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FACULDADES ATIBAIA

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DE ATIBAIA

JAIME MALOSTE CARRIBEIRO

DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO:


Uma análise da crise da ciência penal contemporânea.

Atibaia
2016
JAIME MALOSTE CARRIBEIRO

DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO:


Uma análise da crise da ciência penal contemporânea.

Monografia apresentada à Faculdade de Ciências


Sociais Aplicadas de Atibaia como requisito parcial
à obtenção do título de bacharel em Direito.
Orientador: Professor Mestre Elson Araújo Capeto.

Atibaia
2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

Carribeiro, Jaime Maloste

DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO: Uma análise da crise da


ciência penal contemporânea / Jaime Maloste Carribeiro – Atibaia, 2016.

75 p. ; 30 cm.

Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade de Ciências Sociais


Aplicadas de Atibaia.

Orientador: Elson Araújo Capeto


Nome: CARRIBEIRO, Jaime Maloste
Título: DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO: Uma análise da crise da ciência penal
contemporânea
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Atibaia para
obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovada em:

Banca Examinadora

Prof. Instituição:
Julgamento: Assinatura:

Prof. Instituição:
Julgamento: Assinatura:

Prof. Instituição:
Julgamento: Assinatura:
RESUMO

O presente trabalho tem como escopo analisar as profundas modificações


operadas pela sociedade de riscos - nos moldes da teoria desenvolvida pelo sociólogo
alemão Ulrich Beck, - no espectro político-criminal, importando num processo de
expansão do direito penal. Para a abordagem do tema, foi escolhido o método dialético,
com a exposição de teses e posições doutrinárias antagônicas, bem como o método
indutivo, com a análise de um caso concreto e suas implicações teóricas. Sinteticamente,
no capítulo inicial é exposta a teoria sociológica da sociedade do risco de Ulrich Beck e
seu impacto político e social. Já no segundo capítulo, passa-se à análise das influências
deste novo modelo social na política-criminal, importando numa abstração do bem
jurídico - não mais visto como tutela de bens individuais, mas sim de bens de caráter
supraindividual -, no aumento dos crimes de perigo abstrato, na administrativização do
direito penal - haja vista a proliferação de normas penais em branco - e, por último, na
flexibilização das garantias penais de índole liberal. O terceiro capítulo trata da
conflituosidade do direito penal clássico com os modelos incriminatórios desenvolvidos
na sociedade do risco e os principais modelos teóricos desenvolvidos na tentativa de
uma adequação do sistema penal a nova dinâmica social. No quarto e derradeiro
capítulo, traz-se a lume a análise de um julgado do Supremo Tribunal Federal, no qual
é analisada a questão da antecipação da tutela penal às esferas anteriores ao dano, em
caso concreto atinente ao crime de perigo abstrato de porte de arma de fogo
desmuniciada.

Palavras-chave: Sociedade do risco. Direito Penal da sociedade do risco. Direito Penal


Clássico. Garantias penais. Expansão do Direito Penal. Figuras dogmáticas
diferenciadas. Bem jurídico supraindividual.
RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo analizar los profundos cambios operados por la
sociedad del riesgo - a lo largo de las líneas de la teoría desarrollada por el sociólogo
alemán Ulrich Beck, - el espectro político-criminal, la importación de un proceso de
expansión de la ley penal. Para abordar el tema, se eligió el método dialéctico, con la
exposición de tesis y posiciones doctrinales antagónicos, así como el método inductivo,
el análisis de un caso concreto y sus implicaciones teóricas. Sintéticamente, en el inicio
del capítulo se expone a la teoría sociológica de la sociedad del riesgo de Ulrich Beck y
su impacto político y social. En el segundo capítulo, pasamos al análisis de la influencia
de este nuevo modelo social en los ámbitos político-criminal, la importación de una
abstracción del derecho legal - ya no es visto como la protección de la propiedad
individual, sino de los bienes de carácter supraindividuales - el aumento de los delitos
de peligro abstracto, en administrativização derecho penal - dada la proliferación de
leyes penales en blanco - y, por último, la disminución de las garantías penales de
carácter liberal. El tercer capítulo trata de la ley penal clásico conflictiva con la
incriminación modelos desarrollados en la sociedad del riesgo y de los principales
modelos teóricos desarrollados en un intento de una adaptación del sistema penal a las
nuevas dinámicas sociales. En el cuarto y último capítulo saca a la luz del análisis de
una sentencia del Supremo Tribunal Federal en la que se analiza el tema de la previsión
de la protección penal a la bola anterior a los daños en el caso perteneciente al peligro
abstracto del tamaño de la delincuencia arma de fuego desmuniciada.

Palabras claves: Sociedad del riesgo. Derecho Penal de la sociedad del riesgo. Derecho
penal clásico. Garantías penales. La expansión del derecho penal. Las figuras
dogmáticas diferenciadas. Bien legal supraindividual.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................9

1. A SOCIEDADE MUNDIAL DO RISCO ...............................................................11


1.1. Do Risco e do Perigo...........................................................................................11
1.2. Modernização Simples e Reflexiva ...................................................................12
1.3. Panorama Geral dos Novos Riscos ...................................................................16
1.4. Aspectos Políticos Relevantes para o Direito Penal........................................18
1.4.1. Sobre a lógica da distribuição de riqueza e da distribuição de riscos ........18
1.4.2. A delimitação dos riscos ................................................................................19
1.4.3. A sociedade do medo .....................................................................................21
1.4.4. O processo de juridicização da opinião pública...........................................23

2. PROPOSTAS DE UM DIREITO PENAL DA SOCIEDADE DE RISCOS ......25


2.1. Paradigma Político Criminal do Direito Penal da Sociedade do Risco ........25
2.2. A criminalidade moderna ..................................................................................28
2.3. A proteção Penal a Bens Jurídicos Supraindividuais ....................................30
2.3.1. Conceito de bem jurídico no paradigma penal clássico ...............................30
2.3.2. A proteção a bens jurídicos supraindividuais ..............................................31
2.4. A expansão do Direito Penal .............................................................................32
2.4.1. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução ...................................33
2.4.1.1. Princípio da precaução ............................................................................33
2.4.1.2. Crimes de perigo abstrato ........................................................................34
2.4.2. Administrativização do direito penal: os delitos de transgressão................36
2.4.3. Os delitos cumulativos ...................................................................................37

3. A CELEUMA ENTRE O PARADIGMA PENAL CLÁSSICO E O DIREITO


PENAL DO RISCO ......................................................................................................39
3.1. Princípios Fundamentais do Direito Penal ......................................................40
3.1.1. Princípio da lesividade ..................................................................................40
3.1.2. Princípio da intervenção mínima ..................................................................41
3.1.3. Princípio da fragmentariedade .....................................................................42
3.1.4. Princípio da subsidiariedade.........................................................................43
3.1.5. Princípio da proporcionalidade ....................................................................43
3.2. Direito Penal do Risco versus Direito Penal Liberal ......................................46
3.3. Propostas para um Direito Penal frente à Sociedade do Risco .....................49
3.4. Outras Propostas de Tutela dos Riscos ............................................................52
3.4.1. Direito Penal de duas velocidades ................................................................53
3.4.2. Direito de intervenção ...................................................................................54
3.4.3. Críticas às propostas de setorização do Direito Penal ................................55

4. DISCUSSÃO DE CASO ...........................................................................................58


4.1. Análise do Caso...................................................................................................60
4.2. Discussão .............................................................................................................64

CONCLUSÃO ...............................................................................................................69
INTRODUÇÃO

Ulrich Beck1, em sua obra fundamental, trata da sociedade contemporânea


caracterizada como uma sociedade global e modernizada, em que as interferências
ocorridas em determinados lugares podem trazer consequências a todas as regiões do
planeta. Como efeito deste fenômeno, vislumbra-se uma paulatina dissolução das
barreiras geográficas, em face dos novos potenciais de autoameaças surgidos a partir do
período pós-industrial e da facilidade de transmissão/recepção de informações.

Em seu manifesto, Beck faz um estudo minucioso da sociedade hodierna,


denominando-a de sociedade mundial do risco. A partir do período da modernização
reflexiva, o desenvolvimento tecnológico antes inquestionável e propiciador de riqueza
e desenvolvimento das nações, a partir da constatação dos riscos que dele se originam
passa a ser constantemente enxergado com desconfiança.

Assim, como procurar-se-á demonstrar, os efeitos da modernização são


enxergados em dois momentos distintos. Em uma primeira fase, há o desenvolvimento
tecnológico massivo, em que os potenciais de auto-ameaça não são percebidos e,
portanto, não se tornam questões públicas. Num segundo período, os riscos tornam-se
perceptíveis e passam a ser o centro dos debates e conflitos públicos. Neste panorama,
exsurge um processo chamado de juridicização da opinião pública, momento em que as
demandas sociais por segurança e prevenção contra os riscos pós-industriais passam a
ter influência sobre o direito.

À partir desta perspectiva é que este trabalho pretende se imiscuir no movimento


jurídico de expansão do Direito Penal, resultante do paradigma da sociedade mundial
do risco. Buscar-se-á interpretar e compreender as razões do surgimento de figuras

1
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
9
dogmáticas diferenciadas, confrontantes do Direito Penal de bases clássicas, buscando-
se demonstrar os eixos de conflito entre estas duas racionalidades penais distintas.

Nesse passo, após a abordagem inicial da teoria sociológica da sociedade do


risco, do “Direito Penal do risco”, e dos principais eixos de tensão, serão trazidas a lume
propostas de reformulação. Em alguns casos, como se verá adiante, apregoa-se a total
abstenção destas bases, de modo a propiciar a tutela penal das situações típicas da
sociedade do risco. Em outros, é defendida uma conciliação das bases principiológicas
clássicas do Direito Penal com a possibilidade de tutela dos novos riscos.

Em síntese, o presente trabalho tem como escopo uma análise da dinâmica do


perfil dos riscos existentes na sociedade contemporânea e seu reflexo na política-
criminal e, por conseguinte, na dogmática penal, analisando-se as possibilidades de
proteção contra as potenciais ameaças capazes de gerar catástrofes a níveis globais e a
populações impassíveis de serem determinadas.

10
1. A SOCIEDADE MUNDIAL DO RISCO

1.1. Do Risco e do Perigo

A palavra risco significa probabilidade de perigo ou probabilidade de insucesso


de determinado empreendimento, em função de acontecimento eventual, incerto, cuja
ocorrência não depende exclusivamente da vontade dos interessados. Por sua vez, a
palavra perigo traz como significado o conjunto de ações que pode levar a algum
resultado danoso. Sinteticamente, pode-se dizer que perigo é o fator gerador de
determinada situação que pode causar danos, enquanto risco é o perigo potencial,
adicionado da probabilidade e de outros fatores que podem contribuir, positiva ou
negativamente, para que hajam danos físicos ou materiais.

Retornando às origens, a palavra risco não é dotada de um significado preciso.


Para Giddens, provém, provavelmente, de um termo árabe, utilizado pelos espanhóis
quando das grandes navegações e que significaria “correr para o perigo ou ir contra uma
rocha”2. Para outros autores, o termo deriva do baixo-latim risicu, que significa ousar,
ou seja, atuar perante a possibilidade de perigo3.

É de ver que risco e perigo são conceitos inter-relacionados, pouco importando


qual seja a definição adotada. Para Botini, ipsis litteris, “risco é o adjetivo que se coloca
ao agir humano diante do perigo, ou da possibilidade de perigo” 4. Logo, para o autor,
não há que se falar na existência de risco sem a potencialidade de perigo. O risco é a
consciência gerada frente a uma situação de perigo vislumbrada, traduzindo-se como
uma forma de representação do porvir e das decisões e estratégias que podem ser
tomadas em relação a eventuais acontecimentos.

2
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p.38.
3
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução in Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 61, julho-agosto 2006, p. 46.
4
Idem, p. 47.
11
Ulrich Beck, em sua obra fundamental5, ao tratar do teor do risco como um ainda
não evento que desencadeia a ação, a ele assim se refere:

“Riscos não se esgotam, contudo, em efeitos e danos já ocorridos. Neles,


exprime-se sobretudo um componente futuro. Este baseia-se em parte na extensão
futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda geral de confiança
ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos têm, portanto, fundamentalmente
que ver com antecipação, com destruições que ainda não ocorreram mas que são
iminentes, e que, justamente nesse sentido, já são reais hoje 6”.

Com efeito, o núcleo da consciência do risco não está no presente, e sim no futuro.
Conforme demonstra Beck ao longo de sua obra – o que se buscará trazer ao longo dos
capítulos subsequentes – na sociedade hodierna, traduzida como uma sociedade de
riscos, o passado não é mais o motor de propulsão das ações no presente, sendo
substituído pelo futuro e pelas noções de previsibilidade de fatos ainda inexistentes,
legitimando-se como causa da vivência e atuação humanas.

1.2. Modernização simples e reflexiva

Ulrich Beck, sociólogo alemão teorizador da sociedade global do risco, distingue


o processo de modernização em duas etapas: a primeira chamada de modernidade
simples, relativa ao período inicial de desenvolvimento da sociedade industrial, e a
segunda denominada modernidade reflexiva, da qual exsurge a então sociedade de
riscos.

A modernização simples corresponde a um processo primário de modernização


que culminou no desenvolvimento da sociedade industrial, substitutiva das formas
tradicionais até então existentes. A modernização reflexiva, por sua vez, exsurge como
uma nova etapa de transformação social decorrente do desenvolvimento técnico
científico, desincorporando a modernização simples primária e a reincorporando em
uma nova forma de modernização. Esta transição entre um e outro tipo de modernidade

5
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
6
Idem, p. 39.
12
não deve ser compreendida como uma ruptura do tecido social, mas sim como a sua
transmutação pelo processo de reflexividade.

A revolução tecnológica inicial e o advento da sociedade industrial, até certo


ponto, revelou o domínio do homem sobre o saber científico e as criações dele
decorrentes, momento em que não se vislumbravam maiores complicações. Todavia,
passado certo tempo da modernização primária, constatou-se que a revolução técnico-
científica levara à produção de efeitos colaterais indesejados, imprevisíveis e
impassíveis de controle. Esta constatação conduz ao fenômeno da reflexividade, que
deve ser compreendido, de início, como um processo automático de transformação da
sociedade industrial em sociedade de riscos.

Em tais termos, a modernização reflexiva, consoante Marta Rodrigues de Assis


Machado7, pode-se identificar em dois estágios distintos: o da reflexividade e o da
reflexão. No primeiro estágio, há uma auto-ameaça às fundações da sociedade industrial
que ocorre de forma autônoma, em razão de um processo de modernização
aparentemente bem sucedido, que é cego aos riscos que lhe são inerentes. No segundo
estágio, há o crescimento do conhecimento técnico-científico propiciador de um
processo de reflexão sobre os riscos como efeitos colaterais indesejados da expansão
tecnológica.

Nesta primeira fase, a obstinação pela obtenção de novas tecnologias


propiciadoras do desenvolvimento industrial massivo conduz a uma dinâmica bastante
peculiar, pois a intensidade do progresso científico não é acompanhada pela análise dos
efeitos decorrentes do emprego destas tecnologias. De início, o que ocorre é um
verdadeiro descompasso entre inovação tecnológica e desenvolvimento de técnicas de
mediação e avaliação de sua aplicação.

