You are on page 1of 71

CARTAS A UM JOVEM TERAPEUTA

Contardo Calligaris

Reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos

2004, Elsevier Editora Ltda.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma


parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser
reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:
eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer Outros.

Projeto Gráfico Folio Design

Editora ção Eletrônica Estúdio Casteliani

Copídesque
Shirley

Revisão Gráfica
Edna Cavalcanti
Roberta Borgas

Fotos de capa
Luciana Cattani e Gabriel Boieras

Elsevier Editora Ltda.


A Qualidade da Informação.
Rua Sete de Setembro, 111 — 1 6 andar
20050-006 Rio de Janeiro RJ Brasil
Telefono: (21)3970-9300 FAX: (21)2507-1991
E-mail: info@elsevier.com.br
Escritório São Paulo:
Rua Elvira Ferras, 198
04552-040 Vila Olímpia São Paulo SP
Tel.: (11)3841-8555
ISBN 85-352-1493-3

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Calligaris, Contardo, 1948-


Cartas a um jovem terapeuta : o que é importante para ter
sucesso profissional / Contardo Calligaris. — Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004
(Cartas a um jovem)

1. Psicoterapia. 2. Psicanálise. 3. Psicanalistas. 4. Orientação profissional. 1.


Titulo. II. Série.

COO — 616.8914 COIJ —615.851

04 05 06 07

SUMÁRIO

1. Vocação profissional 1
2. Quatro bilhetes 19
3. O primeiro paciente 31
4. Amores terapêuticos 41
5. Formação 53
6. Curar ou não curar 67
7. O que fazer para ter mais pacientes? 81
8. Questões práticas 103
9. Conflitos inúteis 125
10. Infância e atualidade, causas internas e causas externas 133
11. Que mais? 145
da festa, a campainha não parava de
tocar. Nós, crianças, tínhamos a
função e o privilégio de abrir os
pacotes, deixando cuidadosamen-
3
1

VOCAÇÃO PROFISSIONAL

Meu jovem amigo,


Imagino que você ainda não tenha te os cartões que os acompanhavam,
decidido qual será sua profissão. para que meu pai pudesse responder
Você estaria procurando neste livro agradecendo.
alguma indicação para descobrir se Pois é, se eu tivesse escolhido a
quer mesmo se tornar psicoterapeuta. profissão de psicanalista e
E estaria perguntando: antes de psicoterapeuta para receber a mesma
começar uma formação que vai durar variedade e
no mínimo uma década e custar uma fartura de presentes, minha vida seria
nota preta, será que há como saber um fracasso.
se tenho o que é preciso para dar Você pode querer ser médico ou
certo? coisa que o valha porque é essencial
É uma ótima pergunta. Para ser um para você ser olhado com gratidão e
bom psicoterapeuta, é útil que a respeito por seus pacientes e pelos
gente possua alguns traços de outros em geral. Claro, todo o mundo
caráter ou de personalidade que, dito gosta disso, não é? Mas há sujeitos
aqui entre nós, dificilmente podem ser para quem é crucial ser
adquiridos no decorrer da formação: constantemente o objeto de uma
melhor mesmo que eles estejam com veneração amorosa.
você desde o começo. Quer saber por quê? Pense, por
Um exemplo, só para começar. exemplo, no olhar de uma mãe para
Meu pai era médico, internista e um caçula que teria nascido depois
cardiologista, mas funcionava, para da morte do pai. Desde seu primeiro
muitos de seus pacientes, como o vagido, esse filho seria, para a mãe,
médico da família. A cada ano, no ao mesmo tempo uma compensação
Natal, na Páscoa e no dia de São e um memorial do marido que ela
José (ele se chamava Giuseppe), perdeu; ele seria objeto de veneração
nossa casa se enchia de presentes. e de eterna gratidão a Deus.
Mas enchia mesmo: a sala era Escolho esse exemplo porque foi o
abarrotada de caso, justamente, de meu pai: ele
caixas de vinhos e liquores, nasceu quatro meses depois da
panetones, doces, cestas de frutas morte do seu pai (meu avô).
exoticas, sem contar a prataria e os Obviamente, não é isso que fez dele
objetos variados de decoração, as um grande médico. Mas, na escolha
canetas, as agendas e os conjuntos de sua profissão, deve ter contado a
para necessidade de repetir a experiência
escrivaninha. Nos últimos dias antes inicial do olhar adorador de sua mãe.
Essa necessidade também deve ter Segundo, o psicoterapeuta não deve
contado na sua capacidade de esperar a gratidão de seus pacientes.
ganhar uma gratidão que não se Nada de presentes no Natal, na
resolvia no pagamento dos Páscoa ou nas outras festas. Nas
honorários e, portanto, se expressava curas que proporciona, o
naquelas orgias festivas de psicoterapeuta é, por assim dizer, ele
presentes. mesmo o remédio. E, nos melhores
4 dos casos, quando tudo dá certo, ele
acaba

Pois bem, se, por alguma razão (que


não precisa ser a mesma do meu
pai), é importante para você se
alimentar no reconhecimento e no
agradecimento infinitos dos outros,
então não escolha a profissão de
psicoterapeuta. Por duas razões.
exatamente como um remédio que a
Primeiro, na vida social, o
gente usou e que fez seu efeito: uma
psicoterapeuta não encontra nada
caixinha aberta, com as poucas
parecido com a espécie de gratidão
pílulas que sobraram, no fundo do
que, no geral, é reservada ao médico
armário do banheiro. A caixinha é
(como um agradecimento preventivo,
guardada durante um tempo, porque
caso acabemos em suas mãos). O
nunca se sabe; um
psicoterapeuta encontra uma atitude
dia a gente a encontra, não se lembra
(nem sempre escondida por trás da
mais qual era seu uso, constata que,
polidez dos costumes) que é uma
de qualquer forma, o remédio está
mistura de temor com escárnio.
vencido e joga fora. E é bom que seja
Funciona assim, ao redor das mesas
assim.
de jantar:
Tento explicar-lhe por quê.
“Puxa, este cara, aqui ao meu lado, é
Em regra, idealizamos nossos
psicocoiso; vai ver que ele sabe ou
profissionais da saúde
entende sobre mim e minhas
(médicos, enfermeiros,
motivações mais do que eu mesmo
fisioterapeutas, acupuntores,
sei e certamente mais do que eu
dentistas, eutonistas,
gostaria que os outros soubessem.” A
psicoterapeutas, a lista é longa).
medida protetora mais banal é o
Quando os consultamos, levando-
ataque: “Ah, você é psicanalista?
lhes nossas dores, depositamos
Justamente acabo de ler uma
neles toda nossa confiança, porque
matéria, onde é que era?. sabe,
imaginamos, supomos que eles
daqueles americanos que provam
saibam sobre nós e nossos males
que a psicanálise é uma baboseira,
exatamente o que é preciso para que
você leu?”
eles possam nos curar. É bem uma necessidade visceral de tomar e
possível que essa confiança seja venerar antibióticos. Ou, ainda, seria
excessiva, mas, mesmo em seu como curar um alcoolista tornando-o
excesso, ela é útil para que uma cura heroinômano.
funcione. De fato, se a psicoterapia faz seu
Acreditar no médico que nos efeito, o paciente pára de idealizar o
prescreve um remédio ‘ não é tudo, terapeuta.
claro; ainda é preciso que ele Tudo isso apenas para dizer que, se
prescreva o remédio certo. Mas é você gosta da idéia de ser um notável
bem provável que, para quem na cidade e de se sentir amado, a
acredita em seu médico, aumentem psicoterapia talvez não seja a melhor
as chances de que o remédio escolha profissional para voce.
prescrito seja eficaz, de que o Só uma nota à margem, para ser
paciente não caia na percentagem sincero. Há terapeutas que,
estatística dos que (sempre existem) aparentemente, cultivam o amor, a
não obtêm efeito algum com o admiração e a gratidão de seus
remédio. pacientes acima de tudo. Eles
6 parecem se
7

importar mais com isso do que com a


A importância da confiança para que eficácia das curas. Ou seja, há
as curas funcionem vale terapeutas que escolheram a
provavelmente para todas as profissão com uma boa dose daquela
profissões da saúde. E vale mais vontade de ser amado e admirado, a
ainda no caso da psicoterapia. mesma que, acabo de lhe dizer,
Então, por que o psicoterapeuta não talvez seja uma contra- indicação
poderia esperar o para o exercício da profissão.
tipo de vínculo duradouro e afetuoso Pois bem, devo lhe confessar que
que garante panetones, vinho e alguns desses terapeutas podem ter
outros presentes nas festas? o maior sucesso: eles se tornam
Voltarei sobre isso em outras cartas, freqüentemente, aliás, chefes de
mas, desde já, aqui vai: nenhuma escolas e (talvez empurrados pela
psicoterapia, seja ela qual for, deveria necessidade de ser admirados)
almejar a dependência do paciente. podem vir a ser teóricos brilhantes e
Como disse antes, na psicoterapia, o inventivos. Seus consultórios são,
terapeuta funciona um pouco como o eventualmente, abarrotados, mas
remédio. Ora, transformar a confiança eles devem seu sucesso profissional
inicial numa eterna admiração e ao amor e à admiração que nunca se
gratidão seria como substituir uma esquecem de alimentar em seus
doença por uma toxicomania: você pacientes. De fato, pela experiência
não tem mais pneumonia, mas tem acumulada, pelo talento e pela
capacidade de inspirar confiança, menos neurose de seus chefes e
eles são, em geral, ótimos terapeutas mais cuidado com os pacientes.
no começo das curas. Mas os Portanto, porfavor,se sua
tratamentos que dirigem duram para personalidade pede amor e
sempre, transformam-se em admiração ao mundo, invente uma
dependências químicas. Não é raro crença, torne-se médico, mas, pelo
que esse tipo de terapeuta considere bem das psicoterapias, desista. Ou
e vivencie mesmo o fim ou a então (mas este é um caminho
interrupção de uma cura como uma longo), antes de se autorizar a ser
espécie de traição amorosa de seu psicoterapeuta, faça o necessário
paciente. para mudar mesmo.
Essa perpetuação das curas não é o
único problema. Mas deixemos as razões de desistir e
É fácil reparar que, em quase todas vamos ao que importa. Esta carta
as orientações da psicoterapia, a deveria tratar dos traços de caráter
história da disciplina não é feita de que eu procuraria em quem quisesse
discussões, confrontação de idéias e se tornar psicoterapeuta. Não sei
resultados, interrogações e decidira ordem, mas todos estes eu
pesquisas, mas se apresenta como gostaria de encontrar:
um vaudevilie (nem 9
8

1) Um gosto pronunciado pela


palavra e um carinho espontâneo
pelas pessoas, por diferentes que
sejam de você. Proponho-lhe um
teste um pouco difícil, mas, afinal,
você deve tomar uma decisão
sempre engraçado), em que se
importante: bata um papo com dois
alternam fiéis e infiéis, lugar-tenentes
ou três moradores de rua, aproxime-
e traidores. Ou seja, é uma história
se, deixe-os falar o que, em geral,
de amores, desamores e ódios
ninguém escuta (salvo justamente os
pessoais. Nisso, aliás, a psicanálise
psicoterapeutas dos Centros de
ganha o prêmio. Pois é, tudo isso tem
Atenção Psicossocial). Se você
uma origem comum:
conseguir escutar, digamos, uma
os chefes de escola vieram à
hora, sem que o discurso (quase
psicoterapia como crianças decididas
sempre desconexo) abale sua
a viver para sempre com a agradável
atenção, e se não recuou
sensação de ser objetos
instintívamente quando eles
insubstituíveis de amores e gratidões
passaram uma mão encardida na sua
maternas. E delegaram a tarefa de
camisa ou direto no seu braço,
manter essa ilusão a alunos e
passou no teste. Repita, se possível,
pacientes.
com outras amostras: pacientes
Por isso, insisto. As psicotera pias,
psiquiátricos numa enfermaria ou
em geral, se beneficiariam muito com
num hospício, pacientes terminais
algumas décadas de menos brilho,
num hospital geral e pessoas comer meu rosto. Não eram
assoladas por um luto. mordidas, eram chupadas largas, de
Sei, claro, que são provas que podem boca aberta, nos olhos, no nariz, nas
parecer estranhas e extremas, bochechas; num instante, minha cara
sugeridas por alguém (eu, no caso) estava coberta de uma saliva
que tem desde sempre uma simpatia espessa que tinha o cheiro e o gosto
(senão uma atração) pelas sarjetas inconfundíveis de café com leite, ruim
do mundo. Mas minha intenção é como só a instituição psiquiátrica
prevenir. Veja bem, eu me formei consegue fazer. Durou uma
numa escola de gente engravatada eternidade, e eu deixei, até que ele
ou, então, alardeando camisas de mesmo, talvez estranhando que eu
seda modelo Revolução Cultural não o afastasse nauseado, parou e
Chinesa. Alguns anos depois de ter ficou me olhando. Passei a mão na
começado cabeça dele, devagar, para não
minha prática de psicanalista, decidi assustá-lo, num gesto que queria
trabalhar durante dizer: está bem, entendi que este é
um tempo (foram dois anos) num IME seu jeito de falar, esta é (literalmente)
(Instituto Médico Educativo) do norte sua “língua”, pode falar comigo. O
da França, em Le Havre. Eu seria diretor da instituição, que estava
tera- sentado ao meu lado, comentou:
bom, acho que você foi aprovado. E
10 pensei o seguinte: isso deveria ter
acontecido comigo muito tempo atrás,
antes de começar minha formação,
quando ainda daria para desistir. Por
sorte, passei nesse teste tardio.

11

peuta de crianças que só tinham em


comum o traço seguinte: todos — os
pais, a assistência social, a escola —
haviam desistido delas. Durante a
visita preliminar para obtero emprego,
sentei no pátio da instituição,
contemplando a estranha agitação ao 2) Uma extrema curiosidade pela
meu redor. De repente, um menino, variedade da experiência humana
bonito e inquietante pelo olhar com o mínimo possível de
esbugalhado, veio até mim, subiu no preconceito. Você pode ter crenças e
meu colo (eu pensei: legal, ele me convicções. Aliás, é ótimo que as
acha simpático, não é?) e começou a tenha, mas, se essas convicções
acarretam aprovação ou bra para o dia. Em suma, a insônia
desaprovação morais préconcebidas não é nem ruim nem boa. Agora
das condutas humanas, sua chance aplique a mesma idéia ao caso de
de ser um bom psicoterapeuta é uma preferência ou de uma fantasia
muito reduzida, para não dizer nula. sexual e entenderá que um terapeuta
Explico melhor. Você pode ser que tivesse um juízo moral
religioso, acreditar em Deus, numa preconcebido sobre a tal fantasia ou
revelação e mesmo numa ordem do preferência não teria condição de
mundo. No entanto, se essa fé respeitar a singularidade de seu
comportar para você uma noção do paciente.
bem e do mal que lhe permite saber Você poderia perguntar: mas será
de antemão quais condutas humanas que não há condutas que eu posso
são louváveis e quais condenáveis, julgar desprezíveis, seja qual for seu
por favor, abstenha-se: seu trabalho lugar, origem e função na vida de
de psicoterapeuta será desastroso. meu paciente? O que faço, se meu
A preocupação moral não é trisavô era Zumbi dos Palmares, e
estrangeira ao trabalho psicoterápico, alguém se apresenta, me conta que
mas, para o terapeuta, o bem e o mal odeia negros e orientais, acredita na
de uma vida não se decidem a partir supremacia da raça branca e quer
de princípios pré-estabelecidos; eles ajuda porque (o exemplo é real) só
se decidem na complexidade da consegue desejar corpos dessas
própria vida da qual se trata. outras raças?
Um mesmo sintoma pode sera razão Pois bem, de duas uma: ou você
do sucesso ou do pode escutar esse paciente sem juízo
fracasso de uma existência. Se você moral preconcebido (mas sem,
sofre de insônia, porque, por mesmo) ou, então, é um limite, um
exemplo, sua história o condena a ser caso do qual você não pode se
para sempre a sentinela da casa, ocupar. Encaminhe para outro
pode acontecer que você se torne o terapeuta que talvez tenha limites
responsável noturno mais confiável diferentes.
de uma central nuclear É fácil entender que, se você tiver
ou, ao contrário, que você atravesse opiniões morais prontas sobre a
a vida de café em café, numa luta metade dos atos possíveis nesta
extenuante contra o sono que, terra, é melhor deixar a profissão de
obviamente, so- terapeuta para quem tem mais
indulgência pela variedade da
12 experiência humana.
3) Este ponto é controvertido: além
de uma grande e indulgente
curiosidade pela variedade da
experiência huma-
13
na, eu gostaria que o futuro terapeuta
já tivesse, nessa variedade, uma
certa quilometragem rodada. Claro, Portanto, se você estiver hesitando
sei que Freud era, ao que parece, em escolher a profissão de
bem certinho, e isso não impediu que psicoterapeuta só porque, por uma
ele se tornasse capaz de lidar como razão qualquer, você não é um
terapeuta (e não como moralista) com modelo de normalidade, esqueça
sintomas e fantasias sexuais que sua essa preocupação. Claro, é possível
época condenava radicalmente. que você ainda encontre no seu
Também não impediu a “descoberta” caminho instituições de formação
da existência da sexualidade infantil, muito preocupadas em não
da qual ninguém queria sequer ouvir comprometer sua aura de
falar. Como ele conseguiu? É que, na respeitabilidad social. Até pouco
sua própria análise (ou auto-análise tempo atrás, por exemplo, havia
que fosse), ele soube encontrar instituto de formação de psicanalistas
fantasias e desejos que não eram que consideravam que um ou uma
muito distantes dos que animam psicanalista não poderiam ser
vidas estranhas e reprovadas homossexuais. A justificativa era que
socialmente. Ele aprendeu, em suma, os tais sujeitos não teriam chegado à
que é difícil, senão impossível, suposta “maturidade genital”, ou seja,
encontrar “desvios” pelos quais ao àquele estágio (mas seria melhor
menos uma parte de nossa mente dizer àquele estado) da sexualidade
não se tenha engajado em algum em que as pessoas transariam só
momento. para fazer filhos, direitinho.
Por que qualquer terapeuta não faria Provavelmente tratava-se sobretudo
o mesmo? Acontece que duvido que de fazer bonito aos
a coragem analítica de Freud possa olhos da sociedade bem pensante,
ser compartilhada por muitos. Por cujos membros são, afinal os
isso, prefiro contar com a experiência “melhores” pacientes (ou seja, neste
efetiva, ou seja, gostaria que a caso, aqueles que podem pagar
capacidade de considerar a mais). A prova disso é que os
variedade das vidas e das condutas mesmos institutos, durante anos,
com carinho e indulgência viesse ao recusaram dar formação a candidato
terapeuta da variedade “animada” de que tivessem algum tipo de
sua própria vida. deformidade física. Diziam que os
No caso de Freud, essa exigência defeitos visíveis impediriam que os
teria sido inútil e enganosa. Mas, pacientes idealizassem seu
como considero Freud uma exceção, terapeuta, como é necessário que
na hora de escolher um terapeuta, aconteça inicialmente, para que a
minha preferência iria para aIguém cura funcione.
que não fosse um cartão-postal do Os psicanalistas eram, no começo da
conformismo. história da psicanálise, um bando de
14 tipos excêntricos, marginais da
medicina e das ciências sociais.
Entende-se que alguns ficas-
15
16

inconscientes de seus pacientes


consiste no seguinte: o futuro
sem ansiosos em ganhar cartas de terapeuta deve, ele mesmo, ser
recomendação para os clubes dos paciente durante um bom tempo.
notáveis, normais e bonitos. Mas não Certo, é possível, aparentemente,
se entende que essa fachada de submeter-se a uma terapia ou a uma
normalidade possa ser, hoje, um psicanálise só por razões didáticas,
critério na hora de selecionar para aprender o método ou, como
candidatos para formação. dizem alguns, para se conhecer
Enfim, se sua vida sexual for um melhor. Mas insisto no
pouco colorida e você esbarrar numa “aparentemente”, pois, de fato, é
instituição que condena seu desejo, improvável que uma psicanálise
não hesite, passe longe, siga em aconteça sem que um sofrimento
frente e procure outra instituição. reconhecido motive o paciente. O
Lembre-se de duas coisas. Primeiro, processo não é necessariamente
um psicoterapeuta (e ainda mais um desagradável, mas pede uma
psicanalista) que define uma conduta determinação e uma coragem que
como “desvio” não fala em nome da podem falhar mais facilmente em
psicoterapia e ainda menos em nome quem não precisa de tratamento. Por
da psicanálise. Ele fala querseja em que diabo me aventurarei a explorar
nome de seu anseio de normalidade os porões de minha cabeça, lugares
social, quer seja em nome de seu malcheirosos e arriscados, se eu não
esforço para reprimir nele mesmo o for empurrado pela vontade de
desejo que parece condenar. resolver um conflito, acalmar um
Segundo, e mais geral, quem sintoma e conseguirviver melhor?
estigmatiza categorias universais, Uma terapia puramente didática é
como “os homossexuais”, “os geralmente uma simulação de
sadomasoquistas”, “os exibicionistas” terapia.
etc., é um atacadista, enquanto a E eis uma segunda razão para
psicanálise trabalha no varejo: a preferir que o futuro psicoterapeuta
fantasia e o desejo só encontram seu traga consigo uma boa dose de
sentido nas vidas singulares. sofrimento psíquico e precise se
4) O quarto e último traço que curar. Durante os anos de sua prática
gostaria de encontrar no futuro clínica, no futuro, muitas vezes você
psicoterapeuta é uma boa dose de duvidará da eficácia de seu trabalho.
sofrimento psíquico. Desaconselho a Encontrará pacientes que não
profissão a quem está “muito bem, melhoram, agarrados a seus
obrigado”, por duas razões. sintomas mais dolorosos como um
Primeiro, uma parte essencial da náufrago a um salva-vida; viverá
formação de um terapeuta que momentos consternados em que as
trabalhará com as motivações palavras que lhe ocorrerão parecerão
conscientes ou alfinetes de brinquedo agitados em
vão contra forças imensamente QUATRO BILHETES

17

superiores. Nesses momentos (que, BILHETE 1


acredite, serão freqüentes) será bom
lembrar que você sabe mesmo (e não Caro amigo, recebi, sim, seu bilhete.
só pelos livros) que sua prática Gostei da provocação. Lida a minha
adianta. Sabe porque a prática que primeira carta, você me pergunta se,
você propõe a seus pacientes já então, não haveria nenhum “desvio”
curou ao menos um: você. (apreciei as aspas) que impediria que
Resumindo, meu jovem amigo que um sujeito se tornasse psicoterapeuta
pensa em ser terapeuta, se você e acrescenta: “Poderia um travest ser
sofre, se seus desejos são um pouco psicoterapeuta ou psicanalista? E
(ou mesmo muito) estranhos, se você iria num ou numa terapeuta
(graças à sua estranheza) você travesti?’.
contempla com carinho e sem julgar
(ou quase) a variedade das condutas
Pois é, eu escolheria um analista em
humanas, se gosta da palavra e se
que tivesse confiança. As razões
não é animado pelo projeto de se
dessa confiança seriam
tornar um notável de sua
provavelmente imponderáveis e,
comunidade, amado e respeitado
eventualmente, irrisórias: desde a
pela vida afora, então, bem-vindo ao
recomendação de um amigo até a
clube: talvez a psicoterapia seja uma
decoração do consultório, passando
profissão para você.
por uma contribuição decisiva do
Abç.
terapeuta à última enciclopédia de
bridge ou por algo que ele ou ela
18 disse ou escreveu em matéria de
psicanálise.

