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Titulo original: Lectures 2: La contrée des philosophes | ae © Editions du Seuil, 1992 ISBN 2-02-019118-0 Edigdo de Texto: | ‘Marcos Marcionilo Revisao: Luiz Paulo Rouanet A REGIAO DOS Projeto grafico’ Andréia A. Cust6dio | FILOSOFOS Edigées Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo — SP Caixa Postal 42.335, | 04299-970 Sao Paulo — SP | © (O11) 914-1922 Fax.: (O11) 63-4275 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma elou quaisquer meios (eletrénico, ou mecanico, incluindo fotocépia e gravarao) ou arquivada em qual ‘quer sistema ou banco de dados sem permissao escrita da Editora. ISBN: 85-15-01334-7 © EDIGOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 1996 @ EIEANW/ Rezuzsio ranwema nerusco segursps emt Gapniet. Mancrs (1904) .. 47 O Trwtano De METAFISICA DE JEAN WanL. (1957) 65 (CAMUS, SARTRE, MERLEAU-PONTY, HYPPOLITE (O Homes RevOLIADO (1956) ... 81 MORE 0 PERSONALISMO, VOLTA A pEsson... (1983) .. ABORDAGENS Da PESSOa (1990) .. . _ 155 JEAN NABERT QAGIR HUMANO (© Maxx ve Mic, Hey (197 Erica & FILosoria pa piotocia emt Hans Jonas (1991) .. 229 2. POETICA, SEMIGTICA, RETORICA MIKEL DUFRENNE, A Nogho pea pmonrseunbo Mix, DuERENNe (1961) ‘UMA RETOMADA DA POETICA DE ARISTOTELES (1992) sssssssassassansnssans— 5 Nota Editorial Entre Leituras 1, que reunia os artigos prefécios de Paul Ricoeur tratando especificamente da questdo politica, e Leituras 3, que retine os textos sobre o trégico, a questo do mal, ou ainda 05 que destacam os lagos entre a filosofia e a nao-flosofia, nao parece, a primeira vista, que Leituras 2 oferece ao leitor um volu- ‘me menos organizado? Em poucas palavras, esta segunda coleta- nea nao parece ser apenas a ocasiao para publicar 0s outros tex- tos de revistas ou prefacios de obras ainda dispersos e ndo publi- cados? E mais particularmente os textos que Ricoeur consagrou ‘a0s pensadores franceses cuja leitura 0 acompanhou ao longo de todo 0 seu itinerério filos6fico? Longe de se apresentar como uma justaposigdo enciclopédi- cade “figuras filos6ficas”, Leituras 2ofetece, ao contratio, a opor- tunidade de compreender 0 papel que desempenharam na obra de Ricoeur — mas também o lugar que ocuparam na Franca — “os pensadores da existéncia” ligados & tradigao reflexiva. Se Jean Nabert ¢ 0 seu principal representante na Franca, essa tradigao re- monta ao pés-kantismo, e mais precisamente a Fichte, para quem “a posicao do si é uma verdade que se poe a si mesma”, 0 que significa, ao mesmo tempo, que ela é “a posigo de um ser e de um ato, de uma existéncia e de uma operagao de pensamento”, Enquanto Ricceur gosta de apresentar seu trabalho como conversacao entre 0 pensamento germanico — marcado pelos sucessivos encontros de Jaspers, Husserl, Heidegger, Gadamer, Habermas —, a tradigao reflexiva francesa simbolizada pela obra de Jean Nabert, e a filosofia analitica anglo-saxOnica nas suas diversas variantes, 0 pensamento reflexivo é aquele cuja carga Lerruras 2 — A REGO DOs FILOSOFOS 8 especulativa e influéncia sao mais delicadas de interpretar, a ponto de permanecer mal conhecido e periférico na apresentacao con- vencional da hist6ria da filosofia francesa depois da tiltima guer- ra!, Nesse contexto, a primeira seqiiéncia de Leituras 2, que se apresenta como uma sucessAo de artigos consagrados a Kierkegaard, Gabriel Marcel, Jean Wahl, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Jean Hyppolite, Emmanuel Mounier, Paul- Louis Landsberg, Jean Nabert.... esclarece — em razio da con- frontagao implicita que ela pde em cena entre esses diferentes pensamentos — a originalidade dessa tradigao reflexiva. Mas tam- bém o papel decisive que ela continuard a desempenhar na “polémica” mantida por Ricceur entre essa tradigao ¢ as herangas fenomenolégicas, hermenéuticas e analiticas. Os dois textos de abertura, consagrados a Kierkegaard, sao particularmente instrutivos: eles permitem, por um lado, compreen- der como o existencialismo do pés-guerra se distingue do pensa- ‘mento reflexivo, e, por outro, inscrever esse pensamento na hist6ria da filosofia, evitando reduzi-lo a este ou aquele autor singular. Em “Filosofar ap6s Kierkegaard”, Ricoeur situa a contritouigao deste em fungo de Kant, Fichte e Schelling: “Tais so as trés estruturas filo- sGficas, recebidas de Kant, de Fichte e de Schelling, que dao ao dis- curso kierkegaardiano sua dimensao filos6fica: primeiro a idéia kantiana de uma critica da Razo pratica distinta de uma critica da experiéncia fisica. Em seguida, a distincao fichtiana entre ato e fato, assim como a definicao de uma filosofia pritica pelas condigoes de possibilidade e de realizacao do ato de existir. Enfim a problemati- ca schellinguiana da realidade finita, e mais precisamente a cone- xdo entre finitude, liberdade e mal” (p. 37). “Momento do desejo constitutivo do nosso ser”, segundo a expressio de Jean Nabert, a reflexio acompanha um pensamento do “si” que recusa — este ¢ o tema do primeiro capitulo de Soi- 1. Os artigos que tém por objeto a fenomenologia foram publicados em AT école de la phénoménologie, Paris, Vrin, 1986. 0 leitor encontraré artigos sobre Karl Jaspers em Leituras 1. Quanto & filosofia analitica, muito presente em Tempo e narrativa e em Soi-méme comme un autre, obra na qual ela repesenta um “desvio” necessério, ela nao foi objeto de uma publicagao de artigos justificando uma coletanea autonoma (ver, no entanto, varios textos em Du texte a I’ action). 9 Nota eprronat. ‘méme comme un autre (1990) — a oscilagao entre a exaltagio cartesiana ou a humilhagao nietzschiana do Cogito. Se a posi¢ao do “si” € uma verdade que se pde a si mesma, ela se encontra diante da obrigagao de se reapreender, isto é, de “se projetar no espelho dos seus objetos, das suas obras e, finalmente, dos seus atos". Nao podendo se dar na intuigao de uma consciéncia ime- diata, o “si” deve se exteriorizar em atos ¢ em obras. Essa dupla “deposicéo” do “si” nas obras e nos atos sublinha os lacos da reflexao e da filosofia de Ricoeur que se apresentam como um pensamento do agir, uma ontologia da acao, mas também como uma hermenéutica®. Na linha das discussdes esbocadas aqui, o papel do pensamento reflexivo e a influéncia profunda exercida por Jean Nabert, o qual “redescobre o sentido do ético que € mais préximo de Spinoza do que de Kant”, tendem a mostrar que a heranga reflexiva é um dos principais fios de Ariadne do trabalho de Ricoeur. Talvez o fio mais dificil de desembaracar em razao do destino que coube a autores como Merleau-Ponty ou Jean Nabert na Franca. Mas também porque a dimensao hermenéutica ocul- tou sensivelmente “o imperativo reflexivo” que, contudo, voltou com fora em 1990, em Soi-méme comme un autre, cuja ambicao declarada é realizar uma “fenomenologia hermenéutica do si”. Se os tiltimos textos da primeira seqiiéncia de Leituras 2 voltam a tratar da questao do agir e da praxis (ver os artigos sobre Marx de Michel Henry ou a reflexao sobre a filosofia biolégica de Hans Jonas), a segunda seqiiéncia de Leituras 2— prolongando 8 textos publicados em 1969 em O conflito das interpretacoes — aborda os debates relativos ao “circulo hermenéutico” e a inter- pretacdo. Refletindo sempre no ambito do par diltheiano exp! car/compreender, Ricoeur discute essencialmente a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss e a semiética narrativa de AJ. Greimas. O confronto com esta ultima — os trés textos substan- 2. Ver Paul Ricceur, Les métamorphoses de la raison hermeéneutique. Sob a diregao de Jean Greisch e Richard Kearney, Paris, Cerf, 1991. 