7
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas
tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005.
13
Nestes termos, a primeira fase do processo de reflexividade, em que ocorre o
aduzido descompasso entre desenvolvimento e conhecimento, é sintetizado da seguinte
forma por Machado8:

“A reflexividade refere-se à transição autônoma, indesejada e despercebida do


modelo de sociedade industrial para o da sociedade do risco. Sendo assim, pode-
se dizer que o principal aspecto desse mecanismo de transição é exatamente sua
irreflexão e não-intencionalidade – aliás, para Beck, é exatamente a abstração dos
fenômenos causais que conduz à sociedade do risco”.

Dessarte, a sociedade, no início desta transição, situa-se como alheia aos riscos
provenientes dos avanços tecnológicos e a consequente industrialização em massa,
abstraída das modificações silenciosas que conduziram à sociedade de riscos. Em
resumo, não há a reflexão sobre as consequências ainda “invisíveis” da modernização.

De outra banda, no segundo estágio do processo de reflexividade, ocorre a


confrontação da sociedade industrial por ocasião dos riscos automáticos dela
provenientes e então percebidos. Conforme assevera Luciana Carneiro da Silva 9, de
certa forma, com a expansão do conhecimento e o posterior reconhecimento tardio dos
riscos, tal percepção torna-se objeto de consideração pública, política e científica, sendo
as instituições de controle e proteção da sociedade industrial amplamente questionadas,
tanto por terem permitido a liberação desses riscos como por não serem dotadas de
mecanismos de controle aptos a subjugar estas novas ameaças.

Desse modo, em razão dos riscos presentes na sociedade contemporânea serem


dotados de alto potencial lesivo, potencial este muitas vezes desconhecido, tendo-se
como base a própria limitação da ciência e de seus métodos analíticos, a sociedade, de
forma perene, vai se envolvendo em uma situação cada vez mais profunda de
insegurança, intensificada, nesta segunda etapa do processo de reflexividade, pela ação

8
Idem, p. 31.
9
SILVA, Luciana Carneiro. Perspectivas político-criminais sob o paradigma da sociedade mundial do risco. In:
Revista Liberdades, IBCCrim. São Paulo, n. 5, setembro-dezembro de 2010, pp. 85-115.
14
dos meios de comunicação de massa e pela desintegração de pautas de confiança e de
expectativa no agir10.

Nesse diapasão, a sociedade industrial toma ciência dos efeitos colaterais


alarmantes causados pela industrialização e célere desenvolvimento científico, passando
a questionar seu próprio modelo de segurança, situação geratriz de insegurança social e
de confrontação das próprias instituições de controle.

Sinteticamente, pode-se dizer que a teoria da sociedade mundial do risco,


teorizada inicialmente por Beck, diz respeito à percepção social dos riscos oriundos do
desenvolvimento tecnológico massivo, gerando uma nova formatação social, a qual é
crítica de seu próprio desenvolvimento. Pouco a pouco surge a percepção de que os
riscos tecnológicos derivaram de decisões humanas e de que foram legitimados pelas
instituições de controle, constatação esta que acaba por criar desestabilidade
institucional e o decorrente processo de questionamento, politização e midiatização dos
riscos. Como efeito de tal processo, exsurge a demanda por segurança e por métodos de
controle destes riscos, levando a um debate que passa a permear precipuamente o campo
político.

Por fim, com propriedade, bem explícita Botini acerca da sociedade global
hodierna de riscos e de sua interferência no direito, fator que será abordado nos capítulos
subsequentes:

“Este paradoxo do risco é o elemento de desmoronamento das bases de


organização da sociedade. As novas dimensões do risco desequilibram a
ordem social e econômica, colocam em questão a própria funcionalidade dos
institutos e afetam todas as esferas de relacionamento, público e privado. Este
fenômeno certamente atinge as discussões sobre o direito penal e sobre a
política criminal. O direito é vinculado, e decorre das estruturas de
organização social: logo, seus critérios devem ser operacionais e eficazes para
a manutenção das relações sociais basilares, sob pena de colapso do sistema
existente11”.

10
BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op. cit., p. 48.
11
Idem, p. 49.
15
1.3. Panorama Geral dos Novos Riscos

A principal característica da sociedade moderna é o aumento dos perigos atuais


em relação à épocas passadas. A sociedade resta caracterizada por ameaças que não se
limitam a calamidades naturais ou doenças epidêmicas.

O que deve se ter em mente é que os riscos característicos da hodierna sociedade


global são aqueles oriundos da própria atuação humana, vinculados a uma decisão
tomada por um indivíduo ou por um grupo de indivíduos.

Os novos riscos são dotados de uma dimensão até então não vislumbrada e por
muitas vezes incalculável pelos mecanismos científicos de previsibilidade e controle,
passíveis de acarretar dano a um grande número de pessoas e ao próprio planeta. Podem-
se citar, como exemplo, os riscos decorrentes do desenvolvimento tecnológico nuclear,
genético e químico, dotados de potencialidade causadora de consequências difusas ou
transindividuais. Ademais, a principal característica destes riscos é a sua
transindividualidade.

Sobre os novos riscos, Machado12 elenca suas principais características,


explicitadoras de sua dinâmica sociopolítica, a saber:

(i) Os riscos hodiernos, conforme acima explicitados, derivam necessariamente


de decisões humanas no âmbito industrial, a exemplo da energia nuclear, dos produtos
químicos, da tecnologia genética, das catástrofes ecológicas, etc., ao contrário das
catástrofes naturais;

(ii) Tais riscos surgem como um efeito colateral do desenvolvimento tecnológico


e da modernização. Podem ser compreendidos, outrossim, como consequências
secundárias do progresso tecnológico, as quais não eram perseguidas intencionalmente;

12
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 38-51.
16
(iii) Os riscos podem gerar, muitas das vezes, danos irreversíveis e não
perceptíveis ab initio. Como exemplo, podem ser citadas as contaminações nucleares ou
químicas por meio da radioatividade ou substâncias nocivas e tóxicas presentes no ar,
na água e nos alimentos e a degradação ambiental. Tais riscos permanecem abstraídos
do conhecimento comum e somente tornam-se visíveis por intermédio de avaliações de
experts e por instrumentos adequados de medição.

(iv) Indeterminabilidade espacial e temporal dos danos causados. Conforme


explanado nos parágrafos inaugurais, por grande parte das vezes não é possível se
mensurar quais serão as consequências advindas dos danos, podendo atingir um
demasiado número de pessoas em grande escala espacial. Em tais termos, explícita
Beck:

“(...) os chamados riscos globais abalam as sólidas colunas dos cálculos de


segurança: os danos já não tem limitação no espaço e no tempo – eles são
globais e duradouros; não podem mais ser atribuídos a certas autoridades – o
princípio da causação perdeu a sua eficácia; não podem mais ser compensados
financeiramente – é inútil querer se garantir contra os efeitos de um worst case
da ameaça em espiral13”.

(v) Os efeitos dos danos, a longo prazo, não se limitam a uma classe ou grupo
social, podendo atingir também aqueles que os produzem e que deles se beneficiam.
Beck denominou este fenômeno como “efeito bumerangue”. Todavia, pelo menos no
início, as classes menos favorecidas sofreriam com mais veemência estes efeitos, o que
será mais profundamente tratado no item sobre a lógica da distribuição dos riscos.

(vi) Por último, os riscos da sociedade global tem um forte conteúdo político, em
que a opinião pública passa a ter influência considerável no âmbito da tomada de
decisões, o que, reflexamente, acabará por influenciar o campo da política criminal.

13
BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo, respostas à globalização. São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 83.
17
Enfim, feita esta sucinta análise sobre o perfil e dinâmica do aparecimento e
funcionamento dos novos riscos na sociedade contemporânea, é relevante trazer a lume
a questão da sua distribuição e delimitação e de seus aspectos políticos relevantes para
o direito penal.

1.4. Aspectos Políticos Relevantes para o Direito Penal

1.4.1. Sobre a lógica da distribuição de riqueza e da distribuição de riscos

Na modernidade, a geração de riqueza advinda do desenvolvimento tecnológico


é acompanhada da produção social de riscos, os quais necessitam ser minimizados, sem
que isto importe em uma grande desaceleração da produção tecnológica.

Aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se


os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos
científico-tecnologicamente produzidos14. As forças produtivas exponencialmente
crescentes no processo de modernização desencadeiam riscos e potenciais de
autoameaça numa medida até então desconhecida.

Enquanto na “sociedade industrial” ou “sociedade de classes” o conflito gira em


torno da questão de como a riqueza pode ser distribuída de maneira desigual e ainda
assim legítima, a meta da sociedade em um modelo pós reflexivo, tal qual desenvolvido
por Beck, é a administração dos novos riscos mediante a tentativa de sua previsão,
identificação – valendo-se para tanto dos métodos de racionalização e quantificação
científicos – e distribuição igualitária, sem comprometimento do processo de
modernização. Para Beck, este fenômeno da modernidade tardia denomina-se o “novo
paradigma da sociedade de riscos15”.

14
BECK, Ulrick, op cit., p. 23.
15
Idem, p. 23.
18
Ocorre ainda, que, no chamado Terceiro Mundo, o pensamento e a ação das
pessoas encontra-se dominado pela carência material, fator legitimador do processo de
modernização, sob a pretensão de, conforme assevera Beck, in verbis, “abrir com as
chaves do desenvolvimento científico tecnológico os portões que levam às recônditas
fontes de riqueza social”16. Por outro lado, nos Estados de Bem-Estar Social, não mais
ameaçados por riscos de insubsistência material, preponderam outros problemas,
advindos dos riscos tecnológicos, circunstâncias em que a modernização perde o seu
fundamento de legitimidade, qual seja, a erradicação da miséria.

Mutatis mutandis, enquanto a porção dos países desfavorecidos economicamente


preocupa-se com o aumento da velocidade da modernização, com vistas a erradicar suas
situações de miséria crônica, os países mais abastados enfrentam os riscos como efeitos
colaterais de sua avançada modernização.

O que não se pode perder de vista, precipuamente, é que os riscos sempre


existiram, desde os tempos mais remotos da civilização humana, mas, na atualidade,
decorrem, conforme enfatiza Beck, do maquinário do progresso que ameaça regiões,
países e continentes, tomando, por fim, cada vez mais um contorno político. Explico:
aquilo que até certo tempo não permeava o debate político, torna-se político, sob a
perspectiva de combate às causas no próprio processo de modernização. Desta
compreensão, depreende-se que o debate político acerca dos riscos é somente mais um
de seus efeitos colaterais, capaz de influir no campo da política criminal.

1.4.2. A delimitação dos riscos

O conhecimento sobre os riscos e sua potencialidade danosa está sob a


dependência do saber, haja vista serem, em grande parte, imperceptíveis pelos sentidos.
Como já exemplificado, pode-se citar o risco de catástrofes nucleares, que só podem ser
delimitados mediante medição científica, escapando à percepção humana. Como

16
Idem, p. 24.
19
resultado, os cidadãos não detentores de conhecimento ou de capacidade analítica e
crítica ficam à mercê dos juízos e erros dos expertos.

Todavia, na sociedade tardia de riscos, o monopólio da racionalização dos riscos


desaparece, em que de um lado os peritos definem objetivamente a probabilidade de
uma catástrofe acontecer e a sociedade, do outro lado, extrai valorações e expectativas
sociais, definindo quais danos são aceitáveis e quais não o são, ante a necessidade de
não afetação em demasia do desenvolvimento tecnológico.

A esta heterodeterminação do risco, conforme preceitua Amaral17, o direito penal


torna-se influenciado de maneira plural e heterônoma, considerando que todo o risco
constatado está sujeito a diversos tipos de argumentação (a dos expertos, da população
em geral, das instituições de controle etc.). Em face desta característica peculiar de
delimitação dos riscos, ainda aduz Amaral que o direito penal termina por ter reduzida
sua capacidade argumentativa, sujeitando-se aos interesses políticos preponderantes
nesse intenso diálogo acerca da definição dos riscos. Na mesma esteira, é o escólio de
Botini:

“Constata-se que a tomada de consciência dos riscos não está, nem pode estar
fundamentada exclusivamente nas premissas científicas, mas está mediada
argumentativamente, ou seja, o grau de visibilidade do perigo potencial fica,
mais do que nunca, sujeito à apropriação política 18”.

Conforme será adiante demonstrado, esse intenso debate político e o clamor


social por segurança tem preponderante influência sobre o direito penal. Esse contexto
da modernidade permite que decisões penais sejam tomadas a partir de uma política
pública que necessita de pouca base teórico-científica. Exsurge um direito penal como
resposta aos anseios sociais com soluções voltadas à administração dos riscos, ainda que
se tratem de soluções não democráticas e violadoras de princípios basilares de um direito
penal de aspiração liberal.

17
AMARAL, Cláudio do Prado. Bases Teóricas da Ciência Penal Contemporânea: dogmática, missão do direito
penal e política criminal na sociedade de risco. São Paulo: IBCCRIM, 2007.
18
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20
1.4.3. A sociedade do medo

O modelo proposto por Beck fundamenta-se na análise dos riscos hodiernos e sua
consequente produção de insegurança social. Nos dizeres de Beck, a crescente
insegurança da sociedade, agora ciente dos riscos que a espreitam no segundo estágio
do processo de reflexividade, conduziu ao surgimento de uma “sociedade do medo”.

Destarte, os riscos outrora imperceptíveis tornam-se explícitos, a exemplo das


catástrofes ambientais. O término dessa fase de obscuridade se dá em razão de dois
fatores, a saber, a intensificação da produção das situações de risco – com o
desenvolvimento tecnológico desenfreado – e o incremento da percepção pública sobre
eles, emergido na segunda etapa da modernização19.

Com esta percepção social dos riscos globais e de efeitos transindividuais,


legitimados pelas instituições de controle até então dotadas de credibilidade, surge uma
mudança de postura com relação ao desenvolvimento tecnológico. Da aprovação deste
desenvolvimento, passa-se à exigência por responsabilização.

Nestas condições, inicia-se um processo de normalização simbólica, de acordo


com Beck, em que os detentores dos meios de produção, influenciando a esfera política,
criam mecanismos simbólicos, estabelecedores de regras que aparentemente tratam de
regular a produção industrial e econômica, gerando falsa sensação de segurança. Pode-
se dizer que, existem diversos critérios e forças sociais atuando na delimitação dos
riscos, determinando aqueles tidos como aceitáveis em face da necessidade de constante
desenvolvimento. Há, verdadeiramente, um jogo político, em que os critérios racionais
de segurança, embasados em conhecimentos técnico-científicos, são constantemente
negociados na esfera pública, até que os riscos assumem dimensões globais e
perceptíveis.

19
MACHADO, Marta Rodrigues de Assis, p. 75.
21
Este fenômeno de normalização é merecedor de especial atenção, precipuamente
por dizer respeito ao sistema jurídico. Normas são criadas para regulação de condutas e
pacificação social – isso em linhas gerais – e, sendo assim, o que está de acordo com a
norma, em tese, não deveria gerar riscos à sociedade, estando por ela legitimado.
Todavia, como bem explica Machado:

“É exatamente essa relação que é subvertida pelos riscos tecnológicos. Seu


reconhecimento demonstrou que nem sempre a harmonia com o direito denota
a inofensividade da conduta perante os bens jurídicos socialmente valorados
e que os processos de tomada de decisões foram conduzidos, por mais de um
século, sob a ignorância dos riscos que poderiam acarretar. Em suma,
reconheceu-se, tardiamente, que as ações geradoras de riscos eram aquelas
que sempre estiveram de acordo com as normas de comportamento”.