De qualquer forma, quando escolhi


meu analista, não me lembro de ter
pensado que escolhia um analista
heterossexual. Suas fantasias e
2 preferências sexuais não o definiam,
eram irrelevantes aos meus olhos.
A coisa seria diferente na escolha de sexos e é afoito por ambos, talvez um
um analista travesti? Sim e não. travesti não seja para você o
terapeuta ideal. A menos que você
Escolher um (ou uma) analista não queira justamente um terapeuta
travesti teria um significado muito ou analista que lhe apareça de
especial para quem compartilha com imediato como
a cultura dominante a atitude depositário de um extraordinário
seguinte: geralmente, pensamos que sabersobre o sexo. Nesse caso, por
um sujeito que tenha e assuma uma que não?
preferência se- Por outro lado, se você não caminha
com a cultura dominante, ou seja,
não transforma uma preferência
21
excêntrica numa “tara” sexual, um
terapeuta ou analista travesti não
será, para você, muito diferente de
um terapeuta
ou analista de terno ou tailleurArmani.

22

xual excêntrica (digamos assim) seja Agora, não sei se há analistas ou


necessariamente um sujeito que só terapeutas travestis. Portanto, não
pensa nisso, um “tarado, ou seja, um adianta me pedir telefone e endereço
sujeito que se definiria exclusiva do
mente por seu desejo sexual. Essa consultório.
convicção é sempre fruto de alguma
repressão. Funciona assim: se BILHETE 2
reprimo minhas fantasias (por
mínimas que sejam) de experimentar Gosto disso, você é persistente e
os prazeres que imagino sejam agora pergunta: “E um pedófilo,
reservados ao outro sexo, quem poderia ser terapeuta ou analista?.
parece viver essas fantasias (o Você quer que eu estabeleça um
travesti, no caso) me aparecerá como limite, ou seja, que coloque alguma
o símbolo vivente da lubricidade. prática ou fantasia sexuais no campo
Claro, trata-se somente da de uma anormalidade que tornasse
lubricidade que não me autorizo ter. por si só impossível o exercício da
Pois, de fato, na maioria das vezes, psicoterapia ou da análise. Por isso,
os travestis são mais preocupados você recorre a uma preferência
em definir sua identidade do que sexual que é, além de ilegal,
afobados de gozar como míticos repulsiva, pois há ótimas razões, em
hermafroditas. nossa cultura, para que a infância
Em suma, se você imagina que seja protegida do desejo sexual dos
qualquer travesti é um ser que adultos.
conhece os prazeres de ambos os
Mas disso, em princípio, cuida a BILHETE 3
nossa polícia. Desta vez, você pergunta: “Qual é
A objeção à idéia de um terapeuta seu limite? Qual é o paciente que
pedófilo existe, mas é de outra você recusaria e
natureza. A fantasia do pedófilo é encaminhariaalhures? E será que
propor ou impor seus desejos a um existem limites, por assim dizer,
sujeito que mal entende o que está universais? Ou seja, sujeitos que
sendo feito com ele e com seu corpo. nenhum terapeuta ou analista deveria
É uma fantasia de domínio e aceitar?”.
sobretudo de domínio pelo saber. É a Um grande analista francês,Jacques
história (verídica) daquele padre Lacan, disse uma vez, durante uma
americano que pedia sexo oral supervisão, que a gente não deveria
explicando a seu coroinha que era oferecer tratamento aos parricidas.
uma forma de santa comunhão. Mas não explicou por quê.
Não é difícil entender que essa É sempre possível construir uma
fantasia não é compatível com o teoria geral do parricídio como
exercício da psicoterapia ou da infâmia inaceitável. Mas suspeito que
análise. se tratasse de um limite pessoal de
Lacan, ou seja, que ele, Lacan, não
23 tinha condição de oferecer análise a
um parricida.
Por quê? Pois é, se você conhecesse
a raiva famélica com a
24

Claro, no começo de uma terapia ou


análise, o paciente sempre supõe que
seu terapeuta saiba muito mais do
que ele, sobretudo em matéria de
desejo e de sexo. Justamente,
espera-se de uma terapia que ela não
transforme essa suposição numa
dependência crônica. Ora, é
exatamente o que acontecerá se o
terapeuta se servir da suposição
inicial do paciente para realizar sua
própria fantasia sexual, ou seja, se
ele, propriamente, encontrar seu gozo
na suposta supremacia de seu saber.
E, se o terapeuta for pedófilo, a
tentação será grande.
qual os filhos espirituais de Lacan se FIAT, bem na hora em que, saindo
jogaram em cima de seu cadáver para o trabalho, o homem se virava
ainda antes de sua morte, entenderia para dizer tchau à mulher e à filha.
facilmente (não me eximo da crítica: “Pernizar” (“gambizzare”, atirar nas
participei do festim). Talvez, nos pernas), como se dizia na época, e
últimos anos de sua vida, Lacan já deixar inválido um pai de família não
sentisse hálitos carniceiros perto de era, para esse jovem, um ato do qual
seu pescoço e, com isso, achasse os ele reconhecesse propriamente a
parricidas pouco simpáticos. autoria. “Pernizar” era a expressão
E eu? Qual é meu limite? Há só um “normal” da máquina revolucionária
que me pareça evidente: são aqueles da qual ele era uma engrenagem.
sujeitos que conseguem se autorizar Pois bem, consegui oferecer
a cometer pequenos ou grandes tratamento a somente um desses
horrores participando de aventuras brigadistas exilados. E foi porque,
coletivas que os absolvem de logo nas primeiras entrevistas, ao
antemão. expor o passado militante, sua
confortável sensação de ter sido
No fim dos anos 70, em Paris, apenas um instrumento do
porfalar italiano, recebi alguns brigadismo não resistiu, e ele
pedidos de terapia de brigadistas descobriu, com um certo horror, que o
vermelhos que fugiam da Justiça dedo que puxara o gatilho tinha sido
italiana exilando-se na França. o seu.
Pode ser que meu limite, neste caso,
decorra de uma antipatia atávica por
Todos viviam numa espécie de
todos os grupos que nos fornecem a
divisão. Eram sujeitos atormentados
ocasião de agir como instrumentos de
por dúvidas, dívidas e culpas em mil
uma causa, adormecendo os
aspectos de suas vidas privadas. Mas
espectros da consciência. Afinal,
seus atos militantes pertenciam, por
desse ponto de vista, os jovens
assim dizer, a outro mundo, no qual
brigadistas não deviam ser muito
não cabia nenhum questionamento
diferentes dos fascistas que
subjetivo, fora, naturalmente, a
perseguiram meu pai.
interrogação: “Sou ou não sou, fui ou
Mas talvez meu limite coincida com o
não fui um ‘bom’ militante?”
limite universal sobre o qual você me
questiona. Talvez um terapeuta ou
Por exemplo, um jovem, aflito por um analista não tenham nunca o que
pensamentos obsessivos e propor a quem (burocrata, militante
impotência sexual, não tinha nada ou crente) consegue agir e perpetrar
para comentar sobre o fato de que, pe-
numa manhã de inverno, ele enfiara
duas balas calibre 45 nos joelhos de
26
um sindicalista da

25
27

quenos ou grandes horrores sem que


sua subjetividade esteja envolvida.
Você já ouviu, não é? “Essas eram as
ordens”, “esta é a regra’, “isso é o
que manda nossa fé”.
mado pela gente, na Itália, de
“cagasenno”, ou seja, melhorando a
BILHETE 4 chulice na tradução, defecador de
sapiência. Ora, o conselheiro
Você pergunta: “Será que não “cagasenno” é aquele que se
deveríamos acrescentar, entre os prevalece de um saber externo à
traços de caráter esperados num situação (sua experiência
terapeuta, uma vontade de mexer pretensamente maior, seu elevado
com a vida dos outros, de ensiná-los, senso moral ou uma reserva de
influenciá-los?” banalidades que ele chama de
sabedoria ancestral). Em nome desse
Admito sem dificuldade que, no saber, o “cagasenno” quer escolher
decorrer de uma terapia ou de uma pela gente.
análise, há momentos em que o Como se espera que aja o terapeuta
terapeuta ou analista é levado a ou analista na hora em que for
apontar um caminho e mesmo a preciso empurrar o paciente para
empurrar o paciente na direção que frente? A escolha da direção ou do
parece mais certa. Nenhuma caminho não deve ser decidida por
vergonha nisso. Aliás, a maior uma norma, nem mesmo por uma
associação de psicoterapeutas dos sabedoria. Espera-se que o terapeuta
Estados Unidos, da qual sou ou analista empurre o paciente na
membro, chama-se American direção de seu desejo. Aliás, é por
Counseling Association; “counselor” isso que uma terapia leva tempo,
significa “conselheiro”, não no sentido porque, antes de empurrar, é preciso
honorífico: simplesmente, alguém que que esse desejo consiga se
dá conselhos. manifestar um pouco.
Mesmo assim, na hora de empurrar, é
difícil, para o terapeuta, respeitar a
Será que o terapeuta ou analista não
direção apontada pelo desejo do
é também, você pergunta, alguém
paciente, ou seja, é difícil não achar
que gosta de aconselhar, com os
que o desejo do paciente
privilégios (ilusórios) que essa
se parece sempre (olhe só, que
posição comporta (sensação de
coincidência) com o que a gente
relevância, de sabedoria efetiva)?
escolheria se estivesse na mesma
Quando era moleque, detestava
encruzilhada. Por isso, é bom que o
conselhos, como a maioria de meus
terapeuta ou analista não tenha uma
colegas. Quem oferecia conselhos
grande paixão pedagógica. Se ele for
era cha-
“cagasenno” de caráter, empurrará na
direção que lhe parece certa à vista cozinhas, alguns gritos, chamados e
de mesmo pequenas brigas, música e
seus conceitos ou preconceitos. vozes do rádio. Eu ficava nostálgico
28 daquelas existências, que imaginava,
ao mesmo tempo, parecidas
29

Falando nisso, um episódio recente


foi particularmente tragicômico: uma
igreja evangélica quis e tentou se
constituir como centro de formação com a minha e diferentes. Sentia
“psicanalítica”. Nota: aparentemente, pena por todas as vidas que eu não
apesar dos ataques que ela recebe, a viveria e uma certa alegria, porque
psicanálise ainda deve ser uma pensava que, de todas, no fundo, eu
denominação interessante. Fora isso, podia reconhecer ao menos o barulho
dá calafrios a idéia de “terapeutas” e o cheiro que me eram
convencidos de que o Senhor e Bom estranhamente familiares.
Pastor sabe o caminho certo para Mais comum do que o gosto pelas
cada ovelha e o comunicará a seus janelas iluminadas, a paixão pela
ministros, de modo que eles possam literatura é, geralmente, sinal do
encaminhar as ditas ovelhas pela via mesmo carinho e da mesma
do bem. Brrrrrrr. aceitação diante da variedade das
Em suma, muito mais do que a vidas. Detalhe: o amor pela literatura
vontade de ensinar os outros e de pode ser, indiferentemente, amor
mexer com suas vidas, é importante, pelos autores de cordel ou pelos
como já lhe disse, a aceitação clássicos, mas é sempre amor por
carinhosa da variedade das vidas muitos livros. Como dizia Santo
com todas as suas diferenças. Tomás (apenas modificado): “Temo o
Sei como esse carinho se psicoterapeuta de um livro só”.
manifestava em mim, quando era Abç.
ainda criança. Sobretudo aos
sábados, eu voltava para casa, do 30
cineclube de meu colégio, no fim da
tarde. Em Milão, já era noite.
Caminhava devagar, olhando para
cima; gostava de ver as janelas
iluminadas, a cor das cortinas, o
3
brilho dos lustres, a luz trêmula dos
primeiros televisores branco e preto.
No verão, chegavam aos meus O PRIMEIRO PACIENTE
ouvidos o tilintar das mesas que
estavam sendo postas e das
Paris, que era a instituição à qual per-
33

Minha jovem colega,

Imagino que você seja recém-


formada (o que não significa apenas
recém-saída dos bancos de sua tencia meu analista. Mesmo assim,
faculdade, mas disso falaremos outra seguia pensando que meu futuro
vez), prestes a começar a atender seria pesquisar, ensinar e escrever,
seu primeiro paciente. Você poderia certamente não clinicar.
perder coragem, perguntando—se: Em 74, então, recebi uma proposta
mas quem me escolherá como que me acuou. Alguém tinha gostado
terapeuta, com tantos profissionais de um livro que eu acabara de
experientes e medalhões na praça? publicar e que era uma interpretação
Um kamikaze? da grande mudança na pintura
francesa de Courbet a Duchamps.
Esse alguém (Yves Velan, um escritor
Pois é, deixe que lhe conte a história
e um homem fora do comum, que
de meu primeiro paciente.
infelizmente perdi de vista) ensinava
numa universidade americana e
Resolvi me tornar psicanalista em propôs que me candidatasse a um
1974. Antes daquela data, eu posto que coincidia com minhas
ensinava (teoria literária) na qualificações. As grandes decisões
Universidade de Genebra, onde havia da minha vida sempre foram assim,
terminado minhas graduações. Não na hora em que os ingredientes
tinha a menor ambição ou desejo de chegam na boca do funil. Aceitar a
me tornar psicanalista. Mas, há anos, proposta americana significaria
passava quatro dias por semana em impulsionar de vez uma carreira
Paris, para me analisar. Da acadêmica que, de fato, eujá
psicanálise eu esperava que curasse começara, mas significaria também
minhas assíduas angústias e uma deixar Paris, minha análise e a École
gastrite crônica que, desde a Freudienne. Pois é, decidi, de
adolescência, fazia do Buscopan meu repente, que a vida acadêmica não
companheiro mais fiel. era mais o que eu queria. A
psicanálise me interessava mais.
As angústias se amenizaram, e a Na École Freudienne de Paris, para
gastrite sumiu. Por isso mesmo a que um membro começasse a
psicanálise começou a me interessar atender, não era prescrito nenhum
seriamente; passei a freqüentar, além exame ou entrevista específica. Mas
do seminário de Lacan (a missa era preciso que, quando se
semanal parisiense), cursos e grupos considerasse pronto para receber seu
de estudo da ÉcoleFreudiennede primeiro paciente, ele anunciasse a
decisão ao seu analista. O dito de segunda classe), minha análise e
analista não o aluguel de um apartamento de
34 quarto e sala em que morava em
Paris. Em Genebra, me hospedava
em casa de amigos.

35

daria nenhuma autorização, oral ou


escrita que fosse; era apenas
esperado que ele se opusesse, caso
necessário.
A transformação de meu quarto e
O sistema parecia fácil demais, sem sala do 32, rue St Paul, deu nisto: a
currículo para ser preenchido e sem sala se tornou sala de espera e o
entrevistas de seleção. Na realidade, pequeno quarto se tornou consultório.
era assustador, pois forçava cada um À noite, a sala de espera se
a encarar a responsabilidade de sua transformava em quarto, graças a um
decisão sem um carimbo que o sofá-cama. Comprei minha poltrona
autorizasse. A idéia do consenso numa liquidação da Samaritaine; a
tácito do analista fazia a festa de poltroninha para os pacientes, achei
alguns e o drama de outros. Os no mercado das pulgas; a base do
candidatos histéricos eram sempre divã, confesso que achei na rua; um
convencidos de que seu analista mal amigo me deu um colchão que lhe
tinha conseguido esconder ojúbilo; os sobrava; e uma amiga costurou uma
candidatos obsessivos nunca colcha de retalhos que dava ao
paravam de perguntar-se: será que conjunto um aspecto tipo Freud dos
ficou calado porque acha que estou pobres. A mesa (que ainda carrego
pronto, porque não ouviu direito, comigo), encontrei na demolição de
porque considera apenas que não um bar, perto de casa. Estava pronto,
serei uma calamidade, porque acha só faltavam os pacientes.
que serei, mas não quis me magoar
ou porque não soube o que dizer? Meu primeiro paciente foi indicado
por uma amiga, Nicoile SeIs, que era
O fato é que, quando lhe comuniquei analista e bibliotecária da École
que começaria a atender pacientes, Freudienne e que confiava em mim
Serge Leclaire, meu analista, não como futuro analista pela razão
disse nada. E lá fui eu. seguinte: ela sabia que, por mais que
a psicanálise me tivesse conquistado,
Na época, com o salário de professor eu continuava apaixonado por muitas
assistente da Universidade de outras coisas que me seduziam tanto
Genebra (magro, mas em francos quanto e sobre as quais
suíços), pagava minhas viagens (trem conversávamos assiduamente,
repetindo capucinos num bar da rue só eu, mas a França inteira fumava),
Gay-Lussac. Falávamos com o para mostrar que, naquela tarde, já
mesmo prazer dos romances de me debruçara sobre outros destinos
Barbara Cartland ou do último prêmio cabeludos.
Goncourt, das personagens mais Esse primeiro paciente se analisou
excêntricas do século XVII (que era comigo durante sete anos. Era um
meu século preferido), da história da jovem psiquiatra, que se tornou
psiquiatria, de crimes verídicos, analista por sua vez. Alguns anos
romances policiais e por aí vai. depois de ele terminar sua análise,
quando eujá era um analista
36 reconhecido e estabelecido, nos
encontramos, por acaso, num
congresso e conversamos um pouco.
De repente, ele me perguntou: “Eu fui
seu primeiro paciente, não fui?”.
37

