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O JURAMENTO DE ATAHUALPA

Carta a um irmão peruano

Carpignano, julho de 1998.

Querido Mario,

Durante muito tempo, em meu pensamento, tem ressoado a palavra “ética”:


“ética do ator”, “um teatro com sua própria ética”. Entretanto, ultimamente tem sido
difícil pronunciá-la e me pergunto o quê se esconde atrás dessa palavra.

Indica o que sonhamos ser ou o que somos? É um álibi conveniente? Um


pretensioso complexo de superioridade?

Dois irmãos se encontram em uma prisão. Um, Dimitri, está sendo acusado de
parricídio. O outro, Aleksei, vai visita-lo no dia anterior ao julgamento. A tarde está
chegando a seu fim, é quase noite. A novela do Karamázov está perto do fim.

- “A ética. Que é ética?” – pergunta Dimitri a seu irmão. Aleksei fica pensativo.
Dimitri o interpela: - “É uma ciência?” Aleksei quer uma resposta: “- Sim, é uma
ciência... ainda que... te confesso que não sou capaz de explicar que ciência é”.

Não somos capazes de explicar. E, entretanto, é uma espécie de ciência, mas,


pessoal, muda com princípios que para cada um deveriam ser certos como dois e dois
são quatro e que somente temos claros no momento da ação, quando se trata de ter uma
posição, ao confrontarmo-nos com as pessoas e as circunstâncias. Princípios que não se
coagulam em mandamentos abstratos, e que somente se fazem evidentes por meio de
exemplos.

E então, ao invés de falar de “ética”, não seria melhor falar de valores pessoais,
de dignidade?

Perguntas e pensamentos me davam voltas na cabeça quando pensava escrever a


você depois do Reencontro Ayacucho ’98, com um gosto amargo na boca e os dentes de
uma jaguatirica na barriga.

Para mim e meus companheiros do Odin, Ayacucho tem sido uma das partes
daquela pátria espiritual que carregamos acima e que às vezes chamamos nossa história,
e às vezes nossa identidade. Estivemos em Ayacucho pela primeira vez em 1978. Você
nos levou aí no alto, aos Andes, para o primeiro Encontro de teatros de grupo
latinoamericanos. Dez anos depois, celebramos juntos aquela data, mas Ayacucho não
pode nos receber. Estava imersa no centro de uma guerra civil na qual a violência e a
injustiça triunfava por todas as partes. Desafiando o risco, o Odin foi até lá para realizar
uma breve incursão teatral. Agora voltamos reforçados: mais grupos, muitos
pesquisadores vindos de todo o mundo, milhares de espectadores. Deveria ter vontade
de estar alegre e otimista. E, entretanto, esta será uma carta desagradável. Como são
sempre desagradáveis e meticulosos os discursos que abandonam os grandes temas e as
grandes esperanças para se inclinar sobre a inexorável concretude dos detalhes.

***

Nada mais belo que voltar a Ayacucho vinte anos depois, reunidos sobre o
espírito de Atahualpa Del Cioppo, não em nome da nostalgia e realizações anteriores,
senão para observar no que se tem convertido aquelas sementes lançadas em um terreno
que parecia rochoso e gasto pelas intempéries da história. Tem florescido. Se tem
desenvolvido em homens e mulheres distintos do que imaginávamos, que parecem não
pertencer a nós, mas com os quais nos identificamos ao descobrir neles as diferentes e
contraditórias vozes do nosso futuro.

Quando nos encontramos pela primeira vez, em Caracas, em 1976, por um lado
os de Odin Teatret, por outro você e os atores do Cuatrotablas recém chegados de Lima,
foi o início de uma daquelas histórias de amor que caracterizam a história subterrânea
do teatro do nosso século. Histórias de amor que se desenvolvem à distância, como a de
Grotowski e eu, alimentadas por intensos encontros e por indissolúveis paixões e
interesses. Foi estimulante ter você ao lado nas grandes batalhas do teatro de grupo, em
Belgrado no ano de 1976, em Bergamo em 1977, quando o slogan “Terceiro Teatro”
era, todavia, para mim, um intento de reconhecer-me. Evocava um terceiro mundo com
tradições próprias, reais ou sonhadas, escarnecido por um luxo medíocre do primeiro e
segundo mundo do teatro, e, apesar de tudo, com o signo da dignidade e do valor, com a
consciência da humilde sacralidade do trabalho que caracteriza o destino de todo artista,
independentemente da valorização do que o cerca. O Terceiro Teatro era e é isso para
mim: a pobreza de meios materiais junto a consciência da riqueza dos exemplos do
passado, a projeção à busca de valores próprios, a liberdade frente as imposições
externas. No Terceiro Teatro, nos grupos dos anos setenta, eu admirava, sobretudo, a
vitalidade selvagem, obstinada e anônima, que eu via como uma fonte de novas e
pequenas tradições.