Com efeito, diante desta aparente normalização legitimada pelo sistema jurídico,
riscos potenciais de catástrofes desenvolveram-se de maneira oculta e desapercebida,
até o momento em que suas dimensões tornaram-se tão demasiadas que não mais
conseguiram furtar-se à detecção social. Neste cenário, as instituições de controle social
passam a ser contestadas, mormente porque, apesar de sua aparente atuação frente ao
gerenciamento dos riscos, em verdade atuaram à favor de seu surgimento, tudo em prol
do desenvolvimento tecnológico propiciador de riqueza. Por isso, nos dizeres de Beck,
“a ordem jurídica estabelecida não mais garante paz e estabilidade, mas legitima as
ameaças20”.

Outra seara do conhecimento humano que também passa a ser contestada é a


própria ciência, vez que sua capacidade de fazer previsões acerca dos riscos mostrou-se
muitas das vezes desacertada. Como notório exemplo, pode-se citar o acidente nuclear
de Chernobyl e do Bhopal21, marcos do reconhecimento público das catástrofes
decorrentes do desenvolvimento tecnológico.

20
BECK, Ulrich. World Risk Society. Cambridge: Polity Press, 1999, p. 34, apud Marta Rodriguez de Assis
Machado, op. cit, p. 77.
21
Beck, em sua obra (Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade), traz impressionante relato acerca do
desastre de Bhopal, a seguir transcrito: “Os pássaros caíam do céu. Búfalos, vacas, cães jaziam mortos pelas ruas
e campos – estufados depois de poucas horas devido ao calor da Índia Central. E por toda a parte as pessoas
sufocavam – contorcendo-se, espumando pela boca, mãos contraídas cravadas na terra: eram 3 mil no fim de
semana passado, e surgem sempre novas vítimas, as autoridades já deixaram de contabilizá-las. 20 mil pessoas
22
Outrossim, não se pode olvidar do papel da mídia na divulgação massiva de
eventos catastróficos, potencializando a sensação de insegurança da população.

Derradeiramente, a partir destas situações de insegurança e de questionamento e


desconfiança em relação às instituições de controle e ao próprio conhecimento científico
- que demonstrou-se inapto em muitas ocasiões em seu papel de controle e previsão de
catástrofes - surge o fenômeno que pode ser conceituado como processo de juridicização
da opinião pública, “que representa o direcionamento de pressões de várias ordens à
burocracia institucional22”.

1.4.4. O processo de juridicização da opinião pública

O processo de juridicização da opinião pública pode ser compreendido como o


pressionamento da burocracia institucional, para que esta viabilize o controle dos riscos
por meio de sua atuação e, com isto, ponha termo à insegurança social. Passa-se a exigir
do Estado iniciativas tendentes à abolição dos riscos, em especial iniciativas de ordem
jurídico-normativa, ainda que dotadas de eficácia meramente simbólica.

Em tais termos, conforme ilustrado por Beck em sua teoria da sociedade mundial
de riscos, a sensação de domínio dos riscos deve acompanhar o crescimento destes.
Surgem soluções paliativas enunciadas por Beck como cosmética do risco, dotadas de
efeitos simbólicos e sintomáticos, em detrimento da adoção de uma política real de
prevenção dos riscos23. Ocorre que esta cosmética dos riscos, que não propõe soluções
de eficácia real, leva à uma crise das instituições formais de controle e, diante de tal

provavelmente ficarão cegas. Cerca de 200 mil ficaram feridas. Na cidade de Bhopal, na noite de domingo para
segunda, ocorreu um apocalipse industrial sem paralelo na história: uma nuvem venenosa vasou de uma indústria
química, estendendo-se em seguida como uma mortalha por 65 quilômetros quadrados densamente habitados –
quando finalmente se dissipou, espalhou-se o odor repulsivo da putrefação. A cidade transformou-se numa praça
de guerra, em pleno período de paz. Os hindus incineravam em seus crematórios os mortos, 25 de cada vez. Logo
passou a faltar madeira para a cremação ritual – assim, eram em labaredas de querosene que ardiam os corpos. O
cemitério dos muçulmanos revelou-se demasiado estreito. Velhos túmulos precisaram ser abertos, mandamentos
sagrados do Islã, desrespeitados”. Cf BECK, Ulrich, op. cit., p.
22
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit, p. 84.
23
Idem, p. 86.
23
quadro de sentimento global de insegurança, passa a população a clamar por soluções,
identificadas na atuação do direito penal, provavelmente por representar o meio mais
grave e visto como mais efetivo pela sociedade para a intimidação e coerção de condutas
incompatíveis com o modelo de segurança almejado.

Assim, a juridicização da opinião pública acarreta uma aproximação da sociedade


do direito penal, principalmente em razão da influência da mídia e da participação
crescente dos movimentos sociais no debate político. Por tais meios, o público passa a
ter participação efetiva na elaboração das normas e, por força desta interação, “o sistema
penal modifica, então, seus critérios de decisão, seu conhecimento sobre as penas e
engaja-se numa discussão para determinar as novas fronteiras do direito penal24”.

As demandas sociais e este fenômeno de participação social no debate político,


em uma explanação sintética, tendem a cada vez mais influenciar o aparato penal, como
forma de erradicação de condutas geradoras de riscos, ocasionando, tal como teorizado
por Jesus Maria Silva Sánchez, um processo de expansão do direito penal, questão a ser
abordada nos próximos capítulos.

24
Idem, p. 88-89.
24
2. PROPOSTAS DE UM DIREITO PENAL DA SOCIEDADE DE RISCOS

Delimitadas as características mais relevantes que delineiam a teoria sociológica


da sociedade de risco, bem como a influência desta sobre o campo político criminal,
passa-se a expor as principais modificações no âmbito jurídico penal, tendo em vista a
aparente incompatibilidade do direito penal liberal para atender as novas demandas
sociais de aspecto supraindividual.

Nesse contexto, apontam-se propostas de reformulação, consistentes em uma


notável expansão do direito penal com a tipificação de condutas anteriores às esferas do
dano - a exemplo dos crimes de perigo abstrato -, a ampliação de normas penais em
branco – importando em uma administrativização do direito penal -, a extensão da
proteção penal a bens jurídicos transindividuais e a flexibilização de garantias penais
materiais.

2.1. Paradigma Político Criminal do Direito Penal da Sociedade do Risco

No atual paradigma da sociedade mundial do risco, a delinquência assume novas


características, importando em um novo modelo de delito que se presta para a construção
dogmática: a título exemplificativo, no lugar do homicídio praticado por um único
agente, resultando em lesão restrita na maioria das vezes a uma única vítima, ingressam
no campo de análise dogmática os comportamentos de corrupção de uma empresa que
pratica crimes ambientais por exemplo.

Ocorre a substituição dos crimes individuais por figuras típicas plurais. Ao lado
da proteção dos bens jurídicos individuais, exsurgem os chamados bens jurídicos
coletivos ou supraindividuais como objeto da proteção penal. 25

25
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 118.
25
Conforme exposto alhures, de maneira inicial, essa mudança do panorama penal
clássico para este “novo” direito penal está intimamente relacionada ao processo de
juridicização da opinião pública, traduzido como clamor social por segurança e
expectativa de eliminação ou ao menos redução dos riscos. Em tais termos, consoante
enfatiza Silva26:

“[...] a percepção pública dos riscos facilmente convola-se em uma crescente


demanda social por segurança, especialmente pelo viés normativo-penal, com
o direcionamento de tais pressões à burocracia institucional. Assim, a aversão
ao risco e a aspiração à segurança figuram como os responsáveis pela
reivindicação da sociedade para que o Estado ofereça tanto a almejada
proteção quanto a sensação de confiança nessa proteção”.

Desse modo, ao lado da percepção dos fenômenos da sociedade do risco e, ipso


facto, da pressão social exercida sobre o sistema penal, aponta-se para um
desenvolvimento da dogmática jurídico-penal cada vez mais voltada para a integração
das valorações político-criminais com a teoria do delito, configurando-se, nas palavras
de Machado, “um sistema penal mais aberto aos influxos sociais, às teorias sociológicas
e, especialmente, aos estudos criminológicos27”.

Com efeito, é na política criminal que os influxos sociais encontram com a


possibilidade de influenciar o arcabouço jurídico-penal, por meio da análise de dados
empíricos e sua operacionalização jurídica e consequente introdução de fenômenos
factuais no direito penal. Desta forma, os acontecimentos sociais inerentes aos riscos
são absorvidos pela dogmática penal, de forma que sejam concebidas respostas
preventivas e de reação a eles, com a inevitável produção de figuras típicas
diferenciadas.

De modo a justificar a interferência do ramo mais radical de tutela jurídica, aduz-


se que a gravidade e a dimensão dos riscos, capazes de causar danos globais e coletivos,
são motivos mais que bastantes para que o direito penal seja invocado. Em segundo

26
SILVA, Luciana Carneiro, op. cit., p. 95-96.
27
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit, p. 93.
26
lugar, também há que se fazer menção à desconfiança no que se refere à ciência,
legitimadora dos novos riscos, importando na renúncia de soluções científicas para o
controle dos riscos, reivindicando-se uma proteção ligada ao poder punitivo estatal.

Nestes termos, explicita Zaffaroni que é histórica esta relação de invocação


emergencial do direito penal como forma de se solucionar conflitos sociais. Diante
disso, aduz que:

“(...) a história do poder punitivo é a das emergências invocadas em seu curso,


que sempre são sérios problemas sociais. (...) o poder punitivo pretendeu
resolver o problema do mal cósmico (bruxaria), da heresia, da prostituição, do
alcoolismo, da sífilis, do aborto, da rebelião, do anarquismo, do comunismo,
da dependência de tóxicos, da destruição ecológica, da economia informal, da
especulação, da ameaça nuclear etc. Cada um desses conflitivos problemas
dissolveu-se, foi resolvido por outros meios ou não foi resolvido por ninguém,
mas nenhum deles foi solucionado pelo poder punitivo. Entretanto, todos
suscitaram emergências em que nasceram ou ressuscitaram as mesmas
instituições repressoras para as quais em cada onda emergente se apelara, e
que não variam desde o século XII até a presente data 28”.

Decerto, o recurso ao direito penal, conforme dito acima, não é algo que se possa
atribuir tão somente à contemporaneidade, uma vez que utilizado para se tentar
solucionar uma diversidade de conflitos existentes em diversos períodos da história e,
em algumas ocasiões, até mesmo para legitimar atrocidades inomináveis. O que não se
pode perder de vista é que, hodiernamente, o direito penal é chamado a atuar de forma
expansiva, passando-se dele a exigir uma atuação garantidora das gerações futuras e de
regulamentação de uma diversidade de temáticas, mormente aquelas ligadas ao meio
ambiente, à sanidade dos produtos distribuídos à população, à manipulação genética e à
atividade econômica29.

Sendo assim, diante desta complexidade de fenômenos sociais, a política criminal


se incumbe de absorver as expectativas sociais e discussões, traduzindo-as em soluções
concretizadas no aparato penal.

28
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 68.
29
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 95.
27
Todavia, estes novos conflitos que emergem da sociedade de riscos, suscitam um
novo modelo de intervenção penal. Ademais, é nisto que reside o ponto de conflito, pois
a dinâmica e o perfil dos novos riscos, de características globais e suscetíveis de causar
danos à grupos de pessoas indeterminadas não se coaduna com o modelo liberal, calcado
na individualização de responsabilidades e proteção à bens jurídicos singulares.

Por conta destes novos riscos, capazes de gerar danos massivos e irreparáveis,
observa-se que o direito penal de resultados, de atuação repressiva, não é suficiente e
adequado para a prevenção dos possíveis resultados danosos que possam vir à existir,
justificando-se a antecipação da tutela penal à esferas anteriores ao dano, a proteção de
bens jurídicos desmaterializados e a flexibilização de garantias, importando, tal como
teorizado por Silva Sánchez, em um fenômeno de expansão do direito penal.

2.2. A Criminalidade Moderna

Traçado o papel da política criminal no vulcão civilizatório que é a sociedade de


riscos, impende no presente tópico esclarecer as principais condutas geradoras de riscos
tipificadas neste novo modelo de direito penal.

Winfried Hassemer, conceituado penalista alemão, aduz que estas condutas


podem ser agrupadas sob a denominação de criminalidade moderna – que corresponde
à modernização político-criminal –, que deve ser diferenciada da chamada criminalidade
de massa, a exemplo dos crimes comuns do dia-a-dia, tais como roubos, furtos, tráfico
de drogas etc30.

Nestes termos, obtempera que a criminalidade moderna pode ser exemplificada


pela criminalidade econômica, pela criminalidade ambiental, pelo crime organizado,
pelo comércio internacional de armas, pelo terrorismo etc., caracterizando-a, linhas

30
HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal in Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo, n. 8, out.-dez. 1994, p. 42-52.
28
gerais, da seguinte forma: a) inexistência de vítimas individuais; b) lesões causadas a
bens jurídicos metaindividuais; c) danos causados com pouca visibilidade à primeira
vista; d) operação caracterizada pela profissionalidade, internacionalidade e pela divisão
do trabalho.

Prossegue ainda Hassemer explicando que esta nova criminalidade, inspiradora


de reformas penais por meio da absorção de expectativas levada a cabo pela política-
criminal, decompõe-se em dois aspectos, quais sejam, a ampliação territorial de
aplicação do direito penal e a utilização em demasia de crimes de perigo abstrato e
alteração de mecanismos processuais penais, com modificações importantes na fase de
investigação, o que se pode observar com maior clareza no que diz respeito aos casos
relativos ao crime organizado.

Por derradeiro, o penalista alemão traz a lume a questão da adequação da resposta


do direito penal moderno, aduzindo haver uma tendência do legislador em se utilizar de
uma reação simbólica, em adotar um direito penal simbólico, asseverando que os
instrumentos utilizados não são aptos para lutar de maneira efetiva e eficiente contra a
criminalidade real. Em suas próprias palavras:

“(...)Isso quer dizer que os instrumentos utilizados pelo Direito Penal são
ineptos para combater a realidade criminal. Por exemplo: aumentar as penas,
não tem nenhum sentido empiricamente. O legislador – que sabe que a política
adotada é ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado e que reage
imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu chamo
de “reação simbólica” que, em razão de sua ineficácia, com o tempo a
população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma “reação
puramente simbólica”, que acaba se refletindo no próprio Direito Penal como
meio de controle social31”.

Sobre a questão supracitada, propõe Hassemer a adoção de um “Direito de


Intervenção” (assim por ele denominado), novo ramo que estaria localizado entre o
direito penal e o direito administrativo, em detrimento da utilização daquele e suas
“soluções simbólicas”. Tal temática será posteriormente abordada, não com a riqueza

31
HASSEMER, Winfried, op. cit., p. 43.
29
de detalhes que demanda, visto que a proposta do presente trabalho é a delimitação de
um panorama geral sobre a problemática do direito penal da sociedade do risco.

