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Da Universidade à

Escola: Memórias e
Experiências Estéticas
de um Arte-Educador
Cláudio Tarouco de Azevedo
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O objetivo central deste texto é retomar algumas memórias e experiências estéticas do
autor para analisar as conexões destas com a sua formação como arte-educador. Este
relato de experiência compreende, portanto, um recorte histórico entre a infância e o
curso superior em Artes Visuais – Licenciatura, concluído no ano de 2005 na
Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Porém, a narrativa será desenvolvida a
partir de uma cronologia invertida, ou seja, partindo do ensino superior em direção aos
acontecimentos dos tempos de criança. Assim, pretende-se desvelar como as memóriase
as experiências estéticas podem contribuir para a formação do/da arte-educador/a. Para
tratar destes temas serão utilizados referenciais teóricos de autores como João Francisco
Duarte Jr. e Iván Izquierdo.

Memória universitária…
[...] a percepção depende das coisas
e de nosso corpo, depende do mundo
e de nossos sentidos, depende do
exterior e do interior [...]
Marilena Chauí

A partir dos primeiros contatos, pesquisas, experiências e reflexões vivenciadas após o


ingresso no curso de Artes Visuais – Licenciatura da FURG, no ano de 2001, percebi
algumas alterações no meu modo de olhar. Quando comecei a fazer ligações cognitivas
entre minha visão e a vista através das janelas dos ônibus que me levavam até a
Universidade, tive as provas de que mais uma etapa de aprendizado se iniciara. Nesse
processo aflorava um saber sensível transversalizado por percepções e novas
experiências. Não eram apenas viagens de ônibus, pois sempre utilizei transporte
público, era a descoberta de um olhar diferenciado capaz de estar sempre pronto a
refletir e questionar sobre o mundo por meio de uma perspectiva sensível.
Essas conexões aprofundaram o sentido das vivências e ampliaram os significados em
relação às experiências vividas. Experiências nas quais “retornamos àquela percepção
anterior à percepção condicionada pela discursividade da linguagem; retornamos a uma
primitiva e mágica visão do mundo” (DUARTE Jr., 1988, p. 91). Esse retorno está
inscrito em algo do subjetivo, ligado à capacidade de explorar sentimentos e sensações.
E é por meio dele, nessas lembranças, que procurarei descrever algumas vivências
experienciadas em minha trajetória.
Figura 1 – Sem título – Fotografia, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de Azevedo

