You are on page 1of 5

Condenação sem prova:

degradação do judiciário
"É inaceitável que julgador coloque em 1º lugar preferências políticas.
Foi isso que o TRF4 fez"

Jornal do Brasil, 27-01-2018 Dalmo de Abreu Dallari

O Estado Democrático de Direito é ostensivamente negado e deixa de ser


uma realidade quando o Poder Judiciário, contrariando seu papel
constitucional de guarda da Constituição e garantidor do Direito e da
Justiça, decide arbitrariamente, condenando sem que tenham sido
apresentadas provas objetivas comprovando a culpa do acusado. Como tem
sido ressaltado por eminentes teóricos do Direito, o conceito de Estado de
Direito, como complemento necessário do Estado Democrático, foi uma
conquista da humanidade. Com efeito, é de fundamental importância que
o comando do poder político seja democrático, expressando a vontade e
dando prioridade aos interesses reais da maioria dos governados. Mas para
que isso tenha clareza e eficácia é absolutamente necessária a ordem
jurídica, que estabelece direitos e obrigações e define os meios para
garantia e efetivação dos direitos de todos, sem exclusões e
discriminações. A formalização dessas exigências caracteriza o mais
avançado constitucionalismo, sendo oportuno lembrar que a Constituição
brasileira de 1988 tem sido reconhecida e exaltada em eventos jurídicos e
políticos como das mais democráticas do mundo.

Essa característica fundamental do novo constitucionalismo tem o seu


reconhecimento no dispositivo da Constituição brasileira que estabelece
como primeira competência do Supremo Tribunal Federal a « guarda da
Constituição ». Esse dispositivo deixa mais do que evidente a correlação do
político com o jurídico, ou seja, o relacionamento necessário do direito
com a política. As decisões políticas são, necessariamente, também
jurídicas, mas, por outro lado, as decisões jurídicas têm, também,
implicitamente, um conteúdo político. Na literatura jurídica mais recente
aparece um questionamento entre as expressões « politização do Judiciário
» e « judicialização da política ». Na realidade, existe uma conjugação
necessária da política com o direito ou vice-versa, pois assim como o
político não pode ignorar o direito ou opor-se a ele, o jurista, seja qual for
seu campo especifico de atuação, estará sempre atuando no campo
político, influindo sobre ele. Por esse motivo, não pode ser aceita a
atitude do julgador que se afasta dos padrões fundamentais do Direito
visando a consecução de objetivos políticos. Isso se aplica tanto aos Juízes
de primeira instância e das instâncias superiores quanto aos Ministros do
Supremo Tribunal Federal.

Por todas essas razões, é inaceitável a atitude do julgador que ao


participar de uma decisão judicial coloca em primeiro lugar, como diretriz
para a decisão, suas convicções e preferências políticas, ignorando, ou
mesmo contrariando frontalmente, os preceitos jurídicos consagrados na
Constituição e na legislação vigente. Pois foi isso, precisamente, o que fez
o Tribunal Regional Federal da 4a. Região, o TRF-4, no julgamento de Lula,
como tem sido claramente demonstrado por eminentes juristas, em
análises objetivas e muito claras, confrontando os argumentos invocados
pelos julgadores com os princípios e as normas fundamentais de Direito,
expressamente consagrados na Constituição e na legislação penal
brasileiras.

Uma análise merecedora de destaque, por seu conteúdo e também pela


experiência e grande autoridade de seu autor, foi feita pelo eminente
Magistrado Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Professor da Faculdade de Direito
da Universidade Católica de São Paulo e com rica experiência como Juiz
Titular da 10a. Vara Criminal Especializada em Sistema Financeiro e
Lavagem de Dinheiro. Em magnífico artigo publicado no portal «
Justificando » no dia 25 de Janeiro, o preclaro Professor e Magistrado
ressalta, de início, aspectos de extrema relevância a respeito das normas e
teorias jurídicas da área Criminal, fazendo em seguida a crítica, serena e
objetiva, de aspectos fundamentais do julgamento do ex-Presidente Lula
pelo TRF-4.

O ponto de partida de sua análise é a lembrança de um requisito básico


para a correção e a legitimidade das decisões, assim exposta: « Dentre a
exigência de assegurar-se, no contexto de um sistema democrático, um
julgamento justo a todos os acusados, está a de condenar-se alguém, em
especial no âmbito penal, apenas quando estiver certa a ocorrência de um
crime e comprovada por provas, isenta de qualquer dúvida razoável, a sua
autoria, co-autoria ou participação. » Em seguida, tecendo considerações
sobre os meios de convencimento do julgador, faz uma ressalva de
extrema relevância : « É certo que existe o sistema de persuasão racional,
no qual o Juiz tem o dever de fundamentar sua decisão, indicando os
motivos e as circunstâncias que o levaram a admitir a veracidade dos fatos
em que se baseou a decisão ». Entretanto, observa em seguida, « esse
sistema de persuasão racional não se contenta somente com a produção de
uma motivação clara e coerente, mas exige mais, como a existência
efetiva de fatos confirmada pela análise crítica de todas as provas
disponíveis ».