3. Aos trés textos publicados aqui, é preciso acrescentar “Lacte et le signe selon Jean Nabert”, in Le Conflit des interprétations, Paris, Le Seuil, 1969, [Desses trés textos 56 um foi publicado nesta edigao, os dois que foram excluidos foram “Préface a Eléments pour une éthique”, de 1962 e “Préface & Le Désir de Dieu”, de 1966. N. do T.| Lerrunas 2 — A neGiKo Dos FiLosoros 10 ciais consagrados a A. J. Greimas formam um todo e uma home- nagem a esse autor recentemente desaparecido — ¢ particular mente fecundo porque torna possivel a elaboragao de uma her- menéutica geral cuja gramética narrativa representa uma variante que se opie a de Gadamer e de Ricceur. “Uma inversao metodolégica separa as duas hermenéuticas; mas vejo essa inversio operada no interior de uma hermenéutica geral, para a qual a diferenca entre explicar e compreender permanece insuperdvel” (pp. 435, 436). Na 6tica dessa hermenéutica geral, 6 o debate sobre a interpretagao ao qual é consagrado um artigo — que é consideravelmente enti. quecido a despeito da fraqueza da corrente hermenéutica na Fran- a, “a teoria da interpretacao nao tendo conhecido ai o impulso do qual ela se beneficiou na Alemanha” (p. 45)*. Vé-se assim que Leituras 2, cujo subtitulo, “A regiao dos fil6- sofos”, foi escolhido por Paul Ricoeur, permite antes de tudo redescobrir — beneficiando-se da forga de penetragao de suas leituras — pensadores um tanto exilados da cena filos6fica (de Gabriel Marcel a Jean Nabert), mas também perceber uma das molas do pensamento de Ricceur freqientemente desconhecida, até mesmo ignorada, em beneficio da dimensao hermenéutica da sua obra. Leitor assiduo, ele nao cessou de ler para melhor com- preender o que ele mesmo se esforcava por pensar, e para avan- car ainda mais na elaboragao de uma filosofia que encontrou toda a sua dimensao em Soi-méme comme un autre, a obra de 1990 na qual as diferentes filiagdes reivindicadas trabalham de maneira concertada em vista de orquestrar uma ontologia do agir’. OM. PS: Todos 0s nossos agradecimentos a Sra. Thérése Duflot, que permitiu que este segundo volume das Leituras pudesse ser publicado nas melhores condigoes. 4. Textos nao reproduzidos aqui, intitulados respectivamente “Entre herméneutique et sémiotique”, de 1990, e Interprétation”, de 1989 (N. do E.). 5. Sobre a coeréncia profunda da obra de Ricoeur e 0 papel que nela representa a tradigao reflexiva, ver Olivier Mongin, Pau! Ricqwur, colecao * Les contemporains’, Paris, Seuil, s.d 1 PENSADORES DA EXISTENCIA Kierkegaard e o mal (1963) Nao € tarefa isenta de riscos celebrar Kierkegaard, ele que nfo teve piedade para com os pastores e professores. Sim, pode- -se falar de Kierkegaard sem exclui-lo e sem se excluir? Estamos aqui para desafiar honestamente e de maneira modesta esse ridi- culo; afinal de contas, é preciso também ousar afrontar os sarcas- mos de Kierkegaard; esta ainda 6 a melhor maneira de honré-lo; em todo caso, é preferivel correr esse risco a Ihe dar razdo por conveniéncia e convencio e entregar-se em seguida a seus pen- samentos como se os possuisse. Proponho dois encontros muito diferentes com Kierkegaard: no primeiro, tentaremos escutar e compreender, pondo-nos sim- plesmente diante de um pequeno ntimero de textos sobre os quais projetaremos um raio de atenco tao estreito e intenso quanto possivel: esses textos sdo extraidos de dois escritos: O conceito de angiistia, que é de 1844, e A enfermidade mortal, publicado cinco anos mais tarde, em 1849. Nesses dois ensaios, quero extrair 0 pensamento de Kierkegaard relativo ao mal, entregando-me a uma exegese tao obediente quanto possivel dos textos; é entéo que corremos o maior risco de nos excluir dessa explicacao de texto. ‘Na segunda conferéncia, tentarei explicar e aplicar o preceito que Karl Jaspers ensinava ha cerca de trinta anos: “Nossa tarefa, dizia ele, nds que ndo somos a excegao, & pensar em face da éxcegaa".Ten- taremos, entao, dessa vez ndo excluir Kierkegaard, dado que abor- daremos a questo: “Como € possivel filosofar apés Kierkegaard?” Por que nos deter nesses dois tratados e por que a questo do mal? Lerrunas 2 — A neciko Dos riLdsoros 16 Primeiro, a questao do mal. £ desnecessdrio enfatizar que 0 mal é 0 ponto critico de todo pensamento filos6fico: se ele o com- preende, este é 0 seu maior sucesso; mas 0 mal compreendido nao é mais o mal, ele deixou de ser absurdo, escandaloso; & mar- gem do direito e da razdo. Se nao o compreende, entao a filosofia nao é filosofia, se 6 verdade que a filosofia deve tudo compreen- der e se erigir em sistema, sem resto fora dele. No grande debate entre Kierkegaard e 0 sistema — vale dizer, Hegel —, a questao do mal representa uma incomparavel pedra de toque. £ sobretudo este ponto que eu gostaria de tratar: é ele que nos conduziré ao nosso segundo problema: pode-se filosofar apés Kierkegaard? & importante, em vista dessa questdo de confianga, compreender como o préprio Kierkegaard pensa em face do irracional, do ab- surdo. Pois ele nao grita, ele pensa. Haveria outra razao para falar do mal: ele nao é s6 a pedra de toque para a filosofia, mas é também a ocasiao para surpreender a qualidade do cristianismo de Kierkegaard, quero dizer o cristia- nismo da Cruz, mais que da Pascoa ou de Pentecostes. Voltarei a isto no final desse ensaio... Mas quero, sobretudo, tentar mostrar como Kierkegaard fala e pensa sobre o Mal, isto 6, sobre o que ha de mais oposto ao sistema. Comego por uma observagao: nenhum desses dois livros constitui, de qualquer modo que seja, um Diario, uma Confissao. Nao se encontram tracos, nesses escritos, da terrivel confissao feita pelo pai, daquele dia da sua infancia quando, guardando seus rebanhos na planicie de Jutland, subiu sobre uma pedra e amaldigoou a Deus. Nem tampouco do casamento precipitado do pai vitivo com uma serva cortesd, nem de todas as mortes que se abateram sobre a casa paterna, como um castigo pela blasfé- mia, nem da melancolia de Soren, nem do espinho na carne. Perderfamos nosso tempo se tomassemnos a via curta da biografia psicanalitica e se