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Querido Mario,
Dois irmãos se encontram em uma prisão. Um, Dimitri, está sendo acusado de
parricídio. O outro, Aleksei, vai visita-lo no dia anterior ao julgamento. A tarde está
chegando a seu fim, é quase noite. A novela do Karamázov está perto do fim.
- “A ética. Que é ética?” – pergunta Dimitri a seu irmão. Aleksei fica pensativo.
Dimitri o interpela: - “É uma ciência?” Aleksei quer uma resposta: “- Sim, é uma
ciência... ainda que... te confesso que não sou capaz de explicar que ciência é”.
E então, ao invés de falar de “ética”, não seria melhor falar de valores pessoais,
de dignidade?
Para mim e meus companheiros do Odin, Ayacucho tem sido uma das partes
daquela pátria espiritual que carregamos acima e que às vezes chamamos nossa história,
e às vezes nossa identidade. Estivemos em Ayacucho pela primeira vez em 1978. Você
nos levou aí no alto, aos Andes, para o primeiro Encontro de teatros de grupo
latinoamericanos. Dez anos depois, celebramos juntos aquela data, mas Ayacucho não
pode nos receber. Estava imersa no centro de uma guerra civil na qual a violência e a
injustiça triunfava por todas as partes. Desafiando o risco, o Odin foi até lá para realizar
uma breve incursão teatral. Agora voltamos reforçados: mais grupos, muitos
pesquisadores vindos de todo o mundo, milhares de espectadores. Deveria ter vontade
de estar alegre e otimista. E, entretanto, esta será uma carta desagradável. Como são
sempre desagradáveis e meticulosos os discursos que abandonam os grandes temas e as
grandes esperanças para se inclinar sobre a inexorável concretude dos detalhes.
***
Nada mais belo que voltar a Ayacucho vinte anos depois, reunidos sobre o
espírito de Atahualpa Del Cioppo, não em nome da nostalgia e realizações anteriores,
senão para observar no que se tem convertido aquelas sementes lançadas em um terreno
que parecia rochoso e gasto pelas intempéries da história. Tem florescido. Se tem
desenvolvido em homens e mulheres distintos do que imaginávamos, que parecem não
pertencer a nós, mas com os quais nos identificamos ao descobrir neles as diferentes e
contraditórias vozes do nosso futuro.
Quando nos encontramos pela primeira vez, em Caracas, em 1976, por um lado
os de Odin Teatret, por outro você e os atores do Cuatrotablas recém chegados de Lima,
foi o início de uma daquelas histórias de amor que caracterizam a história subterrânea
do teatro do nosso século. Histórias de amor que se desenvolvem à distância, como a de
Grotowski e eu, alimentadas por intensos encontros e por indissolúveis paixões e
interesses. Foi estimulante ter você ao lado nas grandes batalhas do teatro de grupo, em
Belgrado no ano de 1976, em Bergamo em 1977, quando o slogan “Terceiro Teatro”
era, todavia, para mim, um intento de reconhecer-me. Evocava um terceiro mundo com
tradições próprias, reais ou sonhadas, escarnecido por um luxo medíocre do primeiro e
segundo mundo do teatro, e, apesar de tudo, com o signo da dignidade e do valor, com a
consciência da humilde sacralidade do trabalho que caracteriza o destino de todo artista,
independentemente da valorização do que o cerca. O Terceiro Teatro era e é isso para
mim: a pobreza de meios materiais junto a consciência da riqueza dos exemplos do
passado, a projeção à busca de valores próprios, a liberdade frente as imposições
externas. No Terceiro Teatro, nos grupos dos anos setenta, eu admirava, sobretudo, a
vitalidade selvagem, obstinada e anônima, que eu via como uma fonte de novas e
pequenas tradições.
O Reencontro Ayacucho ’98 tem sido tudo isso: o orgulho de ver o quanto
haviam crescido as novas gerações do teatro latinoamericano; sua autonomia em relação
conosco, grupos com os quais caminhamos há duas ou três décadas; a excepcional
qualidade e o rigor do projeto de teatro negro de Millenium; a ironia e qualidade do
espetáculo de María Teresa Zúñiga e César Escuza; o inesquecível bordado da solitária
voz mapuche de Luisa Cacumil, que na pampa de Quinhua cantava ante 15.000 pessoas
silenciosas e comovidas; o vigor inesgotável do Teatro Taller da Colômbia; a satírica
ternura de Graciela Ferrari; a radical escolha do chileno Teatro Luna; a coragem de
revelar a própria intimidade de Cristina Castrillo, os jovens grupos argentinos do
“Séptimo”, que em maio de 1999, em Humahuaca, continuaram a tradição dos
Encontros de teatro de grupo.
Tudo isso te pertence. Tudo isso é consequência do teu sonhar ativo. Ficas
orgulhoso disso.
Tudo isso pode acabar. Pode desvanecer em pouco tempo de tuas mãos,
converter-se em um punhado de areia.
***
Por outro lado, da mesma forma que te pertence o valor dos resultados
importantes que conseguiste e que tem marcado a história recente do teatro peruano, da
mesma maneira, te pertence a imprudência, te pertence também o “desvalor” da
desorganização, a desordem que sempre ameaça desembocar na falta de respeito pelo
trabalho dos outros.
Alguns grupos convidados tinham viajado 30, 40, 50 horas de ônibus através do
continente latinoamericano para chegar a Ayacucho. Já quando estávamos aí falei a
você longamente disso: “Como podia permitir que não fosse oferecido a eles a máxima
hospitalidade possível?” Não conta a pobreza dos meios. Se pode aceitar as condições
mais incômodas e difíceis, mas somente quando se vê claramente que quem te convidou
te dá a maior atenção, dá atenção aos seus problemas, a seu cansaço, a sua insegurança e
nunca te abandona a ti mesmo. Te dizia que, segundo a minha maneira de pensar, deve
se comportar como um beduíno. O hóspede deve ter consciência de ser precioso, a
sensação de que alguém se prodiga para dar precisamente o máximo a ele ou ela,
individualmente.
