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Florestan Fernandes ea educacdo DERMEVAL SAVIANT jetéria de Florestan Fernandes manifestando-se em todas as facetas de sua P ODE-SE DIZER QUE As preocupagdes educacionais aéompanham toda a tra rica existéncia, Para efeitos desse artigo destacarei quatro aspectos, a saber, a docéncia, a pesquisa, a militincia e a publicistica advertinda, preliminarmente, sobre a indissociabilidade desses aspectos, integrados que estio numa vida toda ela marcada pela coerincia de propésitos reconhecida, aliis, como a principal caracte ristica de Marx (Fromm, 1967:220), com certezao pensador com quem Florestan mais se identificava. .O primeiro aspecto enfocaa figura do professor Florestan, evidenciando 0 profundo significado educativo que marcau 6 seu magistério. O segundo aspec- to destaca o lugar ocupado pela educagio nas investigagées cientificas por ele realizadas, O terceiro refere-se ao seu engajamento na luta em defesa da educa fo piblica, desde a campanha em defesa da escola piblica até a sua atuagio como deputado. federal. Finalmente, 0 quarto: aspecto coloca em evidéncia 0 publicista incansével, empenhado em divulgar sob todasas formas a seu alcance, causa da defesa de uma escola piblicade qualidade acessivel a todos os brasileiro. O professor-educador O professor é, antes de tudo, um educador, isto é, formador de homens. Esta verdade simples que esté na raiz. da atividade docente tendeu, porém, a cair no esquecimento em beneficio do aspect mais visivel da fungio docente que passou a ser entendido comoa forma mesma da proprio ser do professor, Assim, 4 medida em que © magistério se institucionalizava através da constituigio © expansio dos sistemas escolares, cristalizava-se essa compreensio restritiva do papel do professor. Dal, a sepatacio entre instrugia ¢ educagae-¢ o consequente entendimento de que a tarefa da escola se limitava a instrucio (Condorcet, 1989;56-72), definindo-se o professor como-instrutor (institutenr, em frances). Estamos af diante de uma ilustrag3o da fundamental questio cpistemoligica se- gundo a qual a aparéncia nio apenas csconde a esséncia mas pode tomar o lugar da propria esséncia, EsTUDOS AVANGADOS 10(26), 1996 7 A radicalidade com que Florestan Fernandes assumin a condigio humana © levou a assumir também radicalmente as atividades em que se empenhou, ai incluida.a ago dacente, Nese contexto, cm lugar de se constituir simplesmente como um professor ~ sem divida sério, consistente ¢ responsivel, ministrando um ensino de qualidade a sucessivas turmas de alunos conforme a expectativa social e institucional estabelecida ~ foi levado a converter a cadeira de Sociologia Ida Faculdade de Filosofia, Ciéneias ¢ Letras da usr, que ficou sob sua respon- sabilidade a partir de 1952-53, num verdadeiro espaco educativo destinado a formar quadros de alto nivel no campo das ciéncias sociais. Come ele proprio relata (Fernandes, 1972-82-83), jé que mo podia contar com um laboratério, como era 0 caso das ciéncias exatas, 0 gue “impunha trabalho em equipe” ¢ “exigia modernizasao operacional de superficie « de funda”, a solugao encontra- da foi utilizar a cadcira de sociologia I-como base de apoio para 2 constituigko de uma equipe visando a “formacio de um verdadeiro grupo de sacilogos pesaui sadores”, criando, ao mesmo tempo, “o espaca necessirio a sua propria consol dacto crescimento gradual”. Essa cadeira se transformou, pois, “em um pito para atingir fins que sio inacessiveis ao professor ¢ ao investigador isolados” (Ubi 178). O espago pedagégico assim definido resultou em ambiente estimulante de um trabalho intelectual rico, intenso ¢ exigente Por certo, como ele proprio frisow-em diferentes oportu nio cra um pedagoge e nem mesmo um cientista dla cuca Gializado que essas-expressives adquir radicalidade jf referido levou-o, « partir da experiGneia de sua propria foemagin edo processo formative que passou a liderar come professor, verdadeiro edueador, isto é aquele que pratica a educagio com a conscitneta clara de que a esti prati significagao para 0 co Tomando em conta a sua trajetiria tram o