Quando no ano de 1978 você e seus companheiros do Cuatrotablas, literalmente


um punhado de pessoas, organizaram o Encontro de Ayacucho, não sei se admirava
mais vossa imprudência ou vossa generosidade.

Convidaste o Odin em uma época em que muitos teatros na América Latina se


alimentavam de conteúdos políticos que pareciam justificar a facilidade das soluções do
ofício. Com tua tenacidade, repetiste o Encontro em 1988, em Huampaní, dedicando-o a
Jerzy Grotowski. Os de Cuatrotablas já não estavam sozinhos para dirigir a iniciativa,
que agora estava capitaneada por vocês e outros grupos peruanos. Eles faziam um teatro
muito diferente do seu; vossas visões estéticas e vossa competência tenderiam a os
distanciar, e apesar de tudo se uniram em uma aliança solidária. Renovaste o desafio
que parece impraticável em nosso ofício: criar uma tradição que dura, criar os signos
tangíveis de uma coerência e de uma prática que não sejam somente biografia
profissional, senão o início de uma tradição.
O Reencontro Ayacucho ’98 tem mostrado as consequências desta tua maneira
de agir, desta visão que tem encarnado cotidianamente com diferentes gerações que tem
passado por Cuatrotablas, em uma vivaz e fértil convivência com Miguel Rubio e os de
Yuyachkani, assim como os outros grupos peruanos. Desta forma, te tens convertido em
um exemplo – não somente na América Latina, senão também para nós, europeus – de
uma imprevisível constância de campesino, capaz de cultivar o campo do teatro
deixando-se guiar por valores como a amizade e a honra.

Nunca como durante o Reencontro Ayacucho ’98 tinha experimentado a


sensação de dissolver-me em meus atores do Odin, nas centenas de atores e diretores
que estavam na Aula Magna na Universidade de San Cristóbal de Huamanga, onde o
Reitor Enrique Gonzales Carré me concedia uma láurea honoris causa. Na realidade
concedia a todos nós, a nossa cega e incompreensível obstinação que nos tem
empurrado ou obrigado a persistir, sem esmorecer os ideais de nossa juventude,
atravessando épocas e vicissitudes históricas caracterizadas por terremotos ideológicos e
massacres de inocentes. Era a essa galáxia de teatros de grupos, de indivíduos, de
anarquistas que não querem submeter-se, de sonhadores e de ingênuos marcados por
vaidades infantis e feridas pessoais, que se outorgava aquele diploma dourado de uma
das universidades latinoamericanas mais antigas. Tive vontade de rompê-lo em pedaços,
centenas de pedaços a distribuir entre todos os presentes, como um bussola frágil e
inconsciente para nos orientar nos anos escuros que nos esperam.

O Reencontro Ayacucho ’98 tem sido tudo isso: o orgulho de ver o quanto
haviam crescido as novas gerações do teatro latinoamericano; sua autonomia em relação
conosco, grupos com os quais caminhamos há duas ou três décadas; a excepcional
qualidade e o rigor do projeto de teatro negro de Millenium; a ironia e qualidade do
espetáculo de María Teresa Zúñiga e César Escuza; o inesquecível bordado da solitária
voz mapuche de Luisa Cacumil, que na pampa de Quinhua cantava ante 15.000 pessoas
silenciosas e comovidas; o vigor inesgotável do Teatro Taller da Colômbia; a satírica
ternura de Graciela Ferrari; a radical escolha do chileno Teatro Luna; a coragem de
revelar a própria intimidade de Cristina Castrillo, os jovens grupos argentinos do
“Séptimo”, que em maio de 1999, em Humahuaca, continuaram a tradição dos
Encontros de teatro de grupo.

Tudo isso te pertence. Tudo isso é consequência do teu sonhar ativo. Ficas
orgulhoso disso.

Tudo isso pode acabar. Pode desvanecer em pouco tempo de tuas mãos,
converter-se em um punhado de areia.

