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Michael Pollak
Nota: Esta conferêDcia foi transcrita t tnduztda por Monique Augras. A edição i de Dora Rocha.
das diversas pesquisas de história oral, que vida, ou a certos fatos, algo de invariante.
utilizam entrevistas, sobretudo entrevistas É como se, numa história de vida indivi
de história de vida, é óbvio que o que se dual - mas isso acontece igualmente em
recolhe são mem6rias individuais, ou, se memórias construídas coletivamente -
for o caso de entrevistas de grupo, memó houvesse elementos irredutíveis, em que o
rias mais coletivas, e o problema aí é saber trabalho de solidificação da memória foi
como interpretar esse material. tão importante que impossibilitou a ocor
Se levannos em conta certo número de rência de mudanças. Em certo sentido, de
conceitos usados freqüentemente na histó tenninado número de elementos tomam-se
ria da França - mas é claro que eu poderia realidade, passam a Caur parte da própria
me referir a qualquer outro país -, há algu essência da pessoa, muito embora outros
mas designações, atribuídas a detennina tantos acontecimentos e fatos possam se
dos períodos, que aludem diretamente a modificar em função dos interlocutores, ou
fatos de memória, muito maisdo que a em função do movimento da fala.
acontecimentos ou fatos históricos não tra Quais são, portanto, OS elementos cons
balhados por memórias. Por exemplo, titutivos da memória, individual ou coleti
quando se fala nos "anos sombrios", para va? Em primeiro lugar, são os aconteci
designar a época de Vichy, ou quando se mentos vividos pessoaliLLnte. Em segun
fala nos "trinta gloriosos", que são os trinta do lugar, são 06 acontecimentos que eu
anos posteriores a 1945, essas expressões chamaria de "vividos por tabela", ou seja,
remetem mais a noções de memória, ou acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
seja, a percepções da realidade, do que à coletividade à qual a pessoa se sente per
Cactualidade positivista subjacente a tais tencer. São acontecimentos dos quais a
percepções. pessoa nem sempre participou mas que, no
A priori, a memória parece ser um fe imaginário, tomaram tamanho relevo que,
nômeno individual, algo relativamente ín no fim das contas, é quase impossível que
timo, próprio da pessoa. Mas Maurice ela consiga saber se participou ou não. Se
Halbwacbs, nos anos 2(}'30,já havia subli formos mais lohge, a esses acontecimentos
nhado que a memória deve ser entendida vividos por tabela vêm se juntar todos os
também, ou sobretudo, como um fenôme- eventos que não se situam dentro do espa
00 coletivo e social, ou seja, como um ço-tempo de uma pesso a ou de um grupo.
fenômeno construído coletivamente e sub É perfeitamente possível que, por meio da
metido a flutuações, transformações, mu socialização política, ou da socialização
danças constantes. histórica, ocorrn um fenômeno de projeção
Se destaca)11OS essa característica flu ou de identificação com detenninado pas
tuante, mutável, da memória, tanto indivi sado, tão forte que podemos falar numa
duai quanto coletiva, devemos lembrar memória quase que herdada. De fato - e eu
também que na maioria das memórias gostaria de remeter aí ao livro de Philippe
existem marcos ou pontos relativamente Joutard sobre os camisards -, podem
invariantes, imutáveis. Todos os que já re existir aContecimentos regionais que trau
alizaram entrevistas de história de vida matizaram tanto, marcaram tanto uma re
percebem que no decorrer de uma entrevis gião ou um grupo, que sua memória pode
ta muito longa, em que a ordem cronológi ser transmitida ao longo dos séculos com
ca não está sendo necessariamente obede allíssimo grau de identificação.
cida, em que os entrevistados voltam vá Além desses acontecimentos, a memó
rias vezes aos mesmos acontecimentos, há ria é constituída por pessoas, persolJQgens.