Figura 2 – MONDRIAN, P. – Composição com grande plano azul, fundo vermelho, amarelo e
cinza– Tela, 1921
Geralmente quando embarcava no ônibus ele já estava cheio de pessoas e dificilmente ia
sentado, o que tinha seu privilégio, pois só é possível uma visão diferenciada e
relacionada às imagens fotográficas a partir do distanciamento existente entre aquele
que está de pé no ônibus e a janela. O sol pela manhã era muitas vezes alaranjado, uma
poesia luminosa. As formas das janelas eram como se fossem quadros, melhor,
molduras. Quando o ônibus parava no ponto para o embarque ou desembarque de
passageiros, as imagens ficavam enquadradas através das janelas (fig. 1). Se não fosse
pela leve brisa que movimentava as folhas das árvores ou pelo passar de um cavalo,
vaca ou passarinho, poder-se-ia dizer que aquilo era uma bela fotografia da paisagem
sulina.
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O ônibus era como um grande laboratório e as minhas investigações não terminaram nas
relações cognitivas estabelecidas com a fotografia. Quando ele entrava em movimento,
passava a ser narrada uma história também em movimento, assim como numa tela de
TV, em uma projeção no cinema ou em canais de vídeo na internet. A cena ganhava um
ritmo audiovisual. As sonoridades emergiam das conversas dos passageiros e dos ruídos
internos e externos ao veículo. Andar de ônibus, portanto, é como assistir um filme
constante da vida cotidiana através de um travelling sem fim, o que enuncia as imagens
de uma cultura visual, de uma cultura local. Posteriormente, passei a fazer correlações
dessas experiências visuais com a pintura, além da fotografia, do cinema e do vídeo.
Lembrei, então, de alguns trabalhos do artista holandês Piet Mondrian . Suas pinturas
compostas por linhas retas e cores primárias (fig. 2), dentro de um equilíbrio e uma
composição simétrica, pareciam criar uma objetividade artística que a meu ver não
convencia. De fato, o artista trabalhava com uma arte hermética e carregada de
simbolismos. Era adepto da teosofia : theos, que significa “um deus, um dos seres
divinos” (e não Deus como é comumente interpretado) e sophia, sabedoria. Mondrian
foi membro da Sociedade Teosófica (ST), a qual teve como uma das principais
fundadoras a escritora Helena Petrovna Blavatsky . Ela escreveu vários livros sobre
teosofia (sabedoria divina), os quais são utilizados até hoje pelos afiliados da ST.
Mondrian foi, por muito tempo, membro dessa sociedade, e a linha mestra de seu
trabalho constituiu um esforço para expressar certos conceitos teosóficos fundamentais
relativos à polaridade do espírito e da matéria.
Na obra do artista estão plasmadas as implicações com a sua perspectiva teosófica. Da
figuração ao abstrato, Mondrian buscou nas linhas retas e cores primárias a
concentração da matéria em busca da sabedoria divina e espiritual. Na composição da
figura 2, percebo uma relação direta com a figura 1. As retas compostas de cor preta
lembram as molduras criadas pelas janelas dos ônibus que eram da mesma cor e
semelhantes formatos. A partir desse contato mais profundo com as artes e do exercício
da percepção fui ampliando meu repertório de experiências estéticas do olhar.
Segundo Duarte Jr. a arte pode ser um caminho para cultivar a educação “[...] na medida
em que ela é capaz de configurar uma dimensão do conhecimento passível de
estabelecer pontes entre esse saber sensível [...] proporcionado por nossos órgãos dos
sentidos e a abstrativa capacidade simbólica do ser humano.” (2004, p. 183). Esse saber
sensível engendrava-se com mais intensidade conforme meu envolvimento com as artes
e as inter-relações com o meio ambiente aumentavam.
Figura 3 – Jornal O Riograndense (1845) – Fotografia digital, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de
Azevedo
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Em 2003, tive a possibilidade de fazer algumas pesquisas em jornais antigos do arquivo
da Biblioteca Rio-Grandense. O objetivo era encontrar os primeiros indícios de
impressão de imagens nos jornais de época publicados na cidade do Rio Grande/RS.
Encontrei clichês referentes à ilustração de artigos que informavam sobre embarques
marítimos e escravos fugidos (fig. 3). Como podemos visualizar na figura a seguir,
os clichês representam graficamente, através de símbolos, os temas a serem tratados nos
artigos. Tais figuras foram encontradas nas páginas de anúncios no jornal O
Riograndense, datado de 22 de novembro de 1845, um dos jornais mais antigos que se
tem preservado no acervo da Biblioteca Rio-Grandense.
Mas o fato mais curioso encontrado ao longo dessa breve pesquisa foi a maneira como
era formulado o artigo que divulgava a fuga de escravos negros:

No dia 12 do corrente, fugio um pardo de nome Amaro, edade 25 annos, escravo de Antonio
José Ferreira Lima: levava camiza branca, calsa de brim pardo, chapeo branco, á campeira,
estatura ordinaria, cabellos pouco crespos, é carneador, e inculca-se liberto. Quem o aprehender,
e entregar na rua da Praia, em casa de José Borges Ribeiro da Costa, será gratificado (O
Riograndense, 22 nov. 1845).

