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Revista da Faculdade de Letras HISTORIA, Porto, HE Série, v0.1 2000, pp. 113-125 Gaspar Martins Pereira * Da Liga Patridtica do Norte ao 31 de Janeiro: um momento de viragem na histdria politica portuguesa * RES UM 0| _ Entrea reaccio nacional ao ultimatum inglés de Janeiro de 1890 e a revolta republi- ‘cana no Porto busca-se perceber o momento de viragem politica que consistiu na iden- tificagao do ideal republicano com o discurso «regenerador» nacionalista, legitimador da acco revolucionaria, As movimentacées politicas de 1890, que comecaram por antepor a questo nacional questo do regime, acabariam por permiti, sobretudo a partir de Agosto, perante a faléncia do rotativismo, a apropriacdo daquele discurso pela propaganda republicana Tracadas as linhas-chave da evolucao do republicanismo no Portugal finissecular ' procurarei centrar-me nesse ano agitado que vai desde Ultimatum inglés de 11 de Janeiro de 1890 tentativa de implantacao da Repiiblica no Porto. (O que foi esse momento crucial de viragem na vida politica portuguesa de finais do século XIX nao pode perceber-se fora do ambiente de exaltagao patridtica ¢ de sensibilidade depressiva que se vivia nessa altura, associada a crise diplomatica aberta com 0 Ultimatum e agravada pelos sintomas de uma grave crise econémica ¢ financeira. ‘Numa primeira fase, a reaccao patriética e nacionalista ao Ultimatum inglés uniu todos os quadrantes politicos e sociais em Portugal. Republicanos e mondrquicos. Nesse momen- to, a questao nacional antepunha-se & questdo do regime. O decadentismo nacional conjugava-se com um discurso regenerador, 0 mesmo que es- tivera presente em todas as revolucies liberais oitocentistas, que apelava ao retorno A idade mitica de grandeza da Patria. A ideia de decadéncia nacional legitimava a acgao revolu- cionéria, que assumia, assim, um cardcter redentor e messidnico, que anunciava as mu- dangas necessirias para a salvacao da Nagao Portuguesa’, Ora, este idedrio regenerador, porque nacional e supra-classista, nao era necessariamente republicano ¢ democratico. De resto, 0 compromisso que selava com 0 pasado poderia até, como péde na primeira fase do Estado Novo, assumir um cunho conservador e autoritdrio, usando 0 imperative nacional, dito indiscutivel, da salvacdo da Patria, acima dos interesses ¢ liberdades individuais ou de grupo. * Conferéncia proferida no Ateneu Comercial do Porto, em 31 de Janeiro de 2000, na ceriménia evocativa da re- volta republicana do Porto de 1891. Apenas foram introduridas ligeiras alteragGes, nomeadamente aduzindo-se algumas notas de referéncia bibliogrifica, publicando-se também a acta da Assembleia Geral do Ateneu a que se faz larga mencio no texto. ** Professor Auxiliar da FLUP. ° Na conferéncia anterior, proferida pela Professora Conceicao Mciteles Pereira. 2 Para uma reflexdo sobre o conccito de «regeneraca0>, cf. PROENCA, 1990; SERRAO, 1978, 1141 caseae manrins pencina Penso que a Liga Patriética do Norte, fundada logo a 26 de Janeiro, encarnava esse es- Pirito, reunindo monarquicos e republicanos, sob a presidéncia do socialista Antero de Quental. Foi, de resto, um monérquico, Luis de Magalhaes, quem tomou a iniciativa de con- vidar Antero para presidir & Liga, cujas sess6es funcionaram precisamente no salao nobre e nas salas da Secretaria do Ateneu Comercial do Porto. De resto, o ambiente que se vivia no Ateneu dessa época, é bem ilustrativo do lima de agitacao politica e exaltacao patridtica que o ultimato inglés provocou em todo o pais. Imediatamente a seguir a0 Ultimatum, um grupo de s6cios (entre os quais alguns que iriam participar na sublevacao republicana, como Aurélio da Paz dos Reis), requereu uma assem. bleia extraordindria, que se realizou a 18 de Janeiro para «manifestar a sua adesto ao brado Patridtico de todo o pais, de repelir a afronta injustficavel do governo inglés pelos recentes ¢ conhecidissimos sucessos na Africa Central, Nessa reuniao, entre «vivas a Serpa Pinto, a Patria ¢ ao Ateneu» e discursos mais ou menos inflamados, votaram-se por aclamagao intimeras Propostas, nomeadamente: — aexpulsio de sécios de nacionalidade inglesa; ~ 0 envio de representagdes ao Governo para romper «o tratado de alianca com a Inglaterra, substituindo-o no mais curto Prazo por outro, com o pais que pelas suas condigdes de raga e tradigdes mais vantagens possa trazer @ nossa prosperidade ¢ a in- tegridade dos nossos territériosy; ~ a promocio, a expensas individuais dos sécios, através da imprensa portuense, de «uma guerra patridtica contra a importagao de todos os produtos ingleses, contra o subsidio comercial que no Porto se tem prestado a empresas e estabelecimentos britani- 0s, fazendo-se a mais dedicada propaganda em favor do comércio e da indistria