nessas voltas a detcnninados períodos da Aqui também podemos aplicar o mesmo
202 ESlUOOS mSTÓRlCOS -1991110
origern nas colôlúas. A memória da Africa, Além dessas diversas projeções, que p0-
seja dos Camarões ou do Canga, pode dem ocorrer em relação 8 eventos, lugares
fazer parte da herança da fanulia com tania e personagern, há também o problema dos
fonça que se trarnforma praticamente em vestígios datados da memória, ou seja,
sentimento de pertencimento. Outro exem aquilo que fica gravado como data precisa
plo seria o da segunda geração dos pieds de um acontecimento. Em função da expe
rwirs na França, que na verdade nem che riência de uma pessoa, de sua inscrição na
garam a nascer na Argélia, mas entre os vida pública, as datas da vida privada e da
MEMÓRIA EIDENlIDADESOCIAL 203
vida pública vão ser ora 3&similadas, ora bora haja datas oficiais relativas ao fim da
estritamente separadas, ora vão [altar no Primeira Guerra Mundial, dia 11 de no
relato ou 0.1 biografia. Quando fizemos en vembro, e da Segunda Guerra, dia 8 de
trevistas com donas de casa da Nonnandia maio, na prática, quase que espontânea e
que pa&saram pela guerra, pela Ocupação, automaticamente, as populações só guar
pela Libertação etc., as datas precisas que davam uma única data, o 11 de novembro.
pudemos identificar em seus relatos eram O 8 de maio era claramente identificado
as da vida Camiliar: nascimento dos filbos, como um Ceriado qualquer, como um do
até mesmo datas muito precisas de nasci mingo, enquanto no 11 de novembro reali
mento de todos os primos, todas as primas, zavam-se comemorações duplas, alusivas
todos os sobrinhos e sobriJlhas. Mas havia a ambas as guerras. As memórias indivi
uma nítida imprecisão em relação às datas duais e a atuação das associações de ex
públicas, ligadas à vida política. combatentes juntavam-se para atribuir à
No extremo oposto, só para marcar a Primeira Guerra u m peso maior para a
polaridade, se fizennos entrevistas com história da França do que a Segunda, atra
personagens públicas, a vida Camiliar, a vés de uma memória mais traumática, li
vida privada, vai quase que desaparecer do gada ao número de vítimas.
relato. Iremos nos deparar com a recons Outro Cator que atua nessa transferência
truçao política da biografia, e as datas pú do 8 de maio para o 11 de novembro é
blicas quase que se tomam datas privadas. simplesmente a real importãncia histórica
É claro que não podemos interpretar i&so das respectivas datas para detenninada re
exclusivamente como uma espécie de 50- gião. Podemos ver que, por assim dizer, a
bre-construçao política da personagem. memória pode "ganhar" da Cionologia ofi
Pode ocorrer de Cato que as coações da vida cial. Sabe-se que a França foi libertada por
pública, como por exemplo o tempo dispo etapas. Em conseqüência, a data da vivên
nível, levem uma pe&sO a, a partir de um cia da Libertação e do fim da guerra não é
certo momento de sua vida, a reduzir-se a mesma para todos. O 8 de maio é uma
praticamente à personagem pública, à re data longúlqua, porque é muito posterior à
presentação dessa personagem. Não se de da Libertação de Paris. O grande momento
ve portanto considerar e&ses aspectos co de alegria popular não é 1945, não é O 8 de
mo indicadores de dissimulação ou Calsifi maio, e sim a segunda metade do ano de
cação do relato. O que importa é saber qual 1944. A rigor, pode-se dizer que, além da
é a ligação real disso com a construção da transferência entre datas oficiais, há tam
personagem. bém o predomínio da memória sobre de
Sobretudo em relação à datas públicas, temúnada cronologia política, ainda que
observam-se claros fenômenos de transCe esta última esteja mais fortemente investi
rência queàs vezcssão até, por a&sim dizer, da pela retórica, até mesmo pela reconstru
sancionados legalmente. No caso do fim ção historiográfica.
da guerra, analisamos as comemoraÇÕC5 na Depois desta curta introdução, que
França, isto é, usamos como indicadores mostra os diCerentes elementos da memó
empíricos as práticas de comemoração, em ria, bem como os fenômenos de projeção
vez de nos apoiannos nas mem6rias indi e transCerência que podem ocorrer dentro
viduais. Observamos em que dias do ano e da organização da memória individual ou
de que maneira os habitantes de pequenas coletiva, já temos uma primeira caracteri
aldeias comemoravam o fim da guerra. zação, aproximada, do fenômeno da me
Ne&se caso também pudemos verificar, na mória.A memória éseletiva. Nem tudo fica
. maior parte das regiões francesas, que, em- gravado. Nem tudo fica registrado.
