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Claudio Pereira de Souza Neto Daniel Sarmento Direito Constitucional Teoria, historia e métodos de trabalho wk 4 CLAUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO. DANIEL SARMENTO DIREITO CONSTITUCIONAL TEORIA, HISTORIA E METODOS DE TRABALHO 2 edigao Belo Horizonte O roriirn 2014 © 2012 Eatoes Fé Lid, 20142 igo “rei 9 rproducoots ow paride ob Por galquer mei eletinio, ‘nelisive pot press eropeifcon ene 0t0nzaG80 express donee Consetho Ealitoriat Adlon Abreu Dalla AlicioProlucs Nogueisa Bath, ‘Alexandre Coutinho Pagarie ‘André Ramos Tavares Carlos Aynes Brit {arlos Miri da Siva Vette Cirmen Lia Antunes Roche (Cesar Augusio Guimaraes Pees Clovis Reznos Cistiona Fortin Dinord Adelaide Museti Gro, Diogo de Figueiredo Morcia Next gon Bockman Moni nGabarto Fabricio Motes Femando Rossi Flivio Henrique Unes Perens Flotioo de Azevedo Mare Gustavo justine deOlieiee Ins Vinginis ato Sore Jor Ulises Jacoby Fernandes Joater Free Luciano Ferme Licto Dein Marcia Carla Perea Rein Marcio Commarosane ‘MorcosEhahandt je Maria Suvia Zanata Ds Pet de Neto Ney owt de Frit Pirlo Othon de PomesSesiva Fh Paulo Meaeste Romeu Felipe Bacetor Fy Sergio Gucees O roriisgy is Cliuatio Rodrigues Fetreita Presidente Eton Supervisto stots Morcelo Beco Revisdo: Mailane Cos Manso Batico ‘Wlwciion Bible adeson Niguel Ben ya 025 Rein ndexacbo: Paloma Femanter Neto CRB 2752 6 Regae Sige anes C6 2751-6 Reng (Capa projetogritic: Wales Sanne Prawramacto: Deval Brags “Te get 227~16 andor —Funcondeos P30130.007 Belo Horizonte— Minas Gera ‘toraforumcom ge -—. a S74 Souza Neto, Clio rien de ; os el: (31) 21214900 i21.4yya ‘lorsorumaeditortorun ons pe 2 ae, too tor stein e minty st iabalho / Ciao Beira de Suna Neto; Daniel Sammento=2 ed Bla Hence rum, am, ie neeestoral2 Diet abe Prclochumanos 4 Meodoiga. 1 Sirmeng, Daniel. Tato SOUZA NETO, Chidori de: 5a MEMENTO, Danie. {etalha 2d. Belo Horizome: Fosans ae 24 pSaN $n Ap ISON 9 sag etalon ori heir e még de S789.7700 8604 concinasranounaes | 47 que o grande “agente” desta irradiagao ¢ 0 juiz, que nao ¢ eleito. O elevado grau de indeterminacao das normas empregadas no processo de “filtragem constitucional” agrava o problema. Em regra, serao necessarios procedimentos hermenéuticos mais complexos, como ponderagées ¢ interpretagdes construtivas, nos quais 0 julgador tera participago mais ativa na definicao do resultado. Aqui, dois registros sao necessdrios. Em primeiro lugar, nao se deve supor que seja possivel extrair da Constituigao, pela via hermenéutica, as respostas para todos os problemas juridicos e sociais. Quem defende que tudo ou quase tudo jé esta decidido pela Constituicao, e que o legislador é um mero executor das medidas jé impostas pelo constituinte, nega, por consequéncia, a autonomia politica ao povo para, em cada mo- mento da sua histéria, realizar as suas proprias escolhas. Se é verdade que constituigses substantivas, como a brasileira, vio muito além de apenas estabelecer as “regras do jogo”, no é menos certo que um espaco minimo para o jogo politico deve ser preser- vado da voracidade da jurisdicio constitucional.”” O excesso de constitucionalizagao do Direito — a panconstitucionalizagio — reveste-se, portanto, de um viés antidemocratico. Em segundo lugar, é fundamental que haja racionalidade e transparéncia na atuacio jurisdicional que produz a irradiagao dos principios constitucionais, constitu- cionalizando o ordenamento. As decis6es judiciais devem ser racionalmente justificadas, de forma a demonstrar nao so as partes do litigio, mas também ao ptiblico em geral, que 0 resultado alcangado € 0 mais adequado a ordem juridica e as peculiaridades do caso.** Quanto mais uma decisao envolver alguma margem de valoragao do intérprete, maior deve ser 0 cuidado empregado na fundamentacao. Em suma, a constitucionalizagao do Direito — pelo menos na sua dimensao de “constitucionalizacao-releitura” —, é fendmeno positivo, que semeia por todo o orde- namento 0s valores emancipatérios contidos na Constituigao. Porém, ela deve respeitar espacos minimos de liberdade de conformacao do legislador, derivados do principio democratico, ¢ ser realizada com rigor metodoldgico, tendo-se sempre presente a exi- géncia de justificagao publica das decisées judiciais. 