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Escola: Memórias e
Experiências Estéticas
de um Arte-Educador
Cláudio Tarouco de Azevedo
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O objetivo central deste texto é retomar algumas memórias e experiências estéticas do
autor para analisar as conexões destas com a sua formação como arte-educador. Este
relato de experiência compreende, portanto, um recorte histórico entre a infância e o
curso superior em Artes Visuais – Licenciatura, concluído no ano de 2005 na
Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Porém, a narrativa será desenvolvida a
partir de uma cronologia invertida, ou seja, partindo do ensino superior em direção aos
acontecimentos dos tempos de criança. Assim, pretende-se desvelar como as memóriase
as experiências estéticas podem contribuir para a formação do/da arte-educador/a. Para
tratar destes temas serão utilizados referenciais teóricos de autores como João Francisco
Duarte Jr. e Iván Izquierdo.
Memória universitária…
[...] a percepção depende das coisas
e de nosso corpo, depende do mundo
e de nossos sentidos, depende do
exterior e do interior [...]
Marilena Chauí
Figura 2 – MONDRIAN, P. – Composição com grande plano azul, fundo vermelho, amarelo e
cinza– Tela, 1921
Geralmente quando embarcava no ônibus ele já estava cheio de pessoas e dificilmente ia
sentado, o que tinha seu privilégio, pois só é possível uma visão diferenciada e
relacionada às imagens fotográficas a partir do distanciamento existente entre aquele
que está de pé no ônibus e a janela. O sol pela manhã era muitas vezes alaranjado, uma
poesia luminosa. As formas das janelas eram como se fossem quadros, melhor,
molduras. Quando o ônibus parava no ponto para o embarque ou desembarque de
passageiros, as imagens ficavam enquadradas através das janelas (fig. 1). Se não fosse
pela leve brisa que movimentava as folhas das árvores ou pelo passar de um cavalo,
vaca ou passarinho, poder-se-ia dizer que aquilo era uma bela fotografia da paisagem
sulina.
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O ônibus era como um grande laboratório e as minhas investigações não terminaram nas
relações cognitivas estabelecidas com a fotografia. Quando ele entrava em movimento,
passava a ser narrada uma história também em movimento, assim como numa tela de
TV, em uma projeção no cinema ou em canais de vídeo na internet. A cena ganhava um
ritmo audiovisual. As sonoridades emergiam das conversas dos passageiros e dos ruídos
internos e externos ao veículo. Andar de ônibus, portanto, é como assistir um filme
constante da vida cotidiana através de um travelling sem fim, o que enuncia as imagens
de uma cultura visual, de uma cultura local. Posteriormente, passei a fazer correlações
dessas experiências visuais com a pintura, além da fotografia, do cinema e do vídeo.
Lembrei, então, de alguns trabalhos do artista holandês Piet Mondrian . Suas pinturas
compostas por linhas retas e cores primárias (fig. 2), dentro de um equilíbrio e uma
composição simétrica, pareciam criar uma objetividade artística que a meu ver não
convencia. De fato, o artista trabalhava com uma arte hermética e carregada de
simbolismos. Era adepto da teosofia : theos, que significa “um deus, um dos seres
divinos” (e não Deus como é comumente interpretado) e sophia, sabedoria. Mondrian
foi membro da Sociedade Teosófica (ST), a qual teve como uma das principais
fundadoras a escritora Helena Petrovna Blavatsky . Ela escreveu vários livros sobre
teosofia (sabedoria divina), os quais são utilizados até hoje pelos afiliados da ST.
Mondrian foi, por muito tempo, membro dessa sociedade, e a linha mestra de seu
trabalho constituiu um esforço para expressar certos conceitos teosóficos fundamentais
relativos à polaridade do espírito e da matéria.
Na obra do artista estão plasmadas as implicações com a sua perspectiva teosófica. Da
figuração ao abstrato, Mondrian buscou nas linhas retas e cores primárias a
concentração da matéria em busca da sabedoria divina e espiritual. Na composição da
figura 2, percebo uma relação direta com a figura 1. As retas compostas de cor preta
lembram as molduras criadas pelas janelas dos ônibus que eram da mesma cor e
semelhantes formatos. A partir desse contato mais profundo com as artes e do exercício
da percepção fui ampliando meu repertório de experiências estéticas do olhar.