O artigo de jornal relembra momentos de uma história recente sobre a escravidão


humana. Ainda se presencia fatos discriminatórios de humanos contra humanos e não
humanos que precisam ser problematizados, investigados, debatidos e solucionados. O
paradigma ético-estético de que nos comenta Félix Guattari (1998) é cada vez mais
emergente para promover transformações críticas e sensíveis. Nesse sentido, lembro-me
de Albert Schweitzer (1962) e sua “ética de reverência pela vida”, veneratio vitae. Essa
perspectiva ética não prevê qualquer tipo de taxonomia das formas de existência
(gêneros, natureza, etc.), ao contrário, valoriza e dá importância, sobretudo, ao cuidado
e a reverência à vida.
O jornal, como um artefato midiático, contém informações históricas e visuais que
indicam a presença da escravidão como algo instituído no Brasil daquele período. Neste
texto não será feito um debate mais aprofundado sobre o tema da ética . Porém, serão
analisadas algumas relações entre as imagens mentais e visuais com a consciência de
que a cultura visual também está conectada com os interesses socialmente instituídos e
com o que Guattari (1998) chamou de Capitalismo Mundial Integrado, o CMI. Assim,
através da mídia, da arte e da cultura visual de um período identificam-se elementos
antropológicos que indicam fatos e hipóteses de como o humano se relaciona com o
outro, seja este da mesma ou de outra espécie. Também é importante lembrar que, na
atualidade, com a globalização intensificam-se o que Stuart Hall (2011) chama de fluxos
culturais. Isso amplifica os intercâmbios de informações, não só visuais, entre a maioria
das pessoas e culturas com acesso às redes sociais, meios de comunicações variados e a
internet.
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Portanto, ao retomar a análise do jornal, verifica-se que na época a imprensa da cidade
do Rio Grande não dispunha de equipamentos de impressão de imagens para ilustração
das notícias jornalísticas. Restava então a descrição objetiva dos sujeitos, como foi
observado no caso exposto na citação referente ao Riograndense. O que se percebe é:
nem fotografia nem retrato falado (desenho ou pintura), os recursos visuais se
restringiam às pequenas figuras simbólicas (navio, escravo, etc.) ao início de cada
coluna dos jornais.
Atualmente, além do retrato falado e da fotografia, ainda são utilizados os recursos de
descrição objetiva em jornais impressos, e na internet, para auxiliar na composição das
imagens mentais, do leitor, referente ao bandido foragido da polícia ou algum sujeito
desaparecido. Esse método é de grande contribuição na busca por encontrar tais pessoas,
pois a imaginação e as associações mentais trabalham em engrenagens mnemônicas. A
mente opera por combinações cognitivas/afetivas e é composta por imagens mentais e
visuais que constituem o nosso repertório. A professora Cleusa Peralta Castell (2012)
menciona que a imaginação pode ser considerada como a capacidade que temos de
assimilar imagens da nossa cultura. Assim, quanto mais contato com diferentes culturas
maior o nosso repertório imagético capaz de potencializar a nossa imaginação.
Nunca sem esquecer que estas relações cognitivas/afetivas podem ser acionadas através
dos outros sentidos que não apenas o da visão. Porém, no nosso exemplo, em
específico, saber do tipo e da cor das roupas e dos apetrechos que o procurado portava
no último momento em que foi visto ainda é, e sempre será, significativo na composição
de uma imagem mental que auxilie na aproximação da imagem visual da pessoa a ser
encontrada.
A cultura visual se ampliou com os adventos tecnológicos e tem-se a disposição muitas
revistas e jornais impressos em materiais sofisticados e com imagens de alta resolução,
além dos inúmeros recursos digitais e dispositivos de produção e disseminação
audiovisuais. No entanto, em 1845 toda aquela descrição servia para acessar a memória
dos leitores na tentativa de identificar o sujeito fugido. A descrição literária pode
“alimentar” o nosso imaginário, tanto, através da leitura individual, como da escuta. Por
exemplo, através do som, o rádio nos provoca a imaginar e para isso recorremos aos
arquivos da memória, que nos possibilitam um leque de informações e sensações a
serem acessadas. O rádio usa o caminho da percepção auditiva, o que, de certa forma,
amplia seu público em comparação ao jornal impresso/online. Adultos ou crianças, que
ainda não sabem ler e escrever, mas já decodificam os significados das palavras, podem
desfrutar desse veículo de comunicação.
Um dos grandes sucessos do rádio, que estimulava profundamente os ouvintes, era, em
décadas passadas, as radionovelas. Atualmente, são os comerciais do rádio que, no
intuito de aumentar as vendas dos seus patrocinadores, bem como a sua audiência,
utilizam mecanismos de sedução através de interjeições que remetem a desejos de saciar
a fome, de aproximar celebridades, sugerir fragrâncias etc., a fim de atingir seus
objetivos do estímulo à imaginação. Um exemplo prático pode ser identificado na
campanha promovida, há alguns anos, pela Rádio Atlântida de Porto Alegre, juntamente
com o Grupo de Profissionais de Rádio, quando veiculou, entre outros, o seguinte
comercial durante o primeiro semestre do ano de 2005:
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A lasanha sai fumegando do forno, o queijo gratinado, o molho denso e borbulhante, ela pega a
faca, corta um pedaço com todo o cuidado para não desmontar a lasanha. O queijo estica, a fatia
é colocada no prato, ela sente o aroma, pega o garfo e coloca delicadamente o primeiro pedaço
na boca. “Ah! Tá muito quente, tá queimando minha boca”. Fique ligado, anuncie no rádio.
Uma iniciativa: Rede Atlântida e grupo dos Profissionais de Rádio.
Portanto, em relação às diferentes formas de percepção,