buscassemos nesses escritos complicados e cheios de raciocinios a transposi¢ao direta de uma vida emocional, repleta de tormentas e de remorsos. Essa via direta, da vida a obra, € nos absolutamente interditada; nao que uma psicanidlise de Kierkegaard, ou pelo menos uma aproximacao psicanalitica fragmentaria, seja impossivel. Mas para tanto seria necessdrio tomar resolutamente a via inversa: ou seja, comecar pela exegese dos textos €, se posstvel, 7 KIERKEGAARD £ 0 SL decifrar nos préprios textos algum segredo da vida. Isso quer dizer que é preciso, de qualquer modo, comegar pelos textos e, talvez, remontar dos textos a vida; pois hd mais nesses textos do que as migalhas biogrdficas que possamos recolher. Vamos diretamente aos textos. Esses dois tratados tém em comum 0 fato de serem edificados sobre a base de dois sentimen- tos, mais precisamente com base em dois sentimentos negativos cujo objeto permanece indeterminado: a angtstia, 0 desespero. Angiistia de qué? desespero de qué? Entretanto, é deles que se deve partir, pois se adotéssemos como ponto de partida o que jé sabemos sobre o mal, perderiamos precisamente 0 que nos pode ser ensinado por esses dois sentimentos; partir do mal conhecido seria partir de uma definic4o puramente moral da culpabilidade, como transgressado de uma lei, como infragao. Ao contrdrio, a questo é descobrir uma qualidade e urna dimensao do “pecado” que so as tinicas a poderem anunciar essas emocGes profundas, ordinariamente ligadas a melancolia ou ao medo. £ porque a de- terminagao do mal se faz inteiramente na 6rbita desses dois sen- timentos que 0 “conceito” do mal é profundamente diferente em cada um dos tratados; a andlise da angtistia desemboca no con- ceito do pecado-evento ou surgimento; a prépria anguistia é uma espécie de deslocamento, de fascinacao na qual o mal se encon- tra circunscrito, aproximado pela frente e por tras. Ao contrério, 0 Conceito de desespero — outro nome de A enfermidade mortal — se estabelece no nticleo do pecado, nao mais como um salto, mas como um estado; 0 desespero é, se podemos dizer, o mal do mal, o pecado do pecado. Consideremos sucessivamente essas duas vias de aproxima- 40. Tentaremos, para concluir, compreender a sua conjungao. A primeira 6, deliberadamente, anti-hegeliana: salto, surgi- mento, evento opondo-se a mediacao, sintese, reconciliagao. Por isso mesmo rompe-se a mistura equivoca da ética e da légica: “Na logica hd excesso, na ética falta; em parte alguma ele é justo ao pretender sé-lo dos dois lados". Mas entao, quem falara justa- mente do pecado? O metafisico? Ele 6, a0 mesmo tempo, muito desinteressado ¢ muito compreensivo. O moralista? Ele cré de- masiadamente no esforgo do homem e nao suficientemente na sua mis¢ria, O pregador? Sim, talvez; pois ele se dirige ao isolado, Lurruns 2 — A REGIAO Dos MLdsoFOs 18 de s6 a s6; mas entaa, ele s6 0 explica pressupondo-o: “No fundo, observa Kierkegaard, 0 conceito do pecado nao encontra lugar em nenhum conhecimento, s6 a segunda ética [isto é, aquela que segue a dogmatica, que conhece o real e o pecado ‘sem frivolida- de metafisica nem concupiseéncia psiquica’] pode tratar suas ma- nifestagdes, mas nao suas origens” (p. 25). E, contudo, é como psi- célogo que Kierkegaard vai falar; a fim de isolar o radical salto do ato, 0 psicdlogo esbogard a sua possibilidade, aproximando de al- gum modo a descontinuidade de um surgimento pela continuida- de de um deslocamento, de uma passage. © paradoxo, aqui, é 0 do comeco. Como 0 pecado entra no mundo? Por um salto que se pressupée a si mesmo na tentacio. Este 6.0 “conceito de angtistia”: uma psicologia muito préxima do evento, uma psicologia que envolve de perto o evento como ad- vento, uma psicologia da duragio em que a inocéncia se perde, ja se perdeu, oscila e cai. Mas nés também nao conhecemos a ino- céncia, nés apenas sabemos da sua perda; a inocéncia € “algo que, mesmo quando se a destrdi, s6 se mostra por essa razéio e 86 entdo como tendo existido antes de ser destruida e sendo-o ago- ra” (p. 41). Assim, eu s6 conheco a inocéncia quando perdida; do salto do pecado, eu s6 conheco a progressdo. A angiistia é esse ntermedidrio entre a inocéncia que se perde e um salto que pro- cede. Que dizer da propria anguistia? £ 0 nascimento do espirito: desse espirito que a Biblia chama de discernimento do bem e do mal; mas o espirito ai ainda est4 sonhando; nao ha mais inocén- cia, nao ha ainda o bem ¢ o mal, Entéo com que sonha o espirito? Com nada. Com o nada. Esse nada gera a angistia. E assim que “a angtistia 6 a realidade da liberdade, porque é a sua possibilida- de” (p. 46). Nada, possibilidade, liberdade... Como se vé, a ambi- gilidade — a palavra é de Kierkegaard — é mais enigmatica do que a ja demasiadamente moral concupiscéncia; antipatia sim- patizante, simpatia antipatizante, prefere dizer o sutil Kierkegaard. 1. Cito Le concept de l'angoisse, trad. de Ferlov e Gateau, Paris, Gallimard, Col. “Idées". (Cf. Oeuvres completes, t. 7: Le concept d'angoisse, trad. de P.H. Tisseau, Paris, Ed. de 'Orante, 1973, pp. 123, 138-139, 144, 145, 146, 17) 19 Krenxscaann E essa ambigitidade ele a chama de dialética, porém psicolégica e ndo légica. Voltaremos a isso na segunda conferéncia. “Assim como a relagdo da angustia com o seu objeto, com algo que é nada (a linguagem 0 expressa também com forga: angustiar-se com nada) pulula de equivoco, da mesma maneira a passagem que se pode fazer aqui da inocéncia & falta sera, precisamente, to dialética a ponto de mostrar que a explicagao é, exatamente, © que ela deve ser: psicolégica” (p. 47). Dir-se-4 que é a interdigao que suscita 0 desejo? Mas a ino- céncia nao compreende a interdicdo; esta é, diz Kierkegaard, uma explicagio posterior. Digamas antes que a interdigao 6 a palavra — a “palavra enigmatica” — que cristaliza a angustia: 0 interdito inquieta Adao porque desperta nele a possibilidade da liberdade. 