De fato, há uma dialética férrea e inevitável, ingrata, quando se trabalha – como


muitas vezes acontece – em um contexto caracterizado pela pobreza de meios, pela
imprudência, pela inteligente decisão de atuar para além dos próprios limites, ou seja, de
extrapolar-se.
Fisicamente, sim um ator que quer ir além tem que treinar, deve controlar a
precisão, deve controlar a precisão de todos os seus atos, deve reinventar o próprio
equilíbrio com impulsos opostos aqueles que o levam à frente. O mesmo vale ao desejo
de ir além que se aplica em uma ação de largo alcance. Há que realizar um contra
impulso, se não se cai na inconsistência e no remendo. A guerrilha cultural exige uma
meticulosidade na organização, atenção aos pequenos detalhes, ainda bem mais do que
se exige às instituições privilegiadas, acostumadas a vastas e bem abastecidas
estratégias culturais.

Quantos trabalhadores teria necessitado uma grande instituição para realizar um


encontro teatral como Ayacucho? Talvez estivessem trabalhado 30 ou 40 pessoas entre
dirigentes e simples peões, caso tivessem dividido as tarefas e responsabilidades. Por
outro lado, você poderia estar contando com pouquíssimas pessoas e com pouquíssimo
dinheiro. Estavas obrigado a trabalhar improvisando. Por isso, a causa da dialética
ingrata de nosso trabalho e de nossa condição, no momento de organizar terias que
haver sido mil vezes mais atento e perspicaz que um funcionário competente e bem
pago.

Isso é o que distingue nossa diferença da marginalidade.

***

Por outro lado, da mesma forma que te pertence o valor dos resultados
importantes que conseguiste e que tem marcado a história recente do teatro peruano, da
mesma maneira, te pertence a imprudência, te pertence também o “desvalor” da
desorganização, a desordem que sempre ameaça desembocar na falta de respeito pelo
trabalho dos outros.

Alguns grupos convidados tinham viajado 30, 40, 50 horas de ônibus através do
continente latinoamericano para chegar a Ayacucho. Já quando estávamos aí falei a
você longamente disso: “Como podia permitir que não fosse oferecido a eles a máxima
hospitalidade possível?” Não conta a pobreza dos meios. Se pode aceitar as condições
mais incômodas e difíceis, mas somente quando se vê claramente que quem te convidou
te dá a maior atenção, dá atenção aos seus problemas, a seu cansaço, a sua insegurança e
nunca te abandona a ti mesmo. Te dizia que, segundo a minha maneira de pensar, deve
se comportar como um beduíno. O hóspede deve ter consciência de ser precioso, a
sensação de que alguém se prodiga para dar precisamente o máximo a ele ou ela,
individualmente.

Te imagino interrompendo-me: “Fizemos o máximo! Você ignora a


desproporção entre nossos recursos, o número de pessoas disponíveis, nossas
competências e a complexidade da tarefa que havíamos assumido. Esqueceu que sem
aceitar esta desproporção jamais havia sido possível realizar o Reencontro".
Não ignoro. Não esqueço. Minhas reações não são injustas Não se concentram
sobre os defeitos pequenos e episódicos de um grande evento. Desejo sublinhar o que
dissipa a grandeza de tal evento.

Em Ayacuhco, a organização caótica, sem pontos claros de referência, sem nem


sequer as informações necessárias, ameaçava a dignidade dos próprios convidados e
alcançava pontas de sadismo.

Quem poderia imaginar, por exemplo, uma viagem de volta, de Ayacuhco à


Lima, em avião, na qual um grupo de teatro poderia ser dividido, a metade em um voo,
a outra no seguinte, sem que os interessados fossem informados disso, fazendo-os
chegar ao aeroporto duas horas antes da saída, e sem que logo no momento de embarcar
fosse embarcada a carga do espetáculo que deveriam apresentar essa mesma noite em
Lima?

Entretanto você sabe que se há algo que todos nós estamos orgulhosos é de
nosso compromisso de dar o máximo no momento do espetáculo. Apesar das condições
adversas em que trabalhamos, toda a jornada está dedicada e orientada ao encontro com
os espectadores. Pôr em dúvida a possibilidade daquele compromisso, e fazer com a
desfaçatez característica dos burocratas desinteressados da vida que lhes passa entre as
mãos, não é uma simples negligência de organização é uma ferida à intimidade mais
preciosa de um artesanato teatral.

O que estou chamando de negligência era uma reação de defesa frente a uma
situação que havia sobrecarregado a você e teus colaboradores. Como alguém que cobre
a cabeça embaixo de uma chuva de pedras e evita olhar ao redor, mas as vítimas das
pedras são, em primeiro lugar, aqueles de que deverias sentir-se responsável.

