Bernardo Lewgoy

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Do velho ao antigo: etnografia do surgimento de um patrim6nio Bernardo Lewgoy' Professor da UFRGS e doutorando em Antropologia Social na USP Resumo: Este artigo busca interpretar a légica que presidiu o ingresso de novas nor- ‘mas e significagdes patrimoniais no caso do tombamento, a partir de 1987, de 48 casas tidas como representativas da arquitetura de imigragao italiana no Brasil, na cidade de Antonio Prado/RS, colonizada no século XIX por imigrantes italianos. O estudo de caso aqui apresentado é entendido como uma instancia de andlise da racionalidade que subjaz a0 pensamento ¢ & aco do patriménio hist6rico ¢ cultural no Brasil Unitermos: Patriménio cultural, meméria social, identidade étnica. Em 1987, a ex-SPHAN? tombou um conjunto de cerca de 48 casas, a maioria em madeira, na pequena cidade de Ant6nio Prado (6000 habitantes, 200 km de Porto Alegre), onde a maioria da populagao descende de imigrantes italia- nos. O tombamento, preparado hd anos por estudos prévios, abateu-se como um furacdio na cidadezinha. O ato surpreendente da SPHAN, mesmo colocando no mapa da preservagao nacional uma cidade de imigrantes italianos, foi recebido com reserva, desagrado e hostilidade por proprietdrios indignados com as restrigdes impostas pelo tombamento, assim como por uma populago surpresa com a mag- nitude das mudangas implicadas pelo novo e irreversivel fato. O presente artigo busca interpretar 0 que esteve em jogo para os diferen- tes atores sociais que se envolveram neste processo, marcado nao apenas por lei- turas e definigdes socioculturais divergentes da preservagdo, como também por pronunciados indicios locais de uma apropriagio nuangada da idéia de cidade his- torica, por parte de determinados grupos em Ant6nio Prado. ‘As fontes da pesquisa consistem em entrevistas e observagiio etnogréfica com moradores de Anténio Prado, técnicos da ex-SPHAN (renomeado de Institu- to Brasileiro do Patriménio Cultural durante meu trabalho de campo, 1990 a 1991), artigos de jornais e livros publicados sobre a cidade e sobre a histéria da imigra- ao italiana no Rio Grande do Sul. ener ERNOS DE CAMPO AD E DE REPENTE, O VELHO VIRA ANTIGO: GENESE E SIGNIFICADO DO TOMBAMENTO DE ANTONIO PRADO Ant6nio Prado, sexta e tiltima das antigas colénias italianas estabelecidas no Rio Grande do Sul ao final de 1880, situa-se na chamada Serra da Encosta do Nordeste, a 36 quilémetros do maior centro urbano-industrial da regidio — Caxias do Sul. A economia do municipio é baseada em pequenas e médias indtstrias, no comércio e na agricultura de miniftindio. Sua malha urbana é composta de algu- mas poucas ruas dispostas em tragado ortogonal, destacando-se a praca central, cujo entorno comporta o centro histérico tombado pela SPHAN. A homologagio, em 1989, do tombamento de 48 casas em Antonio Prado representou 0 coroamento de um processo de mobilizago e propaganda, levado a cabo por técnicos da divisio regional da SPHAN/Pré-Meméria, em conjunto com um grupo de intelectuais de ascendéncia italiana, ligados & Universidade de Caxias do Sul. Desde 0 comego da década de 80, a SPHAN executava o projeto Preserva- ioe Valorizacdio da Paisagem Urbana em Niicleos de Imigragao Alemi e Italiana no Rio Grande do Sul, selecionando nticleos para o inventério de bens culturais, com vistas & realizagiio de futuros projetos de preservacaio. A SPHAN regional tinha por meta incorporar A preservagio a contribuigdo de elementos culturais oriundos de reas de imigragiio nao-européia, o que representava uma novidade em termos de Brasil (conforme depoimentos de técnicos da instituigao). Havia também uma preo- cupagdo em desfazer 0 que os técnicos denominavam de imagem dominante a res- peito do Rio Grande do Sul, em que “o estereétipo do gaticho encobria as manifes- tages culturais de outras etnias para a formagao do estado”’. Em 1985, sob os auspicios da Diretoria Regional da SPHAN, foi reali- zado em Antonio Prado o Seminario Nacional sobre Arquitetura Popular, contan- do com a participagio de arquitetos brasileiros e estrangeiros. Neste seminfrio, “... foi cobrado de piblico que a SPHAN deveria tombar AntOnio Prado até a crista de seus morros, pelas caracterfsticas de seu acervo preservado, o qual ja estava ame- agado de destrui¢ao. A SPHAN assumiu, entdo, o compromisso puiblico de fazer esta preservagiio"(V.C., técnico da SPHAN). Ainda em 1985, a SPHAN decidiu pelo tombamento de duas casas, mas uma, de propriedade da prefeitura municipal, foi destruida antes que se consumasse © ato de preservacio. A outra, conhecida como “Casa da Neni” (apelido da fale- cida senhora que por muitos anos ali residiu) foi tombada com a solicitagiio e 0 endosso do proprietério —o principal empresdrio da cidade — sendo classificada como Monumento Nacional. © proprietério reformou a casa, construiu um bar no patio e montou uma loja de artesanato tfpico na fachada da edificagao. O Museu Municipal, montado na época, funcionou provisoriamente nesta casa. Deste momento em diante, a SPHAN intensificou suas atividades em AntOnio Prado, abrindo-se um processo de dois anos de inventério de elementos culturais, de estudos técnicos para a classificagao do acervo, de andlise da situa- do urbanistica da cidade, de desenhos de toda a érea urbana, casa a casa, contan- do também com pareceres de destacados professores de arquitetura de modo a jus- tificar, frente 4 SPHAN nacional, a futura agdo de preservacao no local. O trabalho também contou com a participagao de profissionais da Secretaria de Urbanismo do Rio Grande do Sul, que colaboraram elaborando normas de harmonizagao ur- banistica do entorno dos prédios a serem tombados. Em 1987, foi decretado 0 tombamento provisério, pela SPHAN, de mais 47 casas em Antonio Prado. A aco foi justificada pelo “valor de conjunto do acer- vo, tratando-se do maior nticleo urbano homogéneo representativo da arquitetura de imigragao italiana no Brasil”. Em sua maior parte, 0 acervo consistia em cha- Iés de madeira amplos e simétricos, construfdos por um grupo de carpinteiros ita- Tianos — quase todos de uma mesma familia — nas primeiras décadas do século XX. Casas em que se destaca a presenga de lambrequins derramando-se abaixo da cumeeira dos telhados‘. O tombamento do acervo de Antonio Prado introduziu algumas novidades na politica nacional de preservagao de conjuntos hist6ricos. Em primeiro lugar, tra- ta-se de um conjunto de casas em sua maioria construfdas em madeira, o que contra- ria o padrao tradicional de preservacio de edificagées hist6ricas, restrito aos assim chamados monumentos de pedra e cal. A preservagdo de casas de madeira era um dado enfatizado pelos técnicos da SPHAN, como uma espécie de vit6ria sobre um preconceito largamente difundido entre os especialistas em preservagao*. Em segundo lugar, um grande processo de preservacio abrangendo uma rea de imigragao italiana é também uma importante novidade, nao apenas porque contraria o mito das trés ragas formadoras da identidade brasileira’, por tanto tem- po paradigma de um discurso oficial (¢ do préprio senso comum), mas também porque divergiu do padr”io médio de preservacio no Brasil, massivamente con- centrado no acervo de origem !uso-colonial. Ao incluir como patrimOniv nacional um acervo de iméveis em madeira e destacar a contribuigdo de um grupo étnico de origem italiana na formagao da nacionalidade brasileira, é de se esperar reper- cussdes de considerdvel monta nas discussées e priticas que especificam 0 cam- po do patriménio no Brasil’ F preciso lembrar que o Rio Grande do Sul, com a honrosa excecao das Misses Jesu‘ticas — monumento com valor arqueolégico, preservado enquanto ruina — no € considerado como possuidor de um patrimGnio nacionalmente importante, se comparado com os acervos de Minas Gerais, Bahia ou Rio de Janeiro. Politi camente, isto gerou a percepgio de um lugar secundério e periférico da SPHAN regional na campo brasileiro do patriménio®. Assim, é plausivel afirmar que, do ponto de vista politico, o tombamento de Ant6nio Prado aponta um valor