9 nada se torna “possibilidade de poder’; é essa possibilidade que ele ama e da qual foge. Nao se deve dizer que Kierkegaard se compraz.no irracional, no inefavel: ele analisa, disseca, transborda em palavras. Ele é 0 dialético da antidialética. E esse paradoxo dialético culmine na representagéo do homem como sintese de alma ¢ corpo, reuni- dos nesse terceiro termo: 0 espirito — espirito que sonha com nada, espirito que projeta o possivel. O espirito é esse “poder inimigo”, sempre perturbador da relacao que, contudo, nao exis- tiria senao por ele; por outro lado, o espirito é uma “poténcia amiga”, desejosa justamente de constituir a relagée: “Qual. é, portanto, a relacao do homem com essa poténcia equivoca? Qual a relacao do espirito consigo mesmo e com a sua condicao? Essa relagio é a angtistia” (p. 48). Assim, a psicologia chega muito cedo ou muito tarde: ela conhece ou a angustia de antes, que leva ao salto qualitative — anguistia de sonho, angiistia de nada —, ou a angiistia de depois, que aumenta quantitativamente o mal — angustia de reflexao, anguistia de alguma coisa, tornada de algum modo natureza, pelo fato de ter assumido doravante um “corpo”; é assim que a angtis- tia habita o sexo: nao que ela venha daf, mas porque ela chega ai. A angiistia de sonho se fez carne e estende sobre todas as coisas um “profundo luto inexplicado”. Cometeriamos um grande erro se buscassemos aqui alguma repugnancia puritana pela sexuali- Lerrunas 2 — A necito Dos midsoros 20 dade: antes de Max Scheler, Kierkegaard compreendeu que a anguistia ndo vem do sexo, mas desce do espirito & sexualidade, do sonho a carne; 6 porque o homem é atormentado no seu es- pirito que ele se envergonha da sua carne; no pudor, o espirito se inquieta e teme revestir a diferenca sexual. Assim o pecado entra no mundo, faz-se mundo e cresce quantitativamente, Mas nés nado conhecemos melhor o que é 0 pecado pela angistia ulterior do que pela angtistia anterior; ele permanece angustia, tomada de perto, mas vazia no centro: “Nenhuma cién- cia pode explicar o como desses fatos. Mas € a psicologia que mais se aproxima disso, explicando a sua tltima etapa aproxima- tiva, 0 aparecimento para si mesma da liberdade na angiistia do possivel, ou ainda no nada da angtistia” (p. 82). O CONCEITO DE DESESPERO A enfermidade mortal, ou O Conceito de desespero?, 6 ainda um ensaio psicolégico. Mais precisamente, é, segundo o subtitu- lo, Exposi¢ao psicolégica e crist@ para edificar e despertar. Esse tratado associa, conseqiientemente, a psicologia, no sentido do Conceito de angistia, e a edificagao, no sentido dos “discursos edificantes”. J4 apontamos a diferenca que separa esses dois tra- tados: 0 primeiro fala do mal como de um evento, de um salto; 0 segundo fala dele como de um estado de coisas. A substituigao da 2. Cito La maladie la mort (Le Concept de désespoin, trad. de Tisseau. (Sygdommen til Déden.) Nao ha nogao de Tratado, nem de Conceito (além disso de uso antes irOnico em Kierkegaard). Lembremos que “La Maladie & Ja mort” € uma formula emprestada ao Evangelho de Joao (11, 4). Le Traité du désespoir 6 uma "traducao” de Ferlov e Gateau; Tisseau indica Le concept de désespoir, mas entre parénteses, sob o titulo que convém, e apenas na capa, 0 que mostra que para ele isso nao era mais que uma indicagao temé- ica assumida. A relacdo de forcas editorial fez 0 resto, e geracdes de estu- dantes ou de leitores puderam ser enganadas por um titulo falacioso, mas que se tornou célebre. Talvez esse sucesso tenha encontrado um aliado cunstancial no andamento didatico da obra pseuddnima de 1849. No entan- to, como sempre em Kierkegaard, 0 subtitulo que Paul Ricceur sublinha aqui, concorre com o titulo (e eventualmente com o pseuddnimo) para esclarecer a estrutura da obra. 2 KreaxEGAARD € © Se angiistia pelo desespero exprime essa mudanga: a angustia tende para... 0 desespero reside em...; a angtistia “ex-siste"; 0 desespero “in-siste”. Que significa essa mudanca? f impossivel compreen- der A enfermidade mortal sem voltar a um ensaio anterior Temor € tremor, que situa a significacdo da {é e do pecado além da esfera ética; 0 pecado nao é 0 contrario da virtude, mas da fé, que é uma categoria teol6gica: a fé é uma maneira de ser em face de Deus, diante de Deus. Essa ligacao é elaborada em Temor e tremor, nao através de uma discussao abstrata de conceitos teolégicos, mas por meio de uma exegese: os conceitos novos sao decifrados atra- vés da interpretagao de uma historia, a historia de Abraio; 6 0 sentido do sacrificio de Isaac que decide o sentido dos conceitos de lei e de fé; 0 sacrificio de Isaac seria um crime segundo a moral; ele é um ato de obediéncia segundo a fé. Para obedecer a Deus, Abraio devia suspender a ética; era-Ihe necessdrio tornar-se 0 cavaleiro da fé que avanga sozinho, para além da seguranca da lei geral ou, como diz Kierkegaard, do geral. Assim, Temor e tremor abre uma nova dimensto da angiistia, que procede da contradi- do entre a ética e a f6. Abraao 6 0 simbolo dessa nova espécie de angustia, ligada & suspensdo teleolégica da ética. Ora, 0 conceito de desespero pertence & mesma esfera, nao ética mas religiosa, que a fé de Abraao; 0 desespero é 0 negativo da fé de Abraao. Eis por que Kierkegaard nao diz primeiro 0 que € 0 pecado, depois o que é o desespero, ele constrdi e descobre 0 pecado no desespero como sua significagdo religiosa; a partir dai © pecado nao é mais um salto, mas um estado estagnante, uma maneira insistente de ser. Segunda conseqiléncia: a questo nao € mais como “ele en- trou no mundo” — pela anguistia, — mas como é possivel dele sair. O desespero ¢ entao compardvel a um desses “estddios no caminho da vida” explorados por Kierkegaard em outra obra; é uma enfermidade; uma enfermidade da qual se morre sem mor- rer; € a enfermidade “mortal”, do mesmo modo que a injustica, segundo Platao, no Livro X de A Repiiblica, é uma morte viva e a prova paradoxal da imortalidade. O desespero, segundo Kierkegaard, é um mal mais grave do que a injustiga segundo Plato, a qual se refere ainda a esfera ética; mas porque é mais grave, ela est mais préxima da cura. LerTunas 2 — A REGU pos FiLOsOFOS 22 Agora, como se pode falar do desespero? A andlise estrutural de A enfermidade mortal deve nos aproximar de nosso problema: qual é 0 modo de pensar de Kierkegaard? como ¢ possivel filoso- far apds Kierkegaard? Com efeito, notar-se-d que Kierkegaard cons- 1r6i0 conceito de desespero. Um simples olhar sobre o sumério do tratado revela um encavalamento de titulos e subtitulos. O plano é curiosamente didatico. A primeira parte mostra que “a enfermidade mortal é desespero”: sua possibilidade, sua atualidade, sua univer- salidade, suas formas sao cuidadosamente distinguidas; mesmo as. suas formas sao elaboradas de maneira bastante sistematica, do ponto de vista da “falta de finitude” e da “falta de infinitude”, da “falta de possibilidade” — vale dizer, de imaginagao e de sonho — eda “fala de necessidade” — vale dizer, de submissio a tarefas ea deveres gerais neste mundo. © mesmo equilibrio se renova por ocasiao de novas distingdes; a mais sutil se anuncia assim: “O de- sespero considerado sob o aspecto da consciéncia, segundo ele se conhega ou nao se conhega”; assim, hd desespero “de nao querer ser si mesmo", ou “de querer ser si mesmo”. Depois, a segunda parte intitulada “O desespero ¢ 0 peca- do”, elabora todos os caracteres do pecado de acordo com 0 mo- delo do desespero e conduz a conclusao de que o “pecado nao é uma negacao, mas uma posi¢o”. Detemo-nos nessa conelusio, que oporemos ao nada da angistia. Mas quero primeiro interrogar essa estranha estrutura do tratado; 6 impossivel nao se impressionar com 0 aspecto laborio- so e pesado dessa