2.3. A Proteção Penal a Bens Jurídicos Supraindividuais

2.3.1. Conceito de bem jurídico no paradigma penal clássico

Não se concebe a existência de uma conduta típica sem que haja a afetação a um
bem jurídico, tendo em vista que os tipos penais são formas de se tutelar bens tidos como
indispensáveis à existência humana. Desta forma, segundo Zaffaroni e Pierangeli, “o
bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido
teleológico (de telos, fim), à lei penal32”.

Ainda citando Zaffaroni e Pierangeli, o bem jurídico penalmente tutelado - que


consiste em um conceito central na teoria do delito -, pode ser definido como “a relação
de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela
seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”.

Deste conceito, pode-se interpretar que o bem jurídico tutelado pela ordem
jurídica não é a coisa em si mesma, e sim a relação de disponibilidade do titular com a
coisa. De forma simplória, bens jurídicos são os direitos que temos a dispor de certos
objetos. Como exemplo, costuma-se dizer que a honra é um bem jurídico. Todavia,
apesar de não estar incorreto tal entendimento, o bem jurídico não é a honra pura e
simplesmente, e sim o direito a dispor da própria honra. Assim, quando uma conduta
importa em impedimento da disposição destes objetos, compreende-se que esta conduta
afeta o bem jurídico, sendo que algumas delas, por uma opção político criminal, estão
proibidas de serem praticadas em razão de norma penal que as tipifica.

32
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral.
10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
30
No paradigma penal clássico, é importante destacar que um bem jurídico somente
poderá ser penalmente tutelado quando tiver natureza fundamental e quando for
determinado ou no mínimo passível de determinação. Desta orientação, entende-se que,
para o direito penal liberal, não há crime sem que haja lesão ou perigo de lesão a um
bem jurídico, somente sendo invocada a tutela penal quando for socialmente necessária
à sobrevivência da comunidade e, portanto, nos moldes do princípio da intervenção
mínima.

Para André Stefam33, apesar de toda a discussão existente acerca de uma


conceituação definitiva de bem jurídico, o importante é definir, de fato, a finalidade do
direito penal, que guarda profunda relação com a problemática do bem jurídico.
Consoante explica o autor, o desafio do penalista, mais do que definir o que é bem
jurídico, é encontrar quais os limites para a sua proteção por meio das normas penais.

Com efeito, a missão política do direito penal, que é objeto de reflexão no


presente trabalho, é descobrir aquilo que é merecedor de proteção penal, discussão que
toma relevo ainda maior na problemática no processo de desmaterialização e proteção
supraindividual de bens jurídicos, questão a ser discutida na sequência.

2.3.2. A proteção a bens jurídicos supraindividuais

No paradigma penal clássico, a proteção penal está voltada, salvo casos


excepcionais, para bens jurídicos individuais e materialmente cognoscíveis, nos moldes
dos princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade.

De outro giro, no paradigma da sociedade global dos riscos, a preocupação social


direcionada à prevenção de comportamentos capazes de causar danos coletivos se volta
para o direito penal, que acaba por ter a sua conformação clássica modificada. Como
exposto alhures, o direito penal é parte integrante do organismo social, sujeito às
intempéries das demandas sociais e adaptando-se aos diversos momentos históricos.

33
ESTEFAM, André. Direito Penal, Parte Geral. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
31
Se no sistema clássico o bem jurídico é definido e preciso, nesta moderna
conformação social assume uma feição supraindividual e imaterial, consubstanciando-
se em modelos penais vagos e imprecisos. Na atualidade, o direito penal se volta para a
proteção de bens de conteúdo amplo e abstrato, atuando em coexistência com o modelo
de proteção à lesões concretas e individuais. A este processo pelo qual passa a teoria do
bem jurídico, Bernd Müssig denomina de “processo de desmaterialização do bem
jurídico34”.

O bem jurídico vem passando por uma profunda crise em razão da proliferação
de tipos que tutelam bem imprecisos e perigos abstratos, dificultando se estabelecer a
delimitação do espectro de proteção do direito penal.

Nesse diapasão, exsurgem cada vez mais mecanismos de criminalização formal


de condutas – sem se olvidar dos modelos simbólicos de tutela penal -, apenas
hipoteticamente capazes de causar dano, deixando de lado a necessidade de
demonstração de perigos concretos. Neste “novo” direito penal, as categorias de crimes
abstratos tornam-se uma constante, em oposição a sua característica de excepcionalidade
presente no direito penal de índole liberal.

Apesar desta categoria de bens jurídicos coletivos gozar de autonomia e


reconhecimento doutrinário, devendo sim serem resguardados pelo direito, a crítica se
faz no sentido de seu uso indiscriminado, de modo que corre-se o risco, conforme
obtempera Amaral, de “um uso militarizado do direito penal, na medida em que a
condição ideal de proteção de tais bens coletivos equivale a de uma total proteção dos
mesmos, ou seja, tipificar tudo, para melhor proteger 35”.

2.4. A Expansão do Direito Penal

34
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 107.
35
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 173.
32
2.4.1. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução

2.4.1.1. Princípio da precaução

Conforme conceitua Bottini, o princípio da precaução, da prudência ou da cautela


concebe-se como “a diretriz para a adoção de medidas de regulamentação de atividades,
em casos de ausência de dados ou informações sobre o potencial danoso de sua
implementação36”.

A imposição destas medidas de restrição de atividades cujos potenciais danosos


são desconhecidos implementou-se na Alemanha, nos anos 60, como instrumento de
proteção ambiental. Assim, o vorsorgeprinzip (princípio da precaução), estabeleceu-se
como base da política alemã de meio ambiente.

Com o desenvolvimento tecnológico e a incorporação dos riscos como fator


central da sociedade contemporânea, percebeu-se que os mecanismos tradicionais não
eram aptos à prevenção de possíveis danos. Com a obsolescência dos sistemas clássicos
de gerenciamento dos riscos, bem como com a impotência da ciência em desnudar a real
periculosidade das modernas atividades humanas, o princípio da precaução é erigido
como “alternativa capaz de pautar a administração dos riscos e ocupar os espaços de
regulamentação de atividades37”.

No início, tal princípio estava atrelado somente à proteção ambiental, mas, na


atualidade, é utilizado para embasar a proteção de outros espaços, como o da saúde
pública e o dos direitos de consumo, incorporando-se em diversos documentos jurídicos
internacionais.

No Brasil, pode-se citar como exemplo de incorporação deste princípio a Lei de


Biosegurança (Lei N. 11.105/2005), que faz menção expressa ao princípio da precaução.

36
BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op. cit., p. 63.
37
Idem, p. 65.
33
2.4.1.2. Crimes de perigo abstrato

O tipo de perigo abstrato é uma técnica legislativa utilizada para a tipificação de


condutas independentemente da produção de um resultado lesivo ou, ao menos, da
demonstração de um perigo concreto de dano. O cerne de tais tipos está na própria ação
ou comportamento, em oposição ao que ocorre com os delitos de lesão e os de perigo
concreto.

Segundo enfatiza Bottini, esta técnica constitui-se como núcleo central do direito
penal de riscos, como uma consequência da configuração social abordada no capítulo
inicial38.

No contexto da sociedade de riscos, o massivo desenvolvimento tecnológico gera


riscos de catástrofes globais, aptas a atingir um número indeterminado de pessoas. Tais
riscos, que passaram de maneira despercebida num primeiro momento, passam a
integrar o debate político, com o aumento cada vez mais crescente da sensação de
insegurança. Neste cenário, despontam os tipos de perigo abstrato, pois, o que importa
evitar são os resultados por meio da repressão de condutas. Dessa forma, a norma penal
direciona-se à antecipação da tutela penal à esferas anteriores ao dano, sob uma
perspectiva que acentua o papel preventivo do direito penal. A atividade, em si, passa a
ser o núcleo do injusto.

Sob este panorama social, despontam figuras típicas abstratas. Os tipos de perigo
abstrato prescindem sequer da demonstração de risco concreto da conduta, priorizando-
se a punição de comportamentos em desvalor do resultado. Nesse sentido, ao contrário
do que ocorre com os crimes de perigo concreto, em que a exigência da demonstração
do perigo é ínsita a sua configuração, as tipificações abstratas importam em evidente
adiantamento da zona ou esfera de proteção penal a fases significativamente anteriores

38
Idem, p. 66.
34
ao dano ao bem jurídico, punindo-se simplesmente condutas que, teoricamente,
poderiam acarretar lesão ou importar em perigo concreto a ele39.

Em uma análise histórica40 do surgimento das infrações penais de perigo, discorre


Machado que:

“Com a percepção dos riscos tecnológicos da sociedade pós-industrial, a


adequação e eficiência dos tipos de perigo concreto para a proteção dos bens
jurídico-penais coletivos passam a ser questionadas. Diante disso, surge, ao
nível da política criminal e do discurso legitimador da determinação punitiva,
a proposta de utilização dos delitos de perigo abstrato como elemento-chave
do modelo de incriminação nos novos âmbitos de atividade da sociedade do
risco 41”.

Outros fatores responsáveis pela proliferação destas figuras típicas são a


dificuldade de elucidação ou previsão de nexos causais derivados do uso das novas
tecnologias – uma vez que os tipos de lesão ou de perigo concreto exigem a
demonstração do nexo de causalidade –, e a necessidade de proteção, conforme já
exposto, de bens jurídicos de natureza coletiva. Nesse sentido é o escólio de Santana
Vega:

“[...] admissão resignada de que vivemos em uma sociedade de riscos não só a


uma aceitação irrefletida de bens jurídico-penais coletivos como também a
proteção destes bens se vê acompanhada de um adiantamento das barreiras da
intervenção do direito penal por meio de erigir o conceito de perigo como
fonte, quase única, das infrações penais contra os mesmos42”.

39
SILVA, Luciana Carneiro, op. cit., p. 102.
40
Conforme sintetiza José Francisco de Faria Costa, em uma abordagem histórica, vê-se que o conceito de perigo
tardou a ingressar no campo da dogmática penal, que, durante muito tempo, baseou-se, exclusivamente, no
binômio violação-dano e relegou a proteção antecipada de perigos à atividade de polícia de administração. Assim,
por um bom tempo, permaneceu uma clara distinção: a violação propriamente dita do direito subjetivo era tratada
no âmbito do direito penal, enquanto o pôr em perigo era alçada exclusiva do direito administrativo. Cf. COSTA,
José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 306-307 apud
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 130.
41
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 132.
42
VEGA, Dulcemaria Santana. La protección penal de los bienes jurídicos colectivos. Madrid: Dykinson, 2000
apud BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op. cit., p. 68.
35
Com efeito, o perigo abstrato é sintomático do fenômeno da expansão do direito
penal, na ânsia por fazer frente aos temores que acompanham o desenvolvimento
tecnológico e econômico dos tempos hodiernos.

2.4.2. Administrativização do direito penal: os delitos de transgressão

Na busca de se proteger os aduzidos bens jurídicos universais, de conteúdo


amplamente abstrato - o que importou em substancial alteração dos critérios clássicos
de imputação -, pela via da política criminal, tipos penais passaram a ser construídos
sobre a violação de regras técnicas e burocráticas de administração do bem. Traduzindo,
o tipo penal não descreve a ação delituosa, como no caso do furto ou do homicídio, mas
descreve apenas a sua moldura, que será preenchida pela administração pública43.
Exemplificativamente, o tipo penal descreve que quem poluir a água será punido, mas
quem fixa os limites de poluição é o direito administrativo, quantificando-a através de
limites de segurança que não devem ser ultrapassados 44.

Classicamente, os modelos incriminatórios descrevem proibições de certos


comportamentos, observando a relação entre a ação tida como delituosa e o resultado
lesivo por ela produzido. Já no modelo de transgressão em comento, afastando-se das
premissas materiais do bem jurídico, o ilícito penal consiste na vulneração de um dever
definido na esfera extrapenal. Prioriza-se o desvalor da ação em detrimento do desvalor
do resultado. De fato, o que ocorre é uma crescente administrativização do direito penal,
conforme bem explícita Machado:

“(...) Nessas hipóteses, deixa de ser prioritária ao direito penal a proteção


direta a bens concretos, em casos concretos, segundo a danosidade do ato e
os padrões individuais de imputação, para, a exemplo da regulamentação
administrativa, ordenar, de modo geral, campos de atividades e reforçar,
mediante sanções, um determinado modelo de gestão setorial. Isso tudo sem
seguir os critérios de lesividade concreta, mas segundo os padrões de
oportunidade, diante de uma contemplação geral e estatística de um gênero
de condutas45”.

43
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 113.
44
HASSEMER, Winfried, op. cit., p. 45.
45
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 115.
36
Este modelo jurídico penal de incriminações de mera conduta, consubstanciado
em normas penais em branco, prescinde do dano ou do risco concreto de lesão, tal como
ocorre nas infrações de perigo abstrato, extraindo sua legitimação diante do panorama
dos novos riscos, de modo a propiciar a sensação de insegurança reivindicada e a
manutenção do sistema.

Em apertada síntese, a proteção a bens jurídicos universais, essenciais ao


desenvolvimento da sociedade contemporânea, é viabilizada através de mecanismos de
incriminação regulados por uma normatização extrapenal.

2.4.3. Os delitos cumulativos

Os tipos cumulativos ou kumulationsdelikte despontam como mais uma das


ideias teorizadas no processo de expansão do direito penal. Tal teoria concebe a punição
de condutas ínfimas, não por seu potencial de individualizada de gerar um resultado
lesivo, mas para se evitar que repetições massivas destas ações resultem em perigo para
o bem jurídico coletivo.

Aduzido conceito foi desenvolvido por Lothar Kuhlen, partindo da constatação


de que boa parte dos resultados nocivos a bens transindividuais decorre da acumulação
de efeitos de condutas levadas a cabo de forma massiva46.

Nesse passo, como outrora exposto, confundem-se as fronteiras entre o direito


penal e o direito administrativo sancionador47. A ratio dos delitos cumulativos exclui a
valoração dos fatos considerados em sua individualidade, seguindo a índole do direito
administrativo – de sancionar condutas que representem, em parâmetros estatísticos, um
perigo para os modelos instituídos de gestão administrativa -, que nada tem que ver com
o direito penal em sua aspiração clássica.

46
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 121.
47
Idem, op. cit., p. 143.
37
O que se percebe neste modelo é que ele atenta de maneira cristalina contra os
princípios da culpabilidade e da lesividade, além de sancionar tipos de conduta
desproporcionalmente, uma vez que, se o comportamento individual é desprezível,
incapaz de gerar lesão ou perigo ao bem jurídico, não se justifica a sua proibição por
intermédio do direito penal. Nessa esteira, obtempera Silva Sánchez que:

“Os kumulationsdelikte não se adstringem a um simples elemento hipotético,


porém identificam-se como um dado real, na medida em que apenas se antevê
a sua realização atual ou iminente por uma pluralidade de sujeitos – a despeito
de guardarem uma evidente incompatibilidade com os princípios
fundamentais do direito penal, como os da culpabilidade, da lesividade ou
ofensividade ao bem jurídico, afora o princípio da proporcionalidade 48”.