[...] as pessoas geralmente estabelecem uma associação imediata entre memória e visão. E os
outros sentidos? Se estivermos de olhos vendados não seríamos capazes de saber que chove, só
pelo barulho da chuva, ou adivinhar um abacaxi pelo tato? (FIALHO, 2001, p. 78)

Isso é resultado da fusão de um arquivo de imagens e informações pertencentes à nossa


bagagem de experiências estéticas e à nossa memória mais remota – que Izquierdo
(2004, p. 19) descreve como “de longa duração” – somada com outras mais recentes,
denominadas “de curta duração e de trabalho”. A construção desses arquivos de
imagens e informações em nossa mente gera os arquivos mnemônicos. Estes aumentam
conforme nossa experiência acerca do meio social e ambiental, que se dá através de
nossos canais de percepção. Esse processo gera o que pode ser chamado de aquisição de
repertório mental. Adquirimos essas informações após tais percepções passarem por
vários julgamentos de acordo com nossa formação individual e social.
Para construção de nosso julgamento perceptivo é fundamental que se tenha uma
educação não só de base familiar e escolar, como uma desenvolvida capacidade de
autogestão e constante repensar de nossas ações em relação a si e ao meio social e
ambiental. Para reforçar o que já foi mencionado, Izquierdo descreve a memória como
“a aquisição, conservação e evocação de informações. A aquisição se denomina também
aprendizado”. Dessa forma vislumbramos a importância dos agentes propagadores de
informação e profissionais da Educação no processo de aquisição desse repertório de
imagens mentais e visuais. Guattari corrobora:

Invocando paradigmas éticos, gostaria principalmente de sublinhar a responsabilidade e o


necessário “engajamento” não somente dos operadores “psi”, mas de todos aqueles que estão
em posição de intervir nas instâncias psíquicas individuais e coletivas (através da educação,
saúde, cultura, esporte, arte, mídia, moda etc.). É eticamente insustentável de se abrigar, como
tão freqüentemente fazem tais operadores, atrás de uma neutralidade transferencial
pretensamente fundada sobre um controle do inconsciente e um corpus científico (1998, p. 21).

Assim, torna-se imprescindível que os profissionais envolvidos com arte e educação,


aos quais se destina mais especificamente este escrito, tenham consciência ética de sua
parcela de responsabilidade para com a sociedade em geral. O professor de Artes
Visuais, ao ter em vista seu conhecimento adquirido em relação ao desenvolvimento
gráfico humano e outros temas da arte relacionados à valores, pode incidir sobre a
fronteira invisível que separa o sujeito instituído daquele liberto, de alguma maneira,
dos paradigmas socioculturais capitalistas, pois, como afirma o psicólogo Lev
Vygotsky, “[...] a arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que
excede a vida no ser humano” (2001, p. 233). Conscientes de que a arte não é apenas
algo que ilustra a vida – ela está presente no exercício artístico e nas experiências
estéticas dos indivíduos –, será analisada por meio da memória de fatos ocorridos na
infância a importância desse processo que envolve arte, educação, memória e
experiências estéticas.
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Memórias de algumas experiências estéticas


da infância...
Viver é andar, é descobrir, é conhecer.
no meu andarilhar de pintor, fixo a imagem
que se me apresenta no agora e retorno
às coisas que adormeceram na memória, que
devem estar escondidas no pátio da infância.
Iberê Camargo