estraté- gico para o remanejamento nao apenas de uma genérica imagem do Rio Grande do Sul no Brasil, mas da propria posicio do grupo da SPHAN regional na corre- lagdo de forgas internas ao campo do Patriménio no Brasil. Um grupo minoritério coeso, em perene desvantagem face ao conceito dominante de patriménio no pais, consegue obter uma série de éxitos através de uma bem montada estratégia de in- vengio e de valorizacao de um patriménio cujo sentido até ento era tido como étnico ou regional. Além do grupo da SPHAN, 0 tombamento foi apoiado por uma costura de redes, pessoas e grupos que, cada qual com o seu interesse e projeto préprio, convergiram para alavancar a efetivagdo do processo de preservaciio. Em Ant6- nio Prado o principal empresario da cidade, sendo proprietério de seis casas, logo tratou de restauré-las (isto além de patrocinar um livro sobre a cidade), invocan- do recursos oriundos da lei Sarney. F.claro, o seu grupo empresarial foi ativamente promovido por este mecenato cultural. Uma professora aposentada, funciondria da prefeitura e cidada bastante respeitada nesta comunidade, logo se converteu numa das principais colaboradoras da SPHAN, seja intermediando contatos com pro- prietarios renitentes, seja divulgando as propostas de valorizagao da cultura itali- ana através do vinculo indissoliivel com a preservagao. A mudanga de prefeito, ao final da década de 80, também foi decisiva para rearticular a estratégia de legitimagao do tombamento, hostilizado pelo governante anterior. Com um prefei- to favordvel ao tombamento, tornava-se mais viével implementar programas de persuasao da populacao local, assim como cuidar para que as novas normas de uso do espaco urbano fossem fiscalizadas e respeitadas. O grupo do ECIRS —Elementos Culturais das Antigas Colénias Italianas do Rio Grande do Sul — foi um dos principais promotores do tombamento e pre~ servagio do acervo de Anténio Prado. Este grupo, baseado na Universidade de Caxias do Sul - principal micleo de ensino superior na maior e mais importante cidade da regidio colonial italiana do Rio Grande do Sul -, 6 composto de litera- tos ¢ historiadores gatichos de ascendéncia italiana’ e vinha engajado numa pro- posta de politica cultural da memoria, através de iniciativas de resgate e andlise da cultura de descendentes de italianos no estado. A propria Editora da Unive: dade de Caxias do Sul é a principal instituigdo, tanto em termos de publicagao de estudos sobre hist6ria da colonizagio italiana no Rio Grande do Sul, quanto da promocao da figura dos pioneiros, o que se depreende pela copiosa bibliografia bancada por esta editora desde a década de 70. E nesta época, a par do cresci- mento do peso econdmico ¢ politico da Regidio Colonial Italiana no Rio Grande do Sul, que se intensifica a celebracio regional dos italianos e de seu papel na historia deste estado, em festas, programas de televisio, antincios, inauguragio de monumentos e pronunciamentos de politicos. Nesse sentido, uma das modalidades de constituigdo de um discurso sobre a etnicidade italiana, pelo menos para os herdeiros urbanos"* de imigrantes —jé na terceira ou quarta geragao de descenden- tes, possuidores de posicfio econémica e cultural destacada na regizio — é a busca da ancestralidade, da meméria referida aos emblemas da identidade italiana nos costumes, na histéria, na linguagem e nos artefatos construidos. Em suma, em tudo aquilo que no passado possa servir de marco confirmador e legitimador de uma posigdo social atingida no presente"'. Antonio Prado, nesse sentido, foi conce- bida por este grupo como um patriménio que nao diz respeito apenas a uma his- t6ria particular, “mas algo a ser socializado como heranga comum da Regiaio Colonial Italiana” (Posenato, 1989:28). Ja a agio da SPHAN, pela natureza ¢ atribuigdes desta entidade, veiculou a representatividade nacional deste acer- vo, nuanga que nao chegou a se traduzir em divergéncia. Hi, também, no discurso do ACIRS a presenga de uma concepgio tutelar de protegdo a identidade cultural, contra 0s riscos da aculturago, e mesmo contra o esquecimento desta identidade causado pelas transformagées decorrentes da moder- nizagao e de epis6dios traumaticos, como a imigragao ou as perseguiges os pre- conceitos sofridos pelos italianos ao longo da histéria. Nesta visio, a preservagdo do patriménio ajuda a compor uma espécie de terapia da identidade cultural italia- na, Dada a premissa de que a imigracao foi um episédio traumatico e que, portanto, houve todo um trabalho de recalque da identidade e meméria do grupo italiano, 0 ECIRS opera com a crenga de que uma religagdo com este passado € uma tarefia te- rapéutica a ser conduzida, mesmo se houver confronto e adversidade inicial do gru- po atingido, no que concorda com a légica pritica das agdes da SPHAN”. ‘A parceria do trabalho deste grupo com os técnicos do patriménio, junta- mente com as redes de poder e prestigio costuradas, apontam para a complexida- de dos interesses e dos agenciamentos institucionais que convergiram para alavancar e legitimar a preservacio. Mas 0 modo como as pessoas € grupos em Ant6nio Prado foram se relacionando com o tombamento fornece um significativo contraponto a este quadro, realgando os contornos ¢ limites deste processo. ‘TRANSFORMANDO 0 VELHO EM ANTIGO: IMPACTO INICIAL DO TOMBAMENTO E ESTRATEGIA DA SPHAN Imediatamente apés a notificagao pelos jornais, em 1987, do tombamento pro- vis6rio, instalou-se uma forte controvérsia em Ant6nio Prado. Em assembléia pt- blica promovida pela SPHAN para esclarecer 0 significado do tombamento, cer- ca de 20 proprietarios protestaram por se sentirem lesados em seu direito de propriedade: “- Isto nao € cultura, é tombamento de cupim.” — protestou na oca- sido um dos proprietérios (Jornal do Brasil: 07/09/87). Em sua opinido as casas deveriam ser destrufdas e, em lugar delas, seriam construidos modernos prédios de alvenaria. Ainda segundo a mesma reportagem, outras pessoas da cidade apoi- aram 0 tombamento, como um agougueiro, que afirmou ser o tombamento a grande saida para Antonio Prado, “porque agora temos chance de atrair os turistas”. Ou- tro proprietério, médico na localidade, tendo entrado nesta reuniaio como opositor do tombamento, dela saiu com outra opinido, convicto de que sua casa entrara para > oe QO = oO eee 3 g 5 = Do Velho ao Antigo ~ARTIGOS AnOV-rP586- 1997 CADERNOS DE CAMPO ahist6ria da colonizacio italiana. O tombamento intempestivo foi justificado por um técnico da SPHAN nos seguintes termos: - Muitos prédios estavam ameaga- dos de destruigo e, se houvesse um processo de discussio, temiamos que os pro- prietérios logo se apressariam a destrui-los.” A polémica estava instalada na ci- dade. Alguns cidadaos propuseram um plebiscito, recusado pela SPHAN. Houve quem recorresse justiga para impugnar 0 tombamento, como foi o caso do filho de uma proprietéria, sustentando em juizo a alegagao de que as casas em verdade ndo representavam 0 proceso de imigragao, sendo caracteristicas de um periodo posterior, ligadas a um complexo urbano-comercial e nao dos colonos, verdadei- ros artifices do processo de imigracio. O jornal mensal Panorama Pradense foi um importante veiculo de divul- gagdo da controvérsia em torno do tombamento, Alguns artigos elogiavam a ago da SPHAN — que declarou Anténio Prado monumento nacional - ainda que com reservas em relago ao seu encaminhamento, tido como autoritério. Outros criti- cavam 0 tombamento alegando que prejudicaria o progresso da cidade, por opor barreiras ao crescimento e ocupagao urbana, Também despontavam afirmagdes de que o problema nao era o tombamento, mas sim as péssimas condigSes das estra- das de acesso & cidade, ainda com trechos nio-asfaltados & época. Havia, ainda, matérias que destacavam que finalmente o progresso viria a Ant6nio Prado, pelo incentivo ao turismo. Intelectuais ligados ao grupo do ECIRS, como o escritor José Clemente Posenato, também participaram da discussio no jornal, buscando per- suadir 0s pradenses do valor hist6rico das casas tombadas, mais importante que 0 seu mero valor