Os delitos cumulativos, na perspectiva idealizada por Kuhlen, são justificáveis


para atuar diante das degradações ambientais que decorrem, muitas vezes, de atividade
repetitivas. Para o teórico, a importância do bem jurídico ambiental elidiria o eventual
problema da violação ao princípio da proporcionalidade.

Nestes termos, conforme bem sintetiza Machado, neste modelo de tipificação de


condutas próprio da sociedade de riscos, “a conclusão sobre a ofensividade e a ilicitude
dessa conduta, embora de modo não declarado, parece envolver uma análise global,
estranha à racionalidade individualizante do direito penal moderno49”.

48
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María apud SILVA, Luciana Carneiro, op. cit., p. 104.
49
Idem, op. cit., p. 145
38
3. A CELEUMA ENTRE O PARADIGMA PENAL CLÁSSICO E O DIREITO
PENAL DO RISCO

De acordo com Beck, o processo de modernização reflexiva tem como uma de


suas etapas o fenômeno da reflexão, em que as bases da modernização são confrontadas
com as suas próprias consequências, silentes até certo momento (fase da reflexividade).
Quanto mais avançada a modernização, mais as estruturas da sociedade são abaladas e
modificadas. Nesse sentido, em alusão a Beck, sintetiza Silva que:

“Em alusão à continuidade deste processo, o autor enuncia a chamada teoria


da reflexão, em cujo estágio os fenômenos da sociedade mundial do risco
passam a ser percebidos e a constituir objeto de reflexão pública, política e
científica. Aqui surge a ideia fundamental de que, quanto mais as sociedades
são modernizadas, mais os agentes adquirem a capacidade de refletir sobre as
condições sociais da sua existência50”.

De fato, pelas características das novas situações a que se pretende incriminar, o


direito penal de bases clássicas resulta como não efetivo para executar esta tarefa. Nesse
passo, a adequação do direito penal de índole liberal é questionada para atender às
perspectivas difusas de prevenção e segurança.

Neste mesmo cenário, o direito penal é influenciado pelas perspectivas dos novos
riscos então percebidos, o que leva a adoção de novos critérios de imputação – a título
exemplificativo, os bens jurídicos supraindividuais, os crimes de perigo abstrato, a
proliferação de normas penais em branco, os delitos cumulativos etc. –, de modo que
este novo panorama do direito penal encontra-se inserido no processo de modernização
reflexiva51. Em tais termos, explica Machado que:

“Esse processo de inovação tem como características a relativização de


algumas barreiras que, erigidas sob as exigências do paradigma do direito
penal clássico, parecem dificultar a persecução de certos fins políticos
criminais. Em outras palavras, aqueles princípios que muitas vezes servem de

50
SILVA, Luciana Carneiro, op. cit., p. 105.
51
Idem, p. 105.
39
contenção à intervenção penal – tais como: estrita legalidade,
proporcionalidade, causalidade, subsidiariedade, intervenção mínima,
fragmentariedade, lesividade etc. – e que são frequentemente apontados como
obstáculos à adequação eficiente do direito penal às necessidades preventivas
e de proteção da sociedade do risco passam a ser confrontados,
reinterpretados, entendidos de forma flexível e adaptados às novas
necessidades52”.

Com efeito, sem prejuízo da observância dos princípios clássicos basilares do


direito penal, analisa o penalista português Jorge de Figueiredo Dias que o direito penal
fundado no contrato social rousseauniano, realmente não está preparado para a tutela
dos grandes riscos, pois, se mantidos os seus princípios, confessará ele que não tem
nenhum papel na proteção das gerações futuras. Defende não uma função minimalista
de tutela dos bens jurídicos, “mas a atribuição sem rebuços, ao direito penal, de uma
função promocional e propulsora de valores orientadores da acção humana na vida
comunitária – eis a única via que se revelaria adequada aos desafios da sociedade do
risco”53.

Nessa toada, percebendo-se a conflituosidade entre o direito penal liberal e as


novas demandas preventivas ínsitas à sociedade do risco, necessário se faz abordar nos
tópicos seguintes o conteúdo e aplicação dos princípios clássicos norteadores do direito
penal para, após, passarmos à abordagem de cada um dos eixos de conflito que exsurgem
desta confrontação.

3.1. Princípios Fundamentais do Direito Penal

3.1.1. Princípio da lesividade ou ofensividade

O princípio da lesividade (nullun crimen sine iniuria) determina que, para haver
crime, é preciso que haja um bem jurídico alheio tutelado e suscetível de ser lesionado.

52
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 155.
53
DIAS, Jorge de Figueiredo. “O direito penal entre a ‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade de risco’”. In: Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 33, 2001, p. 45.
40
Mais ainda, entende-se que esta lesão deve ser substancial, relevante para que o crime
se materialize satisfazendo a exigência deste princípio.

Em síntese, só há que se falar em crime se houver lesão ou ofensa possível a um


bem jurídico alheio penalmente tutelado. Nesses termos, explicam Alice Bianchini,
Antonio Molina e Luiz Flávio Gomes que:

"Está atrelado à concepção dualista da norma penal, isto é, a norma pode ser
primária (delimita o âmbito do proibido) ou secundária (cuida do castigo, do
âmbito da sancionabilidade). A norma primária, por seu turno, possui dois
aspectos: (A) ela é valorativa (existe para a proteção de um valor); e (B)
também imperativa (impõe uma determinada pauta de conduta). O aspecto
valorativo da norma fundamenta o injusto penal, isto é, só existe crime quando
há ofensa concreta a esse bem jurídico. Daí se conclui que o crime exige,
sempre, desvalor da ação (a realização de uma conduta) assim como desvalor
do resultado (afetação concreta de um bem jurídico). Sem ambos os desvalores
não há injusto penal (não há crime) 54”.

O aduzido princípio deve ser enxergado sob duas óticas; uma primeira, abstrata
e estrutural, que se destina à própria criação de crimes, através da qual, para um fato se
previsto na lei como crime, é preciso que haja um bem jurídico alheio tutelado, a ser
lesionado com a realização da conduta prevista.

Numa segunda ótica, destina-se ao aplicador da norma incriminadora, que deverá


observar, diante da prática de um fato tido como delituoso, se houve efetiva lesão ou
perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado

3.1.2. Princípio da intervenção mínima

Trata-se de princípio basilar de direito penal e, como o próprio nome já diz,


significa dizer que este ramo do direito deve intervir minimamente nas relações sociais
– em situações realmente graves e especiais -, em que seja estritamente necessário para
garantir a segurança jurídica e a tutela de determinado bem jurídico.

54
BIANCHINI, Alice, MOLINA, Antonio García-Pablos de, GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Introdução e
Princípios Fundamentais. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, vol. 1, p. 125.
41
Nelson Hungria, com o saber que lhe é peculiar, explica de maneira esclarecedora
o conteúdo do referido princípio:

“As sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a
vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil
a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido
com sanções civis, não há motivo para a reação penal. Sob o ponto de vista
histórico e político jurídico, que é o único admissível in subjecta materia, ou
melhor, tendo-se em vista a formação, através das leis editadas pelo Estado,
dos dois sedimentos jurídicos que se chamam direito civil e direito penal, pode
concluir-se que o ilícito penal é a violação da ordem jurídica, contra a qual,
pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, e ilícito
civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções
atenuadas da indenização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao
statu quo ante, da breve prisão coercitiva, da anulação do ato etc” 55.

Tradicionalmente, pode-se considerar este princípio como um instituto dirigido


ao legislador, que serve exclusivamente para regular a atividade legislativa, quer dizer,
em matéria penal a criação de leis deve ser feita de forma cautelosa e seletiva para que
somente poucas e específicas violações se erijam à categoria de crime, evitando assim
que se vulgarize o conceito de crime e que se reduza a aplicação de penas,
consequentemente possibilitando menor sobrecarga do judiciário no que tange a
processos criminais.

Em síntese, o aduzido princípio só legitima a criminalização de um fato se essa


solução apresentar-se absolutamente necessária para a proteção de um bem jurídico. O
direito penal deve ser a ratio extrema, o remédio último, cuja presença só se legitima
quando os demais ramos do direito revelam-se incapazes de dar a devida tutela a bens
de alta relevância para a existência do homem e da sociedade56.

3.1.3. Princípio da fragmentariedade

55
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. VII, p. 178.
56
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 26-27.
42
Decorrência direta do princípio supracitado, se o direito penal deve intervir
minimamente na vida dos cidadãos, isso significa que ao tutelar um bem específico
deve-se fazê-lo de forma fragmentária, ou seja, criminalizando apenas os fragmentos
mais importantes e necessários deste bem para garantia do bem estar social. No dizer de
Luisi, “o direito penal não encerra um sistema exaustivo de proteção a bens jurídicos,
mas um sistema descontínuo de ilícitos decorrentes da necessidade de criminalizá-los,
por ser este o meio indispensável de tutela jurídica57”.

Para outros autores58, trata-se, em verdade, de uma característica do direito penal


(caráter fragmentário), estabelecendo que as normas penais somente devem se ocupar
de punir uma pequena parcela, um pequeno fragmento dos atos ilícitos, justamente
aquelas condutas que violem de forma mais grave os bens jurídicos mais relevantes.

3.1.4. Princípio da subsidiariedade

Decorre do princípio da intervenção mínima e do caráter fragmentário do direito


penal. Assim, se este é apenas mais um ramo do direito e, junto com os demais (v.g.
civil, tributário, constitucional etc.), integra o ordenamento jurídico, pela ratio do
aduzido princípio, deve intervir de maneira subsidiária em relação aos demais ramos,
concebendo-se como a última alternativa do legislador para tutelar bens jurídicos,
garantir a segurança jurídica e proteger a ordem pública.

3.1.5. Princípio da proporcionalidade

Historicamente, a proporcionalidade fora concebida como limite ao poder estatal


em face da esfera individual dos particulares; tratava-se de estabelecer uma relação de
equilíbrio entre o “meio” e o “fim, ou seja, entre o objetivo que a norma procurava
alcançar e os meios dos quais ela se valia.

57
Idem, p. 26.
58
STEFAM, André, op. cit., p. 121.
43
Sua origem remonta à Magna Charta Libertatum, nos itens 20 e 21, quando dizia
que: “For a trivial offence, a free man shall be fined only in proportion to degree os his
offence...”; “Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to
gravity of their offence59”.

Montesquieu e Beccaria também desenvolveram o conceito de


proporcionalidade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
também trouxe em um de seus dispositivos o conteúdo de proporcionalidade, dispondo
que “a lei não deve estabelecer outras penas que não as estrita e evidentemente
necessárias” (art. 8º).

No Brasil, a Constituição Federal traz o aduzido princípio como inerente à


cláusula do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º) 60.

Analisando-se o conteúdo do princípio da proporcionalidade – conforme a


clássica lição de Robert Alexy –, este se dá em três dimensões: a) adequação (idoneidade
da medida adotada); b) necessidade (exigibilidade do meio adotado); c)
proporcionalidade em sentido estrito (comparação da restrição imposta com a ofensa
praticada).

No que diz respeito à adequação, deve-se verificar se os meios utilizados pelo


legislador são idôneos para a consecução do fim perseguido pela norma. No campo
penal, tal adequação se dará “quando ficar evidenciado que a norma regula um
comportamento socialmente relevante e referido expressa ou implicitamente em algum
valor constitucional61”.

59
Em tradução livre: “Por um delito leve, deve um homem ser punido proporcionalmente à gravidade do ato...”;
“Os condes e barões devem ser apenados somente por seus pares e proporcionalmente à gravidade do delito”. Cf.
STEFAM, André, op. cit., p. 123.
60
BRASIL. Constituição Federal, 1988: “Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos...”
61
STEFAM, André, op. cit., p. 125.
44
No tocante à necessidade, em matéria penal, tal dimensão se confunde com o
princípio da intervenção mínima e o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal,
no sentido de que não se justificará a utilização deste ramo do direito quando os demais
já se revelarem aptos à solução de um dado conflito.

Por fim, quanto ao elemento proporcionalidade em sentido estrito, no âmbito


penal, entende-se que cuida do exame da gravidade da sanção a ser imposta em face da
infração penal praticada. Ademais, o princípio da insignificância encontra aqui o seu
fundamento.

Analisada a significação do princípio em referência, cumpre ainda tecer uma


análise quanto a sua aplicação prática, questão na qual doutrina e jurisprudência
costumam associá-lo à proibição de excesso e proibição da proteção deficiente62.

Quanto à proibição de excesso (übermassverbot), o exemplo mais claro


consubstancia-se no princípio da insignificância63. Traduzindo, significa dizer que o juiz
deve desclassificar determinadas condutas sob pena de uma gritante
desproporcionalidade entre a pena cominada e a absoluta desprezibilidade do fato 64.

62
ADIn 3.112, Rel. Ministro Ricardo Lewandoski.
63
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O
RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE
DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO
- CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES
FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE
EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO
DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE
DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. O princípio da insignificância - que deve ser
analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria
penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter
material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a
presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma
periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a
inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no
reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos
por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público (STF - HC 84.412/SP. Min. Rel. Celso de Mello. Julgado
em 19/10/2004).
64
STEFAM, André, op. cit., p. 125.
45
No que concerne à proibição da proteção deficiente (untermassverbot), esta diz
respeito a não se permitir uma deficiência na prestação legislativa, de modo a
desproteger bens jurídicos fundamentais. Assim, por exemplo, seria inconstitucional,
por afronta à proporcionalidade em seu sentido positivo, lei que pretendesse
descriminalizar o homicídio.

3.2. Direito Penal do Risco versus Direito Penal Liberal

Como já visto, na contemporaneidade há o fenômeno da progressiva substituição


da proteção penal a bens jurídicos concretos voltados diretamente a indivíduos, pela
proteção a categorias de maior amplitude e imprecisão. Não há dúvida de que esse
panorama conflita com os primados clássicos do bem jurídico, fundados em
pressupostos de precisão e pessoalidade.

Neste particular, a tutela penal na sociedade do risco destoa do postulado clássico


da necessidade de lesão a um bem jurídico concreto, expresso no axioma nulla poena,
nullum crimem, nulla lex poenalis sine iniuria65, devendo intervir somente em casos de
relevante necessidade e para a proteção de bens jurídicos tido como essenciais à
sociedade, tal qual assevera o princípio da intervenção mínima.

De um modo geral, ocorre uma inversão nos critérios de conceituação do bem


jurídico: se antes tinha a função de operar como um limitador da intervenção punitiva,
com a pressão das novas demandas por proteção, a noção de bem jurídico se vê
transformada em critério para a exigência de intervenção penal. Observa-se, in casu,
uma mudança de paradigma, passando de um modelo limitador da criminalização de
condutas para um criminalizador, partindo dos pressupostos preventivos contra os novos
riscos66.

65
Ensina Ferrajoli que o princípio da lesividade constitui o primeiro fundamento dos três elementos que constituem
o delito: a natureza lesiva do resultado. A criação da lei penal fica condicionada a critérios que levam em
consideração o desvalor do resultado e não da conduta. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do
garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 373.
66
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 155.
46
Esse eixo de conflito suscita diversas discussões e posicionamentos doutrinários.
De um lado, há os que defendem que os critérios clássicos de imputação devem ser
mantidos, admitindo-se, apenas de maneira excepcional, a proteção de bens jurídicos
coletivos. De outro lado, os que entendem que o direito penal clássico já está
ultrapassado frente as novas demandas sociais.