O critério que, aparentemente, valeu


para que ela me encaminhasse um
paciente vale hoje para mim; na hora
Hoje, responderia imediatamente a
de encaminhar um paciente, prefiro
verdade. Na época, eu ainda me
os analistas cuja curiosidade para
preocupava em defender a aura de
com o mundo, a vida e a cultura se
misténo atrás da qual os terapeutas
estenda além das quatro paredes do
gostam de se esconder, sob pretexto
consultório.
de que o paciente precisa idealizar
Quando chegou o dia da primeira
seu terapeuta. Portanto, fiquei
entrevista do primeiro paciente, eu
perplexo e calado, com aquela cara
tinha uma preocupação dupla: queria
de “Hâ!” que os analistas usam para
que o apartamento tivesse cara de
fazer pensar que, primeiro, eles já
consultório, mas também queria que
estariam vendo a razão verdadeira da
não tivesse cara de consultório no dia
pergunta que está sendo feita e que,
de sua inauguração. Afinal, eu
segundo, essa razão (desconhecida
pensava, qual paciente gostaria de
por quem pergunta) é infinitamente
descobrir que o analista em que ele
mais interessante do que a resposta
vem depositar uma esperança de
que eles deveriam dar. Mas meu ex-
cura é um novato absoluto? Cuidei
paciente (aparentemente sua análise
dos detalhes: uma certa desordem de
tinha funcionado) não deixou para
papéis e notas na mesa, uma
menos e continuou:”Acho mesmo que
pequena desarrumação do
fui seu primeiro paciente; não sei se
acolchoado do divã, para mostrar que
você sabe, mas é o que eu tinha
alguém já deitara ali, três ou quatro
pedido para Nicolle, que me deu seu
baganas no cinzeiro (na época não
endereço na época. ‘Quero um
analista’, eu lhe havia dito, ‘de quem algumas escolhas de vida, que, se
serei o primeiro paciente’. E acho que fossem conhecidas, lhe valeriam um
ela respeitou meu pedido. Queria ser repúdio. No mínimo, era o que ele
o primeiro paciente porque pensava imaginava. Não estranha que ele
que, quisesse ser, de uma certa forma, o
como meus problemas eram meio legítimo primogênito de alguém para
banais, só um analista debutante me quem ele poderia contar “tudo”. A
escutaria com toda sua atenção”. escolha de um terapeuta é sempre
Gostaria de poder dizer que ele guiada por razões um pouco mais
estava enganado, que, durante todos complexas e reveladoras do que o
estes anos, escutei meus pacientes próprio paciente imagina.
com a mesma paixão, vontade de Essa história deixa alguns
entender e de dizer a coisa certa que ensinamentos:
eu sentia no começo daquela 1) Nem sempre é verdade que os
primeira análise. E é verdade que, até pacientes preferem terapeutas
agora, consigo quase sempre me experientes.
surpreender 39
38

com cada história. Afinal, se um


terapeuta não enxergasse (mais) a 2) Como os caminhos pelos quais um
intensidade e a originalidade do paciente coloca sua confiança num
drama e da tragédia por trás da terapeuta são muitos, se não são
eventual banalidade de cada vida que inúmeros, o mais simples talvez seja
lhe é contada, ele estaria precisando que nos contentemos em ser nós
de reciclagem urgente. Mas admito o mesmos (não é preciso desarrumar
seguinte: lembro-me do primeiro colchas e deixar baganas nos
sonho daquele paciente em cada cinzeiros).
detalhe; não posso dizer a mesma 3) A experiência certamente ajuda na
coisa de todos os primeiros sonhos conduta das curas, mas, de qualquer
dos pacientes que seguiram. forma, seria bom que guardássemos
Claro, nada garante que a voracidade sempre alguns elementos do espírito
da escuta e uma atenção exacerbada do debutante:
sejam as melhores conselheiras para a curiosidade, a vontade de escutar
um terapeuta. Além disso, dificilmente e, por que não, o calor de quem, a
o desejo de ser o primeiro paciente cada vez, acha extraordinário que
de seu analista é apenas um jeito de alguém lhe faça confiança.
garantir uma escuta especial e Abç.
atenta.
Meu paciente escondia de seus pais 40
exceção de que, neste caso, espera-
se que o encantamento se resolva,
4 acabe um dia. Sem isso, a
psicoterapia condenaria o paciente a
uma eterna dependência afetiva.
AMORES TERAPÊUTICOS Repare que, às vezes, sentimentos
negativos, como o ódio, permitem e
facilitam o trabalho psicoterápico,
tanto quanto o amor. Mas é certo que
o amor é a forma mais comum dos
sentimentos cuja presença assegura
o começo de uma psicoterapia. Ou
seja, é muito freqüente que um/uma
paciente se apaixone por seu
terapeuta.
43

Caro amigo,
Você me perguntou: “O que faço, se
me apaixono por uma paciente?”. E
lhe respondi laconicamente: “Será
que é uma questão urgente?”. Você
replicou: “Desde o começo de minha
formação, pratico (só de vez em A psicanálise deu a essa paixão um
quando, não se preocupe) um nome específico:
devaneio em que curo amor de transferência. O termo
milagrosamente uma moça sugere que o afeto, por mais que seja
emudecida por sua loucura e, lógico, genuíno, sincero e, às vezes, brutal,
nos amamos para sempre”. Depois teria sido “transferido”, transplantado.
disso, decidi levar sua pergunta a Ele se endereçaria ao terapeuta por
sério. procuração, enquanto seu verdadeiro
Talvez você se lembre de que, na alvo estaria alhures, na vida ou na
minha primeira carta, falei um pouco lembrança do paciente.
da admiração, do respeito e, em Você já deve ter ouvido mil vezes: o
geral, dos sentimentos que amor de transferência, grande ou
destinamos às pessoas a quem pequeno, é a mola da cura.
pedimos algum tipo de cura para Primeiro, ele possibilita que a cura
nossos males. continue apesar dos trancos e dos
Comentei que era bom que fosse barrancos. Segundo, ele permite ao
assim, pois esses afetos facilitam o paciente viver ou reviver, na relação
trabalho do terapeuta. E acrescentei com o terapeuta, a gama de afetos e
que isso é especialmente verdadeiro paixões que são ou foram também
no caso da psicoterapia, com a dominantes em sua vida; essa nova
vivência, aliás, é a ocasião de terapeuta e seja qual for o sexo do
modificar os rumos e o desfecho dos paciente, incluindo os casos em que
padrões afetivos que, geralmente, esse sexo é o mesmo.
assolam uma vida, repetindo-se até o Um argumento que é usado
enjôo. Terceiro, ele pode, às vezes, tradicionalmente para justificar essa
ser o argumento de uma chantagem interdição é o seguinte: o afeto que
benéfica: o paciente pode largar seu uma paciente pode sentir por seu
sofrimento por amor ao terapeuta, terapeuta é fruto de uma espécie de
para lhe oferecer um sucesso, para qüiproquó. O terapeuta não é quem a
ganhar seu sorriso, para fazê-lo feliz. paciente imagina. A situação leva a
Esse terceiro caso apresenta alguns paciente a supor que seu terapeuta
inconvenientes óbvios: o paciente detenha o segredo ou algum segredo
que melhorar por amor a seu de sua vida e que, graças a esse
terapeuta nunca se afastará dele, saber, ele poderá entendê-la,
pois parar de amar seria para ele transformá-la e fazê-la feliz. Ou seja,
largara razão pela qual se curou, ou a paciente idealiza o terapeuta, e
seja, voltar a sofrer como antes ou quem idealiza acaba se apaixonando.
mais ainda. Conclusão: o apaixonamento da
Você deve também ter ouvido mil paciente é um equívoco. E não é bom
vezes que um/uma terapeuta não construir uma relação amorosa e
pode e não deve aproveitar-se do sexual sobre um equívoco. Se
amor do paciente e terapeuta se juntarem, a
coisa, mais cedo ou mais tarde,
produzirá, no mínimo, uma decepção
44 e, freqüentemente, uma catástrofe
emocional, pois a decepção virá de
um lugar que pode ter sido idealizado
além da conta.
45

paciente ou da paciente. Você pode


ter carinho e simpatia por seu/sua
paciente, mas transformar a relação
terapêutica em relação amorosa e
sexual é mais do que Esse argumento, na verdade, vale
desaconselhado. pouco. Explico por quê: a paixão de
Por quê? transferência é, de fato, igual a
Nota: para simplificar, no que segue, qualquer outra paixão. Em outras
falarei do terapeuta no masculino e palavras, os amores da vida são
da paciente no feminino. Mas o fundados num qüiproquó tanto quanto
mesmo vale seja qual for o sexo do os amores terapêuticos. Quando nos
apaixonamos por alguém, a coisa envolvimento com uma estagiária da
funciona assim: nós lhe atribuímos Casa Branca, Monica Lewinski. Com
qualidades, dons e aptidões que ele notável honestidade e capacidade
ou ela, eventualmente, não têm; em analítica, Clinton não justifica seus
suma, idealizamos nosso objeto de atos pelo transporte da paixão, mas
amor. E não é por generosidade; é declara que ele se deixou seduzir ou
porque queremos e esperamos ser (tanto faz) que ele seduziu Lewinski
amados por alguém cujo amor por simplesmente “porque podia”. Ele
nós valeria como lisonja. Ou seja, acrescenta (admiravelmente) que, de
idealizamos nosso objeto de amor todas as razões possíveis, essa é a
para verificar que somos amáveis aos pior, a mais condenável.
olhos de nossos próprios ideais. “Transar porque pode” não significa
Então, se o amor de transferência só transar porque é fácil, porque o
não é muito diferente de qualquer outro é acessível. Significa transar
amor, será que está liberado? Pois é, pelo prazer de poder. É como se a
não está liberado: há outros gente gostasse de bater em enfermo
argumentos contra, e são de peso; porque isso dá a sensação de ser
eles não se situam do lado do forte.
paciente (cujo amor é bem parecido O consultório do terapeuta tomado
com um amorverdadeiro), estão do por essa fantasia se transforma num
lado do terapeuta. templo (ou num quarto de motel), em
Por que um terapeuta toparia a que as pacientes são chamadas a
proposta amorosa de uma paciente? participar de ritos que celebram a
Por que ele se declararia disponível e potência do senhor.
proporia um amor quase irrecusável a Esse abuso dos corpos produz
uma paciente já seduzida pela estragos dolorosos, porque ele se
situação terapêutica? Há três vale de uma oferta generosa de
possibilidades. amor: “Posto
1) A primeira é perfeitamente que você me ama, ajoelhe-se”. É uma
explicada no autode-fé do ex- situação próxima à ‘ do abuso de uma
presidente Clinton, quando, em suas criança, quando os adultos que ela
me ama e
em quem confia se revelam sedentos
46 de demonstrar sua autoridade pelas
vias de fato, na cama ou a tapas.
Invariavelmente, o terapeuta
deslumbrado pela descoberta de que
ele “pode” agir do mesmo modo com
as pa-
47

mórias recentemente publicadas, ele


narra e tenta entender seu famoso
cientes com quem ele transa e com rapeuta. O terapeuta deveria saber
aquelas com quem ele não transa. A que é útil que seja assim, mas
fantasia de abuso invade todo seu também deveria saber que, de fato,
trabalho terapêutico, ou seja, ele não sua modesta pessoa não é o remédio
analisa nem aconselha, ele dirige e milagroso e definitivo que curará os
manda, pois ele goza de e com seu males de sua paciente. Ora, é
poder. provavelmente disto que ele se
2) Mas há terapeutas, você me dirá, esquece. O terapeuta, seduzido pela
que se apaixonam mesmo por uma idealização de sua pessoa, como o
paciente e até casam. Concordo. corvo da fábula, acredita no que diz o
Aliás, essa é a segunda amor de sua paciente, ou seja,
possibilidade. acredita ser a panacéia que tornará
O curioso é que, em regra, os sua paciente feliz para sempre.
analistas que se apaixonam pelas Generoso? Ingênuo? Nada disso,
pacientes que os amam são apenas vítima, por exemplo, de uma
recidivistas. Eles se casam com obstinada esperança de voltar a ser o
várias pacientes, uma atrás da outra. nené que, por um mítico instante, no
Um psicanalista famoso, de tanto passado, teria feito sua mãe
casar com pacientes, ganhou o absurdamente feliz.
apelido “Divã, o Terrível”. A série continua porque a decepção é
Conheço as desculpas: a gente garantida. O terapeuta (como homem
trabalha duro e não tem tempo para e companheiro) não é uma panacéia
sair na noite, onde a gente (ninguém é). A paciente com quem
encontraria uma companheira? Afinal, ele se casou, uma vez feita essa
não é banal que as pessoas descoberta trivial, manifestará sua
encontrem suas metades no insatisfação e, com isso, fará a
ambiente de trabalho? Além disso, o infelicidade do nené caprichoso com
terapeuta se apaixona poralguém que quem casou. Pronto, acaba o
ele conhece (ou imagina conhecer) casamento. Entretanto, como disse, a
muito bem; essa não é uma garantia esperança do terapeuta é obstinada;
da qualidade de seus sentimentos? não é fácil desistir do projeto de ser
Pode ser. Mas resta uma dúvida, que aquela coisa que traz ao outro uma
se torna quase certeza à vista da satisfação absoluta. Por que não
repetição. tentar outra vez?
Esses psicoterapeutas ou Os terapeutas recebem regularmente,
psicanalistas que se juntam com em seus consultórios, os cacos
verdadeiras séries de pacientes desses dois tipos de desastres: o das
devem ser tão cativos da situação abusadas e o das casadas e
terapêutica quanto suas pacientes. abandonadas por não se terem
Explico. A paciente se apaixona 49
porque tudo a leva a idealizar seu te-

48
mostrado perfeitamente satisfeitas.
São cacos difíceis de serem
recolados. A decepção amorosa da cessária para deixar passar a
paciente é violenta: afinal, ela foi ocasião. Mas, convenhamos, se esse
enganada por um objeto de amor ao tipo de encontro é tão raro, é difícil
qual atribuía poderes e saberes acreditar que possa repetir—se em
quase mágicos. série... Como diz o provérbio, errar é
O pior desserviço desses desastres é humano, perseverar é diabólico. Ou
que, de fato, eles impedem que as seja, pode acontecer uma vez numa
vítimas encontrem a ajuda da qual vida. A partir de duas, a série é
precisam. Freqüentemente, ao tentar suficiente para provar que o terapeuta
uma nova terapia, elas não param de está precisando de terapia.
esperar que se engate uma nova Abç.
relação erótica (pois lhes foi BILHETE 1
ensinado, por assim dizer, que a cura Caro amigo, recebi sua notinha um
virá de um amor correspondido com pouco irônica. Sua observação é
seu terapeuta). Outra eventualidade é correta. Embora eu tenha
que elas nunca mais consigam especificado que os amores
estabelecer a confiança necessária terapêuticos acontecem tanto com
para que um novo tratamento se terapeutas homens como com
torne possível. terapeutas mulheres, é verdade que,
3) Existe uma terceira possibilidade em minha carta, para simplificar (foi o
para os amores terapêuticos. É que eu disse), usei o masculino para
possível que se apaixone porsua “o” terapeuta e o feminino para “a”
paciente um terapeuta que não queira paciente. Não foi por acaso, você tem
apenas gozar de seu poder e que não razão. Provavelmente, esses
seja aflito pela síndrome de fazer a desastres acontecem mais entre
“mamma” feliz. E é terapeutas homens e pacientes
possível que uma paciente se mulheres do que entre terapeutas
apaixone por seu terapeuta mulheres e pacientes homens. Mas
sem acreditarque ele seja o remédio não é, como você sugere, porque os
a todos os seus males. homens “são sempre mais
Afinal, não é impensável que dois assanhados”. A razão é outra:
sujeitos, que tenham algumas boas muitos homens, diferentemente das
razões de gostarem um do outro, se mulheres, acreditam terem sido, ao
encontrem num consultório. Todos nascer, a única e inigualável razão da
sabemos que um verdadeiro encontro satisfação de suas mães. É isso que
é muito raro, e é compreensível que explica que os terapeutas sejam mais
um terapeuta não faça prova da propensos a se oferecer a suas
abnegação profissional ne- pacientes como panacéias amorosas.

50 51
terapeuta, mas não disse nada dos
caminhos pelos quais ele deveria
formar—se.
Por exemplo, você me pergunta, que
faculdade você
recomendaria cursar? Medicina e
psiquiatria ou psicologia
BILHETE 2 clínica?
Agora você quer que eu lhe diga, Na verdade, tanto faz, porque nem o
caso se apaixone por uma paciente, psiquiatra nem o psicólogo clínico se
como você saberá se a coisa se formam para serem psicoterapeutas.
enquadra no caso dois ou no caso Se você quer ser psicoterapeuta, o
três. Ou seja, como saberá se está se essencial de sua formação
rendendo à raridade de um encontro acontecerá depois da faculdade ou,
amoroso excepcional ou se é apenas quem sabe, durante seus estudos. De
o começo de uma série (que qualquer forma, se dará fora da
demonstraria que, na verdade, você academia.
se enganou um pouco de profissão). E há, por isso, uma razão
Pois é, salvo esperar para ver se a intransponível: uma peça- chave da
coisa se repete, o único que poderia formação de um psicoterapeuta é o
dizer seria seu analista. É por isso, tratamento ao qual ele mesmo se
aliás, que é sempre bom que um submete. E essa cura não pode ser
terapeuta, de vez em quando, volte a uma demonstração pedagógica
ser paciente... abstrata, não pode ser limitada a um
Enfim, na dúvida, abstenha-se. fazer de conta durante o qual se
transmitiria uma técnica. Ao contrário,
52 espera-se que, nesta experiência, o
futuro terapeuta se depare com a
complexidade de suas motivações,
sintomas e fantasias conscientes e
inconscientes. Pois, para o terapeuta,
5 não há melhor intro- dução à
variedade do sofrimento humano do
FORMAÇÃOA que a descoberta de que, em algum
canto de seus pensamentos, ele pode
encontrar palavras, lembranças,
razões, visões e pen-
55

Minha jovem amiga,


Você tem razão, falei (em minha
primeira carta) dos traços de caráter
que gostaria de encontrar num
samentos parecidos com aqueles que
afetam, agitam ou mesmo
enlouquecem seus pacientes.
É óbvio que essa experiência por si De fato, existem hoje mestrados em
só não forma um terapeuta. Desde o psicologia clínica e em psicanálise,
fim do século XIX, vem se nos quais esse estudo é proposto e
constituindo uma imensa biblioteca acontece.
de depoimentos, pesquisas e No entanto, a diversidade das
construções teóricas sobre o orientações psicoterápicas pediria
sofrimento psíquico, as motivações uma multiplicação de pós-graduações
humanas e os caminhos terapêuticos (só em psicanálise, seriam
possíveis. Espera-se que um necessários cinco ou seis cursos
terapeuta conheça o essencial da diferentes). Além disso, de qualquer
tortuosa história dessas idéias, não forma, o estudo universitário não é
por gosto erudito, mas porque essa exatamente equivalente ao estudo
história apresenta as respostas que proporcionado pelos institutos de
nós, humanos e modernos, formação. A compreensão dos textos
construímos para entender quem não é a mesma. Há uma diferença
somos. Ela é, em suma, uma vasta relevante entre ler como estudante,
patologia das racionalizações que que deve dar conta do que aprendeu,
somos capazes de inventar para e ler como terapeuta em formação,
explicar nosso mal-estar. Espera-se que interpreta os textos a partir da
também que, nesse emaranhado, o experiência singular de sua própria
terapeuta escolha um fio e o percorra terapia ou análise.
detalhadamente, lendo e estudando. Por essas razões, no mundo inteiro, a
Muito bem, você dirá, entendo formação do psicoterapeuta é
facilmente que a própria análise ou proposta por instituições privadas,
terapia de quem está se formando que inventam, cada uma de seu jeito,
não possa fazer parte de um curso formas de ensino e de aprovação e
universitário. Como seria avaliada, reprovação compatíveis com este
com que notas? E quem garantiria a estranho currículo, no centro do qual
absoluta confidencialidade das coisas está a coragem do candidato que se
ditas? Qual seria a qualidade da questiona radicalmente, em sua
relação terapêutica, se ela for, ao terapia ou análise.
mesmo tempo, uma espécie de Anos atrás, o governo italiano foi
exame? pressionado pela classe médica a
Mas e o estudo dos textos, por que regulamentar a profissão de
não seria responsabilidade de um psicoterapeuta. A idéia dos médicos e
curso universitário? psiquiatras que pediam essa
legislação era definir oficialmente a
56 psicoterapia como ato médico,
podendo ser praticado legitimamente
só por

57
doutores em medicina. Com isso, os
psicólogos e demais terapeutas não-
médicos estariam sob tutela, ou seja,
pagariam para os médicos xidade em liberdade. A perda, a meu
supervisões obrigatórias, O governo ver, seria maior do que o ganho.
achou a proposta boa, examinou a
questão e chegou à seguinte Alguém me lembrará que vários
conclusão: nem médicos psiquiatras institutos e formação psicanalítica
nem psicólogos recebem uma não são doutrinários; ao contrário,
formação acadêmica que possa ser eles cultivam a pluralidade.
considerada suficiente para exercer a Concordo, e são os institutos que
psicoterapia sem constituir perigo prefiro. Mas a liberdade da qual falo
para a saúde mental do cidadão. A vai além disso. Por exemplo, acho
dita formação é administrada por que um pouco de formação em
instituições privadas de várias terapia cognitiva ou sistêmica seria
orientações. Portanto, foi constituído útil para um psicoterapeuta
um conselho das instituições motivacional. A grande maioria de
estabelecidas e reconhecidas, e esse meus colegas psicanalistas achará
conselho decide quem é habilitado ao que essa afirmação é um disparate.
exercício da psicoterapia. Alguns, se eu fosse membro de sua
O governo italiano agiu de maneira instituição, levariam o caso ao comitê
certa. Contudo, minha preferência é central para que tomasse
para a situação que vige hoje no providências. Parênteses: não é
Brasil e na maioria dos países, em disparate nenhum; de fato, como
que a prática da psicoterapia não é aquela personagem de Molière que
regulamentada. Claro, para quem falava em prosa e não sabia, até um
procura um psicoterapeuta, seria psicanalista purista age como
simpático que um carimbo oficial terapeuta cognitivo várias vezes por
garantisse que o terapeuta foi dia, só que não sabe.
formado por uma instituição
reconhecida. O problema é que isso Mas voltemos ao essencial desta
implicaria que cada terapeuta se carta.
formasse inteiramente numa única
instituição, da qual seria membro Imagino que, nesta altura, você
carimbado. Sumiriam na ilegalidade, observe: se a formação acontece
portanto, os numerosos terapeutas e depois da faculdade, em instituições
analistas, digamos assim, privadas, por que deveríamos
independentes, sem carteirinha de escolher ou privilegiar a formação
um partido só. acadêmica em psiquiatria ou
Formações unívocas, ligadas à psicologia? Se eu quiser me tornar
doutrina de uma instituição só, psicoterapeuta e estiver ainda na
ganhariam em rigor, mas perderiam hora do vestibular, por que não
em comple- escolheria qualquer faculdade que,
quem sabe, me interesse mais? Sei
58
lá, filosofia, direito, história ou ou de psiquiatria.
matemática? As que são invocadas mais
freqüentemente são também as
59 menos importantes. Concernem a
experiências e
saberes que poderão fazer falta na
sua formação de psicoterapeuta, mas
que ambos, experiências e saberes,
poderão ser encontrados de outro
jeito.