Entretanto você sabe que se há algo que todos nós estamos orgulhosos é de
nosso compromisso de dar o máximo no momento do espetáculo. Apesar das condições
adversas em que trabalhamos, toda a jornada está dedicada e orientada ao encontro com
os espectadores. Pôr em dúvida a possibilidade daquele compromisso, e fazer com a
desfaçatez característica dos burocratas desinteressados da vida que lhes passa entre as
mãos, não é uma simples negligência de organização é uma ferida à intimidade mais
preciosa de um artesanato teatral.
O que estou chamando de negligência era uma reação de defesa frente a uma
situação que havia sobrecarregado a você e teus colaboradores. Como alguém que cobre
a cabeça embaixo de uma chuva de pedras e evita olhar ao redor, mas as vítimas das
pedras são, em primeiro lugar, aqueles de que deverias sentir-se responsável.
Entre dezenas e dezenas de exemplos que poderia te dar, te dou outr que me
escandalizou de verdade.
Senti-me usado, manipulado por uma maneira de fazer e de pensar contra a qual
luto desde o dia que comecei a fazer teatro.
Senti como uma ofensa pessoal saber que Santiago Garcia devia produzir ele
mesmo, procurando na universidade, as cadeiras e a mesa que lhe haviam prometido
desde o dia de sua chegada. Uma mesa e algumas cadeiras não são grande coisa.
Precisamente por isso me impressiona a negligência.
Outros grupos tiveram que trocar de local duas ou três vezes. Alguns seminários
previstos há muito tempo foram anulados por falta de inscrição. Ninguém se inscreveu
por que não foi informado dessa possibilidade. Dessa forma se desperdiçou inclusive
um seminário de Victoria Santa Cruz, cuja arrecadação ela havia generosamente
destinado ao grupo organizador do Reencontro.
Não serve de nada dizer que não és o diretor de um Festival internacional, que
não tem seus meios, nem sua equipe, nem sua solene oficialidade. Tua diferença – tua e
de teu grupo – não pode justificar a semelhança dos comportamentos. Não são as
intenções o que conta. A chamada boa vontade ou a boa fé não mudam o estado das
coisas.
Tanto em Ayacucho como em Lima, você e os alunos de tua escola trabalharam
desde às cinco da manhã até o início da noite para organizar o Reencontro. Vossa
penúria de meios fazia que as coisas mais simples se transformassem em problema,
buscar um projetor, até comprar pregos. Tudo isso eu vi. Não me permitiria julgá-los da
mesma forma que julgaria uma equipe que organiza um festival superfinanciado. Todos
nós que aceitamos o vosso convite sabíamos quais eram as condições materiais que nos
esperavam. Mas quando estas se tornaram muito graves, quando já não bastava
multiplicar-se por quatro, quando vossas mãos já não podiam sustentar os fios da
organização, começaram a prometer coisas que sabiam que não iam poder cumprir, e
logo desvaneceram. Desse modo se transformaram de pobres em irresponsáveis.
Chegados a este ponto, vossa diferença desaparecia ou era dilapidada. Não eram
distintos daqueles que vivem em polo oposto ao vosso, os burocratas bem pagos e
indiferentes que trabalham com o teatro simplesmente para se aproveitar dele.
Quando cheguei a Lima e vi como iam as coisas, meu primeiro impulso foi
reunir a todos os participantes para ocupar os lugares onde deveriam ter sido
representados os espetáculos. Ou de amarrar-me aos portões do Palácio Presidencial
para protestar contra a discriminação congênita, a indiferença e a irresponsabilidade que
caracteriza certos ambientes de nossa profissão, no primeiro, no segundo, no terceiro, no
quarto e no quinto teatro.
Crês que não tenho senso do ridículo? Crês que não sei que a grandíssima
maioria acharia ridícula um protesto tão grandiloquente por alguns problemas técnicos
que prejudicam um espetáculo? E entretanto nós afirmamos que o teatro não é uma
coisa marginal, nos rebelamos contra a negligência e a indiferença a nossa volta. Vamos
repetindo que o teatro pode ser uma ilha de liberdade. Mas logo, à hora da verdade,
somos os primeiros a tratar-nos como nos tratam os outros. Se não a defendemos nós,
quem vai defender a dignidade de nosso trabalho?
Te gosto como um irmão e nunca quis guerras fratricidas. Por isso decidi não
atacar, desapareci, sai silenciosamente do Reencontro, de Lima, do Peru, deixando que
os membros de Odin defendessem o sentido de nossa amizade e lutassem até o final por
Mythos, o espetáculo que havíamos, com pressa, antecipado sua finalização para aí
poder apresentar.
***
Deixei teu país com um gosto amargo na boca e nos sentidos. A dor, a tristeza e
a raiva se transformaram em uma pequena jaguatirica que me rói o estômago. É para
retirá-la de dentro que te escrevo, esperando exorcizar suas presas e suas garras.
São necessários trinta anos para acreditarmos que existe uma amizade, uma
irmandade. E são suficientes uns poucos dias para compreender que seu amigo fraterno
pode comportar-se como um avestruz, que está a seu lado, mas que abandona a ti e teu
trabalho. Aquele trabalho através do qual se havia criado um vínculo.
A ética? Se trata de algo muito diferente.
Um abraço fraterno,
Eugenio
Referência bibliográfica