1.8 Bloco de constitucionalidade e tratados internacionais sobre direitos humanos Entende-se por bloco de constitucionalidade o conjunto de normas a que se reconhece hierarquia constitucional num dado ordenamento. Tais normas, ainda que nao figurem no documento constitucional, podem ser tomadas como parmetro para oexercicio do controle de constitucionalidade. © Na teoriajuridica alema existe um debate interessante que confronta as visdes da Constitulglo como “moldura” cecomo “fundamento”. primeira concepcio preservaria maior espaco para as deliberagGes politica ea segunda tenderia a extrair mais vineulagées substantivas da Constituigio, por meio dos instrumentos da hermenéutica constitucional. Veja-e, a propésite ALEXY, Robert. Posficio. n: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais BOCKENFORDE, Emst-Wolfgang. Les méthodes d’interprétation de la Constitution: un bilan critique. In BOCKENFORDE, Emnst-Wolfgang. Le droit, 'Ett et la Consttation democratique,p. 249-250; STARCK, Christian La suprematie de la Constitution et la justice consttutionnelle, In: STARCK. Christian. La Constitution: cadre et mesure dt: droit, p. 26-30; e SILVA, Virgilio Afonso da, Cansttucionalizngio do dreto: os direitos funcamentais nas rlacies entre particulares,p. 107-13 © Cf, PERELMAN, Chaim. La motivation des décisions de justice: essai de synthése. In: PERELMAN, Chaim; FORIERS, Paul, La motioation des déisions de justice, p. 413-426 48 | Gammoconsimucional-THOWA HsTHAEMETODOSDETEAEALHIO. Oconceito de “bloco de constitucionalidade” tem a sua origem no Direito Consti- tucional francés. O Conselho Constitucional da Franga, em decisao proferida em 1971,” afirmou que, como 0 Preambulo da Constituigao do pais, editada em 1958, se refere 4 Declaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao, e ao Preambulo da Constituigéo de 1946, esses textos teriam também se incorporado a ordem constitucional vigente. Tal orientacao foi extremamente importante para 0 constitucionalismo francés, pois permitiu que a jurisdicao constitucional do pais se estendesse & protego de um amplo clenco de direitos fundamentais, ausentes do texto constitucional. Na sua redacao atual, © preambulo daquela Constituigo se reporta ainda & Carta do Meio Ambiente de 2003, que, dessa forma, também integra o bloco de constitucionalidade do pais.” A Constituigao francesa nao é, portanto, composta apenas por seu texto, mas também por aqueles outros diplomas normativos. Em diversos outros paises, as constituigdes aludem a tratados internacionais de direitos humanos, incorporando-os ao bloco de constitucionalidade. E assim, por exemplo, na Argentina, cuja Constituicao, a partir da reforma aprovada em 1994, atri- buiu hierarquia constitucional a diversos tratados e declaracées de direitos humanos enumeradas em seu texto.” Também a Constituicao da Venezuela concedeu hierarquia constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos. O mesmo se deu na Constituigao austriaca, em relagdo 4 Convencao Europeia de Direitos Humanos e aos seus protocolos adicionais. No ordenamento juridico brasileiro, todas as normas contidas no texto constitu- cional integram 0 bloco de constitucionalidade. Também o integram preceitos constan- tes de emendas constitucionais que nao foram incorporados ao texto da Constituicao. Além disso, existem princ{pios constitucionais nao escritos, que podem ser extraidos pela via hermenéutica da ordem constitucional, que também compdem nosso bloco de constitucionalidade. Nesta matéria, o principal debate travado no pais diz respeito aos tratados internacionais sobre direitos humanos. Com efeito, o art. 5%, §2°, da Constituigéo Federal dispde que “os direitos e garantias expressos nesta