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Estupos Cutturais: DESCRIGAO DE UM CONCEITO E CRITICA DE SUA PRATICA Roberto Acizelo de Souza FEESUMO: A expressdo “estudos culturais” tem o seu uso generalizado a partir de em torno da década de 1990. Origindria do mundo académico angl6fono, hoje se desdobra em duas vertentes principais: a britfnica, concentrada no estudo das diferengas sociais produzidas pela estratificagdo social contemporinea, ¢ a norte-americana, interessada sobretudo na heterogeneidade cultural decorrente das distingdes entre géneros e etnias. Na sua defesa da interdisciplinaridade e da “corregao politica”, em geral polemiza com os estudos literérios, em que enxerga um baluarte do cfnone e da competéncia disciplinarmente especializada, PALAVRAS CHAVE: canone; multiculturalismo; identidade; valor; estudos literdrios. A expresso “estudos culturais” tornou-se amplamente empre- gada a partir da década de 1990, ao que parece em fungio do prestigio do Centre for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, fundado por Richard Hoggart em 1964. Menos ou mais do que uma disciplina — voltaremos a essa questo adiante —, é possfvel apontar algumas fontes ¢ estimulos para a sua constituigao. Em primeiro lugar, deve-se referir sua matriz mais direta e ge- ralmente mais reconhecida: as obras de Richard Hoggart (em particular, The uses of literacy, de 1957), Raymond Williams (especialmente, Culture and society, de 1958) e Edward Palmer Thompson (The making of the English working class, de 1963), interessadas na recuperagao e andlise de uma cultura popular operaria, até entao desprezada pelos estudos literari- os, tradicionalmente concentrados no que se costuma considerar “alta lite- ratura” (cf. CULLER, 1999, 50; COMPAGNON, 1999 [1998], 220). Ou- tra matriz se configura na chamada escola de Frankfurt — integrada por Walter Benjamin, Max Horkheimer, Hebert Marcuse, Theodor Adorno, 64 __ Roberto Acizelo de Souza Jiirgen Habermas, e atuante sobretudo através do Instituto de Pesquisas Sociais (fundado naquela cidade alema em 1924) —, que, com suas inves tigacdes sobre a cultura de massa e a proposicao do conceito de indtistria cultural, termo empregado pela primeira vez por Adorno e Horkheimer em 1947, se constituiu em importante estimulo para os estudos culturais. Uma terceira fonte encontra-se na obra de Antonio Gramsci, produzida paralelamente & fase inicial dos pensadores frankfurtianos, e que apresen- ta uma série de sugestées caras aos estudos culturais: nao s6 0 interesse por aspectos da cultura popular, mas principalmente 0 empenho no senti- do de compatibilizar “ago” ¢ “teoria”, o que resulta numa concepgaio de praxis intelectual como insergao organica na cultura, Certas contribuigdes do estruturalismo francés também devem ser lembradas, especialmente as microandlises empreendidas por Roland Barthes acerca de aspectos da cultura contemporainea — espetéculos, publicidade, alimentagio, produ- tos industriais, vida cotidiana —, escritas entre 1954 1956, e mais tarde reunidas no volume Mythologies, de 1957 (cf. CULLER, 1999, 49), pra- tica analitica posteriormente objeto de elaboragao terica nos seus Eléments de sémiologie (1964), com 0 objetivo de empregar o modelo lingiifstico saussuriano para uma critica ideolégica de uma série de “sistemas” consi- derados como linguagens: o vestuario, a alimentagao, o automével, omo- bilifrio, o cinema, a televisio, a publicidade, a imprensa. Por fim, men- cionemos uma quinta e iiltima fonte para os estudos culturais, aquela identificada com ramificagdes do pensamento dito pés-estruturalista, datéveis dos anos 70 e 80 do século pasado, especialmente as seguintes: as andlises das microestruturas de poder e a “desnaturalizagao” ou historici- zagao de fendmenos tidos como a-histéricos — como a loucura € a sexua- lidade —, devidas a Michel Foucault; a critica ao logo-fono-etnocentrismo caidéia de “desconstrugao”, vinculadas ao nome de Jacques Derrida. Configurados, como dissemos, na década passada, tendo no Reino Unido e nos Estados Unidos seus lugares de eleigdo, os estudo cul- turais hoje, se for possivel apreender num esquema sumério produgao tio