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18 Recensbes SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justia; 2 politica social na ‘ordem brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1979. 138 p. ‘Luclano Otveira * A andlise empreendida por Wanderley Guilherme dos Santos da politica social brasileira comece com o estabelacimento de dois concetos beslares: cu: ‘mutagéo « eqidade, O primeiro diz respeito és “ages destinadas a aumentar a oferta. de bens @ servigos disponvels ", enquanto que 0 segundo referese 20 “ideal de reduzir ou extinguir desequiforios soca. Os dois conceitos no es- ‘tho juntos por acaso. Na verdode,jé por natureza eles esto dialeticamente uni- os, ne medida em que redueSo ou extingbo dos desequilfbrios socisis, que & © compromiso com a eqiidade, importa sempre nume subtrapio de bens eser- vicos a0 somatério da scumulaglo. ra, a politica social vem a ser precisamente 0 conjunto de medicas em- preendidas pelo governo no sentido de favorecer a uma sem comprometer 2 re produeSo da outra, donde jé se v8 que essa nio serd uma tarefa sem dilemas ou Ccontradicées, A anélise de como o Estado brasileiro a tem enfrentado, bem assim das conseqlléncias 4s vezes inesperadas que esse enfrentamento tem produzido, 60 que constitui o fulcro central do trabalho de W. G. dos Santos. Em termos de classficagio, 0 autor divide a politica social global do verno em tris conjuntos espectficos de politicas que ele denomina de preventi- vas, compensatérias e redistributives. or politicas preventivas entende-se 0 conjunto de medidas governemen- feveriam, no limite, produzir 0 minimo de desigual Como exemplos destes politicas, o autor se reporta @ pontos como: emprego, saldrio, sadde piblica, educacéo, saneamento €¢ nutricdo. “Por politicas compensatérias sZ0 entendidas aquelas medidas des- tinadas a remediar desequilfbrios gerados no processo de acumulado". Ai se ‘compreendem as medidas que consubstanciam a chamada politica previdencié ria, realizada via INPS (hoje desmembrado em INPS “stricto sensu” e outros 6r- (0s congéneres) @ IPASE. E, finalmente, as politicas redistributivas “so aque- las explicitamente orientadas, a0 menos em inteneéo, para a redistribuicgo de ‘enda e de beneficios socials”. Constituem o seu instrumental o PIS-PASEP, 0 FGTS eo FUNRURAL. Aqui, uma observaglo: 0 que vai especificamente dife renciar as chamadas polfticas redistributivas das politicas compensat6rias, no seré bem 0 seu conteddo (afinal, o FUNRURAL é uma espécie de INPS do tra- balhador rurall, e sim o fato de que o seu beneticidrio nfo contribui pecuniaria- ‘mente para a formaco do fundo que iré benefici-lo. Depois voltaremos 8 este ponte, * Aluno do Mestredo de Sociologe de UFPE. i. & Tebp., Recife, 811): 107-121, jandjun., 1981 Recensbes n9 ‘A implementacio dessas trés politicas no 6 um processo harménico @ coerente. Ao contrério disso, com freqUiéncia a plene reslizacéo de uma des me- ‘as desejadas 6 comprometida pelo mecanismo de funcionamento de uma das ou- tras, iss0 porque as exigéncias contraditérias da eqlidade e da acumulagio nfo ‘8 exercem de modo uniforme sobre todas eles, havendo momentos ~ & depen- dor de decisdes politicas circunstanciais ~ em que determinade politica esté mais comprometida com o ideal da eqiidade, enquanto que ums outra, da qual el dopende, esté mais atenta is exigéncias da acumulacéo. O exemplo mais enfético disso — @, curiosamente, também o mais atual ~ 60 problema da previdéncia so- cial no Brasil, estreitamente associado as politicas ocupecionsl e salarial. Histo camente, a origem dos recursos da previdéncia social, pelo menos # partir de fins da década de 30, quando se criaram os diversos institutos de aposentadories © pensbes (IAPs), estove sempre vinculada & massa salarial paga peles empresas 0s seus empregados. Os