construcdo que se assemelha a uma disserta- ao interminével e obliqua. Que significa isso? Somos confronta- dos a uma espécie de simulacro estridente do discurso hegeliano; ‘mas esse simulacro 6, a0 mesmo tempo, o meio de salvar o dis- curso do absurdo. Ele ¢ didatico porque nao pode mais ser dialé- tico. Ou, noutros termos, ele substitui uma dialética de trés ter- ‘mos por uma dialética rompida, por uma dialética nao resolvida de dois termos. Uma dialética sem mediagao, tal é 0 paradoxo kierkegaardiano. Ou demasiadas possibilidades, ou muita atuali- dade; ou muita finitude, ow muita infinitude; ou se quer ser si mesmo, ou ndo se quer ser si mesmo. Mais ainda, como cada par de contrarios nao oferece resolugao, nao € possivel edificar 0 paradoxo seguinte sobre o que o precede; a cadeia de paradoxos 23. Kiersncaann £0 seal 6, ela mesma, uma cadeia rompida; de onde 0 quadro didatico, substitufdo a estrutura imanente de uma verdadeira dialética; a Tuptura que ameaca esse discurso deve sempre ser conjurada, compensada por um acréscimo de conceitualidade e de habilida- de ret6rica; de onde, enfim, o estranho contraste: é 0 termo mais irracional — o desespero— que pée em movimento a maior massa de andlises conceituais. No nosso segundo estudo, partiremos dessa estranha situagdo: um hiperintelectualismo ligado a um irracionalismo fundamental. Entremos um pouco mais nessa construcdo um tanto arre- dia. O nticleo em torno do qual séo construidas as grandes antinomias do desespero 6 uma definicao do si para a qual o con- ceito de anguistia nos preparou quando ele chamava o espirito de terceiro termo, de perturbador da relacao tranqiiila da alma com 0 corpo. Eis essa definicao na sua desconcertante abstragao: “O si 6 uma relago que se reporta a si mesma e nessa relacdo se repor- ta a um outro”. Essa definicao traz a marca — por derrisdo ou despeito amoroso? discutiremos isso ulteriormente — da dialéti- ca hegeliana; mas, diferentemente de Hegel, essa relagdo que se reporta a si mesma é mais um problema do que uma resposta, mais uma tarefa do que uma estrutura; pois, 0 que se da no di sespero é 0 que Kierkegaard chama de “desacordo”. Essa prio dade do desacordo, em toda a andlise ulterior, repousa sobre a estrutura da relagdo como uma tarefa impossivel: a possibilidade do desespero reside na possibilidade do desacordo, vale dizer, na fragilidade dessa relacdo que se reporta a si; € 0 que significa a expresso “reportar-se a si ja é reportar-se a um outro”. Para essa relaco, constituir-se ¢ desfazer-se. Jé podemos compreender que forca pode dar a ret6rica kierkegaardiana do pathos essa unido do sentimento e da andlise: 0 desespero existe ou, como tentamos dizer, insiste nas figuras da ndo-relacao. Doravante tudo serd mais complicado do que em O conceito de angtistia: a angistia era fas- cinada pelo nada da pura possibilidade: “O desespero é um desa- corda no seio de uma sintese que se reporta a si mesma. A sintese nao é o desacordo, ela é simplesmente a sua possibilidade; dito de outro modo, é na sintese que reside a possibilidade de um desacordo... De onde, entdo, vem o desespero? Da relacao na qual a propria sintese se reporta quando Deus, tendo feito do homem Leruras 2 — A nEGiAO Dos FILOsOFOs 24 a relacao, a sintese que ele 6, deixa-o por assim dizer escapar de sua M40; noutros termos, quando a relacdo se reporta a si mes- ma” (A enfermidade mortal, pp. 11-12)’. Essa ultima frase permite Jevar mais longe a explicagao da estranha expressao “uma relacao que se reporta a um outro A medida que se reporta a si mesma”; elase reporta a um outro porque é abandonada a si mesma; nesse abandono, ela é reportada a si mesma como a um outro. A derreligéo é 0 aspecto reflexivo desse abandono por Deus, que deixa a relacao se desenvolver como se escapasse de suas maos. Kierkegaard, antes do existencialismo, descobriu essa identidade entre a reflexdo e a derreligao. ‘Toda a arte de Kierkegaard consistiré doravante em aplicar sua sutileza psicol6gica as multiplas possibilidades oferecidas pela dissociagéo dessa relacao que se reporta a si mesma reportando- -se a um outro. O génio literdrio, psicolégico, filoséfico, teolégico de Kierkegaard parece-me consistir nessa maneira meio abstrata, meio concreta de por em cena possibilidades artificialmente construidas, de fazer corresponder a esse jogo conceitual a “6pe- ra fabulosa” dos estados de alma desesperados. O espanto do leitor, seu mal-estar, sua admiracao e seu desgosto devem-se a essa oscilacao constante entre a experimentacao imaginaria mais aguda e a dialética conceitual mais artificial. Alguns exemplos: 0 homem, se nos diz, é uma sintese de infinitude e de finitude, de possibilidade e de necessidade; 0 desespero desponta a partir do momento em que a vontade de se tornar infinito é ressentida como falta de finitude, e vice-versa. Esse jogo entre conceitos opostos ¢ alimentado por um poder extraordindrio de criar tipos humanos, dentre os quais reconhecemos os heréis das possit dades fantasticas, do Don Juan do estdgio estético, o sedutor do Didrio de um sedutor, 0 Fausto de Goethe, mas também 0 poeta do estagio religioso, o explorador do aberto segundo Rilke, em poucas palavras, 0 imaginario, berco de todo processo de infinitizacdo. “O si, escreve Kierkegaard, € reflexao e a imaginacao 6a possibilidade de toda reflexao”. { entao que a perda do solo, a distancia sem fim com relacao a si so sentidas como perda, como desespero. O paradoxo abstrato torna-se um paradoxo 3. Cf. op. cit. t. 16, p. 174, 25 Kienkecanno £0 MAL concreto: 0 “ou, ou" do infinito ¢ do finito é 0 “ou, ou” que con- fronta 0 sedutor e, no seu lugar, o herdi, do dever descrito sob os tracos do juiz Wilhelm. A falta de infinitude, a estreiteza de uma vida mediocre, a perda de horizonte s4o possibilidades muito con- cretas descobertas por qualquer um que ressinta a sua propria existéncia como a de uma pedra solta sobre a margem ou de um ntimero perdido na multidao. Mas 6 talvez a tiltima dialética que esclarece todas as outras. © pior desespero 6 “o desespero que ignora ser desespero”; 0 homem comum é desesperado, é desespero, mas ele nao 0 sabe. Assim, € porque 0 desespero pode ser inconsciente que ele deve set descoberto ¢ até mesmo construido; a dialética do incons- ciente e do consciente desenvolve-se no interior do desespero como no coragao de uma possibilidade Ontica, de uma maneira de ser; a consciéncia nao constitui o desespero; 0 desespero exis te, ou, como dissemos, insiste. Esta é a razao pela qual a propria consciéncia se une ao desespero. O grande desespero, o desespe- ro de si mesmo, que Kierkegaard chama de desafio, representa 0 liltimo grau no “constante crescimento de poder do desespero Aqui, mais que alhures, essa possibilidade s6 pode ser experi- mentada na imaginagao: “Vé-se raramente essa forma de deses- pero no mundo; semelhantes figuras s6 se encontram de fato nos poetas ¢, a dizer a verdade, entre os que emprestam a seus per- sonagens a idealidade demoniaca, tomando essa palavra no sen- tido estritamente grego” (p. 65)*. Na vida real, esse desespero ‘supremo 86 pode ser aproximada no desespero mais spiritual, 6 desespero que nao se refere mais a uma perda terrena, 0 deses- pero de nao querer ser ajudado. A ENFERMIDADE MORTAL Podemos agora confrontar O conceito de angtistia ¢ A enfer- midade mortal sobre a questo do pecado, circunscrito por duas aproximagoes opostas. Os dois tratados concordam nisso: 0 pecado nao é uma rea- lidade ética, mas uma realidade religiosa; 0 pecado ¢ “diante de 4.C8 an. cit. 1.18, 1. 