Convido o leitor a fazer um passeio comigo aos meus tempos de infância para
identificar exemplos do repertório de experiências estéticas que contribuíram na minha
formação. “A noção de repertório, que construímos a partir das formas que inventamos
e colecionamos, quando crianças, para designar elementos naturais, coisas, objetos,
pessoas e sentimentos, é fundamental para o pleno desenvolvimento da nossa
capacidade de imaginar.” (CASTELL, 2012, p. 47). Portanto, essas experiências
envolvem uma relação com fluxos internos e externos.

O prazer estético reside na vivência da harmonia descoberta entre as formas dinâmicas dos
sentimentos e as formas da arte (ou dos objetos estéticos). Na experiência estética os meus
sentimentos descobrem-se nas formas que lhes são dadas, como eu me descubro no espelho.
Através dos sentimentos identificamo-nos com o objeto estético, e com ele nos tornamos um
(DUARTE Jr., 1988, p. 93).

Dessa forma, serão relatados a seguir uma série de fatos, ocorridos em minha infância,
que têm fundamental relevância para exemplificar o processo de reconhecimento da
criança, suas percepções e seus sentimentos.
Na infância passei, assim como a maioria das crianças, pelo exercício prático de
reconhecimento espacial, na busca, mesmo que involuntária, de aquisição de bagagem
cinestésica, mental e imagética. Essa busca era intensa, principalmente no que tange às
experiências com texturas e movimento corporal. Essa é uma fase de fluente exploração
das percepções através dos nossos sentidos. Já vi muitas crianças fazerem isso, mas
penso ser relevante a seguinte descrição do fato: no caminho da escola para casa
percebia as grades das casas e as paredes rugosas, assim meu toque se tornava
inevitável. Ao caminhar estendia a mão e deixava fluir a sensação e a descoberta das
variadas texturas presentes nas estruturas das casas pelas quais passava.
Tais experiências exemplificam alguns dos contatos estéticos que praticamos,
principalmente na infância, quando procuramos os primeiros reconhecimentos dos
espaços através de nossas percepções. Como sublinha Vygotsky, “quando observamos,
ainda que seja da forma mais superficial, uma reação estética, percebemos que seu
objetivo final não é a repetição de qualquer reação real, mas a superação e o triunfo
sobre ela” (2001, p. 232). É importante salientar, portanto, que tais ações não são
somente entretenimento. Elas constituem um ato de reconhecimento sensorial, de
descoberta dos sentidos e das sensações que podem resultar daí em um crescimento
cognitivo/afetivo, que por sua vez poderá suscitar uma busca incessante por novas
experiências estéticas.
Essas experiências encontram na arte uma grande aliada para o processo de educação e
desenvolvimento do sujeito. Conforme Duarte Jr., “uma ponte que nos leva a conhecer e
a expressar os sentimentos é [...] a arte, e a forma de nossa consciência apreendê-los é
através da experiência estética” (1988, p. 16). A arte contribui no desenvolvimento e no
acréscimo de complexidade ao pensamento, ao corpo e a experiência estética que
permite ao sujeito uma relação com o mundo cada vez mais subjetiva, engendrando um
pensamento criativo. Segundo Vygotsky, “a regra a ser seguida [...] não deve ser o
embelezamento da vida, mas a reelaboração criativa da realidade, isto é, uma elaboração
das coisas e do próprio movimento das coisas que iluminará e elevará as vivências
cotidianas ao nível das criativas” (2001, p. 232). Essas vivências cotidianas passam,
principalmente na infância, pelo desenvolvimento do pensamento cinestésico, que
resulta no reconhecimento da expressividade corporal do sujeito no processo de
exploração dos sentidos. Como afirma Fialho,
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Ao nascer, a criança é dotada praticamente de todos os sentidos e está biologicamente apta para
experimentar a maioria das sensações. Os órgãos dos sentidos transmitem ao homem
informações do mundo exterior, exteroceptores, e do seu próprio corpo, proprioceptores (2001,
p. 41).