econémico, reforgando a idéia de que “o esclarecido é a favor de tombamento ¢ de que este finalmente traria 0 progresso a Ant6nio Prado”. Ja nessas primeiras reagdes ao tombamento pode-se entrever os princi- pais pélos da controvérsia que dividiu os informantes: a questo do direito de pro- priedade, o tema do progresso e da modernizagao numa sociedade local, a dispu- taem tomo da definig’o da memoria (alocada na representatividade, no valor das casas tombadas, se estas representavam ou no a experiéncia de imigragdo e co- lonizacao italiana na regio) e, iltimo mas nao menos importante, 0 propalado autoritarismo da agdo da SPHAN. Do ponto de vista etnografico, & preciso sali- entar que nao se trataram de reagdes homogéneas nem se formaram blocos estiti- cos de opinitio. Houve niveis diferenciados de adesdo a determinadas posigées, flutuagdes e mudangas de posicionamento que, como serd aqui contextualizado, ligam-se a uma série de injungdes, como a posigao social, trajet6ria e projetos fa- miliares dos envolvidos, incluindo-se af a incorporagao do item “propriedade de uma casa histérica em suas estratégias de distingao. E importante ainda salientar que o tombamento nao foi recebido como um assunto privado dos proprietérios das casas, mas como algo que a todos dizia res- peito e perante 0 qual todos deveriam se posicionar ~ 0 que pude comprovar no trabalho de campo. Sendo algo vivenciado como critico e totalizante pode-se afir- mar que o tombamento gerou um drama social, no sentido de Turner (1974), a0 proporcionar aos protagonistas a ocasido de refletirem acerca de determinados esquemas com que estavam habituados, tanto a interpretar a hist6ria c 0 presente de Anténio Prado, quanto a agir sobre a realidade local, a organizar seus projetos familiares e a reconstruir suas casas. Note-se que o tombamento introduziu todo um conjunto de normas ¢ sig- nificagdes que repercutiram agudamente no cotidiano de Ant6nio Prado, atingin- do desde as relagdes dos habitantes com o espaco urbano até a prépria represen- taco mais ampla a respeito da cidade em que vivem. As entrevistas com os técnicos do patriménio justificam a necessidade destas medidas através da énfase na ne- cessidade de se cuidar de um contexto, ¢ nfio apenas de edificagées isoladas: “AntGnio Prado sofre de um mal que afeta muitas outras cidades brasileiras, a baixa qualidade dos profissionais que Ié atuam, 0 que se reflete tanto no baixo nivel técni- co-construtivo quanto na baixa qualidade dos projetos que ld vinham sendo executa- dos. Até ha pouco, as novas construgdes seguiam um padrio moderno de qualidade rebaixada, que nds denominamos de caixotes listrados, Outro problema é a falta de um plano diretor e de um cédigo de edificages, 0 que permite que diversas barbari- dades sejam feitas, descaracterizando progressivamente a harmonia visual e espacial do conjunto tombado. Por isso elaboramos as normas de protegio do entorno dos bens tombados” (V.C., técnico do patriménio hist6rico). As premissas que justificam essa prote¢do do entorno seguem as tendén- cias atuais no pensamento preservacionista brasileiro, no que se refere ao patriménio ambiental urbano13. Nesse sentido, 0 processo de preservagao em Ant6nio Prado nao apenas instaura um novo valor na definigao da identidade e da meméria desta cidade — associado ao idedrio veiculado pela SPHAN, 0 qual in- venta um patriménio para uma sociedade local ~, mas é acompanhado de um es- forco de disciplinamento da apropriago social do espago urbano, com sentido restritivo e prescritivo Para encaminhar o trabalho de preservagao ¢ fiscalizar 0 cumprimento des- tas normas, a SPHAN instalou um escritério técnico na cidade que, em muitos res- peitos, tem mais poder de decisao que a prefeitura. As normas em questo aplicam- se a uma divisio prévia da cidade em 3 dreas distintas e concéntricas. A primeira € denominada de entorno imediato, delimitando uma area de protegao rigorosa. Nesta rea, localizada num raio de 300 metros em relagdo a praga central (onde se con- centram os bens tombados), nada pode ser construfdo, reformado ou exibido sem uma aprovagiio prévia de projeto pela SPHAN, nem mesmo a colocagao de uma placa. ‘A énfase est em restringir os afastamentos, os recuos ¢ as alturas das novas cons- trugées, a partir de um critério de limitago & ocupagiio de terrenos ¢ & densificago urbana, Numa segunda rea, o entorno periférico, as restrigdes referem-se principal- mente altura das novas construgées ¢ ao tipo de ocupagao. A terceira érea com- preende as cristas dos morros que cercam a cidade, protegidos por meio da legisla- ‘co ambiental, cujo organismo responsavel € 0 IBAMA. Além dessas medidas restritivas, a SPHAN vinha apoiando o trabalho de um grupo de jovens arquitetos, imbufdos do propésito de oferecer uma arquitetura exemplar para as futuras edificagoes. A idéia central é diferenciar-se de casos como 0 de Gramado, no Rio Grande do Sul, execrada pelos técnicos do patriménio, sob a acusagao de ostentar um estilo falso (enxame), copiado da Alemanha. E es- timulada a promogio de um estilo arquitetonico que marque o contraste ¢ saliente aautenticidade do acervo tombado, ao mesmo tempo que respeite as condigdes do contexto em termos de escala, cor e volumetria, A atuagio da SPHAN tem se pautado também por um trabalho pedagégi- co de legitimagiio das novas significagdes patrimoniais que acompanham a pre- servagdo, comprometidas com o postulado da conscientizagaio dos moradores de Antonio Prado da importancia de resgatar o passado e orgulhar-se de seu patriménio. Este foi o caso do cartunista caxiense Iotti, que introduziu no jornal Panorama Pradense historietas em quadrinhos com 0 personagem Nono (av6, em italiano) passeando em Ant6nio Prado, falando com os moradores, elogiando 0 tombamento e persuadindo os proprietérios a aceitarem o valor de seu patriménio. Ainda nesta primeira fase, foram confeccionados brinquedos pedagégicos, como quebra-cabegas com as casas tombadas, figuras em madeira representando perso- nagens tfpicos da cidade, serigrafias das casas tombadas em camisetas e borda- dos, além de jogos infantis sobre a historia da cidade e da imigragao italiana, tudo isto integrando uma estratégia de aco patrimonial, cujo alvo preferencial so as novas geragdes. Também foram elaboradas cartilhas explicativas & populagao, em que se enfatizava a contribuicao do imigrante, seu trabalho arduo, seus costumes ¢ sua religiosidade, como frutos de um tempo ao qual as casas tombadas estariam indissoluvelmente ligadas. A prdpria colocagao das cores nas cartilhas obedeceu a um imperativo tético, predominando o verde e o vermelho, presumidas pelos técnicos como de maior apelo afetivo, visto serem as cores da bandeira italiana. Além disso, a SPHAN elegeu a aco museolégica, junto ao museu muni- cipal, como prioridade no trabalho de educagao patrimonial, promovendo, entre outras atividades: uma exposigao sobre Anténio Prado no Paco Imperial, em Petr6polis, composta por um video e um ensaio fotogrifico, produzidos em cola- boragdo com a Universidade de Caxias do Sul; a elaboragao de uma cartilha de culinéria tipica da regio; um encontro regional de museus em Anténio Prado, do qual resultou um trabalho conjunto com a rede municipal de ensino, com visitas guiadas de alunos ao museu ¢ as linhas rurais do municipio, a fim de fazer entre- vistas com os colonos sobre costumes tradicionais; 0 est{mulo ao cultivo do dia- leto véneto, tido como em vias de desaparecimento e, finalmente; uma exposigao sobre Anténio Prado na Casa de Cultura Mario Quintana em Porto Alegre, em 1991, integrando as atividades do I Congreso Internacional sobre Cultura Arquitet6nica ¢ Urbanistica, realizado na capital gaticha nessa época. Pode-se observar nestas primeiras iniciativas — de resto assessoradas pelo grupo do ECIRS ~a presenca de um saber etnol6gico subjacente sobre os italia- nose a italianidade imigrante, espécie de “etnologia regional”, no sentido de Jeudi (1990). Nesse sentido, ha algumas questdes a serem destacadas. Em primeiro lu- gar, os enquadramentos simbélicos operados nesses