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u CAPITULO 1 “E SO ISSO O MEU BAIAO...”: INOVACAO MUSICAL NO BRASIL (1959-1963) A rolagao entre os fatos musicais examinados neste capitulo e os fatos sociais politicos que delimitaram a ctise do desenvolvimentismo e a emergéncia das mobilizagées reformistas, entre 1959 e 1963, nao & mera coincidéncia e muito menos devem ser examinada sob a perspectiva do “reflexo" da vida material na vida cultural surgimento da Bossa Nova e a reorganizagao do mercado musical que se seguiu a ela pode ser visto como marco fundamental no processo de “substituigao de importagdes” do campo do consumo cultural, parte do processo de institucionalizagao da “moderna” MPB. Os dados referentes ao mercado musical brasileiro parecem confirmar esta afirmacao. Em 1959, carca de 35% dos discos vendidos no pais eram de misica brasileira. Dez anos depois, as cifras se inverteram: 65% dos discos eram de musica brasileira, boa parte dela herdeira do puiblico jovem e universitatio criado pela BN € pelos movimentos que se seguiram13. Para isso, favoreceu-se de uma estrutura singular da indGstria fonogrética que mesmo dominada polas grandes multinacionais necessitava estimular a produgdo local de cangdes, como parte da sua logica de lucro4, Tanto 0 nacional-desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek (1956- 1960), como o nacional-reformismo do governo de Jodo Goulart (1961-1964) estao na base dessa clivagem. Na medida em que estas ideologias, pélos diferentes da cultura politica nacional-popular, penetravam no panorama musical, eram incorporadas nas obras que trazem em si marcas das contradi¢des inerentes ao proceso social como lum todo. Portanto, no tomamos a BN como “reflexo” do desenvolvimento capitalista da era JK. como muitas vezes 6 vista, mas como uma das formas possiveis de interpelagdo artistico-cultural deste processo, a forma com que os segmentos médios da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista que desejava “atualizar” o Brasil como Nacdo perante a cultura ocidental. A proposta das Reformas de Base como estratégia para superar a crise social @ econémica que o pais mergulhou em 1961, foi um elemento perturbador na utopia 13Fonte: Jornal do Brasil, 28/09/69, 8-1 14P Flchy. Les inscustries de limaginaie. p 225/227 12 de atualizagao sécio-cultural que a Bossa Nova representava. Era preciso conscientizar e integrar os setores sociais marginalizados pelo desenvolvimento capitalista e @ cultura tinha um papel importante neste processo. O excessivo otimismo @ subjetividade da Bossa Nova passaram a ser repensados. Setores do movimento estudantil, uma das maiores expresses da esquerda nacionalista, perceberam o potencial da BN junto ao pablico estudantil, Tratava-se, pois, de politizé-la Ao lado do cinema e do teatro que, diga-se, nunca conseguiram romper certos limites quantitativos e qualitativos de audiéncia, a musica poderia se transformar no Grande veiculo ideolégico de mobilizagéo de massa, pois ja possuia um nivel de popularidade considerével desde a "era do radio", nos anos 30. Na viséo dos intelectuais do Movimento Estudanti, dois caminhos se abriam para atingir tal objetivo: incorporar as técnicas musicais ligadas & Bossa Nova, fundindo-a com o material musical folelérico e tradicional5, ou expurgar a sofisticagdo técnica das cancdes direcionadas as massas populares, utlizando-se dos géneros e estilos consagrados com fins puramente exortativos. Ao mesmo tempo em que deveria buscar a justa adequagao entre forma e contetido para transmitir uma mensagem ideolégica adequada ao ideério reformista, a misica popular deveria ter um papel ativo no processo de nacionalizagao dos produtos culturais como um todo. Este desejo de modemnidade nao & mera inferéncia de pesquisador. Muitos artistas. assumiram, conscientemente, esse wishful thinking. Tom Jobim, por exemplo, declarou ao jornal Globo, em 12/11/62, por ocasiao do show no Carnegie Hall em Nova York: ‘Jé ndo vamos recorrer aos costumes tipicos do subdesenvolvimento. Vamos passar da fase a agricultura para a fase da industria’ 6. Foram estas as questées, intimamente ligadas ao contexto histérico como um todo e situago do artista e do intelectual frente ao nacional-popular, em particular, que organizaram a complexa articulagdo entre trés vetores - tradi¢ao, ruptura mercado - por tras da emergéncia da Bossa Nova. Vejamos como estes problemas foram incorporados nas obras concretas ¢ forneceram as bases para a posterior re- orgnanizagao do panorama musical, que instituiu a "moderna" MPB, por volta de 1965. BOSSA NOVA E O NOVO LUGAR SOCIAL DA CANCAO BRASILEIRA 1SN.LBaros. "Bossa Nova: coldnia do jazz". Movimento, n®11, malo 1963, 13-15 16 Apud LR. Tinhoréo. O samba agora val. p.104 1B © advento da Bossa Nova inaugurou um novo ciclo de institucionalizagao na masica brasileira, onde 0 préprio conceito de misica popular vai ser modificado’7. Na conclusao deste ciclo de institucionalizagao os festivais da cangéo, entre 1966 e 1968, desempenharam um papel fundamental. Obviamente, este no foi um processo causal, linear e direto. Ao contrério, foi um processo contraditério, permeado de tensdes ¢ conflitos, entre os quais a percepedo de impasse estético-ideolégico foi direcionando 0 debate intelectual em torno da misica, e os caminhos possiveis da criagdo, dentro do ideério da esquerda nacionalista. Esse proceso teve um profundo didlogo com outros campos da sociedade's (intelectual, artistico, econémico, politico, etc), determinando a configuragao de um espaco préprio, dotado de autonomia relativa que passa a gerar sua propria identidade ¢ reconhecimento, a partir de uma economia interna especifica. Em outras palavras, 0 process histérico de redefinigdo sécio-cultural da MPB, conduziu a sua institucionalizagéo, oscilando entre a configuragao de uma cultura de protesto e resisténcia e a consolidacao de um produto altamente valorizado (do ponto de vista econémico e sécio-cultural). Como tal, foi parte fundamental para a formulagao de uma identidade social como um todo, sobretudo para a nova classe média que emergia do processo de desenvolvimento capitalista. Por se consolidar como uma instituigéo cultural ao longo dos anos 60, a MPB desenvolveu meios de difusdo proprios, critérios especiticos de julgamento de valor, seus “génios” criadores foram situados dentro de uma hierarquia social destacada seu leque de materiais e técnicas musicais tornaram-se referéncia para os novos criadores que almejam reconhecimento dentro desta instituicao. ‘A misica “popular” brasileira chegou ao fim dos anos 50 na forma de uma tradigéo consolidada, sob diversos aspectos: jA possuia um “panteao” artistic consagrado (ao qual iriam ser agregados novos artistas, na medida em que se acentuava 0 debate sobre qual tradico deveria ser seguida); era marcada pela abertura & renovagio, sem desconsiderar totalmente os materiais, 0s parémetros estilos musicals convencionais, herdados do pasado; tinha forte presenga do mercado de bens culturais, a base de uma audiéncia bastante popularizada, hegemonizada sobretudo pelo rédio19. Os nomes da "velha guarda", como Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, entre outros, j4 eram revestidos de amplo 17E-Paiano, Do Berimbau ao som universal. Lutas cuturaise indistria fonogréfica nos anos 60. 18P Bourdieu. O poder simbéiio. p9-159 18 M.Napoltano“A invengo da masica popular brasileira: um campo de rflexdio para a Mistéria Social’ Latin American Music Review. Univ Texas Press, 19101, 1998

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