e demais divulgadores de ciência. Ao contrário, acredito que precisamos melhorar a
forma que a ciência é divulgada na sociedade. Da mesma forma que as informações mal
difundidas como a fosfoetanolamina podem causar sérios problemas, menosprezar outros
estilos de vida podem gerar um ar de arrogância aos cientistas que pode dificultar ainda mais a
comunicação e causar ainda mais ruídos. Saber de astrologia pode não resolver o próximo
problema da física, mas pode ajudar a rir de mais algumas piadas e entender como as pessoas
se entendem como pessoas, como já disse Douglas Adams. Seja como for, há muito mais coisas
entre o céu e a terra do que já sonhou a nossa ciência.