Segundo Duarte Jr. a arte pode ser um caminho para cultivar a educação “[...] na medida
em que ela é capaz de configurar uma dimensão do conhecimento passível de
estabelecer pontes entre esse saber sensível [...] proporcionado por nossos órgãos dos
sentidos e a abstrativa capacidade simbólica do ser humano.” (2004, p. 183). Esse saber
sensível engendrava-se com mais intensidade conforme meu envolvimento com as artes
e as inter-relações com o meio ambiente aumentavam.
Figura 3 – Jornal O Riograndense (1845) – Fotografia digital, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de
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Em 2003, tive a possibilidade de fazer algumas pesquisas em jornais antigos do arquivo
da Biblioteca Rio-Grandense. O objetivo era encontrar os primeiros indícios de
impressão de imagens nos jornais de época publicados na cidade do Rio Grande/RS.
Encontrei clichês referentes à ilustração de artigos que informavam sobre embarques
marítimos e escravos fugidos (fig. 3). Como podemos visualizar na figura a seguir,
os clichês representam graficamente, através de símbolos, os temas a serem tratados nos
artigos. Tais figuras foram encontradas nas páginas de anúncios no jornal O
Riograndense, datado de 22 de novembro de 1845, um dos jornais mais antigos que se
tem preservado no acervo da Biblioteca Rio-Grandense.
Mas o fato mais curioso encontrado ao longo dessa breve pesquisa foi a maneira como
era formulado o artigo que divulgava a fuga de escravos negros:
No dia 12 do corrente, fugio um pardo de nome Amaro, edade 25 annos, escravo de Antonio
José Ferreira Lima: levava camiza branca, calsa de brim pardo, chapeo branco, á campeira,
estatura ordinaria, cabellos pouco crespos, é carneador, e inculca-se liberto. Quem o aprehender,
e entregar na rua da Praia, em casa de José Borges Ribeiro da Costa, será gratificado (O
Riograndense, 22 nov. 1845).
A lasanha sai fumegando do forno, o queijo gratinado, o molho denso e borbulhante, ela pega a
faca, corta um pedaço com todo o cuidado para não desmontar a lasanha. O queijo estica, a fatia
é colocada no prato, ela sente o aroma, pega o garfo e coloca delicadamente o primeiro pedaço
na boca. “Ah! Tá muito quente, tá queimando minha boca”. Fique ligado, anuncie no rádio.
Uma iniciativa: Rede Atlântida e grupo dos Profissionais de Rádio.
Portanto, em relação às diferentes formas de percepção,
[...] as pessoas geralmente estabelecem uma associação imediata entre memória e visão. E os
outros sentidos? Se estivermos de olhos vendados não seríamos capazes de saber que chove, só
pelo barulho da chuva, ou adivinhar um abacaxi pelo tato? (FIALHO, 2001, p. 78)
Convido o leitor a fazer um passeio comigo aos meus tempos de infância para
identificar exemplos do repertório de experiências estéticas que contribuíram na minha
formação. “A noção de repertório, que construímos a partir das formas que inventamos
e colecionamos, quando crianças, para designar elementos naturais, coisas, objetos,
pessoas e sentimentos, é fundamental para o pleno desenvolvimento da nossa
capacidade de imaginar.” (CASTELL, 2012, p. 47). Portanto, essas experiências
envolvem uma relação com fluxos internos e externos.
O prazer estético reside na vivência da harmonia descoberta entre as formas dinâmicas dos
sentimentos e as formas da arte (ou dos objetos estéticos). Na experiência estética os meus
sentimentos descobrem-se nas formas que lhes são dadas, como eu me descubro no espelho.
Através dos sentimentos identificamo-nos com o objeto estético, e com ele nos tornamos um
(DUARTE Jr., 1988, p. 93).
Dessa forma, serão relatados a seguir uma série de fatos, ocorridos em minha infância,
que têm fundamental relevância para exemplificar o processo de reconhecimento da
criança, suas percepções e seus sentimentos.