60
De fato, quase todas as instituições
privadas que formam psicoterapeutas
aceitam candidatos que não são nem
psicólogos nem psiquiatras.

Mas meu conselho é o seguinte: se


você decidir se tornar psicoterapeuta
já no meio de sua vida, e sua
formação acadêmica for diferente de
psiquiatria e psicologia, não volte ao
vestibular e aos bancos da Por exemplo, é indispensável que um
universidade; simplesmente, comece psicoterapeuta tenha instrumentos
sua formação na instituição de sua diagnósticos para não confundir, se
escolha. Não ser psiquiatra nem possível, uma amnésia histérica com
psicólogo não constitui um o começo de uma arteriosclerose ou
impedimento decisivo. de um Alzheimer e para se lembrar
Mas, se você estiver decidindo se que uma depressão pode ser o efeito
tornar psicoterapeuta na hora de de uma insuficiência de hormônio da
escolher sua faculdade, escolha sem tireóide. Na suspeita, é bom
hesitar ou psicologia ou medicina e encaminhar o paciente para um
psiquiatria. check-up neurológico, vascular e
endocrinológico.
Pois seria errado pensar que, na
formação de um psicoterapeuta, os É também indispensável que um
currículos acadêmicos de psiquiatria psicoterapeuta tenha um
e psicologia não adiantariam nada. conhecimento dos princípios ativos
Certo, só uma parte pequena do que dos remédios psicotrópicos mais
você aprende na faculdade lhe será comuns, pois, embora ele não
de alguma ajuda no seu trabalho prescreva, lidará, em muitas
futuro. Certo, sua formação efetiva ocasiões, com pacientes que
começará, provavelmente, depois da precisam de medicação ou já estão
faculdade. Mas, mesmo assim, há sendo medicados. É importante poder
algumas boas razões para não colaborar com o psiquiatra que
desprezar os estudos de psicologia prescreverá, assim como é
importante distinguir o efeito Meu caso é uma boa ilustração.
medicamentoso das mudanças que Minha graduação, em Genebra, foi
nada têm a ver com esse efeito. entre filosofia e epistemologia (teoria
É útil que um psicoterapeuta conheça do conhecimento). Isso me tornou
os princípios diagnósticos do Manual psicólogo o suficiente para poder,
Estatístico Diagnóstico adotado pela mais tarde, completar um doutorado
Organização Mundial da Saúde. Num em psicopatologia clínica. Mas, de
mundo em que se viaja muito, não é fato, em minha graduação (em
raro que a gente receba pacientes Genebra, quando Piaget ainda
que carregam consigo diagnósticos ensinava), só me interessei em
dos quais é bom entender como entender como se constituem, no
foram estabelecidos e o que eles desenvolvimento humano, as
significam. E não é raro que a gente operações mentais graças às quais
deva encaminhar um paciente para conseguimos pensar. O que aprendi
um psiquiatra desconhecido num país seria de grande ajuda se, hoje, eu
onde não há terapeutas da mesma fosse psicólogo escolar; saberia
orientação que a nossa. Você não diagnosticar anomalias e atrasos
cognitivos. Mas, na faculdade, meu
61 treinamento clínico foi nulo. Ou seja,
quando decidi me consagrar à clínica,
não tinha passado por nenhum
estágio, não conhecia o DSM nem

62

acha? Pois é, se um dia um paciente


seu apresentar um surto agitado num
hotel de Cingapura, tente explicar por
telefone a um residente em
psiquiatria local que seu paciente não
é psicótico. Logo constatará que o
DSM pode ser de grande ajuda.
Também é necessário, a meu ver, os princípios ativos dos remédios
que um psicoterapeuta passe por psicotrópicos etc. Em suma, não
uma experiência efetiva e consistente preenchia nenhum dos requisitos
com pacientes psicóticos e, se quenencionei antes e que constituem
possível, com toxicômanos. Os o pano de fundo garantido pelo
estágios clínicos universitários ensino de psiquiatria ou de psicologia
respondem a essa necessidade. clínica.
Agora, esses saberes e essas O que eu fiz? Organizei um grupo
experiências podem ser adquiridos com alguns amigos, e pedimos a um
sem passar pelas faculdades de psiquiatra de boa formação em
psicologia ou de medicina e biopsiquiatria que ele nos desse aula
psiquiatria. durante um ano. Inicialmente,
esnobei o DSM, pois essa era a universitário, em geral, forma-se só e
moda em Paris, mas recuperei o exclusiva mente na orientação
tempo perdido mais tarde e voltei ao específica da instituição que
DSM ainda muito recentemente, escolheu.
quando, praticando nos Estados Por exemplo, minha formação foi na
Unidos, tive de preencher École Freudienne de Paris, a escola
sistematicamente formulários fundada e dirigida porJacques Lacan.
diagnósticos para o seguro saúde de Por graça divina (e vontade de Lacan,
meus pacientes. sem dúvida), era considerado crucial
Muito cedo em minha formação, tive ler a obra de Freud até cansar. Salvo
a sorte de ser admitido para as devidas exceções e as
freqüentar as presentações de curiosidades pessoais de alguns, o
pacientes psicóticos que Jacques clima geral sugeria que, para a
Lacan oferecia semanalmente no psicanálise anglo-saxã, por exemplo,
hospital Sainte Anne. E inventei era suficiente conhecer chavões
minha própria residência: críticos e palavras de ordem irônicas.
me apressei a conseguir trabalho no Depois da morte de Lacan, a coisa
Instituto Médico- Educativo que piorou. Cada vez mais, lacaniano só
mencionei em minha primeira carta. lê Lacan.
Lá, aprendi, por exemplo, que
autismo e psicose não são bem a Você pergunta: qual é o problema?À
mesma coisa e também que abuso, primeira vista, poderíamos pensar
abandono e desamparo social, que é melhor assim; afinal, o
sobretudo para uma criança ou um terapeuta aprende mais da orientação
adolescente, podem se confundir com que sustentará sua prática, ou seja,
a deterioração e o sofrimento aprende mais do que importa, não é?
psíquicos mais profundos. Pode ser. Acontece que, de fato,
medindo cuidadosamente as
Em suma, batalhei um pouco, mas palavras, uma formação policiada
não foi impossível compensar uma para ficar circunscrita a uma prática
formação acadêmica não-clínica. só e ao ensino que lhe corresponde
está levando gerações de terapeutas
63 e analistas a valorizar não o
compromisso com os pacientes, mas
a reprodução e a preservação da
doutrina na qual se formaram.

64

Ora, há uma outra razão que torna o


currículo de psicologia clínica ou de
psiquiatria interessante para um
psicoterapeuta. É esta razão que me
parece, hoje, a mais importante:
quem não passa pelo ensino clínico
A orientação terapêutica na qual você de psicoterapia e de psicanálise
se formou ou está se formando, como se fossem parentes próximos.
minha jovem amiga, nãoé uma Aliás, eles julgarão curioso que um
ideologia, nem uma fé na qual seria psicanalista escreva “Cartas a um
preciso que você acreditasse, nem jovem terapeuta”.
uma espécie de dívida que você @@ Em princípio, eles certamente
contraiu com seus mestres e que a reconhecem que a psicanálise é a
forçaria a se fazer seu repetidor e matriz mais importante de qualquer
arauto fiel. terapia que opere com as motivações
Nisso, uma formação acadêmica de conscientes e inconscientes de quem
psicólogo ou psiquiatra pode ser de sofre. Mas não aceitam de jeito
grande auxílio. Apesar da nenhum que a psicanálise seja uma
multiplicação de departamentos psicoterapia; recusam a idéia de que
vigiados por obediências teóricas, a o psicanalista se proponha a curar, de
variedade do ensino universitário uma maneira ou de outra, o
ajuda a levar a sério a frase famosa sofrimento de seus pacientes.
de Aristóteles (apenas modificada): Na origem dessa recusa, que é, à
“Platão é meu amigo, mas meus primeira vista, um pouco
pacientes são mais amigos ainda”. surpreendente, há algumas reservas
bem justificadas quanto aos efeitos
Abç. da vontade e da pressa de curar.
Essas reservas são úteis para o
psicoterapeuta.
65
Freud, por exemplo, recomendava
que os psicanalistas não tivessem
pressa de curar. Por quê?
Em muitos casos, o paciente nos
consulta por um problema bem
definido: um medo específico, uma
6 ejaculação precoce, um pensamento
obsessivo ou mesmo uma
CURAR OU Não CURAR encruzilhada da vida em que lhe é
difícil tomar uma decisão. Às vezes,
aliás, ele já pensou bastante no
assunto e nos dá sua própria
explicação para o que lhe acontece.

69

Cara amiga,
Você vai ter dificuldade em acreditar,
mas é assim: um bom número de
meus colegas psicanalistas achará
estranho que, nestas cartas, eu fale
Se o terapeuta estiver com pressa de
agir, acreditará que a queixa
apresentada (com a explicação que a
acompanha) diz mesmo o essencial
do que atormenta o paciente. E
tentará imediatamente combater o
sintoma ou ajudar na solução do
dilema. Claro, escutava com calma a
exposição dos dilemas e de suas
razões, mas me guardava da pressa.
@@ Neste caso, quase sempre, o
À força de perguntas, encorajava-os
sintoma e o dilema apenas se
a voltar no tempo. Não era fácil, pois
deslocarão, migrarão alhures, pois o
a reação imediata era de impaciência:
sofrimento psíquico é como a
“Tudo bem, vou falar daquela viagem
massinha de modelar de nossa
ao Canadá quando era criança, tudo
infância; você não a quer num
isso é bem bonito e interessante, mas
determinado quartinho da casa de
eu devo decidir agora, você
boneca, empurra com força,
entende?”.
consegue deslocá-la, mas ela não
Ora, quase sem exceções, o dilema
sumiu, apenas se insinuou pelas
do momento, por mais imperativo e
frestas e reaparece no quarto ao
efetivo que fosse, era o herdeiro de
lado.
conflitos mais antigos, que, quase
Um exemplo. Nos últimos anos,
sempre, tinham sido ilusoriamente
atendi pacientes brasileiros que
resolvidos pela própria saída do
viviam em Nova York. Muitos vinham
Brasil. Era a necessidade de realizar
me ver com um problema “só”:
um desejo fracassado dos pais
queriam decidir se voltariam para
(impressionante quantas crianças
casa ou ficariam nos Estados Unidos.
nascidas ou concebidas durante o
Chegavam com verdadeiras listas de
doutorado do pai ou da mãe nos
argumentos contrapostos que
Estados Unidos se perguntam um dia
acabavam num empate que os
por que diabo acabaram emigrando).
imobilizava. Também estavam com
Era a necessidade de repetir o gesto
pressa: renovo o visto ou não
mítico do ancestral que foi embora de
renovo? E o contrato de aluguel, que
algum país europeu para o
acaba daqui a seis meses?
Brasil(maneira de reivindicar para si a
Era grande a tentação de tomá-los ao
suprema autoridade simbólica da
pé da letra e, ajudá-los a decidir,
família, mas a que preço?). Eram as
pesando de novo os argumentos,
mil faces do eterno conflito de
acrescentando outros que, quem
qualquer adolescente tardio, dividido
sabe, eles não tivessem contemplado
entre o desejo paterno de que ele dê
e, sobretudo, jogando na balança o
prova de sua autonomia e o desejo
peso de um conselho que, justo ou
(também paterno) de que ele fique
errado, teria a vantagem de tirá-los
perto de casa, no abraço quente dos
de uma hesitação excruciante.
seus. Havia filhas que precisavam
demonstrar coragem e autonomias
70 muito “machas”, para competir com
os irmãos; caçulas que sonhavam em
ser o o estado em que um sujeito se
permite realizar suas potencialidades,
71 ou seja, o

72

filho pródigo da parábola; filhos mais


velhos que só se sentiriam legítimos
se conquistassem sua primogenitura
na marra. Havia sujeitos só capazes
de amar e ser amados à distância. E
estado em que nada impede que
por aí vai.
alguém viva plenamente o que lhe é
O fato é que a pressa de curar e
possível nos limites impostos por sua
decidir teria sido péssima
história e sua constituição. Se a
conselheira. Meus pacientes, de volta
normalidade for definida assim, ela
ao Brasil ou estabelecidos de vez em
pode perfeitamente ser o alvo de
Nova York, tanto faz, teriam
nossas curas.
certamente encarado, algum dia, uma
Quanto à idéia de que curar seria
nova forma do mesmo dilema não
levar de volta um sujeito ao estado
resolvido, tão angustiante quanto.
anterior à doença, é óbvio que uma
O preceito de não se apressar é
psicoterapia não funciona nunca
quase equivalente à recomendação
como a extirpação cirúrgica de um
médica segundo a qual nem sempre
cisto ou como a exterminação de uma
é bom suprimir os sintomas antes que
bactéria, atos que devolveriam o
a doença se declare. Não há nada,
corpo a seu estado anterior.
nessa desconfiança da pressa, que
seja um privilégio da psicanálise e
ainda menos que livre a psicanálise @@ Uma psicoterapia é uma
da tarefa de curar(claro, sem que a experiência que transforma; pode-se
pressa atropele a cura). sair dela sem o sofrimento do qual a
Um outro argumento para desconfiar gente se queixava inicialmente, mas
da idéia de que a psicanálise seria ao custo de uma mudança. Na saída,
uma forma de terapia é o seguinte: as não somos os mesmos sem dor;
definições tradicionais do que é curar somos outros, diferentes.
dizem que curar significa restabelecer Em suma, os argumentos
a normalidade funcional ou, então, apresentados até aqui nos encorajam
levar o sujeito de volta a seu estado a redefinir o que é a cura que pode
anterior à doença. ser esperada de uma psicoterapia e
@@ Nesta altura, você já sabe que a sugerem que, justamente para curar
psicanálise (e a mesma coisa vale direito, o psicoterapeuta não deve se
para qualquer psicoterapia) não tem, apressar. Nada, nesses argumentos,
nem quer ter, uma noção explicaria um divórcio necessário
preestabelecida de normalidade. Ou entre psicanálise e psicoterapia.
melhor, nosso ideal de normalidade é @@ De onde vem, então, o
estranhamento de meus colegas? Por um honesto psicanalista milanês,
que a psicanálise não seria uma Enzo Morpurgo, apresentou o caso
terapia? Por que a idéia de curar o de uma paciente. Não me lembro dos
sofrimento psíquico se tornou objeto detalhes do caso, mas lembro da
do escárnio de muitos psicanalistas? discussão:
Há, primeiro, uma razão histórica. A @@ o público quase linchou o
coisa começou no fim dos anos 60, conferencista porque o tratamento
época triunfante da contracultura que ele apresentava havia melhorado
a condição de sua paciente. A palavra
73 “adaptação” voava no ar como o
último xingamento.

@@ Curar significava permitir que


um paciente estivesse melhor,
portanto que ele perdesse seu
potencial de revolta, ficasse mais
resignado e complacente

americana e do espírito do maio 74


francês, em que a crítica e a revolta
eram o único sinal verdadeiramente
aceitável de “saúde” mental.

@@ Naqueles anos, nasceu o


movimento antipsiquiátrico. Era o
projeto de esvaziar os asilos, onde
apodreciam legiões de pacientes de
quem se esperava apenas que se com a realidade política e social do
tornassem crônicos e momento. Quem curava traía a causa
permanecessem presos para não do proletariado e da revolução. Quem
atrapalhar a vida dos outros. Era curava levava seu paciente a
também a idéia de que os “loucos”, esquecer-se de que ninguém deve
uma vez liberados, poderiam se salvar-se sozinho.
tornar uma força revolucionária que @@ O pobre analista milanês, enfim,
transformaria a vida de todos. Melhor, para proteger-se dos tomates verbais
ao se tornarem revolucionários, eles que choviam no palco, acrescentou
de uma certa forma estariam curados: um epílogo (verdadeiro ou
o engajamento político seria sua improvisado, nunca saberemos) à
terapia final. exposição do caso. Declarou: “Mas
Em 69, se me lembro direito, eu aconteceu algo que devemos
estava na platéia (e um pouco na considerar. Quando a paciente veio
organização, pois servia de tradutor) me ver, ela era membro do Partido
do primeiro congresso “Psicanálise e Comunista Italiano” (que era, na
Política”, em Milão. Perdido entre as época, considerado desprezivelmente
estrelas (Deleuze, Guattari, Giovanni rosa-claro, reformista e traidor).
Jervis da equipe de Basaglia etc.), “Quando a análise terminou”,
continuou o analista, “ela deixou o atrás da qual nossa cultura
partido e entrou no Manifesto”. O individualista e liberal força todos a
Manifesto era uma dissidência crítica correr, mas é certo também que o
e revolucionária do partido; só para sonho só é uma cenoura eficaz à
entender, é como se um condição que seja entretida uma
psicoterapeuta dissesse, no Brasil de insatisfação permanente com nosso
hoje, que seu paciente saiu do PT e destino. Ou seja, é preciso não ser
foi fundar um partido com Babá e feliz para correr atrás da felicidade e
Luciana Genro. de seus substitutos. O culto da
Hoje, esse episódio parece cômico e inquietude inconformada e
estranhamente distante. As coisas angustiada é tão essencial ao
mudaram, provavelmente para funcionamento de uma sociedade
melhor: liberal quanto o sonho de felicidade.
não acredito que haja um psicanalista Mas, enfim, esses eram (e ainda são)
ou um psicoterapeuta que, mesmo os tempos.
coagido por uma platéia enfurecida, Para entender as origens da
alegaria a mudança de partido de resistência à idéia de uma cura
uma paciente como prova da psíquica, é bom levar em conta ainda
excelência dos resultados de sua outros fatores. Por exemplo, os
prática. intelectuais europeus (sobretudo
@@ Mas algo daquela época italianos e franceses) dos anos 70
permaneceu, no mínimo, até os anos descobriram os sociólogos (e
90. O quê? A idéia de que a psicossociólogos) da escola de
pretensão de curar-se, Frankfurt. Na verdade, enquanto os
italianos liam (pois quase tudo era
75 traduzido do alemão para o italiano),
os franceses confiavam na segun-
76

de ser um pouco mais “feliz”, seria só


uma idiotice vendida pela propaganda
de iogurte, carros e cartão de crédito, mão (pois as traduções francesas
um sonho de consumo feito para nos chegaram bem mais tarde); com isso,
distrair do que importa. Nisso, a dessa não—leitura, sobraram aos
rebeldia nascida nos anos 60 reata franceses os chavões, o maior deles
com a tradição romântica do século sendo a convicção férrea e abstrata
XIX, glorificando a inquietude, a de que uma das raízes do mal é a
angústia e mesmo o sofrimento cultura de massa. Qualquer coisa que
psíquico como provas de vitalidade agradasse ao grande número devia
subjetiva. ser reprovável; portanto, se o grande
Nota à margem. É um estranho número, quando está mal, quer ser
paradoxo: é bem possível que o curado, é porque o grande número
sonho de felicidade seja a cenoura está sendo enganado pela cultura de
massa. crescia o número de jovens que
Com isso, as vanguardas da época tinham acesso ao ensino universitário
viviam um paradoxo extremo: — efeito de desenvolvimento, do
queriam ser populares e sonhavam bem-estar e, mais tarde, também de
com a aliança de estudantes e governos satisfeitos com a idéia de
proletários, mas praticavam atrasar por quatro ou cinco anos a
propositalmente um elitismo chegada ao mercado de trabalho de
exacerbado, que lhes parecia a única jovens que seriam, sem isso,
reação contra a “burrice” da cultura desempregados no fim do
de massa (ou seja, contra tudo o que secundário. Obviamente, a geração
pensavam as próprias massas com rebelde era seduzida pelas ciências
as quais as vanguardas queriam humanas: as faculdades de
aliar-se). sociologia e psicologia estavam
Talvez esse quadro ajude a entender abarrotadas.
por que a psicanálise francesa dos Ora, nos anos 70 e 80, os
anos 60 e 70 (na qual me formei e psicanalistas americanos, por
que teve uma grande influência direta exemplo, queixavam-se de uma
e indireta no Brasil dos anos 80) diminuição do número de pacientes e
desconfiava da idéia de que a de candidatos e explicavam a penúria
psicanálise fosse uma terapia e por pelo fato de que talvez a psicanálise
que ela produziu um corpo teórico de clássica fosse uma cura longa e
acesso dificílimo, quase críptico e trabalhosa demais. No entanto, na
curiosamente afastado do dia-a-dia Europa (de fato, sobretudo na França
da clínica. e na Itália) assistia-se a uma difusão
A psicanálise francesa daqueles anos sem precedentes da prática
era, em suma, (permita-me a ironia) psicanalítica e a uma acelerada
perfeitamente adaptada à sua época, reprodução de analistas. Claro, nos
cultivando o exoterismo de sua cafés de Paris, comentava-se que a
doutrina e preferindo apre- psicanálise americana se ferrava por
seu próprio empirismo adaptador, ou
77 seja, por não entender que “na
verdade” o povo não quer adaptação,
o povo quer revolução e complicação.