Lembro-me da parede do corredor de minha casa quando eu tinha aproximadamente


cinco anos. Sempre que passava por ela a mão deslizava para sentir a textura e ouvir o
som gerado do atrito da pele e das unhas com a superfície levemente rugosa. Recordo,
também, das vezes em que carregava alguns instrumentos como lápis e canetas que
eram levados contra a parede e marcavam minha passagem naquela superfície clara. Os
desenhos criados formavam uma espécie de onda colorida, e era nessa “onda” que, por
vezes, era levemente repreendido com frases do tipo: “Não faz isso, guri!”. Era um
processo derivado do pensamento cinestésico, em que o movimento e o reconhecimento
do suporte era o foco do interesse. Ali estava a descoberta do fazer artístico, mas as
memórias não acabam por aí.
Figura 4 – Sem título – Fotografia digital, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de Azevedo
Ao consultar as lembranças de minha mãe, descobri que as lajotas quebradas da varanda
de nossa casa (fig. 4) eram um resquício vivo das experiências com martelos. Sei que
aquelas marcas são minhas, minha infância, porém fiquei a questionar em decorrência
de que elas foram feitas. Lembro que pregava alguns pregos em pedaços de madeira
para criar objetos, isso em torno de oito e nove anos de idade. Tenho certeza de que a
intenção não era apenas a de produzir tais objetos, sabia que não era só isso, então
minha mãe relatou que meu desejo era, também, de bater nos brinquedos para descobrir
o que havia por dentro, numa atitude investigativa. Era um ato de desconstrução, de
reconhecimento interno. Na ação de quebrar os brinquedos para estudá-los por dentro
identifico uma possível relação com meu processo de autoconhecimento. Ao
desconstruir o brinquedo e conhecer seu interior, provavelmente estabelecia um
pensamento de elucubrações que permitiam uma análise de forma simbólica e subjetiva
em relação aos objetos estudados, o que proporcionava questionamentos de relação
espacial interna e externa ao corpo. A aprendizagem da vida é realizada por essas duas
vias, a interna e a externa, e, segundo Morin, “[...] a via interna passa pelo exame de si,
a auto-análise, a autocrítica. O auto-exame deve ser ensinado desde o primário e durante
todo ele [...]. A via externa seria a introdução ao conhecimento das mídias” (2000, p.
77).
Assim, outra experiência com a construção de objetos está presente em minha memória.
Foi na época em que assistia à série norte-americana “McGyver”, transmitida pela Rede
Globo de Televisão a partir de 1986, conhecida no Brasil por “Profissão: Perigo” . O
protagonista da história, McGyver, era um ex-agente das Forças Especiais norte-
americanas, cheio de invenções criativas e soluções inteligentes para escapar de
situações de perigo. Em uma de suas fantásticas operações ele descobriu um cabo que
ligava um poste a outro que estava distante do local perigoso, então usou sua jaqueta
para pendurar-se segurando duas extremidades e deslizou pelo cabo para chegar ao
outro lado incólume.
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Logo após esse episódio da série, peguei meu martelo e alguns pedaços de madeira e
tive a ideia de produzir algo semelhante, em pequena escala. Sentei-me na varanda da
minha casa e preguei dois pedaços de madeira fina perpendicularmente nas