Constituicdo nao excluem outros decorrentes do regime e dos principios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Reptiblica Federativa do Brasil seja parte.” A partir deste preceito, um importante segmento da doutrina brasileira, capitaneado por Anténio Augusto Cangado Trindade” e Flavia © Decisio n® 71-44 DC, de 16.07.1971 ” A redagGo atual do Predmbulo da Constituigio Francesa de 1958 ¢ a sewuinte: “O povo francés proclama sole- rnemente sua adesao aos direitos humanos aos principios da soberania nacional tal como foram definidos pela Declaragao de 1789, confirmada e completada pelo Preambulo da Constituico de 1946, assim como aos direitos ‘edeveres definidos na Carta do Meio Ambiente de 2003" * Deacordo com o art.75, XXIL, da Constituigao ca Argentina, os tralados e declaragies de direitos que possuem hhierarquia constitucional naquele pais sio: a Declaragio Americana de Direitos ¢ Deveres do Homemy a Decla- ragao Universal de Direitos Humanos; a Convencao Americana sobre Direitos Humanos; 0 Pacto Internacional de Diteitos Civis ¢ Politicos e seu Protocolo Facultative; a Convencao sobre a Prevengao ¢ Sancao do Delito de Genocidio; a Convengao Internacional sobre a Eliminagio de todas as Formas de Discriminagao Racial; a Convengio sobre a Eliminagao-de todas as Formas de Discriminagao contra a Mulher; a Conven¢ao contra a Tortura e outros Tratamentos Crucis, Desumanos e Degradantes; ea Convengaio sobre os Diteitos da Crianca. A propssito do bloco de constitucionalidade na Argentina, cf. MANILI, Pablo Lixis. El bloque de constiltcowalidad: la recepcién del derecho internacional de los derechos humanos en el derecho constitucional argentino, CANCADOTRINDADE, Anténio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidace quanto a protegio dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Arquivos de Direitos Humauas,n. 1, p.3-55. exrmuor | 49 ‘CONCEITOS PRELIINARES Piovesan,” passou a sustentar que os tratados internacionais sobre direitos hamanos adotados pelo Brasil tém hierarquia constitucional. Varios argumentos foram emprega- dos para sustentar esta tese. Invocou-se a prépria redacao do texto constitucional, bem como a histéria do preceito, que teria sido incluido na Carta de 88 exatamente com 0 ptopésito de alcar é hierarquia constitucional os tratados sobre direitos humanos.* Mas © argumento mais importante é de natureza substantiva. A hierarquia constitucional serviria para proteger mais intensamente os direitos humanos contidos nos tratados, em convergéncia com 0 espirito da Constituigo de 88.¢ com a tendéncia mundial, sur- gida apéso final da Segunda Guerra Mundial, de conceber tais direitos como limites prépria soberania estatal, Para essa corrente, na hipétese de colisao entre norma contida em tratado internacional de direitos humanos e preceito da propria Constituigao, deve prevalecer aquela que seja mais favoravel ao titular do direito, saudoso internacionalista Celso Duvivier de Albuquerque Mello” ia ainda mais longe, ao defender a hierarquia supraconstitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos._ — ae Contudo, nenhuma destas posigdes prevaleceu nb STF. hum primeiro momento, a Corte, em julgamento sobre a validade da prisdo civil do depositario infiel — au- torizada pela Constituigao, mas vedada pela Convencao Interamericana de Direit Humanos —, afirmou que os tratados internacionais sobre direitos humanos teriam (Brg ero eles se confrontassem com leis internas, dever-se-ia aplicat 0 critério cronolégico otto critério de especialidade para resolugao da antinomia, mas nao o hierarquico. O Supremo seguiu, nesta matéria, a mesma orientacao que vinha adotando sobre a hierarquia dos demais tratados internacionais, firmada em prece- dente do ano de 1977.” Um dos argumentos invocados para sustentar tal posigao foi a_ rigidez constitucional. A incorporagao dos tratados no ordenamento interno depende coe ee ia oe todos don dosent deve ego de cata ova. que nie Die eo Se en ee ec poccas to art 5 ro win conatracnal eh BM prog Cindy Tae de esa Nacional Carats a ula de Coosa Se etait steals Conustadoa dane Elric jpn chery oe or tit Ramin ae Scoao des Drea Fates e Cries Ln a a ra tients eid deo do 86 fo dca cara cata. duet eres Co ai acinar 0 MTD cate Debtors Alnceorion O ge doar shar cécashngo Reda i TORRES Coon dnke enlneisa 28 eres ing nt setae hi Mora Aves uly 221498. 