Assim sendo, a Escola dos Penalistas de Frankfurt, capitaneada por Hassemer,


propõe não a rejeição liminar da tutela penal dos bens jurídicos coletivos, mas a sua
aceitação apenas na condição de que, com isso, se esteja protegendo de maneira indireta
interesses individuais. Dessa forma, reivindicam o recurso primordial ao tipos de
resultado em detrimento dos delitos de perigo, aduzindo que esta compreensão acerca
do bem jurídico se faz especialmente necessária a fim de se exercer as funções de
racionalização e limitação do âmbito de proteção penal67.

De outro giro, Günter Stratenwerth pronuncia-se a favor da renúncia ao conceito


de bem jurídico, defendendo que a dogmática penal refira-se a normas gerais de
comportamento, ou seja, que se oriente segundo o desvalor da conduta e passe a tutelar
as relações de vida como tais. Na mesma esteira, Bernd Schüneman postula uma ampla
configuração desse conceito, convertendo-o em um conceito elástico, compatibilizando-
o com diversas situações68.

Amaral, por sua vez, preceitua que a missão do Direito Penal tem uma finalidade
genérica de proteção. Aduz que já se afirmou que a missão de exclusiva proteção de
bens jurídicos é deficiente e, por outro lado, que a noção de bem jurídico é um referencial
que não pode ser descartado nessa missão protetiva. Afirma que o próprio Jakobs, em
sua teoria funcionalista, não afasta por completo a doutrina do bem jurídico, admitindo-
a como um elemento útil à determinação da configuração do Estado e da sociedade que
pretende se manter69.

67
KINDHAUSER, Urs Konrad apud MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 160/161.
68
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 161.
69
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 192-193.
47
Outro aspecto a ser analisado é a questão da antecipação da tutela penal,
considerando-se que a própria proteção de bens jurídicos supraindividuais impõe a
criação de tipos que importem em adiantamento da intervenção punitiva.

A combinação entre proteção de bens jurídicos supraindividuais e adiantamento


da intervenção penal gera grande contradição com a necessária ofensividade que deve
ser ínsita às condutas típicas. Nestas tipificações, é priorizado o desvalor da conduta em
detrimento do desvalor do resultado, vez que prescindem da sua ocorrência.

Sintetizando, segundo as regras interpretativas formais dos delitos de mera


conduta e dos tipos de perigo abstrato, “seria lícita a imputação de responsabilidade
criminal em função de uma ação hipoteticamente negativa que, entretanto, na prática,
emergiu despida de qualquer danosidade ou periculosidade70”.

A conflituosidade dos tipos de perigo vem à tona quando analisados sob a égide
dos princípios norteadores do Direito Penal – expostos no subcapítulo anterior -, quais
sejam, da lesividade, da intervenção mínima, da fragmentariedade, da subsidiariedade e
da proporcionalidade.

Se a prevenção ou contenção das ações podem ser obtidas através de outros meios
menos radicais, a partir de outras searas do ordenamento jurídico, então, de acordo com
os referidos princípios, não seria legítima a penalização.

Partindo destas ideias, Machado analisa que é possível se identificar diversos


focos de conflito na aplicação dos mecanismos que resultam em antecipação da tutela
penal. A uma, aduz que os tipos de espectro amplo e indeterminado, sem relação com
resultados concretos, não oferecem bases para a delimitação do objeto de proteção, nem
para concretizar o nível de risco jurídico penalmente relevante da conduta típica em

70
Idem, op. cit., p. 162.
48
relação ao bem jurídico. A duas, argumenta que estes tipos prescindem da concretização
do resultado, o que impossibilita a sua verificação de acordo com o critério da existência
de lesão grave a bens de relevância para o indivíduo e para a sociedade71.

Observa-se, outrossim, que estes modelos de criminalização de condutas


importam em um alargamento do espectro de atuação do Direito Penal, que passa a
abarcar situações antes tratadas por meio do Direito Administrativo. Tal fato traz
questionamento no sentido de se esta intromissão do Direito Penal não seria indevida,
uma vez que poderiam estar satisfatoriamente reguladas pelo Direito Administrativo
sancionador.

Em suma, a partir destas características, a tendência à antecipação da tutela penal


resulta dos anseios da nova sociedade do risco, marcada pela incerteza generalizada.
Com efeito, conclui Machado que:

“As ideias pugnadas pelos ideólogos do direito penal do risco, embalados pelo
clamor público de máxima segurança, enfrentam sérias dificuldades de serem
absorvidas por um aparato que, até então, tinha como princípios norteadores
a atuação como ratio extrema, conforme critérios de necessidade,
fragmentariedade e subsidiariedade 72”.

3.3. Propostas para um Direito Penal Frente à Sociedade do Risco

O papel do Direito Penal dentro da estratégia de prevenção dos riscos da


sociedade pós-industrial repousa na premissa de que ele não pode permanecer alheio à
proteção dos bens relevantes para a manutenção das condições de vida da humanidade.

Para Schüneman, é equivocada a concepção demasiadamente estreita da teoria


do bem jurídico, uma vez que o valor supremo a ser resguardado é o futuro de toda a
espécie humana e não só o indivíduo que vive o presente. Nesse passo, afirma que a
teoria pessoal do bem jurídico propõe uma perversa inversão no ordenamento dos

71
Idem, op. cit., 165.
72
Idem, op. cit., 168.
49
valores, pois orienta o Direito Penal a proteção de valores egoístas, abdicando da
proteção de valores fundamentais para a garantia de condições saudáveis do
desenvolvimento de toda a sociedade73.

Assim, com base neste pensamento, este autor sustenta que o Direito Penal deve
ter lugar na proteção das bases de subsistência, não só da sociedade atual, mas também
da sociedade futura.

Günther Stratenwerth, por sua vez, na mesma linha de raciocínio, compreende


como inaceitável que possa o Direito Penal tutelar bens jurídicos individuais e em
situações muito menos expressivas do que aquelas relacionadas aos novos riscos.
Reivindica como função precípua do Direito Penal aquilo que denominou como
asseguramento do futuro (zukunftssicherung)74.

Jorge de Figueiredo Dias, autor considerado moderado, também entende que não
se pode negar ao Direito Penal a intervenção nos conflitos advindos da moderna
sociedade do risco, sob pena de inversão do princípio da intervenção mínima. Isso
porque, se o Direito Penal não intervir nestas situações, estarão sendo subtraídas de sua
tutela condutas gravíssimas que colocam em risco a subsistência do planeta e, por
consectário, os bens afetos à dignidade dos sujeitos individuais75.

Ao lado destas vozes doutrinárias, observa-se que o Direito Penal, tal como
atualmente concebido, possui sérias limitações para intervir nos modernos conflitos.
Diante desse quadro, sustenta-se que ele deva sofrer um radical processo de revisão em
busca de uma estratégia intervencionista e preventiva, caracterizada pelos modelos
penais aduzidos no capítulo anterior.

73
BERND, Schünemann. Sobre la dogmática y la política criminal del derecho penal del médio ambiente.
Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal. Buenos Aires, n. 2-9ª, set. 1999, p. 627-653 apud MACHADO,
Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 180.
74
STRATENWERTH, Günter. Zukunftsicherung mit der Mitteln des Strafretchts? en ZStW 105, 1993, p. 679-96
apud MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 181.
75
DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 167.

50
Assim é que, alguns autores italianos como Giogio Marinucci e Emilio Dolcini,
criticam ferrenhamente os postulados do Direito Penal mínimo de índole garantista.
Manifestam-se favoravelmente ao processo de expansão do Direito Penal, de modo que
não represente a abdicação da proteção dos interesses coletivos agredidos pelos
poderosos da economia, pela criminalidade organizada e pelos subversores das
instituições democráticas76.

Sob a égide destas novas demandas preventivas, a evolução da política-criminal


aponta para a adequação da racionalidade penal, ansiando por eficácia em face dos
novos riscos e impondo a transformação das características clássicas do Direito Penal.

De outro giro, parte significativa da doutrina propõe a manutenção do Direito


Penal de índole garantista, defendendo a sua aplicação às novas realidades de maneira
restrita, somente nos casos compatíveis com seus princípios clássicos. Desta forma,
Machado, com base neste pensamento, afirma que:

“(...) Se a complexidade dos fenômenos do risco, as imbricauções causais e os


contextos massivos e coletivos de ação são insuscetíveis de ser trabalhados
pelos instrumentos do direito penal, disso não deriva, automaticamente, que o
direito penal deva transformar-se para absorver essa nova competência. Pelo
contrário, para esses autores, isso confirma a ideia de que os problemas da
sociedade do risco devem ser resolvidos por meio de outros instrumentos77”.

No mesmo sentido, Hassemer entende que o direito penal não pode perder sua
função de tutela de bens jurídicos concretos para proteger vagas e indeterminadas
situações. Defende a criação de um direito de intervenção – que será adiante analisado
–, mantendo firme sua posição contrária à extensão da tutela penal a bens jurídicos
supraindividuais78.

76
MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Diritto penale mínimo e nuove forme di criminalità. Rivista Italiana
di Diritto e Procedura Penale, fasc. 3, jul.-set. 1999, p. 802-829 apud MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op.
cit., p. 184.
77
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 185.
78
HASSEMER, Winfried, op. cit., p.

51
Esta postura conservadora do Direito Penal pode ser principalmente atribuída aos
representantes da Escola dos penalistas de Frankfurt, contrários à atribuição ao Direito
Penal da tutela dos novos riscos, entendendo que outros ramos do direito devem ser
acionados, em especial o Direito Administrativo.

Silva Sánchez preceitua que, por meio do Direito Administrativo, não se almeja
tratar de ações imputáveis pessoalmente a um sujeito determinado, mas de um gênero
de condutas que represente, em termos estatísticos, perigo para um determinado modelo
setorial de gestão79.

Não se pode deixa de fazer menção a autores que não se apegam a nenhum desses
modelos teóricos e que entendem ser possível, dentro de certos limites, proceder a
algumas alterações no sistema clássico.

Nesse diapasão, sustenta Prittwitz que o fim de minimizar riscos por meio do
Direito Penal deve ser mantido, apenas na medida em que haja compatibilidade com os
“princípios de atribuição de responsabilidade individual justa80”.

Jorge de Figueiredo Dias, por sua vez, entende que no caso dos megarriscos, em
que outros ramos do direito forem inidôneos para o controle e domínio dos riscos, faz-
se necessária uma punição criminal às violações das normas de comportamentos. Assim,
admite a tutela jurídico-penal, desde que não utilizada como primeira via no
enfrentamento dos riscos hodiernos.

3.4. Outras Propostas de Tutela dos Riscos

79
SÁNCHEZ, Jesús Maria Silva, op. cit., p.
80
PROTIWITZ, Cornelius. O direito penal do risco e o direito penal do inimigo; tendências atuais em direito penal
e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 47, São Paulo: RT, p. 31-45.

52
3.4.1. Direito Penal de duas velocidades

Jesús Maria Silva Sánchez, em sua obra “A expansão do Direito Penal”, adota
uma proposta intermediária de setorização do Direito Penal, denominada expansão
moderada. Recusa a indissociabilidade dos princípios clássicos, ao mesmo tempo em
que nega a adesão à flexibilização deste ramo do direito, propondo um modelo bifásico
ao sistema, chamado de “Direito Penal de duas velocidades81”.

Em sua proposta, opõe-se à plena modernização do Direito Penal, caracterizada


pela flexibilização de princípios, ao passo que renega o retorno ao Direito Penal de bases
clássicas, o qual, segundo ele, jamais sequer chegou a existir. Isso porque, conforme
explica, ao contrário do que se diz sobre a exclusiva proteção de bens altamente
pessoais, sempre houve nele a presença de uma rígida proteção do Estado, assim como
de certos princípios de organização social e estatal. Para ele, a rigidez das garantias desse
modelo eram apenas uma limitação ao autoritarismo e ao rigor excessivo das sanções
penais impostas82.

Partindo desta premissa, Sánchez estabelece uma relação direta entre as garantias
do sistema e a severidade das sanções impostas. Conclui que o problema não se encontra
na expansão do Direito Penal, mas, especificamente, na expansão das cominações de
penas privativas de liberdade.

Nesse passo, admite o autor a possibilidade da absorção de novas áreas de tutela


menos garantísticas dentro do direito penal, desde que as sanções previstas para os
ilícitos penais não incluam a pena privativa de liberdade.

Essa formulação proposta por Silva Sánchez gerou como resultado a divisão do
Direito Penal em dois modelos dogmáticos, quais sejam, o Direito Penal nuclear – no
qual se observam as garantias clássicas -, e o Direito Penal periférico – o qual admite a

81
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op. cit., p. 136-147.
82
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 195.
53
flexibilização dos princípios no intuito de viabilizar a proteção penal das novas áreas
oriundas da moderna sociedade do risco.

Como crítica a esta proposta intermediária, preleciona Botini que o autor abstém-
se de questionar substancialmente que, dada a natureza dos objetos de proteção, a
expansão do Direito Penal a novos contextos ainda assim resulta em flexibilização de
princípios e regras de imputação, não resolvendo o problema que gira em torno da
legitimidade do “Direito Penal dos riscos”. Em suma, aduz que este modelo está baseado
na discussão acerca da qualidade da pena, e não da legitimação da intervenção penal 83.

Amaral, por sua vez, com base na teoria funcionalista de Gunther Jakobs,
defendendo um direito penal único e sistêmico, traça algumas críticas contundentes à
proposta formulada por Silva Sánchez. Dentre as principais críticas, podem ser
elencadas as seguintes: a) a proposta de setorização do Direito Penal conduz à
possibilidade de relativização das garantias penais heroicas e historicamente
conquistadas; b) criação de um direito penal de classes, em que seriam sancionados com
pena privativa de liberdade os indivíduos de camadas menos favorecidas, enquanto na
delinquência agressiva aos bens coletivos (v.g. os que atingem a economia) seus autores
seriam sancionados com penas não detentivas; c) desconsideração do caráter
estigmatizante que possui qualquer pena criminal, ainda que não privativa de liberdade;
d) por fim, um Direito Penal de velocidades causaria uma inapropriada atuação do
princípio da proporcionalidade84.

3.4.2. Direito de intervenção

Hassemer, opondo-se às tendências da moderna dogmática e política-criminal,


defende a redução do Direito Penal a um Direito Penal nuclear, formado apenas por
delitos de lesão a clássico bens jurídicos individuais ou a bens jurídicos supraindividuais

83
BOTTINI, op. cit., p. 104.
84
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., fls. 121-122.
54
estritamente vinculados à pessoa, delitos de perigo concreto graves e evidentes e por
regras de imputação rígidas e princípios de garantia clássicos.

Tal proposta, diferentemente do que propugna Sánchez, remete a uma nova seara
de tutela, situada entre o Direito Penal e o Direito Administrativo e entre o Direito Civil
e o Direito Público, a qual denominou de direito de intervenção85, mais apto a lidar com
as situações emergentes da sociedade do risco.

Exemplificando, afirma Hassemer que este novo campo de regulação seria mais
efetivo no combate aos novos focos de insegurança, como nos casos de crimes de tráfico
de entorpecentes, contra a ordem econômica, ambientais etc., estabelecendo um modelo
prioritariamente preventivo. Assinala ainda, que, por se tratar de uma proposta dotada
de maior flexibilidade em relação às garantias materiais e processuais, disporia de
sanções menos intensas, renunciado definitivamente à imposição de pena privativa de
liberdade86.