Talvez seja melhor não acreditar nos


cafés de Paris e considerar que o
sucesso de mercado da psicanálise
fran-
78
sentar-se como uma experiência mais
iniciática do que terapêutica, mais
para os adeptos do que para os
pacientes.
No meio desse clima, produzia-se um
outro fenômeno. A partir dos anos 60,
cesa daquela época (e,
especificamente, do ensino de
jacques Lacan) foi o fruto de uma
extraordinária adequação ao
momento. Uma geração revoltada,
apaixonada pelas ciências humanas
e ameaçada de desemprego estava
entregue a furores abstratos; a
psicanálise francesa respondeu Meu caro amigo,
perfeitamente ao mal-estar dessa Respondo a uma preocupação que
geração. Na próxima carta, tentarei você manifestou depois de minha
lhe mostrar como isso se deu e com terceira carta. Você escreveu:
quais conseqüências (que, em parte, “Receber um primeiro paciente é fácil;
ainda duram). fazer que o consultório da gente
Desta vez, basta-me ter exposto o cresça e se torne viável é uma outra
clima que predispunha a psicanálise história, não é?”.
francesa dos anos 70 a considerar a Por sorte, para responder, terei de
idéia de curar como anátema. completar a história que comecei na
Aliás, desde aquela época, há meios última carta.
psicanalíticos em que a palavra Em 1974, acredito, um pouco antes
“paciente” é malvista. Paciente é o que começasse a atender, fui visitar
chato que se queixa e quer ser Christian Simatos, que era o
curado, enquanto quem faz análise é secretário da École Freudienne de
“analisando” ou “analisante”, não Paris (secretário, neste caso, não
paciente, pois ele deve esperar designa um emprego administrativo,
análise e não cura. mas um cargo essencial no
@@ Você deve ter notado que penso funcionamento da instituição,
diferente. A psicanálise me interessa ocupado por um psicanalista).
por sua capacidade de transformar as Tratava-se de formalizar minha
vidas e atenuar a dor. candidatura ao estatuto de membro
Se tenho uma reserva diante da da Écolee de anunciar que eu me
palavra “paciente”, é porque espero aprestava a receber pacientes. Fiz
que todos sejamos impacientes com meu pedido e apresentei meu
o sofrimento desnecessário que, currículo (com nome do analista,
eventualmente, estraga nossos dias. tempo de análise, grupos de estudos
dos quais eu participava etc.), que
79 seria exami- nado na próxima reunião
da direção. Depois disso,
conversamos um bom momento.
No decorrer desse papo amigável,
perguntei a Simatos o que ele achava
7 que eu deveria fazer para que alguém
me encaminhasse pacientes, de
maneira que pudesse começar minha
O que fazer para ter mais pacientes?
atividade. Sabia que a École não ti-

83
nha uma política de encaminhamento
para os jovens analistas (só nos rentes etc.), é preciso, no mínimo,
últimos anos, foi instituído um comitê que as pessoas saibam que você
responsável para receber os pedidos existe.
de análise e terapia que chegavam
diretamente à instituição; esse Entretanto, no contexto daqueles
pequeno comitê encaminhava os anos, a resposta assumia um sentido
pedidos a membros da instituição, um pouco diferente.
mas segundo os critérios escolhidos
pelos analistas que compunham o Lembra-se da última carta? Pois é, na
comitê, não segundo uma política época, contribuir ao exercício e à
formal). Pensava também que talvez doutrina da psicanálise parecia mais
essa ausência de política de importante do que curar pacientes.
encaminhamento fosse proposital, Isso fazia com que, para cada um, a
uma espécie de seleção social, uma relação com os colegas da École,
última prova depois da formação; com os outros analistas, fosse mais
afinal, ser psicanalista é um ofício relevante do que a relação com a
liberal, e uma certa capacidade social cidade e, em geral, com o resto da
de inspirar confiança e receber sociedade.
demandas poderia ser considerada
como um requisito de qualquer Conseqüência disso: todo o mundo
profissão liberal. Essa idéia, embora parecia convencido de que, assim
nada explícita, ressurgia, na vida da como as batatas vêm da terra, os
instituição, na hora de os membros pacientes só vêm de outros analistas
serem designados com o título de e terapeutas mais abastados.
“analista membro”. Não havia Portanto, fazer-se conhecer não
candidatura para isso; o que contava, significava ganhar a confiança de
de fato, quem está na primeira linha de
era ter durado ao menos dez anos na embate com o sofrimento cotidiano (o
prática clínica, daro, sem fazer padre da igreja, o quiroprático, o
estragos. médico de família ou mesmo os
Enfim, coloquei a pergunta, e Simatos vizinhos do prédio); significava impor
me respondeu: respeito aos colegas da instituição.
“Faites-vous connaTtre”, faça-se Na mesma linha, mostrar que a gente
conhecer. Era uma resposta de bom era digno de confiança não
senso; sobretudo se você começa a significava dar provas práticas da
trabalhar capacidade de ajudar pacientes,
numa cidade que não é sua de significava dar prova de uma
origem (na qual talvez você tivesse “excelência” teórica que
uma rede de amigos, colegas desde “impressionaria” os colegas.
o primário, pa-
84 Quem seguisse o conselho que eu
acabava de receber e quisesse “se
fazer conhecer” não pensava, por
exemplo, em uma disciplina, e sim como esforços
para conquistar um espaço mais
85 ensolarado na hierarquia (imaginária
ou real) da instituição. Eram como a
roupa da semana da moda de São
Paulo ou do Rio:

86

conseguir trabalho num dispensário


público de saúde mental, onde se
mostraria capaz de lidar com a
demanda de quem sofre e pede ajuda fashion para dar lustre à marca,
sem salamaleques (ou seja, sem a vestimenta só para a passarela, não
reverência garantida de quem já para usar.
saberia que a psicanálise era uma De fato, na história de poucas
aventura especial reservada aos disciplinas houve uma proliferação de
entendidos). produção, digamos, teórica tão
Naquela época, quem se dispusesse intensa como na psicanálise francesa
a seguir o conselho de Simatos, ao desde 1970. Multiplicavam-se as
contrário, pensava em outras coisas. revistas e as séries editoriais. Depois
Pensava em dar prova de da dissolução da École Freudienne,
extraordinários brilho, inteligência e quando Lacan estava se apagando, a
saber num seminário fechado entre comunidade fragmentou-se, não tanto
analistas (conseqüência paradoxal por diferenças na interpretação da
disso: nos seminários, falava-se obra ou no entendimento da
pouco, pois o risco de perder pontos psicanálise. Ela se fragmentou como
parecia maior do que a chance de se fragmentaria um exército em que
garïhá-los). Pensava em conseguir todos achassem vital ser generais.
apresentar uma comunicação num Cem grupos permitem a existência de
congresso ou numa jornada de cem chefes de escola (por pequena
trabalho da École, mesmo que fosse que cada uma seja); com cem
às 8 da manhã na sala D. Pensava escolas, há mil membros de
em publicar a dita comunicação ou, diretorias, 2 mil analistas
então, em publicar um artigo em encarregados de ensino e, sobretudo,
alguma revista. Ou, sonho supremo, cada grupo convocando deus e todo
pensava em escrever, um dia, um o mundo para seus congressos,
livro para a Éditions du Seuil. centenas de ocasiões de subir num
Mas, cuidado, em sua maioria, essas pódio.
intervenções e comunicações, esses Na vida das instituições desta época
artigos e livros não nasceriam (vamos fazer de conta que não seja
propriamente como contribuições a mais o caso), não havia temas que se
impusessem como questões comuns de achados sem conexão. Por que
e motivassem números especiais de um debate, posto que o propósito dos
revistas ou encontros. Havia, isso autores não era interpretar a dita
sim, a necessidade institucional de síndrome (ainda menos curá-la, Deus
garantir espaço a todos os membros nos livre disso), mas assinar uma
que se sentiam compelidos a tomar a interpretação suficientemente
palavra ou a caneta para “se fazer sofisticada para impressionar os
conhecer”. colegas?

87 88

A produção psicanalítica deste


período (com as exceções que são
sempre devidas, claro) é Havia uma outra razão para que não
fundamentalmente uma vasta e acontecesse debate nem acumulação
desordenada máquina de de saber. Não era raro que,
propaganda. E, à diferença do que continuando o mesmo exemplo,
acontecia nos começos da nenhum dos autores das
psicanálise, quando se tratava de interpretações opostas tivesse sequer
estabelecer a legitimidade da visto um paciente com síndrome de
disciplina, o objeto da propaganda Tourette. É certo que o racionalismo
deste período não era a psicanálise, tradicional da cultura francesa
eram as instituições (as marcas) e as alimenta a ilusão de que a verdade
pessoas (os modelos). surgiria “à la Descartes, ou seja, não
Conseqüência e prova disso: essa do exame dos fatos, mas por pureza
produção surpreendentemente lógica de deduções abstratas. Mas é
exuberante não tinha nenhum efeito mais certo ainda que o imperativo de
acumulativo. Alguém podia escrever e ganhar visibilidade empurrava
publicar hoje uma interpretação especificamente os psicanalistas
sofisticadíssima de um sintoma menos experientes a escrever,
extremamente raro, sei lá, síndrome comunicar e ensinar.
de Tourette com tique do olho Tenho uma certa birra daquela época,
esquerdo e palavrões em chinês. pois me parece que vi alguns dos
Pois bem, amanhã outra pessoa melhores cérebros de minha geração,
escreveria e publicaria outra não agonizantes na sarjeta, como
interpretação sofisticadíssima da escreveu um grande poeta da
mesma síndrome, só que contracultura, Allen Ginsberg, mas
absolutamente oposta à anterior. perdidos em elucubrações sem
Nem por isso haveria debate ou diálogo e sem relação com a
acumulação de um saber. Citações gravidade e a seriedade de suas
do trabalho anterior, nem pensar. As práticas.
idéias se sucediam como num desfile
Quem lia essa massa de livros e tornar analistas? Afinal, o número não
artigos? Quem escutava o murmúrio devia ser imenso, não é?
incessante de seminários e
comunicações? De certa forma, Pois é, a solução veio do próprio
ninguém. Em regra, lia-se para ensino de Lacan. Cer tamente não foi
adquirir o código comum e colocar uma sacação maquiavélica. Uma
em dia o ranking dos analistas. Além idéia de
disso, lia-se só para cima, numa Lacan, nos anos 60, criou as
espécie de pirâmide. As sumidades condições para que a pirâmide
eram perfeitos autodidatas, só liam o se constituísse e também para que a
que eles mesmos escreviam; os que psicanálise francesa,
estavam embaixo deles só liam durante ao menos duas décadas, não
conhecesse dificuldade de clientela e,
89 sobretudo, de pedidos de formação.

Aconteceu assim. Lacan se


perguntava o que seria o fim de uma
análise, ou seja, como definir uma
análise pro-
as sumidades, e por aí vai, descendo 90
até a massa dos jovens que eram o
embasamento e a sustentação (entre
outros, financeira) da pirâmide, pois a
necessidade de “fazer-se conhecer”
os levava a pagar seu ingresso em
todos os congressos, comprar todos
os livros e todas as revistas. priamente terminada. Sua resposta
foi a seguinte: o fim de uma análise
De qualquer forma, não é de (diferentemente de uma interrupção)
estranhar que as contribuições não não é o esgotamento dos assuntos, o
fossem levadas a sério, pois, de fato, sumiço dos sintomas, o fim das
em sua maioria, não eram escritas queixas ou coisa que o valha. O fim
para divulgar idéias. de uma análise propriamente dito
seria uma experiência radical
Você poderia me perguntar: mas, produzida pelo próprio processo
falando em finanças, como uma tal analítico.
quantidade e diversidade de editoras Pouco importa aqui examinar como
deficitárias, de congressos Lacan entendia essa experiência e o
dispendiosos, de locais alugados por processo que a ela levaria. Mas,
instituições que pagavam descrita em termos psicológicos e
funcionários, imprimiam programas muito simples (que ele teria
etc., como tudo isso podia ser detestado), seria a experiência de
sustentado só pela presença e pela que não somos grande coisa e, em
leitura assídua e fiel dos jovens particular, não somos a única coisa
médicos e psicólogos que queriam se que falta para que o mundo seja
perfeito e para que a nossa mãe seja
feliz. Isso parece (e é) uma coisa fácil alguns de meus pacientes.
de saber e mesmo de admitir, mas Até aqui, tudo bem O problema é
uma experiência efetiva dessa que, à sua descrição do fim de
superfluidade de nossa existência é análise, Lacan acrescentou uma
uma outra história. Nesse momento observação que teve conseqüências
propriamente sociais. Ele notou que
final, o sujeito vivenciaria, essa experiência produzia, nos
logicamente, uma espécie de sujeitos que a atravessavam, uma
desamparo depressivo, mas também qualidade analítica, uma disposição,
uma extrema liberação. Por que digamos
liberação? Pois é, o que mais nos faz assim, a exercer a função de
sofrer talvez seja justamente a psicanalista. Com os poucos
relevância excessiva que atribuímos elementos de descrição psicológica
à nossa presença no mundo, pois da experiência que acabo de
essa relevância é a pedra de esboçar, já dá para entender o
fundação de todas nossas obstinadas porquê. Para lidar corretamente com
repetições, é graças a ela que o sofrimento dos outros, não é
insistimos em ser sempre “iguais a necessário ser “normais” nem é
nós mesmos” (sendo que, no caso, preciso estarmos curados de nossas
essa expressão não tem um sentido neuroses, mas seria bem-vindo que a
positivo). gente não se tomasse pelo ouro do
mundo. Você deve lembrar, por
91 exem-
92

plo que já mais de uma vez, em


nossa correspondência, lhe apontei
Há boas razões para se pensar que, alguns problemas da prática de quem
uma vez essa experiência feita, a acredita que sua presença deveria
gente possa passar a viajar pela vida bastar para fazer cada paciente feliz.
carregando malas um pouco mais Em geral, esse terapeuta casa com
leves. Ou seja, seríamos capazes de uma série de pacientes ou mantém
largar os sintomas que nos devastam todos numa eterna dependência ou,
e que, obviamente, adoramos a tal terceira possibilidade1 faz os dois.
ponto que não conseguimos desistir Ora, a observação de Lacan levou
deles. Em suma; essa experiência todo mundo às conclusões seguintes:
conclusiva teria um valor terapêutico. 1) só seria analista mesmo quem
A questão do fim de análise é de passasse pela experiência do fim de
grande interesse clínico. Eu mesmo análise, 2) passar pelo fim de análise
escrevi meu primeiro livro de seria o supra-sumo do que é preciso
psicanálise, no começo dos anos 80, para tornar-se psicanalista.
para tentar entender se e como essa As conseqüências são previsíveis.
experiência tinha acontecido para Para a psicanálise na França (e em
boa parte do mundo), elas foram das fundações do narcisismo; essa
devastadoras, embora experiência foi entendida como a
paradoxalmente positivas para o porta de acesso ao prestígio da
mercado da psicanálise. Aconteceu o profissão desejada. O momento em
seguinte. que eu realizasse a experiência de
Os que estavam se formando que não sou nada seria o momento
entenderam que deveriam em que finalmente conseguiria
necessariamente ir até o fim de suas seralguma coisa ou mesmo alguém.
análises. Mas a dita experiência não Acredito que a experiência que Lacan
é um evento pontual que seja tentou descrever existisse mesmo.
reconhecível porque, de repente, se Agora, é de se perguntar se ela não
acenderia uma luz verde. Tanto o se tornou impossível a partir do
paciente quanto seu analista momento em que passou a prometer,
poderão, eventual- mente, entender como prêmio, justamente uma
oposteriorique uma experiência identificação, uma certeza narcisista:
daquele tipo aconteceu, mas nenhum cheguei, enfim, sou analista!
dos dois poderá certificá-la na hora Naqueles anos, teria sido possível
em que ela se der (se é que se trata escrever uma espécie de etiqueta
de uma hora e não, como é bem mais para quem quisesse mostrar ao
provável, de um processo tortuoso). mundo que havia atravessado a
experiência do fim de análise (e,
93 “portanto”, era analista). Era bom,
claro, mostrar-se sempre

94

Por conseqüência, as análises de


quem estava se formando tornaram-
se infinitas, eternamente suspensas à
questão insolúvel: será que cheguei
deprimido, evitar com desdém
lá ou ainda não? O cúmulo é que,
qualquer conversa fútil (e qual não
desta forma, uma experiência que
é?), tomar a palavra só transmitindo a
devia implicar um certo
impressão de que a gente está se
desprendimento era procurada como
forçando a falar, pois, na verdade,
se fosse o ponto G do gozo. Ou seja,
como todos podem ver, não é?, tomar
a observação de Lacan (mal
a palavra parece agora uma jactância
interpretada?) fazia com que, no
e por aí vai. Uma série de caretas e
momento de largar suas malas mais
posturas quase cômicas.
pesadas, os pacientes em formação
Já é meio estranho escutar alguém
as trocassem por um enorme baú.
esbofando-se a contragosto para
Em outras palavras ainda, Lacan
anunciar que sabe que ele é só um
descreve uma possível experiência
objeto inútile descartável. Agora,
de (saudável, embora doloroso) abalo
quando esse alguém está esbofando- psicanálise se afastou ainda mais do
se num palco, diante de 800 pessoas projeto terapêutico; a idéia de que
que pagaram algo como R$50 para curar fosse acessório, senão
escutá-lo esbofar, está na hora de rir. supérfluo, além de ser um trejeito
Seja como for, do ponto de vista do ideológico da contracultura, tornou-se
mercado da psicanálise, essa um fato estabelecido pela própria
transformação de uma hipotética finalidade da análise. A experiência
experiência num carimbo de do fim de análise: era para isso que a
autorização (e, reciprocamente, do análise servia. Que, ao longo do
carimbo numa hipotética e enigmática caminho, a gente pudesse curar uma
experiência) foi ótima, pois manteve gastrite, uma obsessão ou uma
durante anos deitados no divã incapacidade de amar, isso era coisa
pacientes em formação, que, sem para a espécie inferior dos
isso, já estariam correndo pelas ruas. psicoterapeutas.
Mas há mais. A idéia de que qualquer Na verdade, seria possível dizer que
análise terminada seria o essencial a psicanálise não se afastou de um
de uma formação (termine a análise e projeto terapêutico; apenas passou a
tornar-se-á analista), uma vez propor a todos, como cura, a chance
vulgarizada, transformou todos os de tornar-se psicanalista. Com isso,
pacientes, ou quase todos, em aliás, curou suas próprias finanças e
candidatos potenciais. Com os efeitos qualquer crise de clientela.
seguintes: 1) a grande massa dos Ironia da história: Lacan avançara
pacientes veio engrossar a base da seu entendimento do fim da análise
pirâmide que mencionei também para polemizar com a idéia
de que o fim de uma análise seria
95 uma identificação com o