228. Lerruras 2 — A neciko bos FIL6s0FOs 26 Deus”. Mas, enquanto O conceito de angiistia permanecia no ex- terior dessa determinagao do pecado como algo “diante de Deus”, A enfermidade mortal ja “edifica e desperta”, segundo 0 titulo. Enquanto a angustia era um movimento para... 0 desespero & pecado. Dizer isso ja ¢ ir além da psicologia: “Aqui pode ser intro- duzido, na mais dialética fronteira entre 0 desespero e © pecado, 0 que se poderia chamar de uma existéncia poética em diregao ao religioso Essa “existéncia postica em direcao ao religioso” nao tem nada a ver com uma efusdo mistica; “ela 6, diz Kierkegaard, pro- digiosamente dialética e permanece numa confusio dialética impenetravel quanto a saber a que ponto ela é consciente de ser pecado”. Tudo o que sera dito doravante pertence a essa reduplicagao da dialética quando ela passa da psicologia & exis- téncia poética em diregdo ao religioso. Primeiro, a psicologia designava o pecado pela experiéncia da vertigem como queda; em seguida, ela 0 designava como uma falta, por conseqiéncia, como um nada. Para a existéncia poética, o pecaco ¢ um estado, uma condigao, uma maneira de ser; ademais, ela é uma posicao. Consideremos essas duas novas dimensdes que nao podiam aparecer em O conceito de anguistia; primeiro porque esse tratado permanecia puramente psicolégico, depois porque ele se aproxi- mava do pecado como um salto. Que o pecado seja um estado, 6 0 que revela o proprio deses- pero. Nao podemos dizer: a angtistia é pecado; podemos dizer; o desespero é pecado. Desse modo, 0 conceito de pecado ¢ defini- tivamente transportado da esfera ética da transgressao a esfera religiosa da nao-f6; e, podemos também dizer, da esfera onde 0 pecado é carne a esfera onde ele ¢ espirito; é 0 poder da fraqueza ea fraqueza do desafio. Doravante, o pecado nao é 0 contrario da virtude, mas da {6. uma possibilidade éntica do homem, e nao s6 uma categoria moral, segundo a ética kantiana, ou uma falha intelectual comparavel a ignorancia, segundo a concepcao socrdtica do mal. Noutras palavras, 0 pecado é nossa maneira ordindria de ser diante de Deus; é a prdpria existéncia enquanto 5. Ch. op. cite t. 16, p. 233. 7 Kieaxecanno & 0 sa, falta de totalidade, Hegel identificou a compreensao & negagao ou melhor & negagao da negacao: 6 aqui que Kierkegaard opde seu mais vigoroso protesto contra a filosofia, isto 6, contra a filosofia hegeliana; se compreender é superar, vale dizer, passar além da negagao, entéo o pecado 6 uma negacao entre outras ¢ o arrepen- dimento uma mediacao entre outras; assim, negacao, depois, nega- do da negacao tornam-se, ambas, processos puramente légicos. Mas entao, se compreendemos somente quando negamos a negacao, que dizemos e que compreendemos quando dizemos: “O pecado é posicao!” Bis a resposta de Kierkegaard: “Eu nao faco outra coisa sendéo manter firmemente a doutrina crista de que 0 pecado é uma posicao — nao como se prestando a concepcao do entendimento, mas como paradoxo objeto de fé” (p. 90)'. .. Um paradoxo no qual devemos acreditar. Com essas pala- vras, Kierkegaard poe a questio do género de linguagem que convém & existéncia poética: é uma linguagem que deve destruir © que diz, uma linguagem que se contradiz.a si mesma. Assim Kierkegaard transfere a antropologia a arma da teologia negativa, quando ela tentava dizer, pela voz. da contradicao, que Deus posicao — além do ser, além das determinacdes. Crer e nao com- preender: ¢ verdade que Kierkegaard nao cita a teologia negativa, nem a abolicao kantiana do conhecimento em favor da fé, mas a ignorancia socratica. Partiremos, na segunda conferéncia’, dessa situacao errante do discurso filoséfico: uma elucidacao tortuosa da angtistia e do desespera, uma dialética antidialética visando a uma espécie de ignorancia socrdtica, a servicgo de uma “exposi¢ao cristéo-psico- légica para edificar e despertar”. E nessa situacao do discurso filoséfico que se poe a questac “Como se pode filosofar apds Kierkegaard?” 6.CL op. cit, t. 16, p. 253. 7. Ver, neste volume, o texto seguinte. Filosofar apé6s Kierkegaard (1963) Quando Kierkegaard comecou a ser conhecido na Alemanha, gragas a corajosa traducao de Gottsched que parecia uma aposta perdida; depois na Franga, gragas as admiraveis tradugées de Tisseau e aos famosos Etudes kierkegaardiennes de Jean Wahl, 0 pensador dinamarqués foi imediatamente revestido da dupla fun- gao do protesto e do despertar. Quem € ele, hoje em dia, trinta ou quarenta anos depois dessa entrada na literatura filosdfica e teo- légica européia? E preciso reconhecer que temos hoje menos clareza sobre a significagao filoséfica de Kierkegaard. Pensador de protesto? Mas contra o qué? Em unissono repetimos, com o préprio Kierkegaard: contra o sistema, contra Hegel, contra o idealismo alemao. Pen- sador que desperta? Mas para qué? A onda de Kierkegaard nos convida a responder: ao existencialismo. Gostaria de me empe- nhar em levantar dtividas sobre essas duas evidéncias prévias, a fim de esbocar uma segunda leitura, que foi preparada na prece- dente meditagao — leitura que seria, talvez, suscetivel de dar um novo futuro & obra de Kierkegaard, uma vez que a primeira jé esgotou todas as suas possibilidades. Comecemas pela primeira dtivis tencialismo? Com o recuo de alguns decénios, essa classificagio nao é mais do que uma ilusio, talvez a maneira mais habil de aprisiond-lo, catalogando-o num género conhecido. Estamos hoje melhor preparados para concordar que essa familia de filosofias nao existe; ao mesmo tempo, estamos prontos a devolver a rkegaard a sua liberdade, nesse ponto. Vemos nele um ances- Kierkegaard, pai do exis- Lerrunas 2 — A. REGO Dos mu6soros 30 tral de uma familia na qual Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Heidegger e Sartre seriam primos. Hoje, a fragmentagao do grupo, se é que ele existiu nalgum lugar além dos manuais, é evidente: o existen- ismo, como filosofia comum, nao existe, nem nas suas teses principais, nem no seu método, nem mesmo nos seus problemas fundamentais; Gabriel Marcel prefere ser chamado de neo- -socraitico e