Quanto a esta exigência, pode-se dizer que, na decisão do TRF-4, foi feita
uma distorção da teoria alemã geralmente identificada como de « domínio
do fato », que, numa aplicação errônea, dispensaria a exigência de provas
objetivas. Na realidade, essa teoria não serve de base para fundamentar a
responsabilidade penal simplesmente pela posição hierárquica de quem
poderia ter dado determinada ordem. Pela teoria do domínio do fato esse
pode ser um dos elementos a serem considerados, mas complementado
pela prova de que o superior hierárquico praticou, efetivamente, o ato que
está sendo questionado. O que se exige é a comprovação efetiva de fatos,
confirmada por elementos constantes do conjunto acusatório. Ora, a
denúncia de que haveria, por parte dos empresários, a oferta ou promessa
de vantagens indevidas a funcionários públicos para determiná-los a
praticar, omitir ou retardar ato de ofício seguido da aceitação de promessa
ou do recebimento de vantagens indevidas pelos funcionários, abrangendo
diferentes Diretorias e órgãos públicos federais, teriam um comando
superior e comum, que seria precisamente o Presidente Lula, que além de
Chefe do Governo era também líder de uma das principais legendas
políticas envolvidas, não foi comprovada. A única base para essas
afirmações são os depoimentos de acusados, por meio de delações
premiadas, o que, obviamente, está longe de configurar a existência de
elementos concretos de prova.

Com base no exame dos elementos reunidos pela acusação e analisando a


atitude dos julgadores, o professor e magistrado Sílvio Luís Ferreira da
Rocha destaca que nenhum dos empresários ou agentes públicos que
fizeram delações ou declarações mencionou o Presidente Lula e conclui
pela inexistência de comprovação para fundamentar uma condenação, que
foi decidida sem que houvesse provas, voltando a lembrar que « o sistema
pautado pela persuasão racional ou livre convencimento motivado do juiz
exige a existência de fatos, confirmada pela análise crítica de todas as
provas disponíveis ».

Além dessa valiosa análise do julgamento que resultou na confirmação da


condenação do ex-Presidente Lula, outros juristas eminentes também
publicaram depoimentos, fazendo a análise dos aspectos fundamentais do
julgamento e externando sua opinião sobre o desempenho dos julgadores e
sobre questões jurídicas fundamentais ligadas a esse julgamento e
merecedoras de especial consideração. Uma particularidade que deve ser
ressaltada é que nenhum jurista fez declarações ou publicou qualquer
depoimento manifestando concordância com a decisão condenatória ou
sustentando a regularidade do julgamento. Ao contrário disso, deixaram
clara sua convicção de que a decisão foi antijurídica e injusta, pois houve
uma condenação sem prova.

Nas manifestações contrárias à forma de julgamento e às conclusões,


alguns dos analistas observaram que a prática de indicar nomes para o
preenchimento de determinados cargos é de conhecimento público, sendo
que em muitos casos, as nomeações são feitas envolvendo acordos com
partidos ou com aprovação prévia de outras instâncias, como o Congresso
Nacional. Cabe lembrar aqui que essas consultas e buscas de influência
ocorrem, inclusive, na designação de magistrados para órgãos superiores
do Judiciário, como é de conhecimento geral, sendo muito anteriores ao
período do governo Lula. Além disso, alguns delatores falaram na
existência de uma « conta-corrente », para sustentar que isso, que é uma
prática corrente, também ocorreu quando Lula era Presidente, mas
nenhum deles indicou bancos, valores e outros meios de movimentação de
tais recursos, ou seja, não foi sequer indicado um elemento concreto de
prova. Quanto a esse aspecto, pode-se dizer que os julgadores ignoraram
ou fingiram ignorar que o Supremo Tribunal Federal já afirmou claramente,
em mais de uma ocasião, que « a mera palavra dos delatores não serve
isoladamente como prova para condenar ninguém ».

É oportuno assinalar que essa prática, que o TRF-4 está criminalizando ao


condenar Lula não com provas, mas com um ataque direto a atividades de
caráter político-administrativo, são prerrogativas inerentes ao cargo de
Presidente da República. Sarney, Collor e Fernando Henrique nomearam
para cargos de diretoria muitas vezes ouvindo reivindicações de várias
origens, assim como se beneficiando de financiamento privado para suas
campanhas e as de seus partidos. A par disso, pode-se ainda acrescentar
que nenhum elemento concreto de prova foi obtido ou juntado aos autos,
resultando disso uma condenação sem prova, por isso mesmo ilegal e
injusta. E deve-se assinalar ainda que o aumento da pena imposta ao ex-
Presidente Lula para mais de oito anos pelo crime de corrupção passiva só
ocorreu para evitar a prescrição retroativa. Com esse aumento da pena o
processo continuará em aberto até o momento da inscrição de candidatos
para a próxima eleição presidencial, fazendo supor que o objetivo final
imediato tenha sido criar obstáculos para a candidatura de Lula à
Presidência da República.

Aí está, em síntese, o que foi o julgamento da TFR-4 que culminou com a


condenação de Lula. Outros aspectos negativos poderiam ser apontados,
mas o que aqui foi exposto é suficiente para deixar evidente que houve
uma decisão manifestamente contrária ao Direito e à Justiça e, por essa
razão, degradante para o Judiciário.

* jurista

You might also like