96

antes, freqüentando congressos,


seminários e colóquios, comprando
revistas e livros, pagando as analista, que é de fato uma idéia
mensalidades das instituições etc.; 2) suspeita: “você estará bem, quando
começar uma análise tornou-se mais ficar parecido comigo”. Ora, tudo na
tentador: mesmo que não acredite mesma, com o fim da análise como
que essa coisa possa melhorar minha passaporte para transitar do divã para
vida, curando meus sintomas, será a poltrona.
que não a melhorarei achando enfim O prognóstico dessa história não é
uma profissão? (lembre-se das bom. Uma prática e uma disciplina
massas de estudantes de humanas têm seus dias contados se perdem o
prometidos ao desemprego); 3) a rumo de sua utilidade social para se
preocuparem apenas com sua própria por que não, resolvida. Ou, mais
reprodução. A base da pirâmide, geralmente, seu primeiro
passado o entusiasmo inicial, só pode compromisso é com a comunidade na
descobrir que não lhe foi dada qual você presta serviços. E o
formação alguma; apenas lhe foram compromisso é de prestar o melhor
transmitidos os tiques, os anseios e a serviço possível.
ilusão de uma militância Talvez uma comparação resuma
esperançosa. A promessa do bem- melhor. O destino da União Soviética
estar foi substituída pela promessa de teria sido diferente se os
entrar no clube, de ganhar status e bolcheviques se lembrassem que seu
trabalho. E, dessa promessa, só se compromisso não era com o partido
realizou (se é que se realizou) a nem com Lenin nem com a teoria
primeira parte. Quem acreditou na marxista, mas com o povo russo.
promessa ganhou os encargos do Ajudou?
clube, o dever de pagar a Contei-lhe essa história para chegar à
mensalidade, sem qualquer benefício. resposta que eu lhe daria, hoje, se
Entretanto, a longo prazo, a massa você me perguntasse o que, na
de cidadãos, que não são seduzidos época, eu perguntei a Simatos: “O
por essa promessa, acabará se que fazer para que mais pacientes
perguntando por que diabo levaria as cheguem até meu consultório?”.
queixas de sua vida a quem parece Diria: “Para estabelecer sua clínica,
se importar sobretudo em produzir vale esta máxima:
adeptos. Para isso, bastam as igrejas se seu compromisso for com os
evangélicas, não é? pacientes, não se preocupe, eles vão
Enfim, essa história contém lições acabar sabendo”.
que podem servaliosas para você, Abç.
especificamente na hora em que se
pergunta como estabelecer sua 98
clínica.

97

BILHETE
Você observa que, às vezes, lendo
textos psicanalíticos dos anos 70 e 80
Seu primeiro compromisso não é com (hoje a coisa tende a melhorar), não é
“a psicanálise” ou “a psicoterapia”, simples fazer a diferença entre uma
nem com Freud, Melanie Klein, Lacan contribuição valiosa e um exercício
ou qualquer outro chefe de escola, de autopromoção; o estilo pode ser o
nem com a instituição na qual você mesmo: inutilmente torto,
se formou. propositalmente incompreensível.
Seu primeiro compromisso é com as Como não confundir?
pessoas que confiam em você e Não sei. A verdade é que a
trazem para seu consultório uma obscuridade desses textos me afasta
queixa que pede para ser escutada e, por razões propriamente clínicas.
Os textos psicanalíticos obscuros são eles exigiram de mim, é bom que o
geralmente concebidos para produzir texto prometa um conteúdo de
e alimentar amores de transferência. riqueza equivalente (o que é raro). Se
Funciona assim: se você não entende não for o caso, passo adiante.
bulhufas, é que meu texto diz coisas Fora isso, há momentos em que um
que você não quer saber; deve tratar sólido senso de humor pode ser
de coisas que têm tudo a ver com salutar para evitar as armadilhas
você. Portanto, quanto menos você transferenciais da obscuridade.
entende, tanto mais você pode e No ano passado, em Boston, Estados
deve me idealizar e me amar como Unidos, fui escutar, com um amigo e
detentor de uma verdade sua que colega americano, um professor
você desconhece e que eu conheço. universitário inglês que proferia uma
Numa terapia ou numa análise, conferência supostamente de teoria
espera-se que, um dia, a idealização psicanalítica de inspiração francesa.
do terapeuta acabe. Espera-se No fim de uma incompreensível
também que o terapeuta queira que sucessão de afirmações sem
isso aconteça. referência empírica, destacando as
No caso dos textos obscuros, parece palavras para marcar a extrema
que seus autores preferem manter os dramaticidade da questão conclusiva
leitores e admiradores boquiabertos de
para sempre. Pois escrevem não
para transmitir o que sabem (a 100
revelação liquidaria a idealização
cega), mas para serem idealizados.

99

Só uma consolação: sempre chega


um dia em que o truque pára de sua exposição, o palestrante
funcionar e parece evidente que, perguntou: “Será que a pulsão se
quando você não entende, é porque o curva?”.
autor não tem grande coisa para dizer E deixou o silêncio compenetrar o
ou, mesmo que tenha algo para dizer, momento solene.
prefere preservar sua aura de Meu amigo americano observou
mistério a transmitir o que sabe. Em discretamente: “É uma questão muito
ambos os casos, provavelmente não interessante, mas, ultimamente, o
vale a pena se esforçar. que tem me ocupado mesmo é outra
Sou um leitor obstinado. Os textos questão: quantos anjos você acha
com os quais mais penei foram a que cabem na cabeça de um
Fenomenologia do espírito, de Hegel, alfinete?”. Sério, comentei: “Depende,
e os Escritos, de Lacan (um ano para anjos em pé ou sentados?”.
cada um, a tempo pleno). Eles me Fomos tomados por um acesso de
servem de referência: quando o riso incontrolável. O curioso é que o
esforço de leitura se aproxima do que auditório, embora ninguém tivesse
ouvido nossa troca bem-humorada, Você me pergunta se, no começo de
foi contagiado e aliviado por nossa uma cura, é bom dar alguma
hilaridade. indicação ao paciente ou mesmo
O conferencista ainda deve estar se explicitar algumas regras. Sei que
perguntando o que há com estes você está pensando, por exemplo, no
americanos, que, em vez de aplaudir, que se chama, em psicanálise, a
caem na gargalhada. E, regra da associação livre. Algo assim:
provavelmente, está contando para “Aqui, você deve poder falar
seus amigos que ele verificou livremente de tudo o que lhe ocorrer,
pessoalmente o que todos já sabem: mesmo e sobretudo se a coisa lhe
os americanos são refratários à parecer fútil, sem medo de falar
psicanálise. besteiras e exercendo o mínimo de
censura possível; pode falar de
Abç. sonhos, fantasias, pensamentos
101 estranhos, lembranças
aparentemente sem importância etc.:
tudo o que passar pela sua cabeça
nos interessa.” (É importante que a
regra, se for dita, não seja recitada
como uma reza que a gente
8
conheceria de cor e repetiria sempre
do mesmo jeito; melhor improvisar de
QUESTÕES PRÁTICAS cada vez, como acabo de fazer.)

O pressuposto que justifica essa


regra é o seguinte: no que a gente
fala, opera uma lógica interna, que
nós não

105

Minha jovem colega,

Vou tentar responder numa só carta


aos vários bilhetes que você me
mandou na semana passada. São
questões que, quase sempre, embora percebemos. Quanto menor nossa
sejam objetos de reflexões teóricas intervenção na escolha e na
complexas (às vezes, inutilmente organização do que falamos, tanto
complexas), merecem ser resolvidas mais essa lógica interna poderá nos
com uma dose certa de bom senso. levar a dizer coisas inesperadas por
nós mesmos, a descobrir algo que
REGRAS estava em nossos pensamentos sem
que soubéssemos.
Alguns analistas e terapeutas imprevistas.
enunciam essa regra no começo de Então, formular ou não a regra
cada cura e a repetem regularmente, fundamental? Não perca muito tempo
para que o paciente não se perca, por debruçando-se sobre essa questão.
exemplo, em meandros de Decida você também “livremente”, ou
explicações e elaborações seja, explicite a regra quando lhe
preparadas de antemão. parecer importante ajudar o paciente
Outros analistas e terapeutas notam a ultrapassar seu pudor, sua vontade
(com razão) que a dita lógica se de se mostrar inteligente ou sua
impõe de qualquer forma na fala de necessidade de construir explicações
nós todos, mesmo quando fazemos o racionais. Mas cuide disto: enunciar a
possível para controlar nossas regra deve servir para autorizar o
palavras. Aliás, geralmente, é logo paciente a falar, não para obrigá-lo a
quando tentamos policiar falar do que você quer ouvir. É
cuidadosamente nosso discurso que possível se esconder de si mesmo
podemos cometer um lapso por trás de racionalizações e
revelador. assuntos preparados. Mas é possível
Além disso, a experiência mostra o também se esconder por trás de
seguinte: quase sempre, mesmo o associações quase poéticas, que
paciente mais prevenido, que anotou pulam de palavra em palavra.
seus tópicos por medo de perder seu Agora, há duas outras regras que o
tempo ou de não ter nada para dizer, próprio Freud considerava com
acaba sendo levado, no decorrer da simpatia e que, um pouco
sessão, a falar de coisas que ele não esquecidas, talvez mereçam sua
previu. atenção.
Um detalhe: se um paciente chegar A primeira quase ninguém mais usa.
de papel na mão, decidido a ler o que Ela pede ao paciente que, durante
preparou, e se isso deixar você sua análise ou terapia, evite tomar
incomodado, você poderá pedir para decisões cruciais e irreversíveis na
ele guardar o papel e falar condução de sua vida. Não é só
“espontaneamente”, pois certamente porque as melhores decisões seriam
ele deve se lembrar dos temas que tomadas no fim (quer dizer, quando,
previu tratar. presumivelmente, as motivações e os
conflitos estariam em cima da mesa).
106 É também porque o tratamento agita
fortes emoções e talvez não seja uma
boa idéia tomar grandes decisões sob
esse impacto.

107

Agora, lembre-se do seguinte: de


A regra é sábia, mas encontra dois
qualquer forma, as palavras sempre
problemas: 1) hoje, as curas tendem
levarão seu paciente por terras
a durar muito tempo, e pedir que
alguém suspenda, por assim dizer,
sua vida durante anos parece
impossível e injusto, seria pedir muita
paciência ao paciente; 2) é freqaente
que alguém recorra a um analista ou
terapeuta para conseguir tomar uma
decisão difícil, mudar de emprego,
separar-se, casar-se, adotar uma suplementar de lidar com as
criança, emigrar e por aí vai. Esse resistências de seus próximos; 2) A
tipo de paciente nos consulta porque outra razão para fazer valer a regra
se sente paralisado pela incerteza: do silêncio concerne mais
faço ou não faço? Não seria especificamente aos casais. Acontece
que os membros de um casal
recorrem, separadamente, a analistas
curioso pedir-lhe que se engaje a não
ou terapeutas distintos. Às vezes, o
decidir nada, ou seja,
casal está em crise, ambos desejam
ou declaram desejar que a relação
a persistir na hesitação da qual se continue, e cada um espera
queixa? justamente que o outro mude um
A segunda regra é também um pouco pouco graças à terapia.
esquecida, mas, É banal, nesses casos, que as curas
a meu ver, injustamente. Ela pede se tornem o objeto favorito da
que o paciente se comprometa a não conversa familiar: “O que disse hoje o
falar de sua terapia com os seus seu psi?”, “E o que disse a sua?”.
próximos, Pois é, quase sempre, olhe só que
familiares e amigos. Há ao menos coincidência, o que disse o terapeuta
duas razões que justifica o uso dessa de um membro do casal vale como
regra. 1) Muitos amigos ou parentes uma acusação feita ao outro e vice-
pode hostilizar a cura de um paciente, versa. A paz projetada se transforma
porque receiam numa guerra familiar combatida por
(com razão, aliás) que o tratamento terapeutas interpostos, com as
modifique a relação interpretações e intervenções dos
que o paciente mantém com eles. terapeutas servindo como armas. “O
Como cada relação é um meu disse que você ainda não
encaixe em que convivem, mais ou entendeu que a sua família é esta,
menos harmoniosa mente as não a casa de sua mãe.” “Ah, é?
neuroses de todos os interessados, é Engraçado, porque a minha disse que
claro que você passa o tempo todo me
mexer num dos elos significa criticando para preservar a imagem
atrapalhar a vida de todos. de seu pai.” E por aí vai.
Ora, já não é fácil, para o paciente, Pena, pois, se ambos ficassem
encontrar coragem de mexer em sua calados, as palavras dos terapeutas
própria vida; parece melhor evitar a poderiam mesmo surtir o efeito que
tarefa ambos declaram desejar.

108 109
Para começar, há pacientes que não
agüentam a idéia de falar sem ver a
cara de quem escuta e há pacientes
que,

110
SETTING

Você me escreve que nunca sabe


direito por que, quando e como
propor a um paciente que deite no
divã e por que, quando e como deixar
ou pedir que ele continue sentado na
sua frente. ao contrário, não agüentam encontrar
o olhar de seu terapeuta. Por mais
Sobre essa questão, há uma vasta que essas intolerânciaspossam lhe
bibliografia. Não vou resumir parecer sintomáticas, forçar a barra
argumentos teóricos que você já não tem sentido. A imposição de um
conhece ou que pode facilmente ler e setting não vai curar ninguém, e seu
meditar. propósito não é colocar condições
que dificultem a relação terapêutica,
Uma coisa é certa: há análises de mas permitir que o paciente se
formação de psicanalistas famosos e engaje na cura.
reconhecidos que se deram
inteiramente no face a face. Ninguém Além disso, leve em conta suas
sabe por quê, nem os analistas que próprias exigências. Durante muitos
se formaram sentados e talvez nem anos, em São Paulo, eu atendi meus
os analistas que os analisaram pacientes de maneira concentrada,
sentados. A coisa, aparentemente, pois permanecia na cidade pouco
não foi decidida por alguma razão mais de uma semana por mês. Aos
clínica argumentada. poucos, fui deixando que muitas
Eu me formei deitado, mas, em análises acontecessem face a face.
compensação, meu analista preferia Quando me dei conta e me perguntei
me falar no fim da sessão, no face a por que eu não estava mais
face, quando eu acabava de me convidando meus pacientes em
levantar. Então, talvez tenha-me análise a se deitar no divã, descobri o
formado em pé. seguinte: no fundo, gostava de tê-los
na minha frente porque queria
Minha sugestão é a seguinte: claro, guardar uma lembrança visual de
leia e cogite sobre essa questão, mas seus rostos durante os tempos de
leve em conta que, como disse o separação. E supunha, claro, que o
próprio Freud, talvez a decisão possa mesmo valesse para eles.
depender simplesmente de uma
Alguns colegas poderiam me dizer
questão de conforto, seu e de seu
que essa idéia é cretina, pois o que
paciente.
importa numa análise não são as
caras e as caretas, mas as palavras. carro, dirigindo, pegando-os de
Concordo sem discutir, mas repito: carona.
não tenho nem procuro argumentos 3) Lembre-se também de que nem o
teóricos, apenas sentia a exigência paciente nem o terapeuta estão
de me lembrar bem das caras de presos no divã ou na poltrona por
quem contava comigo. E não estou parafuso
convencido de que essa exigência
me servisse para ocultar ou esquecer 112
as palavras.

111
algum. Um paciente deitado há tempo
pode decidir um dia que há algo que
ele quer dizer olho no olho.
4) Pode acontecer que manter e
impor o setting prescrito por sua
Na contramão dessa exigência, situa- formação se torne, um dia, para você,
se o cansaço produzido por uma uma espécie de condição, do tipo: se
série de sessões face a face. Nem esta paciente não deitar no divã, não
todos os analistas ou terapeutas haverá análise possível. Essa rigidez
agüentam passar o dia expostos a surge, em geral, com um ou outro
uma sucessão de olhares paciente específico. Bom, se isso
escrutadores, que, inevitavelmente, acontecer, considere a possibilidade
tentam ler ou adivinhar, na cara do de que você esteja transformando
terapeuta, um sinal de aprovação e sua poltrona numa fortificação militar
simpatia ou, então, de rechaço e e então pergunte-se por quê.
ironia. ENTREVISTAS PRELIMINARES
Enfim, nesta matéria, quatro Você quer saber quais são as
conselhos: perguntas que coloco e me coloco
1) Aja de maneira que sua escolha durante os primeiros encontros com
não seja forçada. Nenhum paciente um paciente. Isso, é claro, além das
gostaria de perceber que seu que ajudam o paciente a contar sua
terapeuta, no consultório, obedece a história e suas dores e nos ajudam a
formas estabelecidas, sem construir e construir um primeiro esboço do
propor seu próprio espaço. problema.
2) Lembre-se de que, em última De fato há, sim, duas perguntas, que
instância, o setting não é condição sempre surgem.
nem garantia de nada. Uma análise 1) A primeira coloco para mim
ou uma terapia acontecem pelas mesmo, na hora de concluir, no fim
palavras trocadas e pelas relações das primeiras entrevistas. Pergunto-
que elas organizam, não pelas me se, neste caso, eu poderia ser de
disposições dos traseiros dos algum auxílio.
interessados. Durante a ditadura Não há quadros patológicos que eu
militar, na Argentina, mais de um recuse apriori, e há poucos casos em
analista se dispunha a encontrar seus que encontro o limite do que agüento
pacientes na clandestinidade, no
113 114