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Para superar essa orientagao, o Congreso Nacional, por meio da Emenda Cons- titucional n° 45/2004, inseriu, no art. 5° da Constituigao, #0s tratados e conven- ges internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trés quintos dos votos dos respectivos mem- bros, serao equivalentes as emendas constitucionais”. De acordo com esse preceito, 0 tratado internacional sobre direitos humanos que for submetido ao procedimento nele prescrito, que @semelhante ao de aprovacao de emendas constitucionais, pode alterar a Constituicao. Quanto aos tratados internalizados por meio desse procedimento nao ha duvida: eles integram a Constituigao, compondo 0 “bloco de constitucionalidade” Em caso de conflito entre tratado incorporado dessa forma e preceito constitucional, deverd prevalecer a norma mais favoravel ao titular do direita@)Mas a circunstncia de determinado tratado internacional de protegao dos Direitos Humanos ter sido in- ternalizado em conformidade com 0 §3° do art. 5° da Constituigao Federal, pasando a integré-la, nao impede que leis sejam aprovadas conferindo protecao mais ampla aos direitos fundamentais. Uma lei ordinaria que confira maior protecio nao sera consi derada inconstitucional. = i ‘Até © present momento, apenas a Convengio sobre os Direilos das Pessoas com Deficiéncia e sew Protocolo Facultative foram submetidos a esse procedimento. Em de- corréncia disso, passaram a fazer parte, de nosso catdlogo de direitos fundamentais, outros direitos especificos das pessoas com deficiéncia, além dos ja existentes no texto constitucional originario. ‘Apés a edigio da EC n° 45/2004, 0 STF, com composicao bastante renovada, revisitou o tema da hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Mais uma vez, a questao veio a baila em discussdo sobre a validade da prisao civil do depositario infiel, tendo em vista a vedacao estabelecida na Convengao Americana de Direitos Humanos.” Tratava-se, portanto, de tratado internacional aprovado antes da promulgacao da EC n® 45, cuja incorporagio, naturalmente, nao seguira o procedi- mento nela previsto. A Corte mudou o seu entendimento anterioy, passando a atribuir hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, aos tratados intemacionais de direitos hhumanos que nao tenham sido incorporados pela forma estabelecida pela EC n° 45. Pelo novo posicionamento, estes tratados internacionais sobre direitos humanos prevalece! sobrea legislacao interna, ressalvada apenas a propria Constituigao. Todavia, cles nao integram 0 bloco de constitucionalidade, j4 que se situam em patamar hierdrquico r ao da Constituicao. Cém isso, o direito brasileiro aproximou-se, quanto ao tema, de ordenamentos como o alemao (Lei Fundamental de Bonn, art. 25) ¢ o francés (Constituigao Francesa, art. 55).! sses conflitos podem suscitar quest propésilo, o Capitulo 12. * RE n?466.343+1, Rel. Min, Cezar Peluso. Dye, 05 jun. 2009, © Segundo o art. 25 da vigente Constituigao alems, “as normas gerais do Direito Internacional Pablico constituem parte integrante do direito federal. Sobrepoem-se as leis e constituem fonte direta para os habitantes do territ6- rio federal’. De acordo com art. 55 da Constituigao francesa, “os tratados e acordos regularmente ratificados es que a singela aplicagao de tal citério nao tem como resolver. Veja-se, 2 concenosrmananans | 51 No citado julgamento, nenhum ministro sustentou a tese da hierarquia legal dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Formaram-se na Corte duas posi- ‘g6es: uma, perfilhada pelo Ministro Celso de Mello — que reviu seu posicionamento