processos institucionais es- forgaram-se em fixar e tornar substantivas as fronteiras culturais do grupo, enfatizando emblemas (casas, comida, costumes, técnicas, religiosidade, lingua dialetal) e valores (trabalho, espfrito empreendedor e progressista), valores estes também tornados emblemas da contribuigao dos italianos, seja para a formagaio do Rio Grande do Sul, seja para a constituigdo da nacionalidade brasileira. Isto est bem sintetizado nas nogdes de Anténio Prado, cidade hist6rica e de histéria viva de um povo, que passam a figurar nos cartazes de propaganda da cidade. Essas agGes apontam para uma progressiva ressemantizagao contida no bojo do proces- so de tombamento: inicialmente periférica e desimportante, a descoberta de seu acervo faz. com que Anténio Prado passe a figurar, por metonfmia, toda a identi- dade cultural ligada 4 meméria da imigragio italiana, religando-se ainda, pelo mesmo movimento, a identidade nacional brasileira. Ocorre, deste modo, um pro- cesso de descontextualizagiio/recontextualizaco simbélica dos objetos, tornados bens patrimoniais pelo tombamento: as casas perdem o seu significado local e passam a ter 0 valor de patrim6nio comum da imigragdo italiana, simbolo do pas- sado da etnia e testemunho das raizes de seu sucesso atual. A idéia de casa antiga € 0 emblema mais visivel deste discurso preservacionista. Porém, um processo de preservagiio numa drea regional marcada por uma identidade étnica particular encontra dificuldades em resgatar o nivel socialmen- te mais importante de elaboragao deste tipo de identidade, representado pela contrastividade, pela fungdo social de fronteiras étnicas que os referidos tragos culturais desempenham na meméria do grupo. Assim, a ordem significativa introduzida pelo tombamento enfatiza a pertinéncia do acervo preservado a uma comunidade mais ampla — étnica e nacional - minimizando sua inscrigao na me- miéria e na experiéncia local. Além disso, a hist6ria de Ant6nio Prado é tratada nas cartilhas suavizando possiveis rupturas hist6ricas e diluindo os contrastes ét- nicos, que marcam fortemente a meméria do grupo pesquisado. O problema é que esta dimensao contrastiva, como uma espécie de retorno do recalcado, acabou por se recompor na dinmica dos comportamentos expressivos dos atores sociais face ao tombamento. Do lado dos apoiadores do tombamento, foram acionados alguns estereotipos de identificagao étnica a respeito dos gringos — categoria de identifi- cacao dos descendentes de italianos na sociedade gaticha — para explicar a resis- téncia & preservactio, onde nao raro despontavam representagdes sobre o materi- alismo dos gringos, de s6 pensarem no seu bolso, sua rudeza, atraso e ignorancia . Essas representagées néio apenas serviam como explicagao para a resisténcia a CADERNOS DE CAMPO. g 2 2 is s & preservagiio como fundamentaram o gesto brusco de tombamento, assim como a recusa ao plebiscito proposto, a partir da convicgaio de que o acervo seria destruido caso houvesse um proceso amplo de discussio e deliberacio. Ou seja, a identi- dade de gringos, nunca constante nas significagdes patrimoniais, foi um pressuposto latente na atuagao concreta da SPHAN. A partir dai torna-se compreensfvel que a tatica do contato com a comunidade tenha se referenciado numa concep¢do de contato interétnico, embutida na génese das cartilhas. Nestas, uma série de estra- tégias de persuasdo, como as hist6rias em quadrinhos e as cores utilizadas, alia- ram-se a um discurso sobre o tombamento como a nova solug&o para 0 progresso © o desenvolvimento da cidade, através do turismo. Progresso e desenvolvimento tidos e vistos como centrais para todos os descendentes de imigrantes italianos € como questio critica neste caso particular. Nao é despropositado, entZo, trabalhar- se com a hipétese de que esta postura ambivalente, no sentido de valorizar a con- tribuigao do elemento étnico na formagao da cultura brasileira, mas identificar de modo etnoc€ntrico a populagao concreta, reproduz uma certa cultura politica tute- lar do Estado brasileiro ao lidar com suas minorias étnicas'*, Creio que isto serve para iluminar 0 tema da Educagao Patrimonial, as- sim como os estimulos a arquiteturas exemplares, na medida em que a estratégia de imposi¢ao de significagdes patrimoniais exibe, neste caso, as notas caracteris- ticas de uma “missio civilizatéria”. Seja ensinando aos habitantes qual a sua iden- tidade cultural, seja fornecendo os modelos arquitetOnicos a serem imitados, a mesma concepgao tutelar marca a sua presenga, embasando a atuagiio dos especi- alistas em patrim6nio nesta sociedade local. Quanto a importancia do ideario do progresso e da modernizagao, bem como a acolhida diferencial do tombamento em Anténio Prado, hd pelo menos dois niveis de contextualizacao a serem considerados. O primeiro tem a ver com aconstrugao histérica de representagdes que marcam a memoria da cidade, em que as questées do progresso, modernizago e etnicidade ganham peculiares inflexdes locais. O segundo é mais especificamente etnografico, relacionado aos aspectos socioculturais relevantes na identidade e no posicionamento dos infor- mantes em relagdo ao tombamento. Estes niveis se interligam a partir da constatagao de que o tombamento serviu para a focalizagao de tensées latentes, sedimentadas ao longo da histéria de Anténio Prado, focalizagao simbolizada pelo debate instaurado, se as casas eram antigas e representativas ou se nao pas- savam de casas velhas, sem valor histérico. O VELHO RESISTE AO ANTIGO: MEMORIA COLETIVA E IDENTIDADE ETNICA NAS REACOES AO TOMBAMENTO Ant6nio Prado tem caracterfsticas singulares em relaco a outros micleos de colonizagao italiana no Rio Grande do Sul, mas hé um nicleo mitico comum que 10 permeia as narrativas orais e escritas sobre o assunto: o drama ou epopéia da imi- gragio, o enfrentamento de todo o tipo de intempéries e adversidades, a domesticagtio de um ambiente selvagem (vit6ria da Cultura sobre a Natureza), a reinstauragao da temporalidade e da ordem social pelos bravos pioneiros que vi- cram fazer a América e a conseqiiente consagraco da trfade terra, familia e tra- balho como axial na constituigo da identidade dos imigrantes que se instalaram na regidio'’, A ordem cultural destes imigrantes também foi marcada pelo que Lovisolo denominou de “utopia liberal da colonizaga0”, ou seja: “Um projeto de futuro, de sociedade igualitéria, constituida de pequenos produtores livres, que trocam seus produtos € se ajudam mutuamente, para formar um s6lido tecido social de igualdade na produgio € no mercado” (Lovisolo,1989:51). No Ambito deste projeto imigrante, hd um compromisso com um certo idedrio de progresso e de modernizacao, o qual se enraiza na meméria deste gru- po étnico, marcando fortemente suas expectativas, ethos ¢ visdéo de mundo. Res- salve-se que nao se trata da apropriagio de um idedrio exégeno, mas de um pro- cesso relacionado tanto acentuada acumulagao primitiva de capital, nas primeiras ‘geragSes, quanto aos ritmos posteriores de crescimento e desenvolvimento de uma sociedade urbano-industrial na regio, com intimeras conseqiiéncias em termos de diferenciacao social interna, produgav de estilos de vida urbanos, aumento da dicotomia campo/cidade, etc'® ‘As singularidades cingem-se & periodizagao nativa da hist6ria local, di- vidida entre os perfodos de ascensao e de decadéncia, imprimindo um trago re- corrente nos diversos discursos, dos depoimentos gravados a artigos de jornais © livros sobre a cidade'”. No perfodo de ascensio, situado em fins do século 19 até a década de 30, Ant6nio Prado é descrita como um importante entreposto comercial, situada numa das principais rotas comerciais do Rio Grande do Sul, cujo ritmo de crescimento rivalizava inclusive com Caxias do Sul. Indmeros filhos de familias da regiaio de- dicavam-se & atividade de tropeiros, indo negociar mercadorias em So Sebasti- fo do Caf (cidade ao sul, divisa geografica com a Regiao Colonial Alema do es- tado) e em Vacaria (ao norte, situada na regidio dos Campos de Cima da Serra, de ascendéncia luso-colonial, onde