No fundo, acho que a sensação de


uma aliança possível me vem do
escutar (deste tipo de limite já lhe mesmo tipo de consonâncias (nem
falei em minha primeira carta, sempre ponderáveis) que decidem,
lembra?). por exemplo, que, ao encontrar
A pergunta que acabo de mencionar alguém pela primeira vez, sabemos
introduz um outro critério. Digamos se poderia ou não ser nosso amigo.
assim: prefiro me engajar com É provavelmente uma questão de
pacientes com quem me parece pequenos traços, que parecem sem
possível estabelecer uma aliança. importância. Um exemplo de pequeno
Não quero me engajar na cura de um traço?
paciente que não possa acolher, no A voz. Há vozes que gosto e outras
dia de sua sessão, com um pouco de que me incomodam. Não sei bem por
entusiasmo. quê. Imagino que nossa relação com
A idéia de uma aliança do terapeuta a modulação da voz seja o resto de
com o paciente foi muito criticada. algo muito antigo (o ouvido é um
Entende-se por quê: numa aliança, sentido que se desenvolve
nada prova que não sejamos aliados plenamente já no ventre materno).
justamente dos sintomas do paciente. Talvez cada um de nós guarde uma
Concordo, mas é possível imaginar estranha mixagem de músicas e
uma aliança diferente; é possível ser ruídos intra-uterinos, cânticos de
o aliado do desejo do paciente contra ninar, conversas familiares etc., que
as razões pelas quais ele se impede ficam para sempre ligados a uma
de desejar. certa sensação de bem-estar. E
Enfim, o que importa aqui é de onde talvez exista em nós uma outra
me vem a sensação de uma aliança mixagem, que seria a coluna sonora
possível. do desamparo e da cólica.
Sei, por certo, que ela não depende O fato é que um terapeuta ou analista
de alguma similitude de história, não é indiferente às vozes dos
sintoma ou fantasia. Nunca me pacientes; é bom render-se a essa
incomoda, por exemplo, que as evidência. Não vejo por que deixaria
fantasias sexuais de um paciente que um paciente tivesse de lutar, em
sejam muito distantes das minhas ou sua terapia, contra meu desagrado
mesmo que elas me pareçam um auditivo. Claro, o problema inverso
pouco repulsivas. Nos anos 80, fui, também existe: há vozes que
por exemplo, o último recurso de um encantam, e não é bem-vindo escutar
paciente coprófago, que comia um paciente como se escuta uma
seus excrementos quase a cada dia e música.
que não conseguia encontrar um
terapeuta em que a repugnância não 115
falasse alto demais.
Outro caso ainda são as vozes que são de que o paciente diria assim, de
adormecem. O sono do terapeuta é repente e às claras, seu desejo
geralmente interpretado como uma recôndito. Ao contrário, a resposta,
vontade de não escutar, uma defesa. em geral, manifesta sobretudo por
Mas Roland Barthes, que, quais caminhos o paciente está bem
obviamente, falava bastante em decidido a obstaculizar seu desejo.
público, me fez um dia esta Por exemplo, “espero que você me
confidência: nas suas palestras, nada ajude a me separar deste homem”
lhe dava uma satisfação maior, ele pode significar “amo este homem, e
me disse, do que constatar que não há catástrofe pior na minha vida
alguém na platéia dormia do que a separação que me espreita,
profundamente. Ele não achava nem mas disso não quero nem ouvir falar,
um instante que o sono de seu viu?”.
ouvinte fosse prova de desprezo. Ao Em suma, nada prova que o
contrário, pensava o seguinte: quem terapeuta deva adotar a esperança
prestava atenção recompensava os declarada do paciente como se fosse
frutos de sua inteligência, mas quem o alvo de seu trabalho. Então, por
dormia demonstrava uma aceitação e que a pergunta?
uma simpatia mais profunda; quem Nos últimos anos, praticando nos
dormia não gostava tanto da Estados Unidos, lidei com a
abstração de suas idéias quanto da necessidade de preencher
concretude física de sua voz. Em regularmente balanços e
suma, Barthes se sentia lisonjeado prognósticos dos tratamentos para as
quando conseguia adormecer um de companhias de seguro de meus
seus ouvintes. Talvez o sono do pacientes. Essa chatice burocrática
terapeuta seja também, às vezes, o teve um efeito interessante: fui levado
fruto da sedução exercida pela voz do a me perguntar, a cada três ou quatro
paciente. meses: O que mudou? Qual foi o
Bom, seja como for, melhor não caminho percorrido? Onde estamos
dormir. agora? É diferente de onde
2) A outra pergunta que coloco nas estávamos no começo?
entrevistas preliminares é para o Pois bem, descobri que uma maneira
paciente. É uma pergunta que de medir o andamento de uma cura
comecei a fazer só recentemente: consiste em repetir, regularmente,
quero saber o que o paciente espera aquela pergunta inicial. Pois é
da terapia que começa. freqüente que a resposta do paciente
É óbvio que não confundo o que ele mude, que ele passe a esperar de
declara esperar com o que ele quer sua terapia algo diferente do que ele
mesmo. A pergunta não é feita na ilu- esperava no começo. Quer seja
(sejamos otimistas) porque se
116 aproximou do que ele deseja

117
mesmo e consegue pedi-lo (a si Na verdade, hoje, acho que a
mesmo, ao terapeuta e à vida), quer psicoterapia e a análise talvez sejam
seja porque achou novos caminhos, mais próximas de um terceiro
talvez menos penosos, de organizar modelo, o de muitas terapias do
sua fuga do que ele quer. corpo. A cada vez, a postura é
De qualquer forma, a mudança da corrigida, a coluna estalada, os
resposta me orienta. músculos relaxados, mas um
A DURAÇÃO DA SESSÃO resultado que não seja apenas um
Você me pergunta qual é a duração alívio temporário pede uma série
de uma sessão. Mal posso lhe dizer indefinida de repetições. Do ponto de
quanto dura, mais ou menos, uma vista do tempo, é um modelo
sessão comigo. intermediário: a cada vez, leva um
Numa época, parecia-me que a tempo variável (que depende dos
duração das sessões fosse uma músculos e ossos interessados, de
questão crucial, da qual dependiam o quanto o paciente agüenta naquele
alcance e o sentido da cura. dia etc.).
De fato, a maneira de medir o tempo Mas não estou mais disposto a fazer
da sessão revela modelos desta questão o cavalo de uma
terapêuticos diferentes. batalha teórica. Conheço pessoas
A sessão com tempo fixo, 45 ou 50 que parecem ter-se beneficiado
minutos batidos por algum relógio, bastante de uma terapia e outras
supõe um modelo radiológico, um para quem a experiência,
pouco como se a cura dependesse aparentemente, foi sem
do número de horas de exposição do conseqüência: a duração das
paciente ao terapeuta. sessões não parece ter sido um fator
A sessão com tempo variável supõe decisivo no sucesso ou insucesso
um modelo mais próximo da prática das curas.
médica ou cirúrgica. Se você está Minha formação foi, como já lhe
deitado numa cama de operação disse, na École Freudienne de Paris,
enquanto lhe retiram o apêndice a escola de Lacan; as sessões
inflamado, você quer que a coisa leve variáveis e breves eram um dogma
o tempo (ao qual, aliás, nem todo o mundo
necessário e, se, por sorte, a obedecia, a começar pelo meu
intervenção for rápida, você não analista).
despertará da anestesia para Durante anos, trabalhei com sessões
protestar, acusando o cirurgião de breves das quais apreciava a tensão
não dedicar mais tempo à sua e o sentimento de urgência, que
barriga. matavam a preguiça da escuta e
excluíam rapidamente o papo furado.
118 Nos Estados Unidos, pratiquei
sessões de aproximadamente 50 Outro detalhe: acontece que me
minutos, conformando-me ao padrão atrase, não só porque às vezes uma
exigido sessão pode durar muito mais do que
o previsto, mas sobretudo porque
119 (como anuncio a meus pacientes)
tento ser disponível numa urgência.
Se um pacien-

120

pelos seguros americanos e descobri,


por exemplo, que o próprio
andamento da sessão, suas pausas,
recuos e avanços, é matéria de
interpretação. te, por alguma razão, quer me falar
Hoje, minha fórmula preferida é um de repente, naquele mesmo dia,
tempo variável, mas não breve. invento um horário.
Talvez, por temperamento ou pela Todos esses jeitos não constituem um
idade que avança, esteja apenas modelo e, de fato, não têm (não
escolhendo uma atitude intermediária quero que tenham) uma justificativa
e conciliatória. Mais provavelmente, teórica. Minha intenção, ao expô-los,
encontrei um ritmo que convém à não é sugerir que você os adote. Ao
minha atenção e à minha maneira de contrário, quero sobretudo encorajá-
escutar e intervir. Gosto de ter o la a inventar uma maneira de atender
tempo para que uma lembrança seja que seja a sua.
evocada e explorada e para que um PAGAMENTO
sonho seja analisado. Mas me Pois é, quem paga? Como?
reservo a possibilidade de Durante minha formação e quando
interromper a sessão quando um era jovem analista, em Paris, vigia a
pequeno ou grande achado poderia idéia de que uma terapia e, mais
ser anulado pela necessidade de ainda, uma análise deveriam ser
encher lingüiça para preencher o pagas pelo bolso do próprio paciente.
horário. Ouso de qualquerforma de seguro
Tenho um hábito que alguns parecia uma heresia fadada ao
pacientes estranham: fracasso: o acesso ao desejo da
não costumo atribuir horários gente, dizia-se sem hesitar, não é um
definitivos, prefiro marcar a cada vez direito social, é preciso conquistá-lo
ou quase. É um incômodo, certo, mas com sacrifício. Inventavam-se, aliás,
gosto de ser surpreendido pela artifícios extraordinários para que
pessoa que encontro na sala de também a prática com crianças e
espera. Evito, em suma, a rotina que adolescentes respeitasse o dogma.
transforma Fulano no paciente das 9 Claro, os pais pagavam, mas a
e Sicrana na paciente das 10. criança devia trazer a cada vez um
desenho; o adolescente levava o esforço de vir de longe é um sacrifício
cheque de 140 francos, e bem maior do que pagar o valor da
acrescentava 10 da sua mesada, e sessão.
por aí vai.
Pairavam sobre nós ameaças O engraçado é que, na França,
apavorantes: se seu paciente não quando a situação econômica
tirar o dinheiro do bolso, ele pagará apertava um pouco, os medalhões
com sua que nos ensinavam que o paciente
devia imperativamente pagar de seu
121
122

carne. No mínimo, o paciente que


recorresse ao seguro-saúde se
amputaria um dedo a cada noite na
hora de cortar o pão, e a culpa seria
nossa.
bolso (sem isso, ele nos ofereceria
Quem trabalhava em ambulatório ou
pedaços de sua carne) passavam a
em outras instituições públicas era
preencher e assinar alegremente os
considerado com suspeita; não eram
formulários do seguro-saúde de seus
verdadeiros terapeutas e ainda
pacientes.
menos analistas, pois, por mais que
Mais uma questão: é freqüente que o
eles se comportassem direitinho,
orçamento do paciente determine o
seus pacientes não pagavam. Ainda
número de sessões que ele poderá
hoje, há quem esnobe convênios sob
ter por semana. Pode pagar três?
o mesmo pretexto.
Não pode? Então duas. Não me
conformo com esse cálculo. A
Ora, quem trabalhou no serviço freqüência das sessões deveria
público sabe que nada disso é depender das necessidades da cura
verdadeiro. As resistências de um que, aliás, podem variar. Há
paciente a seu próprio tratamento não momentos (quer seja produtivos e
são vencidas pelo esforço de pagar. acelerados, quer seja de uma
Aliás, há pacientes para quem pagar viscosidade quase parada) em que
é uma boa desculpa: estou fazendo posso querer encontrar meu paciente
tudo o que preciso para melhorar, a cada dia; há outros momentos em
prova disso, estou pagando... que a cura parece precisar de um
tempo de suspensão ou de digestão.
Além disso, para um adolescente, por Às vezes, sonho com um sistema em
exemplo, ver a mãe ou o pai que o paciente pagaria uma
preenchendo um cheque pode ser um mensalidade fixa, e o número de
“pagamento” bem mais pesado do sessões do mês seria variável,
que dedicar à terapia uma parte de segundo o que pedem a cura e seu
sua mesada; para outro sujeito, o momento. Mas é uma utopia, claro.
SUPERVISOR
Quanto à escolha de um supervisor,
só duas indicações.
1) Sua supervisão não deveria custar
mais do que você ganha atendendo o
paciente cujo caso você decidiu
supervisionar.
123 Meu jovem colega,

Entendo sua preocupação com


fármacos e neurociências. Ao saber
que você é psicoterapeuta ou
psicanalista (além disso, jovem),
quase sempre haverá alguém que,
com uma espécie de comiseração,
perguntará se você não receia ter-se
2) Como reconhecer um bom engajado numa profissão sem futuro.
supervisor? É simples. A supervisão Afinal, acrescentarão, com os
não é uma aula de clínica ou de arte progressos da farmacologia e das
diagnóstica. Também não é a ocasião neurociências, quem vai precisar do
para o supervisor mostrar como e por transtorno de uma terapia, quando
que ele teria agido diferente de você. poderia regrar a questão com uma
A função da supervisão de um jovem pílula ou duas ou, quem sabe, no
terapeuta ou analista, salvo situações futuro, com uma pequena intervenção
catastróficas, deve ser autorizar o neurocirúrgica (laser, claro, ninguém
terapeuta, inspirar-lhe a confiança em gosta de bisturi na cabeça)?
seus próprios atos, sem a qual
nenhuma cura vai ser possível. Já lhe disse que, em regra, essas
Aliás, falando em confiança, eu observações “a mistosas” manifestam
queria que você deduzisse desta sobretudo o temor (imotivado) que é
pequena série de notas práticas só produzido por sua presença. São
uma regra: confiou a ponto de jeitos de seus comensais se
autorizar-se a atender, continue. protegerem de um saber que eles
mesmos lhe atribuem.
Abç.
Só vale a pena acrescentar o
seguinte: em regra, a disputa entre
psicoterapia ou psicanálise de um
lado e biopsiquiatria ou neurociências
09 do outro é uma falsa disputa. Na
minha experiência, quem alimenta
CONFLITOS INÚTEIS essa oposição não conhece quase
nada de psicoterapia ou psicanálise e
sabe ainda menos de farmacologia e
de neurociência.
Quem conhece os assuntos e pratica isso abre a possibilidade de agir
ou pesquisa numa das ditas sobre essas emoções.
disciplinas sabe que não há disputa Fico triste porque meu amigo morreu;
alguma, nem quem sabe no futuro exista um
inibidor da captação da serotonina de
127
128

de fato nem de princípio. Se uma


espécie de controvérsia ressurge ação imediata, e poderei engolir a
regularmente, isso se deve a duas seco uma pílula que, numa meia
razões: para a mídia, o tema é bom hora, permitirá que eu volte sorrir.
para um especial do domingo; para É óbvio que não terei agido sobre a
alguns interessados (as companhias causa de minha tristeza (meu amigo
farmacêuticas e alguns profissionais continua morto), mas, graças à
das três áreas), talvez funcione a descrição química de minha emoção,
idéia de que é preciso defender sua terei conseguido modificar meu
fatia de mercado. humor. A mesma coisa aconteceria
Deveria parar por aqui, mas, enfim, caso recorresse a um fármaco para
vou lhe dizer muito brevemente o que aliviar os efeitos maníacos de minha
respondo quando não tenho como lembrança de infância feliz.
mudar de mesa. A farmacopéia pode agir sobre a
Primeiro, a pretensa oposição entre causa de meu humor (e não apenas
psicoterapia e fármacos. sobre meu humor) quando meu
Sou materialista. Não acredito na humor não é só um estado químico
existência de humores que não sejam (este é sempre o caso), mas é
alterações químicas do meu cérebro. também de origem química. Por
Se alguém me xinga, se morre um exemplo, uma depressão produzida
amigo, se por acaso me lembro de por uma insuficiência da tireóide é um
um evento feliz de minha infância, as humor de origem química, que é,
emoções que me invadirão, boas ou portanto, propriamente curado em
ruins, podem, sempre e sua causa por um suplemento
legitimamente, ser descritas como hormonal correto.
fenômenos químicos que acontecem Esses casos são relativamente raros.
no meu cérebro. Aliás, são Mesmo as depressões ditas
fenômenos químicos. endógenas (ou seja, que não
Hoje, somos capazes de descrever parecem ser causadas por fatos
quimicamente algumas emoções, de externos à vida do paciente) são, em
uma maneira ainda incipiente, mas já geral, efeito de processos complexos
relativamente fina. É ótimo, porque de pensamentos e representações. O
que, de novo, não significa que não Aqui a idéia de um conflito é mais
sejam descritas adequadamente em engraçada ainda. Parece que os
termos químicos. próprios psicoterapeutas e
Ora, é óbvio para qualquer psicanalistas adoram encontrar nas
psicoterapeuta que, em muitas descrições neurocientíficas alguma
situações, é aconselhável tentar confirmação de suas hipóteses.
modificar o humor do paciente
quimicamente. Por exemplo, um Estaríamos todos esperando que
paciente de- alguém nos aponte onde está o
supereu, onde está o inconsciente.
129 Cadê minha mãe, cadê meu pai? Ou
então torcendo para que as descri-
130

primido a ponto de não sair da cama


e não abrir a boca também não terá a
mínima motivação necessária para ções da atividade neuronal nos digam
operar algumas mudanças em sua enfim o que é uma lembrança, o que
vida, com ou sem a ajuda de um é uma associação, como se impõe
terapeuta. Uma correção química do um pensamento obsessivo, como
nível de serotonina poderá, com um somos invadidos por uma fantasia
pouco de sorte, permitir que ele sexual etc.
encontre as forças para se mexer.
É bem possível que um dia as
neurociências correspondam a
Mas ninguém, com a exceção talvez nossas expectativas. O que será de
dos acionistas das companhias grandíssima ajuda na clínica de
farmacêuticas, sonha com um mundo lesões cerebrais e disfunções de todo
em que as causas de nossos afetos tipo etc.
seriam sistematicamente
negligenciadas e nossos humores
pacificados com uma contínua No entanto, os efeitos dessas
intervenção química capaz de impor descobertas sobre a prática da
ao cérebro um equilíbrio ideal. psicoterapia ou da psicanálise serão
mínimos, se não nulos. Porquê?
Porque a descrição neurocientífica de
Todos sabemos que, por mais que eu nossa atividade cerebral não altera
tome a pílula mágica na hora da nem um pouco as condições de
morte de meu amigo, algum dia terei nossa experiência. Um exemplo vai
de enfrentar a dor de um luto. A não logo explicar.
ser que decida viver para o resto de
minha vida sob anestesia.
Imagino que você não acredite na
existência de uma alma fora do corpo
Vamos às neurociências. e diferente dele. Você também sabe
que o corpo humano, com cérebro e sobre objetos diferentes. A conversa
tudo, é um complexo de células e entre essas descrições e essas
moléculas, sem contar os íons. Em clínicas é de grande interesse, mas é
particular, você sabe que somos tudo, salvo um conflito.
compostos de 70 a 75% de água.
Abç.
Agora, será que, em algum momento,
você se enxerga mesmo como 40 132
litros de água e uma espiral de DNA?
Claro que não. Sua experiência da
vida não é modificada por esse saber,
do qual você está justamente
convencido. Uma coisa é a descrição
Cara amiga,
científica de nós mesmos, outra coisa
Pelo que você me conta, seus
é nossa experiência.
primeiros pacientes falam sobretudo
do que lhes acontece hoje. Queixam-
131 se das dores do dia e,
eventualmente, da sensação de uma
certa falta de futuro. É você, com
suas perguntas, que tenta evocar o
passado, especialmente a infância.
Aliás, de vez em quando, leva uma
bronca, como daquele paciente que
lhe disse: “Olhe, eu não estou aqui
Se um dia alguém descobrir o
para falar de meus pais, de meus
eletrodo certo (e o lugar correto onde
irmãos e de meus primeiros anos no
aplicá-lo, claro) para que eu pare de
interior, meu problema é agora”.
pensar num acidente cuja lembrança
Claro, você não se deixa abalar e
não me deixa dormir, imaginemos
segue perguntando. Afinal, passou
que eu peça para ser livrado dessa
anos de formação aprendendo que,
lembrança. Ora, na hora da
para que a cura aconteça, é preciso
intervenção, mesmo que eu seja
tocar na raiz das dores de seus
neurocientista, minha experiência do
pacientes e que essa raiz, de uma
que estará sendo feito comigo será a
maneira ou de outra, está na infância.
experiência de uma mudança imposta
Mesmo assim, você se pergunta:
à minha subjetividade, não a meus
deveríamos sempre procurar na
neurônios. A descrição neuronal da
infância e só na infância as razões do
subjetividade não altera nossa
sofrimento psíquico, mesmo que
vivência subjetiva.
nosso paciente afirme o contrário? É
Procurar uma correspondência entre
certo insistir na evocação do passado
a sensação de que o olhar de Deus
diante de uma catástrofe atual? Às
paira sobre mim e uma repetida
vezes, você observa, “sinto-me um
agitação neuronal em alguma área do
pouco idiota: ‘Perdi o emprego e
meu cérebro é fútil.
estou desesperado’, anuncia o
Cada descrição introduz a
paciente, e eu faço o quê? Pergunto-
possibilidade de clínicas diferentes
lhe se lembra de quando o filho dos
vizinhos roubou o seu carrinho de todos são traidores que abandonam.
madeira? O que você acha?”. O funcionamento do trauma
Na verdade, não faço uma grande propriamente dito é o melhor
diferença entre acontecimentos da exemplo. Você sabe que a categoria
infância e acontecimentos da vida de “transtornos de estresse pós-
adulta (tam- traumático” foi proposta por
135 psiquiatras americanos que
trabalhavam com veteranos da guer-
136