anterior sobre o assunto —, reconhece a estatura constitucional aos referidos tratado: _foutra, majoritaria] capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, thes atribui hierarquia supralegal, mas infraconstitucional. Em julgados subsequentes, essa nova orientacao se enselidose Ha quem afirme que 0 art. 5°, §3°, da Constituigio teria natureza interpretativa, explicitando a estatura constitucional dos tratados de direitos humanos incorporados anteriomente sua introducao." Argumento adicional em Tavor da atribuigao de hierarquia constitucional a tais tratados liga-se a dinamica da recepsaio. Como se sabe, um novo texto constitucional (inclusive o decorrente de emenda constitucional) pode recepcionar as normas infraconstitucionais anteriores, editadas por meio de veiculo formal diferente do que ele estabelece, bastando que haja compatibilidade material entre as normas. Nessa hipétese, entende-se que a norma anterior passa a valer com novo status. Um exemplo importante ¢ 0 do Cédigo Tributario Nacional, que foi aprovado originariamente em 1965, por meio de Decreto-Lei, quando nao existia em nosso orde- namento a lei complementar. Como a partir da Constituigao de 1967 — e também na Carta de 88 — passou-se a exigir a edigao de lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria tributaria, entende-se que o CTN foi recepcionado como lei complementar. Ha quem sustente que o mesmo fenémeno teria ocorrido com os tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados antes da Emenda Cons- titucional n° 45. Como 0 art. 5°, §3°, da Constituigao, instituido por aquela emenda, deu aos novos tratados sobre direitos humanos hierarquia constitucional, isso teria implicado a recepgao dos tratados antigos com esta mesma estatura.'" Consideramos correta a atual posicio majoritiria do STF sobre o tema," endossada no voto do Ministro Gilmar Mendes proferido no RE n® 466. 343-1. Com efeito, por um lado, a tese da hierarquia legal dos tratados em questao, que antes prevalecia no STF, nao estava em consonancia com a valorizagio dos direitos humanos que se extrai da Constituigao. Ela nao Ihes proporcionava protecao suficiente, por deixd-los ou aprovados possuem, desde a sua publicacdo, autoridade superior & das leis, sob reser ;plicagio pela outra parte”. (heats linha, por exemple, 0 HC n¢ 940134P (Rel Min, Carlos Brito, Jug 1062-2009): “0 Facto de San José Aig Costa Rica (ratificado pelo Brasil - Decreto 678 de-6 de novembro de 1992), para valer como norma juridica interna do Brasil, ha de ter como fundamento de validade o §2 do art. 5° da Magna Carta. A se contrapor, entio, ‘2 qualquer norma ordinitia originarlamente brasileira que preveja a prisio civil por divida. Noutros termos: 0 Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o §2 do art. 5® da CF/88, pre- Yalece como norma supralegal em nossa ordem juridica interna e, assim, proibe a prisdo civil por divida. Nao E norma constitucional — 3 falta do rito exigido pelo §3° do art. 5° —, mas a sua hierarquia intermedisria de norma supralegal autoriza afastar regra ordinaria brasileira que possibilite a prisao civil por divida”. ‘Neste sentido, ef, LAFER, Celso. A internacionalizagao ds direltos nmanos: Constituico, racismo e relagies inter nacionais, p. 16-18. © Cf. FRANCISCO, Jost Carlos, Bloco de eonstitucionalidade e recepgdo dos tratados internacionais. I: TAVARES, ‘André Ramos; LUNZA, Pedro; LORA ALARCON, Pietro de Jesus (Coord). Reforma do Judicirios analisoda e ‘comentada: Emenda Constitucional 45/2004, p. 99-105. Esta posicao foi acolhida pelo ST} no RHC n° 18.799, Rel. Min, José Delgado. Dj, 08 jun. 2006. & No mesmo sentido, cf. BARROSO, Luis Roberto. Constituigdo e tratados internacionais: alguns aspectos da relagio entre direito intemacional e direito intemo, fn: TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luis Roberto, Direito constitueional internacional, p. 216-222. fa, em cada caso, de 52, | brroconstruciowat “Troe stoma SMTCDOSSE TARA HO excessivamente expostos & vontade do legislador ordinério. E também nao era compativel com a crescente abertura do constitucionalismo aos influxos do Direito Internacional. Contudo, a tese da hierarquia constitucional de todos os tratados sobre direitos humanos, conquanto sedutora, envolve problemas insuperdveis. O principal é 0 de que, além de uma inflaco constitucional sem precedentes, ela geraria absoluta incerteza sobre as normas que efetivamente compdem a nossa Constituigéo. O Brasil ¢ signatario de dezenas — talvez centenas — de tratados in- ternacionais que, dependendo da visio do intérprete, podem ser qualificados como relativos a direitos humanos. S6 no 4mbito da Organizagao Internacional do Trabalho so mais de 70 tratados que o pais incorporou, a maioria deles com dezenas de precei- tos, Nao é razoavel que se tenha uma Constituigao composta por muitos milhares de preceitos, ¢, pior do que isso, que sequer se saiba se determinada norma a integra ou no a Constituigio. A adogao da tese provocaria grande inseguranga quanto a extensao eo teor da Constituicdo: quais tratados teriam natureza constitucional? Quais normas efetivamente integrariam seu texto? Essa incerteza enfraqueceria a forca normativa da Constituicao, submetendo os cidadaos e agentes piblicos a um sistema constitucional de complexidade praticamente incontrolavel. Por outro lado, o ganho em matéria de protecao de direitos fundamentais nao seria tao significativo se a tese da estatura constitucional fosse adotada. Primeiramente, porque a hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, dos tratados, ja concede uma tutela bastante reforcada aos direitos humanos, salvaguardando-os inclusive do legis- lador. O status supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos enseja, inclusive, a possibilidade de exercicio do chamado controle de conzencionalidade das leis," por todos os juizes e tribunais brasileiros no julgamento de casos concretos, fundado na aplicagao do critério hierarquico para resolugao de antinomias."* O exercicio deste controle impéea nao aplicagao da legislacao interna infraconstitucional sempre que ela se afigurar incompativel com tratados internacionais de direitos humanos, bem como o dever de interpretar as normas internas a luz nao s6 da Constituicao, como também dos *® O controle de convencionatidade também pode ser exereido por cortes intemacionais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, o realiza frequentemente, como ocorreu no julgamento do caso Gomis Lund «outros v, Brasil, em que se afirmou a incompatibilidade entre a Convencio Interamericana de Direitos Hursa- nos ea Lei de Anistia brasileira, na parte em.que anistiara os crimes envolvendo graves violagies de dieitos ‘humans, cometidos por agentes do regime contra seus opositores, durante a ditadura militar. Sobre o controle de convencionalidade, ¢. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdcional da comvencionaldate das les; © SAGUES, Néstor Pedro. Obligaciones internacionales y control de convencionalidad. Estos Constitucionales, p. 117-135, “A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem firme jurisprudéneia no sentido de que o exereicio do contrite de convencionaldate, que tem por parimetro ndo s6.0 texto da Convengio Interamericana, mas a sua interpre- tagio por aquele tribunal, é um dever dos juizes e tribunais nacionais, decorrentes da sua vineulagio a0 Pacto Interamericano. Neste sentido, no julgamento do caso Almonacid Arellano y otro v. Chile, realizado em 2006, 2 Corte Interamericana ressaltou: “La Corte es eonsciente que los jucees y tribunales interns estén sujetos al im- perio de laley y, por ello, estén obligacos a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento juridico. Peto ‘cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convencién Americana, sus ueces, como parte del Estado, también estan sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convereidn no se vean mermadas por la aplicacion de leyes contraras a sa objeto y fin, y que