variada, apresentam dois matizes basicos, correspondentes a0 modo como ‘vém sendo concebidos ¢ praticados naqueles paises: sua versao britanica, atenta ds préprias origens, se concentra em diferengas culturais produzidas pela estratificagao social contemporanea, ao passo que a vertente norte- americana, mais eclética, se interessa pela heterogeneidade cultural de- corrente sobretudo das distingGes entre géneros e etnias, Estudos culturais: descrigao de um conceito e critica de sua pratica 65 Tendo em vista as varias fontes e estimulos que confluiram nos estudos culturais, logo se compreende seu animo polémico e contestador, ‘sua voca¢ao menos para investigagdes tedricas e analiticas do que para intervengSes no processo cultural, Nesse sentido, tornou-se emblemiatica sua determinagio de atacar 0 chamado cdnone, isto €, 0 conjunto das obras consideradas classicas, tanto no plano das diversas literaturas nacionais quanto no nfvel de uma tradigfo literéria ocidental. Assim, a agenda culturalista denuncia a arbitrariedade e o carater contingente dos critérios que presidiram a constituigaio dos cnones, assinalando sua feig2o elitista ¢ homogeneizante, ¢ a partir daf passa a reivindicar posigdes de relevo para a produgiio de segmentos tidos como marginalizados ou subalternos, como aqueles constituidos por mulheres e por representantes de etnias politica e socialmente minoritatias. Diretamente ligada ao problema do cAnone, surge a idéia de multiculturalismo, especialmente forte no espaco universitario norte- americano, a qual, contra a pressuposicfio de unidade sociocultural na: varias sociedades nacionais, insiste na diversidade das forgas em interago 1nos processos sociais ¢ culturais de cada pais, concentrando-se nos impac- tos determinados pelos fluxos migratérios contemporineos, propondo en- tho conceitos como migragdo, didspora, fronteira, desterritorializagao, nomadismo, hibridismo, considerados nogdes-chave para a compreensiio do dinamismo cultural do nosso tempo. Aos j4 referidos nticleos tematicos dos estudos culturais — cemtar um terceito, direta- cénone e multiculturalismo — deve-se acre: mente com eles correlacionado, a questiio da identidade, nogao da qual se tenta afastar qualquer aderéncia essencialista, a fim de traté-la como cons- trugdio referenciada & cultura, e que suscita as nogdes de uno/mitltiplo, semethancaldiferenca, mesmoloutro. ‘Tratemos agora do problema relativo ao status di plinar dos estudos culturais. De safda, deve-se ter em conta que seus praticantes, no Animo de contestago a que nos referimos, recusam a tradicional divisdo do conhecimento em disciplinas especializadas. Assim, argumentam que, sendo a fragmentagdo do saber uma construcdo contingente e arbitraria — de resto, como todos 0s aspectos da cultura —, ela serve tHo-somente a propésitos ideoldgicos de tomada e conservagao do poder, que no caso se apresenta camuflado sob a forma aparentemente neutra de competéncias legitimadas inter pares. Conseqiiéncia desse pressuposto é a recomenda- 66 Roberto Acizelo de Souza do de que sejam desconsiderados os limites entre os saberes especializados, de modo que os estudos culturais entao se constituam como instancia pluri-, inter-, multi- ou transdisciplinar. Essa é uma das razdes por que os estudos culturais se indispuseram com os estudos literarios, fazendo-lhes severas restrigdes por sua suposta ultra-especializacaio, ca- racterizada pelo interesse exclusivo na literatura, indevidamente concebi- da, segundo a critica culturalista, como esfera apartada de outros produtos, ¢ atividades culturais. Desse modo, a histéria da literatura e a teoria da Jiteratura se viram condenadas pelo fato de observarem fronteiras discipli- nares (¢ ainda por reconhecerem hierarquias ¢ valores, ou, numa palavra, por acatarem o cAnone), ao passo que outras vertentes dos estudos literé- rios — caso da literatura comparada, bem como de correntes como a teoria feminista, a teoria pds-colonial, o discurso das minorias, a teoria queere os gay/lesbian studies —, por sua receptividade aos estudos culturais, determinada quer por vocagao interdisciplinar, quer por interesse em agen- tes marginalizados ou tidos como subalternos, foram