virios institutos existentes guardavam cade qual sua per- sonalidade administrativa e independiéncia financeira, em razéo do que @ masse trabalhadora usufruta de assisténcia médica e beneficios de aposentadoria de mode diferenciado, 2 depender do volume de recursos que 0 seu instituto fosse capaz de carrear para seus cofres — em outros termos, a qualidade de assisténcie médica e 0 valor da aposentadoria do trabalhador dependiam do maior ou me- nor desconto que ele fizesse pera a sua instituieSo previdencitria, desconto esse diretamente proporcional ao seu salério. Era, em suma, uma estrutura que man- tinha @ reproduzia, a nivel previdencisrio, 2 estratificagéo salarial existente no mercado de trabalho. Com a edigéo da Lei Orginica da Previdéncia Social, em 1960, pelo menos os servigos médico-essistenciais pessaram desde entio a ser devidos de modo uniforme a todos os segurados e seus dependentes, independen- temente do valor de sua contribuigéo. Esta medida, inegavelmente, representou um avaneo do ideal da eqiidade, na medida em que uma assisténcis médica gene- ralizada opera em favor de uma redugio de desigualdades. Ocorre, todavia, que no que diz respeito as poltticas ocupacionale salarial implantadas ap6s 0 autori- tarismo instaurado em 64, @ inspiragdo governamental tem sido no sentido de vilegir a acumulaglo, vie modernizae0 tecnolégica — inibidora da expan- slo do nivel de empregos — e achatamento salarial. Ora, como 0s recursos previ- ddencisrios crescem proporcionalmente 80 volume de empregos e & masta salaris page no Pals, © como o avango da eqiiidade na érea previdencitria tem exigido lum volume crescente de recursos para atender & demands acrescida, observe o autor que “a tendéncia do sistema para a insolvéncia 6, portanto, clara ‘Mas, para além desses efeitos, a forma de captacio e de aplicagéo dos recursos através dos quais 0 governo elabora # pée em prétice suas politicas so- Ciais, tom reflexos importantes sobre o préprio concsito de cidadenia — e aqui ‘tocamos num dos aspectos mais ricos ¢ sugestivos da livro de W. G. dos Santos. Ch & Trop, Recife, 91}: 107-121, jan fun, 1981 120 Recentéet Segundo 0 autor, 0 tipo de cidadania que a politica social da era de Var- 92 exprime constitui o que ole chama de cidadania regulada, na medida em que "sho cidadéos todos aquelas membros da comunidade que se encontram localiza dos em qualquer uma das ocupagies reconhecidas e definides em lei. A extensio dda cidadania se faz, pois, via regulamentagio de novas profissBes e/ou ocupagses, ‘em primeiro lugar, e mediante ampliago do escopo dos direitos associados a es- tas profissdes, antes que por expansSo dos valores inerentes ao conceito de mem: bro da comunidade”. Ora, a politica previdencidria diferenciads da era de Var- 925, atribuindo direitos a partir de vinculagdo do trabalhador a determinedas cate- ‘orias profissionais, ¢ tornando os servigos ¢ beneffcios postos a sus disposicéo roporcionais a sue contribuigdo pretérita, reflete ¢ reforea 0 tipo de cidadania @ que se refere 0 autor. Todavia, jé em plena era de autoritarismo pos-64, que ‘0 autor caracteriza como uma era de cidadania em recesso, devido 8 desmobili- zagio forcada das instituigées civis e sindicais, @ criaglo do PISPASEP, do FGTS e do FUNRURAL consubstanciam — ainda que timidas e, no caso do FGTS, desvirtuada — politicas redistributives capazes de inaugurar uma nova perspectiva de cidadania, malgrado seus autores. No que os trés programas ino- vam em relagéo & politica previdencidra cléssica é que os seus beneficidrios no esto obrigados @ nenhum tipo de contribuigio pecunisrie prévie para terem direito aos seus beneficios. Tals beneficios, além do mais, no caso do FUNRU: RAL sio absolutamente indiferenciados em relagdo 30s seus segurados, enquan- to que no caso do PIS-PASEP eles