desde tn inicio carecen de efectos uridicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de ‘control de conven- cionalidad’ entre las normas juridlicas internas que aplican en los casos concretos y la Convencidn Americana de Derechos Humanos. fn esta tarea el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino tambien la interpretacidn que del mismo ha hecho la Corte Interamericana”. concinonraaniinnees | 53 tratados internacionais de direitos humanos de que o pais seja parte.” De acordo com Néstor Pedro Sagiiés,'® ao lado do controle destrutivo de convencionalidade, que envolve a invalidacao das normas internas contrarias aos tratados internacionais de direitos humanos, deve-se empreender também o controle construtivo de convencionalidade, que consiste em buscar gjustar a legislacao interna 4 normativa internacional pela via her- menéutica, no afa de construir interpretagdes da primeira que se compatibilizem com parametros internacionais de protecao dos direitos humanos, Além disso, a Constituigao ja possui um elenco extremamente generoso de direitos fundamentais, tendo incorporado praticamente todos os mais importantes que figuram, na normativa internacional de direitos humanos. E possui cléusulas abertas, como o prinefpio da dignidade da pessoa humana, que permitem 0 reconhecimento de outros direitos pela via hermenéutica. Nao bastasse, hd sempre a possibilidade de submeter © antigo tratado, até entao despido de estatura constitucional, a novo procedimento de incorporacao, pautado pelo procedimento do art. 5°, §3*, da Constituigao, de modo a inseri-lo no bloco de constitucionalidade. Eo argumento da recepeao, apesar de engenhoso, nao procede. i que a melhor interpretagao do art. 5%, §3°, CE, nao éno sentido de que todos os tratados sobre direitos humanos devem ser necessariamente aprovados pela maioria qualificada de 3/5 nas duas casas do Congresso, convertendo-se em normas constitucionais. Uma interpretagao como essa produziria um resultado paradoxal: dito preceito constitucional, editado no afa de favorecer os direitos humanos, acabaria dificultando a sua incorporagao em nosso ordenamento. E preferivel a tese de que o art. 5°, §3°, da Constituigao institui um novo caminho, nao exclusivo, para a internalizagao dos tratados sobre direitos humanos. Agora, existem duas possibilidades: um procedimento mais singelo, igual ao dos demais tratados, que importa na incorporacao do texto sobre direitos humanos com hierarquia supralegal, mas infraconstitucional; e outro, mais dificil, que enseja a insercdo do tratado no bloco de constitucionalidade. Assentada esta premissa, perde sustentagdo a tese da recepgao qualificada dos antigos tratados sobre direitos humanos, pols se afastaa ideia de quea estatura necessaria dos novos tratados sobre a matéria seja aconstitucional. Nessa perspectiva, a recepeao nao altera a natureza infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos incorporados antes da EC n°45/2004. 1.9 Constituigao em sentido formal, instrumental, material ¢ ideal A palavra “Constituicao” éempregada em diversos sentidos diferentes. Algumas vezes, fala-se em Constituicao para aludir-se as normas juridicas dotadas de superior hierarquia no ordenamento do Estado, independentemente do seu contetido. Essa é a Constituigdo “em sentido formal”, ou Constituigao formal. Outras vezes, alude-se 4 Constituicao para fazer referéncia ao principal texto juridico que contém estas normas superiores. E a Constituicdo em sentido instrumental ** Cf. FERRER MAC-GREGOR, Eduardo. Interpretacidn conforme y control difuso de convencionalidad, Fl nuevo paradigma para el jue: mexicano. fn: BOGDANDY, Armin von; PIOVESAN, Flavia; ANTONIAZZL Mariela Morales (Coord). Estulos aemcados de direitas kummanas: democracia e integragSo juridica: emergéneia de tum novo direito public, "* SAGUES, Néstor Pedro, Perspectivas actuales del control de convencionalidad desde el caso argentino. Dispo: nivel em: ,

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