que foi dito, ladles, Florestan 10 no sentide espe no séeulo at Contudo,o sense de atuar como indo, 0 que o leva'a formular canceits de méxima hecimento da ex ia pripria dos fendmenos educativos, send diffcil encontrar elementos que ilus Assim, quando formula uma avaliage compa curso de graduagio da Faculdade de Filosofia, curso de mestrado na Escola Livre de Sociologia ¢ Politica, conclu: “em ambas aS escolas 08 cuESOS monogrificas cram de escolha arbitriria dos professores. O que cra étimo para simplificar as tarcfas docentes, mas péssimo em termos da- guile que deve aprender um estudante de cinecias soxiais” (Fbid,:170), Essa constatagio revela a percepeio clara da diferenga de objetivas entre pesquisa (fazer erescer 0 saber}, € en Propriamente pedagigiea dos processns de ensino-aprendizagem,o que impie a organizago dos contetides segundo um plano cujo critério de referéncia deve ser dado pelos fins a atingir ¢ nao pela escolhn arbitréria dos professores. tiva da sala formag. jas ¢ Letras «la us © no. ino (fazer crescer 0 aluno) assim como da natureza 7 Esrunos AvANGADOS 10(20), 1996 Em outro momento, a se reférit 20 que considera 0 “periodo mais fermentativo” de sua formagio destaca duas atividades ligadas diretamente 20 ‘que fazia como professor ¢ pesquisador na usr: “o ensino de sociologia e a pes- ‘quisa sociolégica dobraram 0 mcu nude individualismo, forcando-me a travar as tiltimas batalhas que assinalam o aparecimento de uma segunda nagsiresa bnsea- aa dentro demim, a qual se confunde com o ‘professor’ ¢ 0 ‘sociélogo” em que me converti, inteiramente voltado para fora, para os ‘problemas dos outros’, os ‘dilemas de nossa época’ e 0 “controle racional da mudanga social” (Ibid :171). Nese ponto atinge-se o nticleo constitutive da natureza da educagdo. E a pré- ria expressio “segunda natureza”, também ji referida por Gramsci, assim como o conceite de habitur (Bourdicu-Passeron, 1970:46-70), remetem exatamente para a compreensio da esséncia da educagio. Esses conceitos foram por mim (Saviani, 1995a:81-82) assumidos ¢ sintetizados no conceito gramsciano de “catarse” entendido como a “assimilagSo superior da estrutura em superestrutu- rama consciéncia dos homens” (Gramsci, 1977:48) buscando identificar © pon to culminante do processo educativo que se define pelo “ato de produzir, direta ¢ intencionalmente, em cada individuo singular, a humanidade que € produzida histérica ¢ coletivamente pelo conjunto das homens” (Saviani, 1998b:17). Ao considerar que o ensino da sociologia a pesquisa sociolégica provocaram “o aparecimento de uma segunda natureza humana dentro de mim”, Florestan est spontando pars a esséncia da educagio, isto &, um proceso que visa & transfor: magio interna dos sujeitos pela incosporagio de elementos que nio sio dados naturalmente € nem adquiridos espontaneamente mas que, uma vez incorpora- dos pela mediagio da ago educativa, passam a operar como se fossem naturals. Constituem, pois, um daditns, ou seja, uma disposigo permanente c irreversivel ‘que passa.a constituir a propria estrutura do sujeito, nao Ihe sendo possivel agie ‘sem que intervenham esses elementos. Trata-se, conseqiientemente, de uma se~ gurda naturcza construida pela educagio sobre a base da primeira naturcza rransmitida por eédigos genéticos e pela tradi¢io espontinea. Outro aspecto que ilustra a percepgio do significado proprio da educagio 2 avaliaglo do papel desempenhado pela sua pesquisa de mestrado que versou sobre a Organizagao Social Tupinamba: “Com essa pesquisa, ndo $6 obtive 0 grau de mestre em ciéncias so aestatura de um artesio que domina € ama o seu mister, porque sabe como deve pratici-lo e para o que cle seeve* (Fernandes, 1977:175). Mas, por que 0 trabalho de mestrade viabilizow esse resultado? Isto foi possivel porque, assumindo radicalmente as exigéncias da pes: quisa, Florestan transformou seu curso de mestrado naguile que ele devia, de {ito, ser, isto é, num trabalho educative de iniciagdo 4 formagio do pesquisador (embora a maioria dos cursos de mestrado até hoje n3o sc tenha ainda dado

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