Por derradeiro, conclui o penalista que, adotando-se o modelo por ele proposto –
que seria mais adequado para responder aos conflitos oriundos da sociedade pós-
industrial – o Direito Penal se libertaria das expectativas de prevenção com as quais não
pode cumprir, as quais, segundo ele, o arruínam87.

3.4.3. Críticas às propostas de setorização do Direito Penal - Proposta de um Direito


Penal como sistema aberto

Algumas propostas até então apresentadas, em especial a elaborada por Silvá


Sanches, representam uma setorização do Direito Penal em um “Direito Penal comum”
e um “Direito Penal do risco”, o que autorizaria concepções distintas conforme cada
uma das características da sociedade contemporânea.

85
HASSEMER, Winfried, op. cit., p. 41-51.
86
Idem, p. 41-51.
87
Idem, p. 41-51.
55
Cláudio do Prado Amaral tece inúmeras críticas a estas propostas. O autor
posiciona-se em uma outra linha de pensamento, pautada nas modernas ideias
normativistas-funcionalistas de Günther Jakobs, apregoando uma proposta de direito
penal como um sistema aberto, receptivo aos influxos de outros ramos do conhecimento
humano, como a sociologia, a antropologia, a economia entre outros.

Para o autor, admitir um Direito Penal do risco é desconsiderar o fato de que a


ideia de risco não é uma novidade do fim do século XX e começo do século XXI. Afirma
que a dinâmica ascendente do risco na sociedade contemporânea leva, isto sim, o Direito
Penal a uma atualização, no sentido de que venha a tomar como base uma outra
ferramenta, compatível com um sistema funcional capaz de determinar novos riscos,
fundado na comunicação que instrumentaliza a busca por um consenso possível88.

De maneira sintética, visto que o presente trabalho não se volta à exposição de


propostas isoladas de compreensão do Direito Penal na sociedade pós-moderna, concebe
Amaral a formulação de um Direito Penal único, avesso à formulações tendentes a sua
setorização. Para ele, propostas de fracionamento do Direito Penal levariam à quebra da
teoria do delito enquanto construção geral e uniforme do ilícito, o que conduziria a
decisões penais arbitrárias89.

Em nome de uma modernização do direito penal, posiciona-se não ser justificável


sua flexibilização, tampouco sua setorização, devendo ser traçada uma terceira via para
o enfrentamento da criminalidade moderna. Trata-se da necessidade de uma atualização
do Direito Penal às características marcantes da sociedade do risco.

Propõe que a significação material e concreta dos conceitos normativos deve


resultar de um processo dialogal entre o direito penal e as demais instâncias dos
conhecimento existentes (ou subsistemas, na denominação de Luhmann). Isso
proporcionaria ao Direito Penal buscar soluções legitimadas do ponto de vista das

88
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 123-125.
89
Idem, p. 130.
56
cambiantes expectativas sociais que recaem sobre a norma, o que só se conseguiria
mediante uma formulação fundada na comunicação90.

Desse modo, apregoa a necessidade de compreensão do Direito Penal como um


sistema aberto, permitindo um constante aperfeiçoamento de suas estruturas.91

Cumpre ao Direito Penal, por meio do referido processo comunicativo, identificar


se o caso concreto traz ou não uma conduta carregada de significação capaz de
desestabilizar as expectativas sociais depositadas na norma vigente. Na ótica sistêmica
luhmanniana, torna-se possível aferir quais são as condutas perigosas verdadeiramente
e quais não o são, permitindo-se uma resposta coerente do sistema penal.

Por fim, em uma breve conclusão desta perspectiva sistêmica e comunicativa do


Direito Penal, sem olvidar das críticas que merece a atual política criminal, obtempera
Amaral que:

“Exige-se da política criminal o resgate da identidade do direito penal,


orientada pelos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade. Para que a
política criminal atenda a tal demanda, há que se assumir uma atitude racional,
no sentido de respeitar suas características principiológicas, a fim de encontrar
uma compreensão de risco social coerente com tais princípios. A tarefa do
penalista moderno reside em compreender a significação do risco na sociedade
contemporânea... Onde os riscos não são de natureza mensurável, e, portanto,
são riscos socialmente construídos, é preciso que a política criminal recorra a
uma compreensão sistêmica luhmanniana do risco, a fim de delimitar quais
são as condutas que efetivamente representam um risco socialmente relevante,
e, portanto, inaceitável92”.

90
Idem, p. 134.
91
Visto como um sistema aberto, o Direito Penal pode ser representado sob dois aspectos: um científico e outro
objetivo. Cientificamente, o sistema aberto designa a aptidão para rever sempre as proposições vigentes, dado o
caráter de incompletude e provisoriedade com que encara conhecimento científico. Objetivamente, o sistema
aberto representa a passividade do direito penal para o constante aperfeiçoamento de suas estruturas e, assim, o
sistema penal também muda, objetivamente, na medida em que ele incorpora a unidade e a adequação respectivas
à evolução consubstanciada em princípios novos e diferentes daqueles existentes até então. Cf. AMARAL,
Cláudio do Prado, op. cit., p. 245.
92
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 250.
57
4. DISCUSSÃO DE CASO

HABEAS CORPUS 104.410 RIO GRANDE DO SUL


RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
PACTE.(S): ALDORI LIMA OU ALDORI DE LIMA
IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
PROC.(A/S) (ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL
COATOR(A/S) (ES): RELATOR DO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ESPECIAL Nº 984616 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO


DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS
CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL.
CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE
DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA. 1. CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos Constitucionais de
Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que,
em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de
condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas
normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista
os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados
apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um
postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais
expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também
podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela
(Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem
ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da

58
proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção
insuficiente. 1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria
penal, baseado em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus
de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes
elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência
(Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade
(Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten
inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição
confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e
avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém,
uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites
impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da
proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de
proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle
sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais
transgressoras de princípios constitucionais. 2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO.
PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003
(Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo abstrato. De
acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir,
fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar,
manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador
penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão
concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador
seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo
ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só,
comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas
que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a
medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de
caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o
legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as
medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem
59
jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal
preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da
proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional. 3. LEGITIMIDADE DA
CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador
da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança
pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e
psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da
conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro
etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é
intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta
ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de
ilegitimidade normativa. 4. ORDEM DENEGADA.

4.1. Análise do Caso

O presente Habeas Corpus foi impetrado perante o Supremo Tribunal Federal


contra decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial N.
984.616/RS.

Conforme consta dos autos, o paciente dou denunciado como incurso nas
infrações penais tipificadas no artigo 21 da Lei das Contravenções Penais e no artigo 10,
caput, da Lei N. 9.437/97 (Estatuto do Desarmamento).

Em primeira instância, foi o impetrante condenado pelos dois crimes.


Irresignado, apelou desta decisão, representado pela Defensoria Pública, requerendo o
reconhecimento da abolitio criminis quanto à contravenção penal de vias de fato,
aplicando-se o princípio da consunção e, ainda, requereu o reconhecimento da
atipicidade da conduta em razão da arma de fogo estar desmuniciada e, por
consequência, não apresentar potencialidade lesiva.

60
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao apreciar o apelo, declarou
extinta a punibilidade da contravenção penal e absolveu o acusado da prática do delito
de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.

Por esta razão, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul interpôs
Recurso Especial, requerendo a mantença da condenação proferida em primeira
instância. O Tribunal da Cidadania conheceu do recurso e deu-lhe integral provimento,
restabelecendo a condenação inicial.

Inconformado, o acusado, por intermédio da Defensoria Pública da União,


interpôs Agravo Regimental, o qual foi desprovido de forma unânime pela Quinta
Turma do STJ. Afirmou a Turma que é entendimento sedimentado desta Corte de Justiça
que, para a configuração do crime de posse ilegal e arma de fogo, basta que o agente
porte a arma sem autorização ou em desacordo com determinação legal, por se tratar de
delito de mera conduta, não havendo que se falar em resultado material ou incidência de
perigo concreto da conduta.

Assim sendo, interpôs o habeas corpus epigrafado, objetivando o


reconhecimento da atipicidade de sua conduta, fundamentando sua pretensão com base
no seguinte argumento, in verbis:

“Pelo princípio da ofensividade do direito penal, é inconcebível que o simples


porte da arma desmuniciada configure o delito. A potencialidade lesiva
ofensiva está diretamente dependente da funcionalidade da arma e também da
disponibilidade da munição. Diante desse fato, feita uma análise à luz do
princípio da proporcionalidade e razoabilidade, tem-se a conclusão que a
conduta do agente é atípica, considerando não haver qualquer possibilidade
de se conseguir imediato acesso à munição”.

De início, o Ministro Gilmar Mendes, relator do HC, trouxe à lume a


jurisprudência do STF, dividida em duas correntes básicas. Para a primeira, o crime de
arma de fogo constitui delito de perigo abstrato, prescindindo da arma estar ou não
municiada. Para a segunda, pautada no princípio da lesividade, o fato da arma estar

61
desmuniciada não constitui suporte para o crime de porte ilegal, visto que, nessa
hipótese, não haveria a ofensividade necessária ao preenchimento do tipo em seu aspecto
material.

No julgamento do RHC 81.057/SP (DJ 29.04.2005) de relatoria da Ministra


Ellen Gracie, a jurisprudência da primeira turma se firmou no sentido de que “configura
fato atípico o porte de arma desmuniciada e sem que o agente tenha a pronta
disponibilidade da munição”. Para os Ministros defensores desta tese, se a munição não
existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade
da arma de fogo como artefato idôneo a produzir disparo e, portanto, não se realizada a
figura típica.

De outro giro, foram elencados outros julgados do Pretório Excelso (HC


104.206, rel Min. Cármen Lúcia e RHC 91.553, rel. Min. Ayres Britto), alinhando-se à
tese de que “o crime de porte de arma de fogo constitui delito de perigo abstrato,
consumando-se independentemente da ocorrência do efetivo prejuízo à sociedade, pois
o dano é presumido pelo tipo penal”.

Continuando, o Ministro relator, adentrando ao mérito da controvérsia, faz a


análise dos crimes de perigo abstrato em face do princípio da proporcionalidade. Aduz
que os tipos de perigo abstrato descrevem ações que, segundo a experiência, produzem
efetiva lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico digno de proteção penal, ainda que
concretamente esta lesão ou perigo de lesão não venham a ocorrer. O legislador formula
uma presunção absoluta a respeito da periculosidade de uma determinada conduta,
prescindindo que, no caso concreto, a lesão ou o perigo de lesão venham a se efetivar.

Não olvida do intrincado conflito entre estes tipos penais e os princípios da


exclusiva proteção de bens jurídicos e da presunção de inocência, intrinsicamente
relacionados com o princípio da proporcionalidade, asseverando que a atividade
legiferante de criação das figuras em questão deve ser objeto de rígida fiscalização a
respeito de sua constitucionalidade.
62
Nada obstante esta compreensão, obtempera que os crimes de perigo
abstrato, por si só, não são inconstitucionais, estabelecendo os seguintes parâmetros,
com base na clássica divisão proposta por Robert Alexy acerca do princípio da
proporcionalidade:

1 – Adequação: em alguns casos, tais figuras típicas representam a melhor forma para a
proteção de bens jurídicos supraindividuais ou de caráter coletivo. Assim, pode o
legislador positivo, dentro de sua margem de avaliação e decisão, definir quais as
medidas mais adequadas e necessárias a efetiva proteção de determinados bem jurídicos.
Isso quer dizer que os crimes de perigo abstrato devem restringir-se aos comportamentos
que, segundo diagnósticos e prognósticos realizados pelo legislador com base em dados
e análises científicas disponíveis, configurem perigo para o bem jurídico protegido,
estando descartados aqueles que apenas de forma excepcional possam ensejar tal perigo.

2 – Necessidade: quando existirem medidas mais eficazes para a proteção do bem


jurídico, e menos gravosas para os direitos individuais, os crimes de perigo abstrato
serão contrários aos princípios da subsidiariedade e da ofensividade e, por corolário, ao
princípio da proporcionalidade. Delitos que podem ser reprimidos por outras searas do
direito não legitimam a intervenção do direito penal.

3 – Proporcionalidade em sentido estrito: deve ser analisado se a restrição a direitos


fundamentais como resultado da incriminação de comportamentos perigosos em
abstrato pode manter uma relação de proporcionalidade com a proteção do bem jurídico
em questão protegido pela norma penal.

Ao final, conclui o Ministro que, com base em toda esta argumentação, é


legítima a criminalização do porte de arma desmuniciada. Ressalta que a dinâmica dos
fatos observados tem demonstrado que a intervenção de outros ramos do direito não tem
sido suficiente para coibir o uso de arma de fogo e diminuir a violência. Nestes termos,
aduz que há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta,
63
acrescentando que, diferentemente de outros objetos, a danosidade é intrínseca a este
instrumento.

Nesse passo, obtempera que o legislador, com base em estudos científicos e


dados estatísticos, antecipou-se aos possíveis e prováveis resultados lesivos. Da mesma
sorte, conclui que o poder de intimidação da arma de fogo sobre as pessoas representa
potencial lesão à paz social e à segurança pública.

Por último, não olvida da existência de situações que, ainda que subsumidas
à tipicidade formal, são desprovidas de qualquer significação social. Todavia, tais
questões de absoluta ausência de resultado lesivo devem ser aferidas concretamente, na
aplicação do direito aos diversos fatos que se verificam no cotidiano.

4.2. Discussão

A matriz definidora e legitimadora do direito penal reside, sobretudo, na noção


do bem jurídico, de modo a possibilitar a compreensão de quais valores devem ser objeto
de tutela penal. Na sociedade de risco, face à demanda por segurança, novos modelos
de tutela penal exsurgem, representando uma antecipação de proteção à esferas
anteriores ao dano.

Conforme exposto alhures, Hassemer define estas novas tendências político-


criminas de “criminalidade moderna”,93 apontando como principais características: a)
inexistência de vítimas individuais; b) lesões causadas a bens jurídicos metaindividuais;
c) danos causados com pouca visibilidade à primeira vista; d) operação caracterizada
pela profissionalidade, internacionalidade e pela divisão do trabalho.

No caso submetido à apreciação do Pretório Excelso, especificamente, discute-


se a antecipação da tutela penal por meio dos crimes de mera conduta e de perigo
abstrato.

93
Sdasd.
64
Todavia, esta nova tendência político-criminal vai de encontro a princípios
basilares do direito penal de aspiração liberal, fundado na proporcionalidade,
intervenção mínima, fragmentariedade e lesividade. As tipificações de perigo abstrato,
conforme já se pronunciou o Ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso, no
HC 92.533/RS:

“(...)Punem a realização de conduta, imaginada ou hipoteticamente, perigosa,


sem a necessidade de configuração de efetivo perigo ao bem jurídico. A
periculosidade da conduta típica é determinada ex ante, por meio de
generalização, ou seja, de um juízo hipotético do legislador, fundado na idéia
de mera probabilidade. O perigo atua como simples motivo, ratio de criação
do delito, mas não chega a ser o resultado típico 94”.