extremidades de um sarrafo mais forte, o que formou uma espécie de “U”. A parte mais
forte serviu de base e as outras duas, uma menor que a outra, receberam dois preguinhos
cada, um ao lado do outro, em suas extremidades. Um atilho de borracha foi utilizado
para interligar as duas madeiras, o que gerou, assim, um trilho. Mas ao invés de fazer
algo correr dependurado no trilho, como o personagem da série, preferi fazer uma
bolinha de gude correr por cima da borracha. Então a brincadeira seria apenas observar
a bolinha deslizar pelo trilho criado pelo esquema.
Isso era um pouco sem graça. Foi então que pensei em dar um pouco mais de
funcionalidade àquela bolinha de gude. Peguei uma lata com água e um bonequinho
pequeno de plástico, coloquei a lata com água na extremidade mais baixa da estrutura
de madeira e o boneco equilibrado em cima dos dois preguinhos dessa mesma
extremidade. Larguei, então, a bolinha da extremidade mais alta. Seu deslocamento
sobre o trilho atingia meu objetivo, bolinha e homem “ao mar”. Está certo que em
pouco tempo a brincadeira perdeu a graça, mas valeu a experiência e o desafio de tornar
algo monótono um pouco mais emocionante. Nessa época, estava com
aproximadamente dez, onze anos de idade, as percepções afloravam cada vez mais e o
processo criativo seguia desenvolvendo-se. A memória trabalhava com a imaginação e
em meio a esse processo de criação era promovida a aquisição de um saber sensível.
Castell enfatiza que “as brincadeiras, as investigações espontâneas e o contato direto,
imediato, com a natureza e o cotidiano, a nosso ver, irão compor a matéria-prima da
nossa bagagem artística, as nossas matrizes do imaginário, por excelência” (2012, p.
47). Assim, verifica-se a importância das experiências estéticas na composição desses
saberes sensíveis construídos por meio de dimensões cinestésicas e imaginativas.
Algo que também fez parte da minha infância foi a série de brinquedos Lego . Junto
com as pequenas peças de encaixe fácil, vinham esquemas preestabelecidos para
confecção de carros, casas e outros elementos a que se destinavam a compor as peças
em conjunto. De posse de duas ou três caixas diferentes de legos, com muitas peças
coloridas, montei umas duas vezes o esquema proposto pelas caixas e logo em seguida
passei a criar formas, objetos e construções que resultavam das experiências criativas
com os diferentes formatos e cores dos objetos que vêm no brinquedo. Meus projetos se
desvincularam dos propostos pelos esquemas desenvolvidos pelos fabricantes; passaram
a ser mutáveis. Meu interesse não era manter um brinquedo pré-esquematizado, mas
sim, de transformar a realidade funcional e estética daquelas estruturas coloridas e de
formatos variados.
Guardei na lembrança a importância dessas experiências e dos estudos perceptivos que
ajudaram a desenvolver minha criatividade, senso crítico e sensível. Digo senso crítico e
sensível, porque a partir do julgamento e da escolha das peças qualquer criança e até
mesmo um adulto poderá desenvolver um olhar estético – percepção, cor, composição,
criatividade, reflexão, sensibilidade – e produzir, assim, opiniões e valores afetivos e de
sociabilização.
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Alguns desdobramentos...
Memórias têm também os povos,
as nações e as cidades;
o conjunto dessas memórias
denomina-se História.
Iván Izquierdo