ra do Vietnã. Eles constataram duas


bém não sei muito bem quando
coisas 1) a guerra do Vietnã produziu
começa a vida adulta). Explico
uma percentagem de veteranos
melhor: não estou nada certo de que
traumatizados muito maior do que
os acontecimentos da infância sejam
qualquer outra guerra americana
de uma natureza diferente do que nos
(Segunda Guerra Mundial, Guerra da
acontece hoje. Tampouco sei se é
Coréia); 2) os sintomas de estresse
verdade que, pela receptividade de
pós-traumáticos não apareciam logo
nossos primeiros anos, eles nos
após as situações extremas de
marcam com um ferro mais quente,
batalha; eles apareciam quase
que deixaria vestígios para a vida
sempre quando o veterano terminava
inteira.
seu tempo de serviço, voltava ao país
Mas uma coisa sei: qualquer evento
e deixava o exército.
nos marca e nos transforma só na
Concluíram assim:o caráter
repetição ou, melhor dito, num
traumático de um acontecimento não
segundo momento, em que ele é
depende de alguma qualidade
evocado, retomado, revivido. Por
específica da experiência vivida, mas
exemplo (fictício e obviamente
é um efeito de como, mais tarde,
simplificado), se eu fui abandonado
essa experiência pode ou não
na porta da igreja quando nené, esse
integrar uma história que faça sentido
evento por si só não tem uma
para o sujeito. Os veteranos da
implicação necessária em minha vida;
Guerra da Coréia e ainda mais os da
mas ele se torna decisivo no dia em
Segunda Guerra viveram situações
que, aos quinze anos, minha
tão horríveis quanto os combatentes
namorada some de uma festa para
do Vietnã, mas, ao voltar para casa,
onde fomos juntos de mãos dadas. É
eles encontraram multidões agitando
esse segundo evento que dá
bandeirinhas de boas-vindas. Os
destaque (consciente ou
veteranos do Vietnã voltaram para
inconsciente) ao primeiro. É a partir
um país indignado e envergonhado
desse segundo evento que,
com uma guerra que parecia não ter
eventualmente, começarei a viver
sentido para ninguém.
uma angústia desamparada cada vez
Um trauma é isso: um evento, mais
que estiver sozinho ou (também
ou menos difícil, que, num segundo
possível) a não tolerar a presença de
momento, não consegue ser
ninguém ao meu lado, pois “sei” que
integrado na história do sujeito. reinterpretar o passado, descobrir (ou
Outro exemplo. Será que um tapa na inventar) novos sentidos para o que
cara de uma criança constitui um aconteceu é quase sempre uma
trauma ou não? Não é possível res- maneira de mudar nosso presente.
Pois, no fim
137 138

dessa empreitada, sendo o resultado


de uma narração diferente, somos
mesmo diferentes.
Qualquer cura tem duas faces: uma,
ponder; ainda é preciso saber se, digamos assim, demolidora, que
mais tarde, o sujeito esbofeteado desfaz as certezas cristalizadas da
encontrará ou não argumentos para história que nos acua em sintomas
dar algum sentido ao dito tapa. Os que, à vista de nosso passado,
sentidos que podem ser encontrados parecem inelutáveis, e outra,
aposteriori são muitos; o nosso construtiva, que nos permite
sujeito, num segundo momento, reinventar ou modificar um pouco a
poderá entender o tapa como a história da qual seríamos o fruto.
expressão de uma autêntica vontade Talvez tenha conseguido explicar um
pedagógica de pais amorosos ou pouco por que a infância se torna
como a manifestação de uma importante no nosso trabalho. Não é
irritação que não tinha nada a ver porque os eventos da infância seriam
com ele ou do desespero de quem mais marcantes do que os de hoje,
não consegue ser pai ou mãe. O tapa mas porque os eventos de hoje
será propriamente um trauma caso o tomam relevância e sentido a partir
sujeito, num segundo momento, não dos de nosso passado e, portanto, de
encontre sentido algum para a nossa infância.
violência que o golpeou. Agora, cuidado: um dos traços
Mas não é a definição do trauma que evidentes de nossos tempos é que o
nos importa. Com esses exemplos, sentido do presente é procurado
queria apenas lhe mostrar que os muito mais no futuro do que no
fatos de nossas vidas agem em nós passado. Era inevitável: a
pela história em que se integram ou, modernidade define o sujeito não por
melhor, pela história em que sua herança, mas por suas
conseguimos ou não integrá-los. potencialidades. À primeira vista, é
Não que a vida seja um continuum. uma libertação: o passado não nos
Ao contrário, não é; reconstituir define mais com a mesma
(melhor dito, inventar) um sentido que veemência, os anseios de mudança
ligue podem salvar meu dia. De fato, a
o presente ao passado é uma obra libertação é apenas aparente: o futuro
incessante, que nos oferece um projeta sobre o presente uma sombra
conforto necessário, nos dá a tão escura quanto a que antigamente
sensação de que era projetada pelo passado.
atos e fatos se inserem numa história, Parece que saímos de uma cultura
num conjunto, que somos nós. Aliás, em que o passado nos impedia de
inventar o presente para entrar numa vidas.
cul-
140
139

Você se queixa também de que


alguns de seus pacientes parecem
considerar que todos os seus males
são, por assim dizer, resultados de
causas externas: perderam o
emprego e não encontram um que os
satisfaça; foram abandonados por
tura em que o futuro nos impede de suas esposas e esposos; carregam
saborear o que estamos vivendo. uma doença que os ameaça e os
É freqüente, por exemplo, que assola. Enfim, eles lhe propõem o
alguém recuse um namoro porque catálogo de todos os vasos de flores
“não sei no que vai dar”. O prazer que que um ser humano pode receber na
uma relação proporciona é preterido cabeça ao sair de casa.
porque duvidamos de seu futuro. Claro, você me escreve, deve ser
Mais um exemplo, que conheço bem, possível ajudá-los a agüentar melhor
por tê-lo encontrado em muitos os golpes do destino e mesmo a
pacientes e por ter passado perto de reagir com mais eficácia, mas, no
vivê-lo. Durante quase dez anos, vivi fundo, ao escutá-los, parece que
entre Nova York e São Paulo. O sofrem só da adversidade do mundo.
grande prazer de viver em duas Às vezes, você acha que sua
metrópoles entre as mais intervenção seria mais eficaz se você
interessantes do mundo podia ser se transformasse em casamenteira,
facilmente estragado pela agência de emprego ou orientadora
incumbência da escolha futura do profissional. Chega a suspeitar que
lugar onde fincaria pé na hora em que suas perguntas sejam desonestas,
parasse de viajar. como se elas supusessem sempre a
Enfim, para entender como e quanto responsabilidade de seu paciente e
o futuro pode parasitar o presente, como se essa suposição tivesse,
pergunte aos adolescentes. Em geral, como finalidade, a de convencer seu
eles não agüentam mais ser paciente da utilidade de recorrer aos
considerados sempre como seus serviços.
promessas de um futuro e vivem na Essa distinção entre eventos externos
impressão de que os adultos que e eventos internos, culpa da gente e
mais os amam desconsideram o culpa dos outros, alimenta um conflito
presente de suas vidas. infindável entre sociólogos e
Duas razões, então, para que psicoterapeutas ou, às vezes, entre
façamos o esforço de evocar o psicólogos sociais e psicólogos
passado, em cada cura: para clínicos. No ringue, parece que se
reinventar o sentido de uma história e enfrentam dois lutadores; de um lado,
para amenizar o peso do futuro, os que
devolvendo assim, quem sabe, seu
justo lugar ao presente de nossas 141
pação na peça será, sim, nossa
singularidade, mas uma singularidade
feita de valores, obrigações,
censuras, repressões e desejos que
são os mesmos que agitam os outros
acham que a personalidade e os
espectadores, os quais aplaudem,
sintomas são frutos da cultura, do
riem, choram ou vaiam conosco.
emaranhado das relações e dos
Também considere (esse é um
acidentes da vida, do outro, os que
conselho clínico) que existe uma
acham que personalidade e sintomas
ampla gama de transformações da
são frutos da dinâmica interna de
personalidade que são propriamente
impulsões, desejos e censuras que
ditadas pela situação coletiva na qual
se originariam no fundo singular da
um sujeito se encontra.
alma.
Por exemplo, a mudança de cultura
É um enfrentamento idiota; mais um
que acontece numa migração
na lista dos conflitos inúteis.
acarreta verdadeiras mudanças
Primeiro, Fernando Pessoa (em
subjetivas.
muitas ocasiões, os poetas são mais
Menos benigno e muito freqüente é o
sábios do que os psicanalistas) já
caso dos sujeitos que sucumbem ao
sabia que “o mundo exterior é uma
fascínio do grupo.
realidade interior”. Segundo, como
É bem conhecido o exemplo de
disse uma vez Lacan, o inconsciente
homens comuns, de todos os
não é nem individual nem coletivo,
horizontes da vida, que se
ele é “o” coletivo mesmo. Em outras
transformaram em torturadores ou
palavras, nosso lugar único e singular
assassinos de massa nas burocracias
é como o assento que nos é
totalitárias, sem que nada na
reservado numa sala de teatro: ele é
singularidade de suas histórias,
o nosso, está escrito no ingresso,
sintomas ou fantasias os
mas ele é o lugar imposto pela
predispusesse a essas tarefas.
distribuição dos outros na mesma
Desistiram de seus valores, de seus
sala; às vezes, há lugares sobrando
desejos, de suas repressões
e, no meio do espetáculo, dá para
singulares e ganharam em troca o
mudar e se aproximar do palco, mas
conforto de uma vida regrada por
será um pouco de penetra; nosso
uma só exigência: a de ser um
lugar designado é o que recebemos
membro funcional do grupo, um bom
na compra do bilhete. Será que faz
funcionário.
sentido perguntar-se se é um lugar
A gangue de adolescentes produz
individual o coletivo, posto que é o
resultados parecidos, transformando
nosso, mas é decidido pela
facilmente cordeiros em assassinos.
distribuição na sala dos que assistem
ao espetáculo junto com a gente? 143
Acrescente a isso a constatação de
que, uma vez sentados, o que
comandará nossas emoções e nossa
partici-
142
Nela, cada um suspende
radicalmente sua existência à a
provação dos outros.
São casos aparentemente extremos
pelas conseqüências que acarretam.
Mas não esqueça que somos todos
membros de algum grupo burocrático,
assim como somos todos Você me pergunta: “Que mais você
suficientemente narcisistas para gostaria de me dizer, antes que a
deixar ao olhar dos outros o cuidado gente se separe?”
de decidir quem somos.
Enfim, psicólogo social e Meu jovem amigo,
psicoterapeuta não têm mesmo por
que brigar. O psicólogo social pode Claro, há mais mil coisas das quais
não ser psicoterapeuta; o gostaria de lhe falar um pouco. De
psicoterapeuta não pode não ser, de qualquer forma, como lembrava
alguma forma, psicólogo social. Pois, Freud, a
se ele entender e abordar seu gente nunca consegue transmitir o
paciente como se fosse um Robinson que sabe de melhor.
Crusoé vivendo desde sempre na ilha
deserta e sem nunca encontrar Você me escreveu uma vez, acho
Sexta- Feira, o terapeuta se parecerá que foi depois de minha carta sobre a
com um físico de antes da física formação: “Entendo que identificar-se
moderna. Sabe, aqueles que ao analista não possa nem deva ser o
achavam que os corpos caem por que o paciente espera de uma cura;
uma propriedade interna, porque são mas me parece difícil imaginar que,
obstinadamente pesados. Parece ao longo do tratamento, não haja um
que, desde então, descobriu-se que pouco (ou mesmo muito) disso.
os corpos caem porque há muitos Afinal, você repetiu várias vezes que
corpos de tamanhos diferentes, e os pacientes nos idealizam, e é bom
eles se atraem. que seja assim, é bom que eles
Abç. suponham que sabemos mais do que
sabemos de fato. Isso ajuda a cura a
144 funcionar. Mas pergunto: se nos
idealizam, como eles não estariam a
fim de se identificar conosco?”.
Pois é, disse que identificar-se com o
11 terapeuta não pode ser o que se
espera de uma terapia. Acrescentei
QUE MAIS? que entender o fim da análise como o
momento de tornar-se analista é mais
uma maneira de propor a
identificação ao terapeuta como
solução. Há, nisso, uma certa
covardia terapêutica: não sei o que ou mal, a um momento ou outro
fazer com seus problemas, mas, serviremos de exemplo para nossos
igualmente, continue vindo aqui, pois, pacientes e, portanto, aceitar a
em troca, você se tornará analista responsabilidade de quem pode
como eu. O que você diria a um servir de exemplo para muitos.
médico
Não discordo do princípio. Só não sei
147 se concordamos sobre qual é o
exemplo que importa. Pois é claro
que, por este caminho, seria fácil
chegar à idéia de que o terapeuta

148

que não conseguisse curar sua


pneumonia, mas, em compensação,
lhe trouxesse a ficha de inscrição do
vestibular de medicina? Haja
paciência.
deve mostrar ao mundo (e a seus
Isso dito, no decorrer da cura, há pacientes) uma face feita de
muitos momentos em que é inevitável normalidade tranqüila, de bem-estar
que o paciente nos considere e nos equilibrado. Em suma, o casaco que
use como modelos. a gente veste no consultório deveria
ser uma fachada que pudesse ter,
Houve uma época em que, recém- para os pacientes, uma virtude
chegado ao Brasil, eu era terapêutica. Afinal, contemplando a
considerado um psicanalista muito segurança aparente com a qual
estrangeiro. Esse trade-mark (made atravessamos a vida e escolhendo-a
in France) fazia parte de meus como modelo, quem sabe os
atributos mais facilmente idealizáveis. pacientes consigam apaziguar
É curioso o número de meus algumas de suas dores? É isso?
pacientes que decidiram um dia fazer
um doutorado ou um pós-doutorado Pois é, não tenho nada contra um
no exterior. Concordo, são efeitos de pouco de identificação. Como lhe
identificação ao analista. disse, concordo em pensar que seja
um mal inevitável. E concordo
Enfim, você acrescenta: “Se é assim, também que a identificação dos
será que o terapeuta não deveria, de pacientes conosco nos impõe uma
alguma forma, levar em conta esses responsabilidade. Só que entendo
percalços da cura e assumir a essa responsabilidade de outro jeito.
responsabilidade que vai junto?”. Se
entendo direito, você se pergunta se A longo prazo, identificar-se com uma
não deveríamos considerar que, bem máscara é desesperador. Pedir ao
terapeuta que ele se fantasie para responsabilidade do analista. Ora,
propor a seus pacientes um modelo sua responsabilidade é de viver
“legal” significa condenar os quanto mais próximo possível de seu
pacientes à tristeza de uma eterna desejo, de forma que, se o paciente
quarta-feira de cinzas. procurar um exemplo em você, será o
exemplo de quem ousa se permitir o
Portanto, se você sente uma que deseja.
responsabilidade diante da tendência Uma anedota. Nos últimos tempos de
de seus pacientes a se identificarem minha análise, em Paris, quando já
com você, essa responsabilidade era jovem analista, fui convidado a
deveria lhe sugerir o seguinte: seja um baile de máscaras. O convite dizia
você mesmo. Ou seja, não aja para que a fantasia era obrigatória
apresentar a seu paciente (e ao
Claro, assim como vários jovens
mundo) uma imagem que seria
colegas, aceitei o convite com prazer,
agradável ou mesmo
cogitei uma fantasia, mas, na hora do
presumivelmente “boa” para quem a
vamos ver, cheguei na festa com meu
ela
terno de flanela. Óbvio, ninguém me
barrou na porta. No entanto, mais
149 tarde, enquanto eu conversava numa
roda composta de convidados sem
fantasia, a dona-de-casa se
aproximou e perguntou, irônica: “E
vocês, então, cadê suas fantasias?”.

150

se identificasse, mas aja quanto mais


perto possível de seu desejo.

Você não deve se vestir, conter seus


gestos, modular sua aparência ou
inibir sua vida pública de forma a
compor a vinheta de uma Com boa presença de espírito, um
normalidade desejável. Deveria, ao amigo respondeu: “Mas estamos
contrário, comportar-se pública e todos fantasiados, fantasiados de
privadamente como seu desejo psicanalista lacaniano”. A piada
manda. Você me pergunta por quê? produziu a hilaridade geral porque
Aqui vai. Concordei com você: em dizia a exata verdade: todos, naquela
alguma medida, roda, tínhamos preferido não nos
fantasiar porque queríamos
inevitavelmente, o paciente se convencer o mundo (sem contar os
identifica com o terapeuta. eventuais pacientes que poderiam
estar na festa) de que éramos
Concordo também com a idéia de psicanalistas.
que isso implica uma Resultado: estávamos mesmo
fantasiados de psicanalista. Se queixa do paciente. Mas você tem
tivéssemos escolhido uma máscara razão, há uma coisa que prezo e
de Arlequim ou Pierrô pelo prazer da outra que, de uma certa forma,
festa, estaríamos menos fantasiados antagonizo e tento contrariar, mesmo
e, com isso, talvez seríamos mais que não seja objeto de queixa.
psicanalistas. Mas a história não
acaba aqui. Prezo a qualidade da experiência
No meio da festa, eis que alguém me vivida. Mas a qualidade não é uma
assinala que meu analista tinha questão de agrado ou desagrado; a
chegado. E, de fato, Serge Leclaire qualidade da experiência é função da
estava lá, numa suntuosa fantasia de intensidade com a qual nos
dama do século XVIII, talvez a própria permitimos viver. O destino (digamos
marquesa de Merteull das “Ligações assim) nos serve pratos variados:
Perigosas”, com tudo o que tinha alguns dolorosos, outros jocosos e
direito: amplo vestido rendado, leque festivos. O importante, para mim, não
na mão, pancakee pó quase branco, é que os dolorosos sejam evitados; o
alta peruca, sinal falso e generoso importante é que todos sejam
decote (depilado, claro). Pois bem, saborosos, ou seja, que topemos
não era a hora de minha sessão, mas saboreá-los.
ganhei de graça uma das melhores
interpretações de minha análise.
É muito raro, por exemplo, que
entenda o trabalho psicoterá pico
151 como uma forma de consolação que
tentaria atenuar o impacto de uma
lembrança ou de um evento penosos.
Das várias formas possíveis de
infelicidade, a que

152

Há uma outra pergunta sua que ficou


até agora sem resposta. Você me
escreveu o seguinte: “Entendi que
você não defende normalidade
alguma; você não quer definir uma
maneira de ser que lhe pareceria
mais certa do que as outras. Mas
me parece mais aflitiva não é
será que não há algo que, de alguma
necessariamente a que mais dói.
forma, mesmo sem querer, você
Muito mais trágico me parece o
promove em seus pacientes?”.
destino de quem atravessa a vida
sem se molhar, como se os efeitos
Pensando bem, não sou tão neutro (felizes ou nefastos) escorressem
quanto disse. É verdade que nada me sobre a pele como água sobre as
parece patológico, a menos que seja, plumas de um pato.
direta ou indiretamente, o objeto da
Com seus altos e baixos, imagine experiência, tornam a corrida sem
nossa vida como uma breve graça.
passagem por um circuito de
montanhas- russas. Quem Enfim, você me pergunta qual seria
atravessasse a experiência minha última recomendação. Aqui vai:
anestesiado, sem gritos, pavor e seja humilde. Não quanto aos efeitos
risos, teria jogado fora o dinheiro do e resultados que você espera de seu
bilhete. Tenho a ambição, ao trabalho. Mas seja humilde na
contrário, de ajudar meus pacientes a aceitação das condições impostas
viver de tal forma que, chegando o por seus pacientes.
fim, eles possam dizer-se que a
corrida foi boa.
Haverá os que não conseguem nem
sentar nem deitar, mas só podem
Vamos ao que antagonizo, mesmo falar caminhando. Haverá os que
que não seja objeto de queixa do devem ficar silenciosos durante
paciente. Antagonizo, em geral, os semanas para se convencerem de
artifícios pelos quais desistimos de que não é proibido calar-se. Haverá
ser sujeitos, ou seja, as estratégias os que só querem vir de vez em
que encontramos para evitar aquelas quando porque não toleram uma
dificuldades de viver que fazem parte obrigação em suas vidas. Haverá os
do lote standard de nossa cultura. que somem durante semanas a cada
Sobretudo as estratégias coletivas: vez que você viaja, porque não
desconfio das instituições políticas, podem se impedir de punir quem os
religiosas, burocráticas que abandonou. Haverá os que querem
vir cada dia só para sentir o cheiro de
oferecem a seus adeptos uma uma presença amiga. Haverá os que
chance de esquivar-se das não falam, mas perguntam o que
expressões básicas da subjetividade você acha, porque precisam ouvir sua
moderna, desde a incerteza moral (o voz, e pouco importa o que você dirá.
que éjusto? o que é errado?) até a Haverá os que se irritam porque você
questão sempre aberta sobre o nosso não os abraça e os que não
desejo (qual é o meu querer?). agüentam ser tocados.

153 154

Eles querem mudar, e você também,


junto com eles, pode querer que eles
mudem. Mas uma mudança não é
coisa que possa ser imposta. Ela não
virá da imposição do rigor abstrato da
técnica que você aprendeu, do setting
no qual você se formou ou da teoria
Por que antagonizar essas formas de com a qual você escolheu justificar
descanso da subjetividade? suas palavras e seus atos
Fechando o circulo: porque elas terapêuticos. Ao contrário, para que
diminuem a intensidade da uma mudança aconteça um dia, é
preciso que uma relação comece; e
uma relação só pode começar nas
condições que são irrenunciáveis por
seu paciente.

Em suma, avance desarmado.

Um abraço (desta vez com todas as


letras).

155

You might also like