predominava a pecudria praticada pelos gatichos). O municipio chegou a contar com dez mil habitantes na primeira década do sécu- lo, aproximadamente a mesma populagao da atualidade. Ao lado dos relatos acerca do progresso da cidade, ha também relatos acerca de seu isolamento, devido a fatores geograficos e politicos. No plano geo- grafico, dados sobre enchentes, mas condig6es das estradas e, por décadas, a la- mentada inexisténcia de uma ponte sobre o rio das Antas (obrigando ao uso de balsas) povoam os depoimentos sobre a primeira metade do século. No ambito politico, o isolamento € narrado como discriminagao injusta - malogro dos plei- tos que Visavam ao melhoramento das vias de comunicagao, cuja autoria é geral- Ih mente atribuida a politicos rivais de Caxias do Sul"*. Ao lado do propalado dina- mismo econémico desta “belle époque” pradense, uma geraco apés a imigragio, 0s temas do isolamento e da discriminago comegam a ter forte presenga na me- méria local, conjugando-se com narrativas de contatos extremamente problemati- cos com os brasileiros””: as guerras civis no estado, as perseguiges no Estado Novo, gerando um clima de tensio e desconfianga para com pessoas de outras origens étnicas ~ 0 que nao é exclusividade de Antdnio Prado, mas que pode ter se acentuado pela situagao geogréfico-cultural, pela proximidade com os brasileiros de Vacaria. A implantagao da estrada federal —hoje BR 116—na década de 1940, pas- sando pelo razoavelmente distante municipio de So Marcos, retira esta cidade do circuito de modemizagio crescimento econdmico da regiao, iniciando-se, entéo, © periodo descrito como de decadéncia, estagnacio e inércia. E ainda apontado como causa desta decadéncia um episédio de ordem politica, relatado nas memérias do médico Oswaldo Hampe. Na década de 30, um grupo de colonos, tendo vindo pro- testar contra impostos rurais considerados abusivos, envolveu-se numa tragédiaem que 0 delegado local e quase todo o grupo morreram num tiroteio: “Nunca mais Ant6nio Prado foi a mesma, Um véu de tristeza e abatimento caiu sobre tudo e sobre todos. Familias retiraram-se desta cidade e procuraram novos estados, novas coisas. Os dias tornaram-se mais longos e tristes (grifo meu), as casas fe- chadas, 0 comércio estaciondrio, a colénia decadente e 0 golpe de misericérdia veio com a inaugurago da Estrada Federal Gettilio Vargas, em 1940, deixando este muni- cfpio A margem de todo e qualquer movimento comercial” (Hampe apud Barbo- sa,1980), E neste momento que se pode divisar a génese hist6rica de representa- es que subjazem a expressiio da meméria coletiva local sobre Ant6nio Prado: 0 tempo que para, o declinio do progresso e da modernizagiio, sobrepondo-se aos temas obsessivos do éxodo dos habitantes, do isolamento c da discriminagao po- Iitica e econdmica que a cidade sempre sofreu, temas que permeiam desde edito- tiais do jornal local — reinvindicando por décadas o asfaltamento de estradas vicinais — até discursos politicos e sermoes religioses. Esses temas se conjugam, na expresso da meméria local, com uma forte aspiragdo de retorno & modernizagao, tio desejada e tao envolta em impasses. A cidade torna-se, a partir da década de 40, um foco de emigragiio das novas gera- es, correlata & sua nova auto-imagem negativa e ao declinio econémico e moral evocado nas recordacdes dos textos e depoimentos. Em diregao oposta, todas as justificativas e apresentagdes do tombamen- to fazem mengGes elogiosas a inércia socioecondmica ¢ ao isolamento, fatores apontados como responséveis pela preservagio do acervo de Antonio Prado: “E surpresa a permanéncia de um conjunto de arquitetura em madeira, como aconte- ce em Anténio Prado. O rio das Antas, mantendo esta cidade afastada do fluxo das 12 ‘mercadorias e do discurso da modernizagdo (grifo meu) escondeu este tesouro & 1 preservou” (José Clemente Posenato, Panorama Pradense, novembro de 1987). Ouentio: “Descobrit a pequena cidade de Ant6nio Prado foi como encontrar uma fotografia, antiga e especial, Trato-a e dou a ela um lngar especial. Fal est, acessfvele preser- vada, imagem do passado, presente e futuro, meméria viva (grifos meus), ajudan- do a compor uma identidade” Eneida Serrano, fotdgrafa que ajudou a elaborar a ‘exposigdo do Pago Imperial, Zero Hora, 24/11/89) ‘Ou ainda: “Quem quiser fazer uma volta ao passado (grifo meu), especialmente uma volta & historia da imigragio italiana, nfo pode deixar de ira AntGnio Prado” (matéria sobre turismo, Zero Hora, 24/07/89) Relago mctonimica, evocativa e organica com o passado de uma etnia que se amalgamaria com a identidade nacional brasileira, Ant6nio Prado passa a ser valorizada pela énfase num tempo pretérito, museolégico, cujo trago emblematico pode ser sintetizado no adjetivo antigo, nfio com referéncia a sua iden- tidade local, mas universalizada como um patrim6nio comum dos descendentes de italianos e dos brasileiros. Assim, o tombamento inscreve AntOnio Prado no tem- po da Grande Historia, da generosa e polimorfa identidade cultural brasileira. No entanto, deve ser destacada a provavel ndo-coincidéncia deste recorte universalista e monumentalizante da meméria, em face da persisténcia de sentimentos repre- sentages locais com forte énfase contrastiva: “'NGs somos italianos que nos fizemos sozinhos, nunca precisamos de assistencia do sgoverno e nio é agora que isto vai nos interessar. O que eu acho & que estio explo- rando pobreza de Anténio Prado” (LB, 60 anos, proprietéria de um im6vel tomba- do e opositora do tombamento). informante G.P., 60 anos, motorista aposentado, um dos lideres da oposigo ao tombamento na época, chamava as casas tombadas de montes de le- nha, atribuindo 0 tombamento a uma conspiracio para destruir Ant6nio Prado. Para F.C., 45 anos e também opositor do tombamento, 0 direito de pro- priedade é o principal pomo da discérdia: “Se eu tenho que consertar uma telha ou consertar um prego eu tenho que pedir per- ‘missBo para a SPHAN? Entraram em nossa casa som pedir licengae foram legislando sobre ela E interessante observar que essas falas contrérias ao tombamento, além de invocarem os temas da segregagiio, discriminaco e da conspiracio, entrela- {gam-se com a particularidade de uma apropriagao do idedrio de Modernidade em que 0 advento do progresso seria incompativel com a manutengao dos signos do velho, da estagnagao, representado pelas casas tombadas: 13, P5e6. 1907 AnoVi CADERNOS DE CAMPO “Nao sei por que conservar tantas casas velhas. Acho que, se mantivessem umas 8 ou 10 tudo bem, pros netos saberem como foi a imigragao, mas 48 é um absurdo” (S.B., funcionério do hotel municipal) Esses trechos de depoimentos nos sugerem que parte das reagdes contra- rias ao tombamento originam-se nas representagdes dominantes sobre a cidade até entio, mescla de uma auto-imagem negativa com expectativas represadas de mo- dernizagio. Assim, se nos reportarmos & hipétese do tombamento como objeto de focalizagao de tensdes latentes, percebe-se que a linguagem de resisténcia a pre- servagiio € vazada a partir dos temas da segregacdo e da modernizagao irrealizada, ciosamente cultivados na meméria local. A agdo da SPHAN serviu, nesse senti- do, para os informantes dramatizarem 0 descompasso entre o projetado e 0 vivi- do, entre a aspiragiio de progresso ¢ a frustraco desta expectativa, supostamente causada pela inércia e estagnacdo desta sociedade local. Nesse sentido, a expres- sio casas velhas é o emblema mais explicito deste discurso de oposiciio ao tom- bamento. Sobre a inflexao local da identidade étnica, que também compareceu nestas falas, é preciso assinalar que, se as representagées institucionais veiculadas pelo patriménio conceberam Anténio Prado como um marco comum da meméria da imigragao italiana, muitos informantes divisaram a presenga da SPHAN de um modo diverso, como uma intrusdo exégena e ilegitima do governo em seus assuntos, em suas propriedades. Nao ha incoeréncia entre esta concepgao e a persisténcia de sentimentos e representagées contrastivas em relagio ao governo e aos brasilei- ros ~ categorias émicas que definem e recortam