Entre dezenas e dezenas de exemplos que poderia te dar, te dou outr que me
escandalizou de verdade.

Enquanto os jornalistas chegados a Ayacucho para acompanhar o Reencontro


eram hospedados no melhor hotel da cidade, Victoria Santa Cruz, a grande artista de
mais de setenta anos, estava hospedada em um hotelucho, em um apartamento duplo,
dividindo-o com outra participante do Encontro. Este fato me feriu profundamente. Se
fazemos teatro é também para lutar contra as minúsculas injustiças e as hierarquias que
o espírito do tempo quer nos impor.

Desta maneira, cheio de sentimentos contraditórios, de raiva, de desconsolo, de


profunda comoção e orgulho pelo que havia visto durante o Reencontro Ayacucho ’98,
cheguei a Lima, onde o Odin e outros grupos convidados, deviam apresentar seus
espetáculos. Dois de meus colaboradores haviam ficado em Lima uma semana inteira
para resolver todas as questões técnicas, contudo, as condições que havíamos fixado por
escrito, que vocês haviam prometido repetidamente respeitar, no momento da nossa
chegada foram sistematicamente ignoradas.
Não somente não havia ninguém da organização, senão ninguém pareceu
preocupar-se com o fato de que, da forma como estava, era impossível apresentar nosso
espetáculo aos espectadores.

Quando comunicamos que deveríamos cancelar a estreia, teus colaboradores nos


demonstraram mais que indiferença. Imaginavam que talvez tudo se solucionaria no
último momento, ou que nós, por causa da nossa velha amizade que nos une,
aceitaríamos trabalhar em condições que não faziam jus nem a nosso espetáculo, nem
aos espectadores peruanos.

Senti-me usado, manipulado por uma maneira de fazer e de pensar contra a qual
luto desde o dia que comecei a fazer teatro.

Os grupos que haviam participado do Reencontro e deviam representar seus


espetáculos em Lima se encontraram em circunstâncias similares.

Senti como uma ofensa pessoal saber que Santiago Garcia devia produzir ele
mesmo, procurando na universidade, as cadeiras e a mesa que lhe haviam prometido
desde o dia de sua chegada. Uma mesa e algumas cadeiras não são grande coisa.
Precisamente por isso me impressiona a negligência.

Outros grupos tiveram que trocar de local duas ou três vezes. Alguns seminários
previstos há muito tempo foram anulados por falta de inscrição. Ninguém se inscreveu
por que não foi informado dessa possibilidade. Dessa forma se desperdiçou inclusive
um seminário de Victoria Santa Cruz, cuja arrecadação ela havia generosamente
destinado ao grupo organizador do Reencontro.

Essas situações conheço bem. Foi precisamente em um contexto semelhante que


nos reconhecemos irmãos, em Caracas, em 1976, quando o diretor do Festival queria
me obrigar a apresentar Vem! E o dia será nosso em condições injustas para os
espectadores, e reagiu aos protestos de meus colaboradores com a indiferença distante
de um burocrata autoritário. O Odin renunciou à estreia, ocupou a sala. Os espectadores
influentes protestaram, nos chamaram de gringos, imperialistas culturais. Mas vocês, os
de Cuatrotablas, junto com o atores de La Candelaria, do Libre Teatro Libre, exilado na
Argentina, e outros grupos presentes no festival, se uniram a nós na sala ocupada. Não
somente era solidariedade com o Odin. Antes de mais nada era uma maneira de ressaltar
a dignidade e o valor de nosso trabalho em comum.

E agora, em Lima, tens recriado uma situação parecida contra a que


protestávamos unidos.

Não serve de nada dizer que não és o diretor de um Festival internacional, que
não tem seus meios, nem sua equipe, nem sua solene oficialidade. Tua diferença – tua e
de teu grupo – não pode justificar a semelhança dos comportamentos. Não são as
intenções o que conta. A chamada boa vontade ou a boa fé não mudam o estado das
coisas.
Tanto em Ayacucho como em Lima, você e os alunos de tua escola trabalharam
desde às cinco da manhã até o início da noite para organizar o Reencontro. Vossa
penúria de meios fazia que as coisas mais simples se transformassem em problema,
buscar um projetor, até comprar pregos. Tudo isso eu vi. Não me permitiria julgá-los da
mesma forma que julgaria uma equipe que organiza um festival superfinanciado. Todos
nós que aceitamos o vosso convite sabíamos quais eram as condições materiais que nos
esperavam. Mas quando estas se tornaram muito graves, quando já não bastava
multiplicar-se por quatro, quando vossas mãos já não podiam sustentar os fios da
organização, começaram a prometer coisas que sabiam que não iam poder cumprir, e
logo desvaneceram. Desse modo se transformaram de pobres em irresponsáveis.
Chegados a este ponto, vossa diferença desaparecia ou era dilapidada. Não eram
distintos daqueles que vivem em polo oposto ao vosso, os burocratas bem pagos e
indiferentes que trabalham com o teatro simplesmente para se aproveitar dele.