chegam a ser inversos em relaglo aos ganhos salariais dos trabalhadores inscritos no programa. J no caso do FGTS, todavia, (© montante a que tem direito o empregado demitido 6 calculado em proporeo direta sobre 0 salério que Ihe era pago. De toda forma, rompe-se a gica contra- tual de certo modo subjacente a politica previdencidria até entio posta em préti- <2 no Pals (afinal, 0s trabslhedores segurados do INPS descontam contribuicées antes de terem direito a qualquer beneficio), inaugurando-se uma pauta de dicei- tos a partir da mera participaglo no procesto produtivo via trabalho. Como sintetiza e conelui 0 autor de modo esperangoso, “o inicio de ‘novos programas, em anos recentes, revelou a impossiblidade de replicar o mo- delo da cidadania regulada, responsivel, em parte, pelas perspectivas pouco ani- rmadores do sistema previdenciério. (. . .) A desorganizacéo da vida social que ‘0 sequiu a0 movimento da 1964 poderd ter gerado, apesar de seus lideres, as ccondigées para a omergéncia de um sistema de valores centrados em torno dos ‘conceitos de cidedania universal, trabalho e justica”. ‘Mas, se de um lado conclul esperangoso, de outro 0 autor néo estabelece nem cré estabelecivel um padréo de politics social que garante de imediato a ‘ealizagio da eqiidade, independentemente das exigéncias da acumulagéo. Na verdade, em parte devido ao jf existente quadro de desigualdades com que o ad. 1, & Trip, Recife, 91): 107-121, n.jjun, 1981 Recensber 121 rministrador se defronta, dentro do qual, aids, desenvolve-se 0 processo acumul tivo om curso que no pode ser interrompido, o governo praticamente obrigado 4 exorcitar permanentemente 0 que ele chema de céiculo do dissenso, “isto 6, & taxa de injustica, em favor da acumulacdo, que seré socialmente tolerada ou, ‘conversamente, a magnitude dos recursos que se podem subtrair & acumulacio, fem favor da eqiidede, sem prejufz0 catastréfico para 0 processo ampliado de ‘reproducdo. Em qualquer caso, a solucdo de satisfacdo/insatisfagio nfo seré homogeneamente distribuids pela sociedade, de onde resulta apropriado f lar-se em ‘cflculo do dissenso’ tolerdvel como pardmetro fundamental para as decisées governamentais, quero dizer, de todo e qualquer governo”. Além disso, os termos acumulagio e eqdidade estio colocados num nivel dde abstracéo bastante alto, onde 6 poss(vel raciocinar em termos de clara e sim- ples polaridade. Ora, essa simplificardo e essa clareza se desvanecem quendo os ‘administradores passam para o terreno das decises concretas, na medida em que 12 opeBo por uma providéncia qualquer comprometida com um dos termos pola ‘es, em detrimento do outro, nunca 6 uma opelo to simples assim. Ao contré- rio, pode-se sempre imaginé1a como estando condicionada & néo ocorréncia de uma terceira consequiéncia ai i ‘opsio preterida. Co- mo diz 0 autor, "isto quer dizer que, diante da disjuntiva, por exemplo, entre ‘estabilidade no emprego ¢ menores salérios,alguém, quase certamente, preteriré ‘estabitidade a menores salérios, desde que tal preferéncia nfo iim ‘A introdugéo do condicional (...) significa que 1 regra de decisio nfo pode ser tho simples quanto a disjungo acumulapo ver- sus eqiidade sugere. Em cada caso, e preferéncia por uma alternative dependeré de um terceiro termo e, consegiientemente, o automatismo da regra se esvazi Por essa e outras razBes 6 que o autor termina por considerar indispensé- vel a implementacdo de qualquer politica social que se queiralegitima “o perms nente debate, a controvérsia e, sobretudo, o exercicio da tolerdncia democrst Como se vi, além de um livro Gtil para se pensar sobre a crise atual da previdéncia, um livro também estimulante para se continuar a luta pela abertura politica. CL & Trip, Recto, 9(1): 107-121, fn. fun., 1981

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