No mesmo pronunciamento, aduziu o ilustre ministro que, em condutas como a


ora analisada, deve estar caracterizado um mínimo de ofensividade, como fator de
seleção de condutas que mereçam a proteção subsidiário do direito penal. Na
contemporaneidade, apesar de necessária a proteção de bens jurídicos distintos e de
maneira distinta, frente à nova dinâmica social, a atribuição de responsabilidade deve se
compatibilizar com os princípios clássicos do direito penal.

O jurista e eminente professor Lenio Luiz Streck, em artigo escrito para a Revista
IBCCrim95, indaga se há compatibilidade do direito penal com a punição de
comportamentos em que não há a demonstração de efetivo risco concreto de lesão a um
bem jurídico. Para tanto, embasa sua argumentação em um caso submetido ao Tribunal
Constitucional espanhol (sentença n. 105/88), no qual foi declarada a
inconstitucionalidade sem redução do texto do delito insculpido no artigo 509, uma vez
que “sem a prova da possibilidade de efetivo dano, não se pode punir. A presunção de
que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar portando instrumentos próprios para

94
asdfasdf
95
STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica diante da relação “regra princípio” e o exemplo privilegiado do crime
de porte de arma de fogo. Revista IBCCrim, Ano 20, volume 98, set-out/2012.
65
tal, não é razão para o enquadramento no tipo penal. Meras condutas não podem ser
punidas; tampouco se pode punir alguém com base em presunções96”.

Com base neste exemplo concreto, o autor faz uma comparação com o delito de
porte de arma de fogo, aduzindo que os juízes, quando da aplicação da lei no exercício
da atividade jurisdicional, devem construir seus argumentos de forma integrada ao
conjunto de regras do ordenamento, mormente a Constituição Federal, de modo a se
evitar arbitrariedades interpretativas.

No caso em pauta, a norma não deveria ser aplicada, por se demonstrar


inconstitucional, valendo-se da técnica da inconstitucionalidade parcial sem redução de
texto, haja vista a violação do princípio da presunção de inocência e da ausência de
comprovação da lesividade do comportamento97.

Outra questão a ser levantada é o argumento do Ministro Gilmar Mendes acerca


da utilização dos crimes de perigo abstrato para a proteção de interesses públicos e
sociais, mais especificamente a segurança pública. Tal compreensão demonstra-se assaz
equivocada, uma vez que a segurança pública não constitui um bem jurídico, mas sim a
um estado a ser alcançado pela proteção dos verdadeiros bens jurídicos. Nesta esteira, o
defensor público Gustavo Diniz Junqueira bem observa que:

“A visão da segurança enquanto bem jurídico sempre poderá ser alicerçada


como justificativa para a criminalização, uma vez que bastará a afronta à lei
(que regula condutas e dá segurança) para que se considere violado o referido
bem jurídico. Na verdade, a segurança não é um bem jurídico, mas sim estado
a ser alcançado em relação aos reais bens jurídicos, e a inversão de sentido
tem como efeito a prescindibilidade dos “bens jurídicos” consagrados como
merecedores de “dignidade penal (vida, dignidade, liberdade...), que seriam
substituídos, sempre, pela segurança 98”.

96
Idem, p. 258.
97
Idem, p. 262.
98
JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; FULLER, Paulo Henrique. Legislação Penal Especial. 6ª Edição, São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 733.
66
Nada obstante tais entendimentos, dos quais ousamos compartilhar, é pertinente
e produtivo trazer a lume compreensões em sentido oposto, o que só vem a enriquecer
o debate em tela. Assim, posiciona-se Fernando Capez da seguinte maneira:

“Não há dúvida de que um fato, para ser típico, necessita produzir um


resultado jurídico, qual seja, uma lesão ao bem jurídico tutelado. Sem isso não
há ofensividade, e sem esta não existe crime. Nada impede, no entanto, que
tal lesividade esteja ínsita em determinados comportamentos. Com efeito,
aquele que se dispões a circular pelas vias públicas de uma cidade ilegalmente
armado ou dispara arma de fogo a esmo está reduzindo o nível de segurança
da coletividade, mesmo que não exista uma única pessoa por perto. A lei
pretende tutelar a vida, a integridade corporal e a segurança das pessoas contra
agressões em seu estágio embrionário. Pune-se quem anda armado ou quem
atira sem direção para reduzir a possibilidade de exposição das pessoas ao
risco de serem mortas ou feridas. É possível que no momento em que o agente
foi flagrado não houvesse ninguém nas proximidades, mas isso não significa
que, não sendo coibida a conduta, tal não acabe ocorrendo. Exigir o perigo
concreto e comprovado, para tais infrações, implicaria tolerar a prática de
comportamentos perniciosos e ameaçadores à sociedade. Entretanto, isso não
significa dizer que houve crime sem resultado jurídico, pois a conduta, mesmo
sem a comprovação de perigo concreto a alguém determinado, foi idônea, ou
seja, apta a reduzir o nível de segurança da coletividade 99”.

Apesar do ilibado saber jurídico do ilustre doutrinador, que corrobora o


entendimento do Ministro Gilmar Mendes, seus posicionamentos são suscetíveis de
crítica. Este alargamento do que se concebe como bem jurídico, apesar de se fazer
necessário em muitas das situações cotidianas neste novo panorama global de sociedade,
ele ainda necessita ser enxergado como um limitador da intervenção do direito penal,
pautado nas premissas dos princípios da ofensividade e da lesividade. Na mesma linha
de raciocínio, argumenta Botini:

“O conceito de segurança e o risco que a sociedade tolera em prol deseu


desenvolvimento decorrem de decisões políticas, resultantes de conflitos de
interesses e de discursos. Conferir à segurança um papel central na
determinação da legitimidade das normas penais parece arriscado no ambiente
de incertezas da sociedade de risco (...). O conceito de bem jurídico, para
cumprir sua função de limite à repressão estatal, deve apresentar
características mais concretas e passíveis de reconhecimento objetivo e

99
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Vol. 4. 4ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 371.
67
distanciar-se das abstrações que comportam flexibilizações de variadas
espécies que podem desencadear a utilização arbitrária do poder punitivo 100.”

Outra impropriedade argumentativa no voto do ilustre Ministro diz respeito a sua


consideração acerca de serem tais figuras típicas criadas com base em análise de dados
estatísticos e científicos, e não ao bel prazer do legislador ordinário. Todavia, conforme
exposto alhures, na sociedade de riscos, a ciência, propiciadora das revoluções
tecnológicas e do modo de ser da sociedade contemporânea, demonstrou-se incapacitada
de prever com certa margem de segurança a periculosidade de determinadas condutas
frente aos novos riscos. Ela mesma, frise-se, na fase da modernização simples, tal qual
teoriza Beck, foi a propiciadora do desenvolvimento destes riscos globais, em razão de
sua incapacidade de previsibilidade e mensurabilidade destes riscos.

Interessante observar, ainda, que o Ministro considera relevante a punição de


conduta assaz destituída de potencialidade lesiva. Desvirtua o real sentido do princípio
da razoabilidade e proporcionalidade de forma a conferir legitimidade a esta punição.

O jurista da Escola Clássica Beccaria101 – o Marquês de Bonessana -, já dizia, em


seu manifesto liberal, que o princípio da proporcionalidade consubstancia em uma
limitação ao poder estatal, impondo ao legislador observar a proporção entre os delitos
e as penas no momento da tipificação de condutas delituosas. Por corolário, tal princípio,
consagrado na Carta Política de 1988, impõe como diretriz a tipificação de condutas
potencialmente perigosas ao bem jurídico, devendo-se fazer uma análise casuística de
ponderação a respeito da razoabilidade entre o meio utilizado e o fim pretenso (tutela do
bem jurídico).

O problema no caso do porte de arma desmuniciada reside na sua impossibilidade


de causar lesão à incolumidade pública. Esse tipo penal, como se vê, representa “um
modelo de perigo abstrato de forma artificial, em situações que a periculosidade não é

100
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo:
RT, 2007, p. 160.
101
BECCARIA, Cesare; tradução de J. Cretella Jr e Agnes Cretella. Dos delitos e das penas. 4ª edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009.
68
inerente à conduta. Nestes casos, a interpretação corretiva da falta de técnica legislativa
permitiria uma análise da situação de fato, para a verificação da existência do risco real
de perigo102”.

Bem explica o Ministro Cezar Peluso, em voto proferido em caso análogo (HC
92.533/RS), citando Hassemer e Silva Sanchez, que:

“Para HASSEMER, a demanda pela ampliação do controle penal, no contexto


da sociedade de risco, seria por regularização canalizada para lugar equívoco
- Direito Penal -, quando deveria sê-lo ao Direito Administrativo sancionador.
Ou, no dizer de SILVA SHANCHEZ, trata-se de característico
intervencionismo penal, que persegue a ordenação de setores de atividades,
do ângulo da vulnerabilidade geral da globalidade do sistema, cuidando do
gênero de condutas que representam, em termos estatísticos, perigo para
determinado modelo setorial de gestão.20 Desta forma, o Direito Penal vem-
se tornando direito de gestão ordinária de problemas sociais 103”.

Concluindo, valho-me das palavras do mesmo Ministro, no mesmo voto, as quais


bem explicitam a impropriedade da punição da conduta típico em análise:

“O simples endurecimento penal cria, no entanto, falsa ilusão de resolução de


problemas e desvirtua por completo o sistema. A legítima necessidade de
reforma do Direito Penal para dotá-lo de instrumental adequado aos tempos
atuais não pode significar o abandono dos pressupostos do Estado
Democrático de direito. Como já se alertou, a adoção acrítica de um “direito
penal preventivo é incapaz de controlar os perigos das situações problemáticas
- entre outras razões, porque a efetividade da proteção cancelaria as garantias
democráticas do direito e do processo penal”

102
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op cit. p. 160.
103
asdasd
69
CONCLUSÃO

Sob o aporte teórico da teoria sociológica de Ulrich Beck, ao longo deste trabalho
procurou-se demonstrar o panorama da atual sociedade, concebida como uma sociedade
de riscos.

A sociedade industrial foi paulatinamente substituída por uma sociedade marcada


pelo progresso científico e desenvolvimento tecnológico, ao passo que este massivo
desenvolvimento, silenciosa e imperceptivelmente, originou novos conflitos até então
inexistentes.

No processo de modernização reflexiva, no estágio denominado de reflexão,


como exposto no capítulo inicial, o avanço científico propiciou, tardiamente, o fomento
de técnicas aptas a identificar os riscos até então não percebidos. Após tal fase, de
maneira genérica, a problemática dos riscos torna-se objeto de consideração pública, ao
ponto das instituições sociais serem questionadas e enxergadas com desconfiança.

Esta dinâmica dos riscos, questionamento das instituições de controle, os


fracassos das tecnologias à identificação prévia dos riscos, bem como os fatores
inerentes à sociedade moderna dinâmica e global, acabaram por originar um elevado
nível de insegurança social.

Todas estas circunstâncias culminaram em um processo de juridicização da


opinião pública, compreendido como o pressionamento da burocracia institucional para
que viabilize o controle dos riscos. Neste processo, ocorre, ao final, uma aproximação
da opinião pública do direito penal, principalmente em razão da influência da mídia e
da participação dos movimentos sociais, de modo que passa a ser exigida a atuação deste
ramo do direito como forma de garantir a segurança tão almejada.

70
Como o direito penal liberal não se demonstrou apto a estas novas demandas
preventivas, propostas de reformulação surgiram, consubstanciando-se em uma política
criminal voltada para o controle dos novos riscos.

Estas mudanças restaram bem delineadas ao longo deste trabalho, resultantes de


um fenômeno de expansão do direito penal voltado para a proteção de bens jurídicos
supraindividuais e imateriais por meio de figuras típicas representativas de uma
antecipação da tutela penal.

Entretanto, observa-se que estas novas figuras dogmáticas, buscando a proteção


contra os riscos pós-industriais colidem com o modelo clássico do Direito Penal,
demonstrando uma cristalina inadequação com os princípios basilares da intervenção
mínima, da última ratio, da fragmentariedade, da proporcionalidade e da lesividade.

Nesse panorama, observa-se que o desafio da ciência penal contemporânea está


na busca da harmonização da política criminal que busca propiciar a prevenção de danos
antevistos, com o resguardo das liberdades e garantias penais clássicas

Esta tentativa de adequação do Direito Penal ao paradigma da sociedade de


riscos, entretanto, não altera em nada a sua natureza, consubstanciada na incriminação,
na imputação de responsabilidades e na imposição de penas. Disso se conclui que o
Direito Penal dispõe de poucos instrumentos, colocando todos os conflitos em uma
perspectiva, de modo que que possui significativas limitações para lidar com o
paradigma da sociedade do risco104.

Decerto é que as princípios estruturantes do Direito Penal não podem ser deixadas
de lado, pois representam garantias indissociáveis dos cidadãos e que, se violadas sob o
pretexto de garantir a proteção da sociedade, poderá se tornar um instrumento de
repressão e autoritário, o que não se pode conceber na sociedade pós-moderna.

104
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, op. cit., p. 213.
71
De outro giro, obviamente, as demandas sociais por segurança também não
podem ser esquecidas. O direito não pode “fechar os olhos” aos novos fenômenos da
sociedade, pois, como um instrumento de pacificação e de solução de controvérsias,
deve estar atento e se adequar aos novos tempos. Assim é que diversas propostas,
aduzidas no presente trabalho, foram formuladas com vistas à proteção contra os riscos,
sem representar violação aos seus princípios norteadores.

Aqui foram expostas algumas propostas, como o direito penal de duas


velocidades de Silva Sánchez e o direito de intervenção de Hassemer, formulações às
quais são tecidas diversas críticas. Por último, foi apresentada ainda a interessante e
complexa construção de Amaral, embasada no moderno funcionalismo sistêmico de
Günther Jakobs.

É certo que a política criminal não pode se desviar de suas finalidades precípuas
que devem estar em constante equilíbrio: a de prevenir a prática de delitos e assegurar
direitos e garantias fundamentais. A sociedade do risco, como se viu, provocou um
desequilíbrio dessas funções, orientando a política criminal fortemente para a
prevenção105.

Tal desequilíbrio é atribuído às pressões das instituições e da opinião pública,


fazendo com que o Direito Penal perca a sua identidade, na medida em que funciona
como um instrumento de absorção de toda e qualquer sensação social de insegurança,
por mais insignificante e infundada que seja.

Encontrar uma solução precisa para os conflitos da sociedade do risco ainda é


tarefa inatingível e, entre todas as propostas apresentadas, a de Amaral, apesar de
complexa e ainda impassível de ser aplicada no ordenamento pátrio – visto que, para
tanto, necessário seria toda uma reformulação da parte geral do Código Penal -, parece

105
AMARAL, Cláudio do Prado, op. cit., p. 249.
72
interessante, por não representar uma setorização do Direito Penal e atentar para as
garantias liberais.

Decerto, ao menos por enquanto, é preciso se voltar para soluções equilibrada,


sem que haja a incriminação de bens irrelevantes e sem avançar a áreas que podem ser
tuteladas por outros ramos do Direito, adotando-se posturas político criminais que
observem os postulados clássicos do Direito Penal.

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REFERÊNCIAS

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