negativamente estas alteridades. O VELHO FAZ AS PAZES COM O ANTIGO? IDENTIDADE E DISTINGAO NA REAPROPRIAGAO DO TOMBAMENTO. Se as representagdes acionadas na oposigao ao tombamento encontram suporte na expressiio da meméria coletiva local, é preciso salientar que nao se trata de uma reagao homogénea ou estatica. Houve desde 0 comego uma acolhi- da diferencial do tombamento e da idéia de preservagdo entre a populagdo da cidade, passando a ser progressivamente integrados ao circuito de trocas, situ- ages e projetos sociais dos informantes. Em primeiro lugar, nfo hd um critério univoco pelo qual se possa efetuar a classificago, seja dos moradores, seja dos proprietdrios das casas tombadas. As situag6es sao bastante diferenciadas. H4 moradores que nao sao proprietarios € proprietérios cuja renda e posigdo social so mais baixas, vivendo de ocupa- Ses como florista, motorista, aluguel de quartos, pequenos funcionérios, artesios, Pequenos comerciantes, ete. Ha proprietérios que moram em outras cidades, como Caxias do Sul, Vacaria e Porto Alegre. Alguns destes mantinham suas casas por razes de especulagdo, aluguel ou, simplesmente, para conservar um vinculo com 4 amigos e parentes. Hé outros que moram em Ant6nio Prado mas nao na casa, alu- gando-a ou deixando-a fechada. H4 aqueles que adquiriram recentemente o imével, por heranga ou compra (antes do tombamento, a fim de demolir a casa e construir uma nova). ‘As casas também tém historias diferenciadas. Muitas mudaram varias vezes de proprietario, pasando por varias reformas. Algumas contam com loja, barbearia, armazém ou restaurante em sua frente. Outro detalhe muito comum é 0 puxado em alvenaria, geralmente construidos atrés da casa, para servir de ba- nheiro ou cozinha (tipo de construcao muito criticada pelos técnicos da SPHAN). Hi também casas com a mesma origem das tombadas, nao tendo sido preserva- das porque os técnicos consideraram-nas descaracterizadas, em vista da magni- tude das reformas sofridas®, No que tange ao estado de conservagio a variagio também impera: hé desde belas fachadas de casas conservadas até outras em péssimo estado de conservagao, o que deu margem a apelos por destombamento. Para estes casos, a SPHAN tem um programa de obras de emergéncias, cujo fi- nanciamento varia de acordo com critérios de prioridade, avaliagdo das capa- cidades financeiras do proprietério, etc. Na busca da explicagdo das reagdes dos informantes, trabalhei com a ques- tio da mobilidade social, em que os problemas de ascens’o ou mesmo de descenso social, em sua relagdo com as estratégias de distingdo, com os projetos familiares com a identidade social, abriu-me um caminho bastante produtivo. E preciso lembrar que a questo da mobilidade social apresentou-se como critica para a maioria dos informantes. H4 em Ant6nio Prado uma espécie de contabilidade constante do status e ascensao social atingido pelo vizinho, amigo ou parente. Essa busca de ascensio social carrega em seu bojo marcas de distin- ao (no sentido de Bourdieu, 1979), que confirmam e legitimam a posigao de classe € 0 éxito social atingido. Se atentarmos para o fato de que em Ant6nio Prado ha duas ou trés familias tidas como tradicionais, e que a busca da acumulacio de capital econdmico e, secundariamente, capital cultural, € uma preocupagao cons- tante, seja através de poupanga, seja pela obtengao de titulo universitério, com- preende-se que, a época do tombamento, a quantidade disponivel de marcas de distingio no mercado de status local nio acompanhava as pretenses e reinvindicagoes de status estimadas pelos informantes. As marcas de distingdo podem variar, desde a ostentagdo de um carro do ano ou de uma casa nova, até a distingao mais sofisticada (por vezes compensat6ria, por vezes cumulativa) como ade um titulo universitério ou mesmo por um gosto mais sofisticado (livros, fil- mes, culinaria, etiqueta, etc.)"". Nesse sentido, trabalhei com a hipotese de que 0 tombamento foi apropriado por muitos dos informantes favoraveis como um pesa- do signo de distin, marcador de um gosto e de um esclarecimento diferenciador e valorizador de sua pretensao social. Usado, portanto, como um novo e enobrecedor dado no mercado de bens de distingo local. Alguns exemplos ilus- trardio melhor essas afirmagées. 15 \rdo- ‘Bem Nii Do Velho. C.B., 40 anos, empresério, é filho de pequenos agricultores que se insta- Jaram na cidade. Segundo suas palavras, construiu tudo com o seu trabalho nao devendo nada a ninguém. C. B. participou do projeto Adote uma Casa, que propu- nha que cada empresdrio bancasse a restauragio de uma casa tombada. Afirmou que fazia isto pela sua esperanga nas potencialidades de Anténio Prado, mas tam- bém criticou 0 “espirito estreito dos outros empresérios, que nao tém uma visio moderna de inves- tir no futuro da cidade, que 86 pensam em seu bolso.” O informante é formado em Administragao de Empresas na Universida- de de Caxias do Sul, descrevendo-se como um empresdrio moderno e trabalhador, ‘mas também afirma que: “os outros nfio toleram que eu vim Id de baixo e ultrapassei eles, por isso nao dio forga pro Adote uma Casa. J4 os que so contra 0 tombamento, esses sim, so uns agringos retrégrados, atrasados e estreitos.” Para este informante, adotar uma casa € estratégico na reequilibragao de seu capital social e pretensdo de status, em que a questi da legitimagao enquanto bem-sucedido neste espaco social ~ em parte ja propiciada pelo titulo université- rio (capital cultural) e pelo sucesso empresarial (capital econémico) — encontra uma barreira perante preconceito com sua origem familiar, por ser filho de co- lonos, por vir de baixo e té-los ultrapassado. A estigmatizagao dos ndo-apoiadores e dos outros empresérios também valoriza, ainda que de modo especular, suas pre- tensdes de distingo, assim como suas concepgées modernizantes de administra- 40 empresarial ou visio de conjunto da cidade, articulando-se com a filantropia do Adote uma Casa, atributos que compensariam simbolicamente a situagio moli-la para construir outra nova. No inicio estava contra 0 tombamento, mas ja na primeira reunitio com a SPHAN convenceu-se de que sua casa havia entrado para a historia da colonizagfo italiana, sendo seu dever preservar este legado para as novas geragdes. Para ele “o esclarecido é a favor do tombamento. E sé isso que trard o progresso para Antonio Prado.” “LV. ganhou da SPHAN um projeto para reformar sua casa e & considerado pelos técnicos como um dos principais entusiastas do tombamento.” Outro médico, M.T., 75 anos, proprietario de casa tombada em al- venaria, chegou a compor versos enaltecendo 0 patriménio de Anténio Pra- do. Para este informante o importante é legar o patrim6nio para os netos sa- berem como foi a imigracao. Para J.V., ter uma casa tombada representa uma marca de distingdo que se agrega A sua posigdo social atual, sendo que nao houve um prejuizo econémico 16 com 0 tombamento de sua casa. O segundo médico também tem situago econd- mica e posigo social estavel na cidade, com a nuanca de uma preocupago acen- tuada com as novas geraces, enquanto que para o primeiro tratava-se da distin- do de um bem familiar entrar para a hist6ria da imigragao italiana. NN., 50 anos, artista plistica e professora aposentada, casada com um empresério de familia tradicional local, € descendente dos carpinteiros que cons- trufram as casas, ndo sendo especificamente uma proprietéria, N.N. relatou que, por volta de 1985, quase que simultaneamente, “descobri minha vocagdo de artista, junto com o valor hist6rico das casas construidas, pelos meus ancestrais.” NN. passou a usar as casas como modelos para sua pintura, além de pesquisar a histéria deste ramo de sua familia. Investigou quantos eram os irmaos, de que regio da Itélia vieram, quais as técnicas construtivas empregadas, como faziam os lambrequins, como esculpiam estatuas religiosas e outros produtos de artesanato, feitos sob encomenda. Depois de algum tempo, organizou exposigdes ‘com suas pinturas e com o resultado de suas pesquisas, exaltando a “contribuigao inestimavel dos irmaos Nodari para a