Quando cheguei a Lima e vi como iam as coisas, meu primeiro impulso foi
reunir a todos os participantes para ocupar os lugares onde deveriam ter sido
representados os espetáculos. Ou de amarrar-me aos portões do Palácio Presidencial
para protestar contra a discriminação congênita, a indiferença e a irresponsabilidade que
caracteriza certos ambientes de nossa profissão, no primeiro, no segundo, no terceiro, no
quarto e no quinto teatro.

Crês que não tenho senso do ridículo? Crês que não sei que a grandíssima
maioria acharia ridícula um protesto tão grandiloquente por alguns problemas técnicos
que prejudicam um espetáculo? E entretanto nós afirmamos que o teatro não é uma
coisa marginal, nos rebelamos contra a negligência e a indiferença a nossa volta. Vamos
repetindo que o teatro pode ser uma ilha de liberdade. Mas logo, à hora da verdade,
somos os primeiros a tratar-nos como nos tratam os outros. Se não a defendemos nós,
quem vai defender a dignidade de nosso trabalho?

Te gosto como um irmão e nunca quis guerras fratricidas. Por isso decidi não
atacar, desapareci, sai silenciosamente do Reencontro, de Lima, do Peru, deixando que
os membros de Odin defendessem o sentido de nossa amizade e lutassem até o final por
Mythos, o espetáculo que havíamos, com pressa, antecipado sua finalização para aí
poder apresentar.

***

Deixei teu país com um gosto amargo na boca e nos sentidos. A dor, a tristeza e
a raiva se transformaram em uma pequena jaguatirica que me rói o estômago. É para
retirá-la de dentro que te escrevo, esperando exorcizar suas presas e suas garras.

São necessários trinta anos para acreditarmos que existe uma amizade, uma
irmandade. E são suficientes uns poucos dias para compreender que seu amigo fraterno
pode comportar-se como um avestruz, que está a seu lado, mas que abandona a ti e teu
trabalho. Aquele trabalho através do qual se havia criado um vínculo.
A ética? Se trata de algo muito diferente.

Há médicos que trabalham em situações desesperadoras, sem instrumentos, sem


sangue para as transfusões, sem aparatos ou sem a corrente elétrica para fazê-los
funcionar. Mas isso não justifica sua indiferença diante o enfermo, para com a
dignidade e o valor de sua vida. No pior dos casos, quando não há nada a fazer, estão a
seu lado, não o abandonam.

Tudo isso é ética? Não. É a evidência do comportamento necessário.

No século passado, para os médicos existia o “juramento de Hipócrates”. Os


médicos de hoje não o esqueceram, ainda que para lembrar sua clareza e sua
simplicidade frente as ambiguidades morais que a atualidade impõe a profissão.

O “juramento hipocrático” se fazia em nome de Apolo e Esculápio, mas naquele


texto havia poucas grandes palavras. O resto eram compromissos concretos
relacionados com a atitude do médico, aquilo a que se comprometia a não fazer.

Me pergunto se aqueles que trabalham no teatro não deveriam fazer um


juramento parecido ao de Hipócrates. No campo do teatro, mais que em outros ofícios e
profissões, se corre um risco muito alto de manipular as pessoas com a justificativa de
uma arte da liberdade, da solidariedade e da igualdade.

Como inventar este juramento? Como nomeá-lo? O juramento de Téspis? De


Bharata? De Zeami? De Stanislavski? Poderiamos chamá-lo o juramento de Atahualpa.

E que ações, humildes mas concretas, prescreveria?

Um abraço fraterno,

Eugenio

Usado somente para abordagem pedagógica em sala de aula.

Tradução de Gyl Giffony da publicação em espanhol.

Referência bibliográfica

BARBA, Eugenio. La conquista de la diferencia. Lima, Perú: Editorial San Marcos,


2008.

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