Na infância passei, assim como a maioria das crianças, pelo exercício prático de
reconhecimento espacial, na busca, mesmo que involuntária, de aquisição de bagagem
cinestésica, mental e imagética. Essa busca era intensa, principalmente no que tange às
experiências com texturas e movimento corporal. Essa é uma fase de fluente exploração
das percepções através dos nossos sentidos. Já vi muitas crianças fazerem isso, mas
penso ser relevante a seguinte descrição do fato: no caminho da escola para casa
percebia as grades das casas e as paredes rugosas, assim meu toque se tornava
inevitável. Ao caminhar estendia a mão e deixava fluir a sensação e a descoberta das
variadas texturas presentes nas estruturas das casas pelas quais passava.
Tais experiências exemplificam alguns dos contatos estéticos que praticamos,
principalmente na infância, quando procuramos os primeiros reconhecimentos dos
espaços através de nossas percepções. Como sublinha Vygotsky, “quando observamos,
ainda que seja da forma mais superficial, uma reação estética, percebemos que seu
objetivo final não é a repetição de qualquer reação real, mas a superação e o triunfo
sobre ela” (2001, p. 232). É importante salientar, portanto, que tais ações não são
somente entretenimento. Elas constituem um ato de reconhecimento sensorial, de
descoberta dos sentidos e das sensações que podem resultar daí em um crescimento
cognitivo/afetivo, que por sua vez poderá suscitar uma busca incessante por novas
experiências estéticas.
Essas experiências encontram na arte uma grande aliada para o processo de educação e
desenvolvimento do sujeito. Conforme Duarte Jr., “uma ponte que nos leva a conhecer e
a expressar os sentimentos é [...] a arte, e a forma de nossa consciência apreendê-los é
através da experiência estética” (1988, p. 16). A arte contribui no desenvolvimento e no
acréscimo de complexidade ao pensamento, ao corpo e a experiência estética que
permite ao sujeito uma relação com o mundo cada vez mais subjetiva, engendrando um
pensamento criativo. Segundo Vygotsky, “a regra a ser seguida [...] não deve ser o
embelezamento da vida, mas a reelaboração criativa da realidade, isto é, uma elaboração
das coisas e do próprio movimento das coisas que iluminará e elevará as vivências
cotidianas ao nível das criativas” (2001, p. 232). Essas vivências cotidianas passam,
principalmente na infância, pelo desenvolvimento do pensamento cinestésico, que
resulta no reconhecimento da expressividade corporal do sujeito no processo de
exploração dos sentidos. Como afirma Fialho,
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Ao nascer, a criança é dotada praticamente de todos os sentidos e está biologicamente apta para
experimentar a maioria das sensações. Os órgãos dos sentidos transmitem ao homem
informações do mundo exterior, exteroceptores, e do seu próprio corpo, proprioceptores (2001,
p. 41).
Alguns desdobramentos...
Memórias têm também os povos,
as nações e as cidades;
o conjunto dessas memórias
denomina-se História.
Iván Izquierdo
Referências
AZEVEDO, Cláudio Tarouco de. Por uma Educação Ambiental Biorrizomática:
cartografando devires e clinamens através de processos de criação e poéticas
audiovisuais. Tese de doutorado em Educação Ambiental. Programa de Pós-Graduação
em Educação Ambiental (PPGEA-FURG). Área de concentração: Educação. Rio
Grande, RS: FURG/PPGEA, 2013.
CASTELL, Cleusa Peralta. Pela linha do tempo do desenho infantil: um caminho trans
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Paulo: Papirus, 1988.
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Sites consultados:
Disponível em: www.sociedadeteosofica.org.br . Acesso em: 22 abr. 2015.
Disponível em: www.cinestese.unisinos.br . Acesso em: 28 out. 2010.
Disponível em: www.argo.furg.br . Acesso: 22 mar. 2015.
Cláudio Tarouco de Azevedo é Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) como bolsista CAPES -
Programa Nacional de Pós-Doutorado (CAPES–PNPD). Atua como professor do
Mestrado e do curso de graduação em Artes Visuais. É membro do Núcleo
Transdisciplinar de Estudos Estéticos (NUTREE/UFPel) e do Laboratório Audiovisual
de Pesquisa em Educação Ambiental (LAPEA/FURG).
Capítulo 7