As experiências relatadas neste escrito estão diretamente relacionadas a essa nossa


capacidade de recordar. É a partir da aquisição de memória que podemos fazer a fusão
de informações e experiências do passado com escolhas atuais e refletir sobre os
processos de educação tanto individual como coletivos; e ainda, sobre nossa posição
crítica e sensível como humanos. Nesse sentido, procurei verificar algumas
contribuições dessas memórias e experiências estéticas na formação do meu olhar como
arte-educador.
A partir de uma perspectiva ético-estética é possível dar-se conta da necessidade
constante de promover transformações críticas e sensíveis em nosso cotidiano.
Precisamos, então, reconhecer a importância da memória e das experiências estéticas
para estimular, em nós mesmos e nos outros, cada vez mais, a posição de sujeitos
atuantes e transformadores de nossa história. Quiçá pessoas construtoras de um presente
com valores capazes de promoverem memórias futuras motivadoras de um mundo
melhor e de uma cultura visual com mais reverência à vida. Essa ideia é reafirmada pelo
professor Marcos Reigota, quando diz que “cabe à história, à arte e à memória o
exercício da recuperação, do possível tempo dos acontecimentos e as suas
conseqüências para a vida de milhares de pessoas e de espécies” (1999, p. 26).
Relembrar as experiências estéticas da infância e do período de formação acadêmica
pôde ajudar a vislumbrar um pouco sobre a construção de saberes sensíveis.
Assim, é necessário um olhar sensível em sintonia com a razão. O que Michel Maffesoli
chamou de razão sensível, a saber, “[...] uma vitalidade que escape às habituais análises
racionalistas, que requer que se saiba pôr em ação um pensamento que se reconcilie
com a vida: um vitalismo ou uma filosofia da vida.” (1998, p. 191). Mas sabemos da
herança da modernidade e da presença forte da razão em uma perspectiva
antropocêntrica do mundo.
Chauí afirma que a razão, “além de ser o critério para avaliar os conhecimentos, é
também um instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que
vivemos, para mudá-las ou melhorá-las. A razão tem um potencial ativo ou
transformador [...]” (2000, p. 86). Segundo o Minidicionário Luft, razão é a “1.
Faculdade do espírito com que o homem reflete, compara, conhece, julga; 2. Bom
senso; prudência [...]” (1991, p. 198). De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, a razão é também, numa definição filosófica, a “faculdade humana da
linguagem e do pensamento, voltada para a apreensão cognitiva da realidade, em
contraste com a função desempenhada pelos sentidos na captação de percepções
imediatas e não refletidas do mundo externo” (2009, p. 1615).
Contudo, nós humanos não somos constituídos apenas de razão, há uma grande parcela
de emoções e sentimentos que envolvem nossa existência. Pode haver aí uma razão
sensível. Um exemplo disso pode ser identificado acima quando cito o Minidicionário
Luft. Recorri a ele para explicar o significado da palavra razão porque o mesmo foi um
presente de meu pai, Pedro Farias de Azevedo, falecido em 1997. Lembro-me de
quando ele estimulava o uso do dicionário para cuidar do sentido que se deseja dar às
palavras. Somente após ter feito tal citação dei-me conta da importância acadêmica de
outras fontes bibliográficas. Mesmo assim mantive a referência, pois mais do que a
necessidade racional de explicar o sentido da razão, está atualizada aqui a memória de
um homem de extrema importância na minha vida. É uma parcela de afetividade, de
vitalismo, do sensível que se mescla ao ser “razão” e formula, assim, o híbrido do qual é
composta nossa espécie humana.
Após essa trajetória, pode-se, então, refletir sobre a vida como um caminho entre
humanos, não humanos, objetos, natureza, no qual a expressão, a arte, a memória e as
experiências estéticas constituem uma história individual e coletiva que deve ser sempre
repensada para cogitar mais do que respostas. Quiçá caminhos de consciente
transformação sensível de nosso cotidiano para o amadurecimento educacional e
histórico singular de cada pessoa.
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Referências
AZEVEDO, Cláudio Tarouco de. Por uma Educação Ambiental Biorrizomática:
cartografando devires e clinamens através de processos de criação e poéticas
audiovisuais. Tese de doutorado em Educação Ambiental. Programa de Pós-Graduação
em Educação Ambiental (PPGEA-FURG). Área de concentração: Educação. Rio
Grande, RS: FURG/PPGEA, 2013.
CASTELL, Cleusa Peralta. Pela linha do tempo do desenho infantil: um caminho trans
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Cláudio Tarouco de Azevedo é Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) como bolsista CAPES -
Programa Nacional de Pós-Doutorado (CAPES–PNPD). Atua como professor do
Mestrado e do curso de graduação em Artes Visuais. É membro do Núcleo
Transdisciplinar de Estudos Estéticos (NUTREE/UFPel) e do Laboratório Audiovisual
de Pesquisa em Educação Ambiental (LAPEA/FURG).

Capítulo 7

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