considerados exce- es, € por isso acolhidos como aliados.' Passemos a seguir, para finalizar, as restrigGes te6ricas feitas aos estudos culturais, que, por sua indole essencialmente combativa e reivindicatéria, vem acumulando desafeigdes, como alids era de esperar- se, Vejamos entio as principais criticas que tém sofrido, formuladas so- bretudo a partir da perspectiva dos estudos literérios. A primeira vulnerabilidade conceitual do culturalismo seria sua propria idéia central, a nogdo de cultura, considerada vaga ¢ frouxa, por sua abrangéncia excessiva, Essa inconsisténcia estaria, por sua vez, direta- mente associada a uma outra, a incapacidade para considerar a questo do valor cm suas anilises. Assim, os estudos culturais, nao dispondo de con- ceitos aptos para levar em conta a existéncia conereta de valores na organi- zagdo da cultura, operariam uma espécie de racionalizagio, manobra que Jhes permitiria transmutar fraqueza tedrica em militéncia ético-politica, em profisso de fé contra todas as hierarquias. O lema “tudo é cultura”, entao, inviabilizaria o exercicio critico —no sentido de aferigdo de valo- res estéticos —, conduzindo ao paradoxo de um relativismo absolutizado. alheamento em relagio aos valores, per seu turo, resulta- ria em certo pouco caso com relaco & espessura da linguagem nos diver- sos produtos culturais, o que seria particularmente desastroso quando se trata de analisar sistemas complexos, como, por exemplo, a literatura. A Estudos culturais: descrigao de um conceito ¢ critica de sua pratica 67 €nfase na contextualizagao, resposta dos estudos culturais contra a fixagao no texto prépria dos estudos literérios, implicaria assim leituras das obras literdrias como sintoma ou transparéncia referencial, o que contradiz um principio basico do préprio culturalismo: a adverténcia para o cardter de construgao inerente aos bens culturais, isto é, sua “ontologia textual”. Outro aspecto criticavel seria a resisténcia dos estudos culturais a ordenagaio do saber por disciplinas. Desse modo, longe de constituir-se em maior poténcia compreensiva e explicativa, o suposto cardter de hiper-, super: ou pés-disciplina, ou a assungfio de uma perspectiva pretensamente pluri-, inter-, multi- ou transdisciplinar, favoreceria 0 ecletismo, o amadorismo, enfim, uma espécie de irresponsabilidade epistemoldgica, indutora de passeios alegres ligeiros pela filosofia, sociologia, ciéncia politica, psicandlise, hist6ria, antropologia e por af afora.” Finalmente, os estudos culturais tornaram-se alvo de objegdes politicas, articuladas em dois niveis. No plano académico, considerando as posigdes de relevo que vém assumindo em diversas instituigdes —con- trole de departamentos e programas de pés-graduagio, bem como hegemonia em associages profissionais —, sobretudo nos Estados Uni- dos, estariam usufruindo das vantagens decorrentes da assungao do poder, incorrendo portanto nos desvios cuja dentincia ¢ corregao pareciam a sua razao de ser, No plano das relagoes internacionais, o culturalismo, tendo em vista sua répida e agressiva disseminagiio mundial, nao obstante tratar- se de um fenémeno particular, especifico do ambiente universitério anglo- norte-americano, participaria da l6gica da globalizagao, entendida no como integragdo simétrica das sociedades nacionais, mas como anexagio das mais fracas pela mais forte Para concluir, uma tiltima restrigao que nos parece pertinente fazer aos estudos culturais, no diretamente aos prdprios, mas ao “politi- camente correto”, maxima gue, se nao for de sua lavra, certamente neles encontrou um arauto dos mais eficazes. E que a formula, combinando estranhamente relativismo cultural com absolutismo ético, ¢ mais maniqueismo e gravidade puritana, resulta numa espécie de angelismo sem sal, atitude inteiramente incapacitada para o reconhecimento de mati- zes e contradigGes nas questées sociais ¢ politicas, Assim, embora se pre- tenda alinhada a esquerda, no fundo exalta liberdades individuais que se afirmam as custas de projetos coletivos; trata-se portanto da mais perfeita tradugio de uma sociedade profundamente identificada com 0

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