na- cionaisy; ~ o-envio de mensagens de protesto contra as posigées inglesas ¢ de defesa dos «in- contestaveis direitos de Portugal aos territ6rios africanos em litigio»; ~ © apoio a iniciativas de outras instituicdes patristicas, como a Sociedade de Geografia de Lisboa; ~ Oapoio a medidas de criagao ou reforco de «elementos de defesa necesstirios para se- suranga da patria, afim de que, no mais curto prazo possivel, Portugal se coloque em condigoes de repelir desacatos como 0 que acaba de praticar a Inglaterra»; ~ 0 envio de mensagens de louvor «ao bravo oficial Serpa Pinto, ao engenheiro Alvaro de Castelées e ao cénsul de Portugal em New-Castle, Jaime Batalha Reis, os dois rimeiros pelo denodo com que afirmaram o poder de Portugal nas regides da Africa, conduzindo briosamente a expedigdo ao Chire, ¢ 0 tiltimo pela maneira brilhantissima, como na imprensa inglesa e na conferéncia de Bruxelas, defendeu os nossos direitos aos dominios africanos e enalteceu o alcance da misao civilizadora de Portugal no Continente negro»; ~ acriag4o de um prémio valioso para o melhor trabalho apresentado num concurso a abrir pelo Ateneu «para a elaboragao de uma obra que tenha por fim pér bem em evidéncia a politica absorvente e desleal da Inglaterra para com Portugal, de maneira a fazer repelir de futuro quaisquer aliangas com aquela nagao ea criar nas geragées por vir um sentimento de intima desconfianga para com a mesma nagao» (esse livro de- veria ser adoptado nas escolas populares, «como elemento importante para a edu- cacao civica da mocidade»); 115 DA LIGA PATRIOTICA DO NORTE AO 31 DE JANEIRO — agarantia de que o Ateneu, como associagio, contribuiria o mais que pudesse «para qualquer subscrigao nacional destinada a obter, no mais curto prazo, os elementos de defesa» necessérios ao pats, estimulando-se ainda a contribuigao individual de todos 0 sécios; ~ a publicacdo, por iniciativa do Ateneu, «de um jornal, niimero tinico, onde se agradega as manifestagses da Franga, Austria, Espanha, Itdlia, Alemanha e Riissiavs ~ acolocagao, em lugar de honra, «do retrato do major Serpa Pinto, nosso sécio hono- rério, junto do dos outros exploradores Capelo e Ivens»; ~ a promogio de conferéncias contra a Inglaterra; a realizacdo no Ateneu, anual- mente, no dia 18 de Janeiro, de «uma conferéncia de propaganda a favor dos nossos direitos em Africa e mais dominios portugueses», que servisse «ao mesmo tempo de protesto eterno contra a forma irregular e violenta como a Inglaterra acaba de proce- der para com Portugal por causa dos acontecimentos ultimamente ocorridos no Chire, abusando da sua forca naval para nos humilhar e espoliarss = a apresentagdo de uma proposta 4 Camara Municipal do Porto para que fossem atribuidos os nomes de Serpa Pinto e de Alvaro de Casteloes a duas ruas da cidade; — arecusa de utilizar barcos ingleses no transporte de emigrantes para o Brasil e que «os portugueses residentes no Brasiby nunca utilizassem «os vapores ingleses, quer para a expedicio ou recepcao de mercadorias, quer para a passagem deles ou pessoas de sua dependéncia»; etc. Um dos sécios, 0 Dr. Leonardo Torres, avangou mesmo «a ideia de se formar um grupo de homens enérgicos para a criagao de um sinico partido: 0 da defesa nacional». Os associados do Ateneu Comercial do Porto nao se ficaram pelos discursos. Subscreveram uma avultada quantia‘ para o fundo de defesa nacional. E concretizaram, ou promoveram a concretizagao, de muitas das propostas apresentadas na assembleia de 18 de Janeiro de 1890°. Por todo o pais, o patriotismo exacerbado mobilizava protestos, manifestacdes, com{- cios, num clima igualmente emotivo que foi facilmente aproveitado pelos republicanos, cuja intensa propaganda procurou responsabilizar a monarquia pela crise nacional. A intensi- dade das manifestagdes populares conduziu, de imediato, 8 queda do governo progressista de Barros Gomes. O novo governo do Partido Regenerador, perante a violéncia da agitagao anti-monérquica acabaria por tomar medidas repressivas, sobretudo a partir de Margo, com a proibicdo de manifestacdes, suspensio de intimeros jornais, prisao de personalidades re- publicanas, chegando a proibir-se «A Portuguesa» que era cantarolada nas ruas. Mas as me- didas repressivas do governo nao s6 aumentaram o clima de tensdo como granjearam novos adeptos para o campo republicano, incluindo personalidades de relevo nacional, como Guerra Junqueiro que, nesse ano, publicaria Finis Patriae, um dos seus mais violentos ataques 4 Monarquia. Ultrapassado 0 momento de unanimismo inicial que caracterizou a emo¢ao colectiva dos protestos anti-britanicos, a questa nacional identificava-se, ainda consensualmente, > AACB - Actas da Assembleia Geral, 1890. IREIRA, 1995: 67.

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