Jaspers reafirma solidariedade com a filosofia classica; a ontologia fundamental de Heidegger desenvolveu-se na diregio de um pensamento meditante, arcaizante e poético. Quanto a Sartre, ele considera seu proprio existencialismo como uma ideologia a ser reinterpretada no quadro do marxismo; esses dois casos extremos sao indicadores de que é menos esclarecedor, hoje mais do que ha vinte anos atrés, tomar o existencialismo como uma chave para uma interpretagao penetrante de Kierkegaard. Essa primeira duivida é encorajada pela nossa leitura de O conceito de angistia e de A enfermidade mortal, encontramos ai um pensador que transpde uma experiéncia viva numa dialética aguda, que imagina abstratamente estagios da existéncia, mais construfdos do que vividos, e os elabora por meio de uma dialé- tica rompida: finito-infinito, possivel-atual, inconsciente-conscien- te, etc. Ocorreu-nos a suspeita de que essa dialética rompida pudesse ter mais afinidade com seu melhor inimigo — Hegel — do que com seus pretensos herdeiros. Mas essa suspeita 6 imediatamente barrada por uma convie- cdo aparentemente mais forte: entende-se que Kierkegaard 6 anti: -hegeliano; ele o diz; ele talvez s6 diga isso; mais ainda, entende- se que ele inaugura uma nova era de pensamento, depois do idea- lismo alemao: a era da pés-filosofia; tem-se assim por adquirido que a filosofia alcancou seu fim com Hegel, que 0 discurso filos6- fico se completa com e por ele e que, depois de Hegel, algo dife- rente aparece, que nao é mais discurso. Essa interpretagao do pensamento moderno é encorajada pela convergéncia dos ata- ques de Marx, de Nietzsche e de Kierkegaard contra o idealismo. A protecao do individuo isolado diante de Deus, o niilismo euro- peu e a transmutagao dos valores, a realizacao da filosofia como praxis revoluciondria, essas trés grandes tendéncias do pensamen- to modemo representariam o fim da filosofia, concebida como discurso total, e 0 comego da pés-filosofia, a1 Frosorar ards Kiexecaann Essa associagdo de Kierkegaard com Nietzsche e Marx é mais esclarecedora do que a sua incorporacao ao pretenso existenciali mo? Nao estou certo de que esse conceito do fim da filosofia se} mais claro do que o do existencialismo. Minha divida é dupla: quem termina a filosofia? Hegel? E certo isso? Quanto a tilogia da pés- filosofia, ela é realmente exterior e estranha ao idealismo alemao? Sim, quem termina a filosofia? Admitimos que Kant, Fichte, Schelling e Hegel formam uma tinica seqiiéncia que alcanga seu cume na Enciclopédia das ciéncias filosoficas de Hegel; mas essa pressuposicao ja é uma interpretacao hegeliana do idealismo ale- mio; esquecemo-nos de que Schelling enterrou Hegel e, se ouso dizer, bem fundo; negligenciamos toda a riqueza inexplorada de Fichte e do tltimo Schelling: e, sobretudo, nés nos enganamos so- bre o proprio Hegel. Talvez, afinal, sejamos vitimas da ma leitura que Kierkegaard e Marx fizeram dele. Uma nova leitura de Kierkegaard é, sem duvida, soliddria de uma nova leitura de Fichte, de Schelling e do proprio Hegel. Mas quero levar mais adiante mi- nha dtivida relativa ao proprio conceita de acabamento da filosofia ocidental e sugerir que as pretensas pés-filosofias pertencem a era filos6fica do idealismo alemao. Heidegger mostrou com alguma ve- rossimilhanga que Nietzsche realiza uma das aspirag6es do pensa- mento ocidental; se esse pensamento é animado pela magnificagao da subjetividade, pelo cumprimento do subjectum como sujeito, Nietsche realiza essa exigéncia filoséfica do pensamento ocidental. Se dizemos, ao contrério, com Marx desta vez, aue a filosofia até agora “considerou 0 mundo sem transformé-lo”, Kierkegaard e Nietzsche pertencem ainda as filosofias do discurso. Para Nietzsche, por sua vez, Marx ainda é devotado aos ideais da massa, & mitologia da ciéncia — “nossa tiltima religi Ultimo rebento do cristia- nismo e do platonismo. Para o leitor de Kierkegaard, Marx ainda é um hegeliano, mas por razdes completamente diferentes: na medi- da em que a dialética da histéria ainda ¢ uma l6gica da realidade, Marx representa 0 cumprimento do postulado hegeliano de que 0 real é racional ¢ 0 racional real. Se joguei Schelling contra Hegel, Hegel contra si mesmo, Niewzsche, Kierkegaard e Marx um contra o outro, foi apenas para tornar duvidosa a idéia de cumprimento ou de fim da filosofia ocidental e para libertar a leitura de Kierkegaard desse esquema- Lerrumas 2 — A aectto Dos m16soros 32 tismo e desse preconceito, Estamos agora prontos para a quest como filosofar apés Kierkegaard? Nao somos mais constrangidos a separar seu destino do destino do idealismo alemao e a torna- lo tributdrio do existencialismo. Minha resposta comporta trés etapas. Quero primeiro por de lado os aspectos propriamente irracionais de Kierkegaard. Em seguida, considerar sua contribuigao a uma critica das possibili- dades existenciais. Enfim, quero por em relagao essa critica com 0 ideal do discurso filos6fica como sistema. A “EXCEGAO” Ha um aspecto de Kierkegaard que nao pode ser continuado nem pelo fildsofo nem pelo tedlogo. Essa parte é sua existéncia incomunicavel; mas ha uma parte que pode ser continuada, por- que pertence a argumentacao filos6fica, & reflexao e & especula- 40; essa parte é representada pelos pseudnimos. Nao se pode filosofar apés o existente Kierkegaard, mas talvez apés os seus pseuddnimos na medida em que eles pertencem 4 mesma esfera filoséfica do idealismo alemao. Consideremos a primeira face desse paradoxo. De um lado, Kierkegaard se mantém fora da filosofia e da teologia. A questo com a qual somos aqui confrontados é a da genialidade, como fonte nidio-filosdficx da jflosofia. Concedo que 0 campo dessa genialidade €muito extenso: ele cobre nao s6 0 Kierkegaard real —e desconhe- cido —, mas também o Kierkegaard mitico criado por seus proprios relatos. Todos concordam que 0 romance de sua existéncia efetiva constitui algo de tnico na hist6ria do pensamento: o dandi de Co- penhague, o estranho noivo de Régine, 0 celibatario com o aguilhao na came, o insuportavel censor do bispo Mynster, a dolorosa vitima do Corsério, © agonizante do hospital piblico — nenhum desses personagens pode ser repetido nem mesmo corretamente compre- endido. Mas, que existéncia poderia? Mas o caso de Kierkegaard 6 mais singular ainda: ninguém como ele conseguiu transportar sua prépria biografia numa espé- cie de mito pessoal; por sua identificagao com Abraao, com J6, 33, Funosoran ar6s KEnkecaany com Ahasverus e com outros personagens fantasticos, ele elabo- rou uma espécie de personalidade ficticia que encobre e dissimu- la inteiramente sua existéncia real; essa existéncia paética é tao pouco situada no quadro e na paisagem da comunicagao comum quanto o personagem de um romance ou, melhor, quanto um personagem extremo da tragédia shakespeariana. Sim, 