constituigao do patrim6nio italiano de An- ténio Prado”. A informante é também responsdvel por uma oficina de arte, insti- gando as pessoas a valorizagio do artesanato local. A entrevista com esta infor- mante deu-se na sala de estar de sua ampla casa, enfeitada com pinturas, reliquias e armas antigas, as quais, em conjunto com sua colegao de estatudrias dos ances- trais, funcionam como signos de distingdo que evidenciam seu éxito social. Para esta informante, a descoberta e a valorizagao de determinado ramo de seus ascen- dentes é concomitante & experiéncia de ascensdo social, em que o fato de descen- der dos Nodari, antes pouco valorizado, passa a enobrecer sua pessoa e confir- mar suas pretensdes de status — j4 dotado de um plus devido ao nome adquirido pelo matriménio—tanto a partir da valorizagio do accrvo arquitcténico construido pelos ancestrais quanto através de sua relagdo com a esfera da arte. P.D. 45 anos, técnico agricola, é proprietario e morador de casa tomba- da em madeira, sendo também um ferrenho adversdrio do tombamento. Comprou sua casa em 1978 com a intengao de destruf-la e construir outra, melhor, em alve- naria, empatando todas as suas economias neste negécio. Em sua opiniao, “o tom- bamento foi péssimo para a cidade. Agora sim é que ela acaba de vez, porque as restrig6es da SPHAN niio vio deixar ela crescer”. O informante organizou um abaixo-assinado contra o tamhamento que nfio den em nada e agora vai se mudar da cidade com prejuizos econdmicos e muitas magoas. G-P., 60 anos, motorista aposentado, proprietério, acha que o tombamen- to vai enterrar a cidade. Desde o inicio fez cerrada oposig’o ao tombamento. O informante invocou exemplos da Itélia, 0 direito de propriedade, a Biblia, tudo para mostrar 0 engano que foi esse tombamento. Para ele, ite | CADERNOS DE CAMPO “Onde ja se viu achar que esse monte de casas velhas, esse monte de lenha pré queimar é cultura? Cultura € progresso, 6 desenvolvimento e essas casas ndo re- Presentam a cultura e sim a pobreza. Tu nfo achas que, na época em que essas ca sas foram construfdas, se as pessoas pudessem ficar morando em casas de alvenaria, clas iriam ficar morando nessas casas de madeira? Sabe o que foi que tombaram? Um. ‘monte de lenha cheio de cupins!” (grifos meus). Os informantes contrarios ao tombamento nao esto necessariamente em situagéio de descenso social mas concebiam a casa primordialmente como um re- curso econémico, em alguns casos essencial na viabilizaco de seus projetos fa- miliares. Para G.P., por exemplo — que experimentou uma ascensio econémica através da atividade de empréstimo de dinheiro a juros —, ser proprietério é in- concebivel com o tombamento, nao admitindo interferéncias de hipétese alguma na posse de seu terreno ou edificagdo — algo certamente importante para esses des- cendentes de imigrantes que cruzaram 0 oceano em busca de um lote de terra. Jao informante P.D. viu frustrado o seu intento de construir uma nova casa, este sim experimentando uma situagiio de descenso social agravada pelo tombamento, o que explica a sua revolta e ressentimento, além de sua disposigaio de projetar, por ex- tensAo de seu fracasso social, o fracasso da cidade como um todo. (CONCLUSAO: PATRIMONIO, MEMORIA E MODERNIZACGAO. processo de tombamento e preserva¢do implantado na cidade de An- t6nio Prado, a partir de 1987, € um caso exemplar para a compreensio do patriménio cultural na sociedade brasileira e isto por uma série de razdes. Em primeiro lugar, por tratar-se de um espago etnicamente diferenciado, estranho & definigdo de patriménio e identidade nacional até entao circulante no meio preservacionista brasileiro, tradicionalmente voltada a heranga luso-colonial. Em segundo lugar, por atingir a um conjunto predominantemente rastico e em madei- ra, configurando outra divergéncia face & doxa preservacionista tupiniquim, que 86 recentemente tem conseguido ampliar o escopo de sua abrangéncia além das fronteiras da alvenaria. Em terceiro lugar, porque evidencia os mecanismos poli- ticos pedagégicos pelos quais uma agéncia estatal (ou melhor, um grupo especf- fico dentro da SPHAN, coeso e portador de interesses e estratégias proprias), encarregada de gerenciar a metamemiéria de uma sociedade, consegue legitimar uma determinada representagao de identidade cultural numa sociedade local cuja rela- cio com 0 Estado e com a prépria regiao italiana é historicamente problemitica. A legitimagao de um patriménio revela-se, assim, tributaria de um jogo de confli- tos e negociagdes em que os diferentes protagonistas terminam por reelaborar as representagdes locais estabelecidas de cidade, memoria e identidade cultural, a partir da decisiva conjuntura fornecida pelo processo de tombamento. E importante salientar que as reelaboragées que se associam ao surgimento do patriménio de Ant6nio Prado nao devem a sua eficdcia apenas a processos de 18 agiio pedagégica, mas convergem para o estudrio das trajet6rias e estratégias sociais dos atores que se envolveram no episédio. No caso dos técnicos do patriménio his- t6rico no Rio Grande do Sul, Ant6nio Prado € um triunfo construido por anos de tra- balho, em que se inclui um processo de acumulago primitiva de sentido junto ao conjunto do campo do patriménio no Brasil. Para os intelectuais de origem italiana envolvidos no proceso, o tombamento representou uma alavanca tanto na constru- ao de sua legitimidade enquanto especialistas na definicAo legitima de meméria, ‘quanto na realizagao de seu programa de afirmagao e terapia de uma identidade cul- tural italiana ligada a experiéncia da imigragao no Rio Grande do Sul. Duas etapas pontuaram o surgimento do patriménio de Anténio Prado, no que se refere & sua apropriagdo local: uma primeira, em que a SPIIAN € hostilizada, principalmente devido a seu modo de encaminhar o tombamento. Tratou-se, ali, de uma reagiio povoada pelos temores e ressentimentos da meméria coletiva lo- cal, onde 0 contraste histérico e étnico com o governo € os brasileiros, juntamente com os fantasmas da discriminagao e da incapacidade da cidade progredir, com- pareceram com forca. J4 num segundo momento, marcado pela troca de um prefei- to opositor por um favoravel ao tombamento (1989), um determinado e influente ‘grupo de pessoas em Antonio Prado, basicamente em situagdo de ascensio social, passa a erguer a bandeira Ant6nio Prado, cidade histérica e a apoiar o tombamen- to como item de uma estratégia de distinco, usando para isto a casa tombada como um novo e precioso dado enobrecedor”. Esta clivagem sociolégica nao esteve desvinculada de outro aspecto da meméria coletiva local: o peso dos valores ligados ao idedrio do progresso e da modernizagao na constituigao de identidades neste espago social. Tao significati- vos que logo se transformaram no principal ponto de controvérsia e patamar de discussio sobre o ingresso das novas normas ¢ significagdes patrimoniais na ci- dade, focalizadas pelo debate central, se o tombamento era ou nao a grande saida para Ant6nio Prado. Nesse sentido, compreende-se que, sendo a apropriag’o do ideario da Modernidade uma pega central da ordem cultural construida pelos imi- grantes e seus descendentes (e, portanto, impregnando sua meméria coletiva), que tais questdes tenham englobado a importancia da discussao do valor hist6rico do acervo, tornando-se o principal foco de negociagdo dos atores sociais. Notas 1 Este artigo esté relacionado & minha dissertagao de mestrado (Lewgoy,1992), onde in- terpreto em detalhe as varias dimensdes etnograficas acionadas pelo tombamento. 2 Utilizarei aqui o termo SPHAN ~ Secretaria do Patrimdnio Hist6rico e Artistico Naci- ‘onal — consciente das mudangas de nome que a instituigo vem sofrendo nos iiltimos anos (atual Instituto do Patriménio Hist6rico e Artistico Nacional) por ser este 0 ter= ‘mo consagrado durante meu trabalho de campo. 