0 que é oferecido e recusado 4 compreensio filoséfica 6 uma figura, um personagem, criado por suas préprias obras; é um autor, filho de stias obras, um existente que se tomnou irreal e que assim se sub- traiu ao dominio de toda disciplina conhecida. Pois ele nao per- tence sequer a seus préprios “estagios no caminho da vida”; ele no foi suficientemente Don Juan, nao foi sedutor o bastante para ser esteta; ele nao conseguiu ser o homem da ética, porque nao teve profissao para ganhar a vida, porque nao foi esposo nem pai e se excluiu do programa da ética tracado pelo conselheiro Wilhelm; sua familia tinha razdo: “Como nao ser melancélico quando se dilapida desse modo sua prépria fortuna?” Mas, foi ele religioso no sentido em que ele mesmo fala? O cristianismo que ele pinta é tao extremo que ninguém pode pratica-lo; 0 pensador subjetivo diante de Deus, © puro contemporaneo do Cristo, crucificado com Ele, sem Igreja, sem tradigao, sem culto, esté fora da hist6ria. “Eu sou 0 poeta do religioso”, diz ele. Penso que se deva levé-lo a sério. Mas que isso quer dizer? Nao sabemos. Kierkegaard est nalgum lugar, nos inter- valos dos seus estégios, nos espacos intermediarios, nas passagens, como um resumo do estagio estético e do estagio religioso que sal- taria o estagio ético. Ele escapa assim a alternativa que ele mesmo pos em Ou... ou. Nao se pode encontrar Kierkegaard segundo suas préprias categorias. Seria preciso conceber a coincidéncia inaudita da ironia, da melancolia, da pureza de coracao, da retdrica corrosiva eacrescentar a isso uma ponta de bufonaria, enfim coroar tudo pela identidade do estetismo religioso e do martirio. Sim, Kierkegaard é uma “excecdio"; & preciso nao sé repetir, mas aprofundar essa convicgao, vale dizer, ler Kierkegaard, de- pois deixé-lo ser o que ele é onde ele esta: fora da filosofia e fora da teologia. Repito: deixé-lo ser o que ele 6; de nada adianta cor- rigi-lo, refuté-lo, completa-lo. Ah! diz alguém, se ele tivesse um pouco mais de senso do perdao e um pouco menos de senso da culpabilidade; um pouco mais de culpabilidade coletiva e um pou- Lerrunis 2 — A nEciio pos rixdsoros 34 co mais de sentido eclesial! Ah! diz outro, se ele tivesse um pouco mais de senso da comunidade, do didlogo! Ah! diz. um terceiro, acrescentando, se ele tivesse um pouco mais de senso da histéria, um pouco mais de respeito pela massa e de afeicao pelo povo! Ah! diz ainda outro, se ele tivesse um pouco mais de simplicidade, de clareza, de coeréncia! Quem de nés, filésofos, politicos ou tedlo- gos no murmurou nesse sentido contra Kierkegaard? Todos sen- tem que tudo isso é ridiculo e vao: corrige-se Otelo ou Cornélia? ou o gentil Burgués? Nietzsche dizia: “Nao se refuta um som!” O que nao se refuta, em Kierkegaard, é 0 existente, o existente real, autor de suas obras, e o existente mitico, filho de suas obras. Nao refuta Kierkegaard quem o Ié, medita, e em seguida faz a prépria tarefa, com “o olhar fixo na excegdo”. Mas o que quer dizer, para o fildsofo, prosseguir sua tarefa com os olhos fixos na excecao? Penso que é em primeiro lugar redescobrir a relacdo intima de todo pensamento filos6fico, de todo trabalho filoséfico, com a nao-filosofia. A excegao Kierkegaard, 0 génio ret6rico-religioso, 0 dandi mértir ndo cons- tituem uma situagao tinica. A filosofia sempre tem a ver com a nao-filosofia, porque a filosofia nao tem objeto préprio. Ela refle- te sobre a experiéncia, sobre toda experiéncia, sobre o tado da experiéncia: cientifica, ética, estética, religiosa. A filosofia tem suas fontes fora de si mesma, Digo suas fontes, nao seu ponto de par- tida; a filosofia é responsdvel por seu ponto de partida, por seu método, por seu acabamento; a filosofia busca seu ponto de par- tida; ela vai para o seu ponto de partida; sobre isso, Pierre Thévenaz, nosso querido e sempre pranteado Thévenaz, disse coisas convincentes, decisivas: a filosofia tem seu ponto de parti- da diante dela. Mas, se ela busca seu ponto de partida, ela recebe suas fontes; ela dispde de seu ponto de partida, nao dispoe de suas fontes, vale dizer, do que a revitaliza e instrui pela base. £ assim que compreendo a frase de Karl Jaspers: “N6s que nao so- mos a excecao, devemos filosofar com o olhar fixo na excecao”. Kierkegaard, enquanto genialidade estético-religiosa, é uma des- sas fontes, mas ao mesmo titulo que Stimner, Kafka, Nietzsche, porquanto 0 préprio Nietzsche deva ser também tratado como genialidade filos6fica — 0 que o caracteriza tao pouco completa- mente quanto a Kierkegaard (mas penso aqui no Nietzsche de 35 Fuosoran ards Kienkecaano Sils-Maria, no Nietzsche que se demite da sua catedra de Bale, no solitério da Engadine, no autor dos aforismos, no Nietzsche in- ventado por Zaratustra, no Nietzsche interlocutor de Dionisio do Crucificado, no Nietzsche mergulhado na loucura, semelhante nisso ao insultador do bispo e ao martir Kierkegaard). Digo por- tanto: a filosofia esta em debate com Kierkegaard como com todo génio nao-filos6fico; sua tarefa propria 6 buscar o principio ou 0 fundamento, a ordem ou a coeréncia, a significacao da verdade e da realidade; sua tarefa € reflexiva e especulativa. Esta é a primeira resposta; mas todos sentem que essa ma- neira de reconhecer 0 genio estético-religioso de Kierkegaard é também uma maneira de exilé-lo para fora da filosofia. Todos sentem que Kierkegaard nao é — ou nao 6 apenas — 0 nao-fil6- sofo. Kierkegaard nos embaraga porque se mantém, relativamen- te a filosofia, ao mesmo tempo do lado de fora e dentro. A CRITICA DAS POSSIBILIDADES EXISTENCIAIS Kierkegaard entrou por conta prépria no ambito da filosofia e da dogmatica crista; isso torna mais desconfortavel, mais insu- portavel a relagdo que temos com ele. O que devemos considerar agora nao ¢ mais a sua genialidade — real ou ficticia, biografica ou mitica, a do Didrio ea da transposicao postica da sua expe- riéncia viva —, mas sua argumentacdo. J4 fomos conduzidos a essa face inversa da questo kierkegaardiana pelo enigma dos pseudénimos; se Kierkegaard se mantém de fora da filosofia, Contantin Contantius, Johannes de Silentio, Virgilius Haufniensis —nomes alegados de Soren Kierkegaard — sio autores filoséfi- cos. Ora, o problema dos pseudGnimos ¢ 0 da comunicagao indi- reta; esta, por sua vez, repousa sobre um modo proprio de argu- mentagaio. Nao podemos, portanto, nos limitar a reconhecer em Kierkegaard a excecao, e depois despedi-lo sob o pretexto de que ele 6 a excegao genial; ele proprio exige ser um dos nossos por seu terrivel poder de argumentagdo. Somos novamente confrontados com uma questio que tivemos de deixar sem resposta acima: Kierkegaard, dizfamos, nao s6 argumenta, mas elabora conceito: conceito da angtistia, conceito do desespero, conceito do pecado,

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