19° CADERNOS DE CAMPO - Esta preocupagio critica em valorizar um outro tipo de patriménio vinha geralmente acompanhada de um questionamento do padrio dominante na eleigéo de bens tomba- dos, conceituado como Iuso-colonial. Segundo a classificagaio de Posenato (1989), o estilo das casas tombadas € inspirado na arquitetura urbana oitocentista do norte da Itdlia, se bem que adaptado & madeira, abun- dante nesta Regido do Rio Grande do Sul. Além das casas de madeira, foram também tombados alguns prédios em alvenaria, como a igreja e a prefeitura, onde se salienta um estilo neocléssico. preconceito contra a madeira advém do fato de ser considerada um material pouco nobre, fragil e perecivel, conforme os técnicos entrevistados. E preciso reiterar que ssa posigdo foi express por utn grupo coeso instalado no Rio Grande do Sul, nao re- presentando uma opiniao “média” da comunidade de especialistas ligados & preserva- io. Sobre a formagao hist6rica do paradigma dominante de identidade cultural, a partir das décadas de 20 e de 30, ver Queiroz (1988). Saliente-se a énfase que esta autora em- presta ao cardter reativo da ret6rica sobre identidade nacional brasileira, contra a “ame- aga” representada pelo massivo influxo imigrante no comego do século 20. Guardadas as devidas diferengas, as “politicas de resgate e preservagdo de valores e formas cul- turais auténticas face & avalanche da industria cultural” reeditam os mesmos temas des- ta ret6rica de identidade. Nesse sentido € preciosa a afirmagdo de Maria Alice Gouvea (autora que chamou atengéo para 0 tema da ameaga) ao afirmar que ..."no Brasil, 0 con- ceito de identidade cultural & vivido no registro de uma perda,”(1985:39) Estou aqui encarando a viabilidade de se tratar o patrimdnio hist6rico e cultural como um campo, no sentido de Bourdieu (1974). Por razbes de espago e pertinéncia remeto a justificativa desta afirmagao para o capitu- lo I de minha dissertago, onde desenvolvo-a em filigrana, O escritor José Clemente Pozenato, autor do livro © Quatritho, levado recentemente as telas do cinema pelo diretor Fabio Barreto, é um dos intelectuais mais conhecidos deste grupo. . Emprego 0 conceito de “herdeiros urbanos” na acepeo de Michel Marié (1982): “Ce sont des gens de la ville qui s’investissent sur la campagne des origines et qui, tres souvent en situation de promotion sociale, trouvent dans le retour & la campagne les signes de leur nouveau pouvoir sociale"(:26), Embora boa parte do trabalho do ECIRS dirija-se efetivamente & zona rural, no caso de Ant6nio Prado, mesmo tratando-se de uma cidade, o investimento simbélico segue mesmo espitito ainda que nao a mesma letra da definigao de Marié para a ago destes herdeiros urbanos, identificando esta cidade a um passado e a uma meméria étnica co- 20 12. Outras questdes poderiam ser destacadas, como a da tentativa de monopolizagio acadé- mica da competéncia legitima de definigdo dos limites da meméria social ¢ da identi- dade étnica neste espago regional (com a conseqiiente desqualificacao das competén- cias extra-académicas, locais comunitérias), mas isto exigiria investigagdes mais especificas, extrapolando os propésitos do presente estudo. 13 A este respeito ver Lemos (1981). 14 Agradego a Luis Eduardo Soares pela discusso mais acurada desta hiptese. 15 Este tema é tratado em Moccelin (1993) e em minha dissertagZo de mestrado (Lewgoy,1992). 16 A esse respeito consultar o trabalho de Costa ¢ De Boni (1992). 17 Ver, especialmente, Barbosa (1980) ¢ Posenato (1989) 18 Trato de forma detalhada e extensiva desta meméria local em minha dissertagao de mestrado, onde hé referéncias mais precisas e transcrigGes pontuais de textos ¢ de- poimentos. 19 A categoria brasileiros, expressando as pessoas de origem luso-brasileira no é uma exclusividade da Regio Colonial Italiana do Rio Grande do Sul, fazendo-se também presente em outros espagos étnicos, como nos mostra Giralda Seyferth (1991) 20 Nunca é demais reiterar que preservagdo também ndo é homogénea, cada casa enqua- dra-se de modo particular na gretha classificat6ria geral, que determinaré, igualmente, ‘a magnitude da protegao sofrida pelo bem tombado. 21 Essa procura por status e distingdo esclarece também a reiterada busca de diferencia- do dos informantes em relagio aos colonos, categoria que, originalmente designando © pequeno agricultor, o habitante do campo, acaba designando acusatoriamente tudo 0 que, no espago urbano, é estigmatizado como grosso e pouco sofisticado. 22. Nao estou com isso afirmando que todo o universo de informiantes favordveis compor- tou-se a partir destas motivagdes, mas que se trata de um dado sociologicamente im- portante. Houve, é claro, apoiadores estritamente baseados numa postura primordial- mente cfvica e politica, a quem talvez este artigo néio tenha dado o merecido espaco. BIBLIOGRAFIA BARBOSA, FD. 1980 Antonio Prado e sua histéria, Porto Alegre, EST. 21° BOURDIEU, P. 1974 “Génese e estrutura do campo religioso” Paulo, Perspectiva. 1979 La distinction, Paris, Minuit. A economia das trocas simbélicas, S80 COSTA, R. & DE BONI, L.A. 1982 Os italianos no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, EST. GOUVEA,M.A. 1985 “Politicas de preservagio do patrimnio (trés experiéncias em confronto): Inglaterra, Estados Unidos ¢ Franga”, in: MICELI, S. (org.) Politica cultural comparada, Rio de Janeiro, FUNARTE,FINEP, IDESP. JEUDI, H. 1990 Memérias do social, Rio de Janeiro, Forense Universitaria. LEMOS, C.A. 1981 O que é patriménio histérico, S40 Paulo, Brasiliense. LEWGOY,B. 1992 A invenedo de um patriménio: um estudo sobre as repercussdes sociais do proces- so de tombamento e preservacao de 48 casas em Antonio Prado/RS, dissertagao de mestrado, Porto Alegre, PPGAS/UFRGS. LOVISOLO, H. 1989 Terra, trabalho e capital, Campinas, Ed. Unicamp. MARIE, M. 1982 Un territoire sans nom, Paris, Librairie des Méridiens. MOCCELIN, M.C. 1993 Narrando as origens, dissertagio de mestrado, Porto Alegre, PPGAS/UFRGS. POSENATO, J. . 1989 Antonio Prado: cidade histérica, Porto Alegre, Posenato, Arte & Cultura, POZENATO, J.C. 1990 — Processos culturais na regio colonial italiana do Rio Grande do Sul, Caxias do Sul, EDUCS. QUEIROZ, M.LP. 1988 “Identidade cultural e identidade nacional no Brasil”. In: Revista de Sociologia da USP (1), Sao Paulo, USP. SEYFERTH, G, 1991 Nacionalismo e identidade étnica, Florian6polis, FNC/UFSC. 22 ‘TURNER, V. 1974 Dramas, Fields and metaphors, Ithaca, Cornell University Press. Abstracts The present paper aims to understand the social meanings of the new concepts about cultural heritage in a local society: the case of preservation of a set of 48 houses, considered representative of the italian immigration architeture in AntOnio Prado, Rio Grande do Sul. Studying this specific situation, itis also my objective to clarify issues, such as, social memory and cultural heritage within the modem complex societes. Uniterms: Cultural heritage, social memory, ethnic identity. 4 23 VIAGEM AO MUNDO INDIGENA (COLECAO. Pawana, VoL.1), DE Lufs DoniseTe Benzt Gruriont, BERLENDIS & ‘Verreccuta Eprrores, SA0 PAULO, 48 PAas., 1997. Coletinea de histérias infantis retratan- do situagGes cotidianas e rituais vividas por criangas e jovens indigenas. O livro SY pretende aproximar o leitor infanto-juve~ nil ao universo cultural indfgena, abor- dando os povos Bororo, Xikrin, Nambiquara, Xavante e Kadiwéu. Ilus- trado pelos grupos indigenas retratados, o livro traz, ainda, informagies biblio- gtificas e fotos spbre esses grupos. Capa dura, colorido Ss Juntos na ALDEIA (COLEGKO PAWANA, VoL. 2), DE Luis DoniseTe BENZI Grupiont, BERLENDIS E VERTECCHIA Eprrores, SAo PauLo, 48 PAas., Brasitia, 1997. ‘Segundo volume da colegio Pawana, 0 livro é uma coletdnea de hist6rias infan- tis retratando situagées cotidianas e ri- tuais vividas por criangas e jovens indi- genas. O livro pretende aproximar 0 leitor infanto-juvenil ao universo cultu- ral indfgena, abordando os povos Kamaiurd, Waidpi, TiriyéeZo'é. Hustra- do pelos grupos indigenas retratados, 0 livro traz ainda informagoes bibliografi- cas ¢ fotos sobre esses grupos. Capa dura, colorido. Enderego para contato: MARI - Grupo de Educagaio Indigena Depto. de Antropologia - USP Caixa Postal 8105 05508-900 Sao Paulo - SP

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