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memória individual grava, recalca, exclui, um elemento dessas definições que neces-
relembra, é evidentemente o resultado de sariamente escapa ao indivíduo c, por ex
um verdadeiro trabalho de org aniza ção. tensão, ao grupo, e este elemento, obvia
Se podemos dizer que, em todos os mente, é o Outm. Ninguém pode construir
níveis, a memória é um fenômeno cons uma auto-imagem isenta de mudança, de
truído social e individualmente, quando se negociação, de transfonnação em função
trata da memória herdada, podemos tam dos outros. A construção da identidade é
bém dizer que há uma ligação fenomeno um fenômeno que se produz em referencia
lógica muito estreita entre a memória e o aos outros, em referência aos critérios de
sentimento de identidade. Aqui o senti aceitabilidade, de admissibilidade, de cre
mento de identidade está sendo tomado no dibitidade, e que se faz por meio da nego
seu sentido mais superficial, mas que DOS ciação direta com outros. Vale dizer que
basta no momento, que é o sentido da memória e identidade podem perfeitamen
imagem de si, para si e pa. te sernegociadas, e não são fenômenos que
é, a imagem que uma pessoa adquire ao devam ser compreendidos como essências
longo da vida referente a ela própria, a de uma pessoa ou de um grupo.
imagem que ela constrói e apresenta aos Se é possível o confronto entre a memó
outros e a si própria, para acreditar na sua ria individual e a' memória dos outros, isso
MEMÓRIA E IDErmDADE SOCIAL 205
pessoas. Por exemplo, todos os que fize mento e que, a priori, por terem elelocntos
ram pesquisas de história oral sobre as constitutivos comuns em suas vidas, deve
estruturas familiares nas classes populares, riam sentir-se como pertencentes ao mes
como já fiz na Áustri;l, puderam verificar mo grupo de destino, à mesma memória.
o quanto um nascimento ilegítimo pode ser O caráter conllitivo se torna evidente na
um ponto importante quando se trata de memória de organizações constituídas, tais
resolver litígios ligados a heranças. Não se como as fa mílias políticas ou ideológicas.
trata apenas de herança no sentido mate Para ficar no caso francês, posso falar da
rial, mas também no sentido mOl1ll, ou seja, memória da Resistência. É sabido que a
do valor atribuído a detenninada filiação. Resistência francesa teve componentes
Sabemos que a memória, bem como o muito divelSiftcados: grupos comunistas,
sentimento de identidade nessa continui grupos gaullistas, grupos que haviam op
dade herdada, constituem um ponto impor tado por uma resistência organizada dentro
tante na disputa pelos valores familiares, do país, e que aderiram mais ou menos
um ponto focal na vida das pessoas. rapidamente, ou mais ou menos lentamen
Em nível mais organizado, vejamos o te, ao general De Gaulle. Por conseguinte,
que acontece em relação à memória de um nessa memória bá um certo número de
grupo. Tomemos como grupos não apenas objetivos, de conflitos, de litígios. Só para
partidos políticos ou sindicatos, mas tam saber quem detinha a verdadeira legitimi
bém grupos um pouco mais i,úormais. Na dade de ter sido a vanguarda da Resistên
França, tomarei o exemplo daqueles que, cia, bouve grandes disputas no jogo políti
durante a Se&"nda Guerra Mundial, foram co francês depois de 1945 entre as duas
deportados. E totalmente trágico verificar famílias políticas e ideológicas que eram,
até que ponto a memória deles constitui um de um lado, o gauUismo, e do outro, o
cacife importante para serem reconbecidos comunismo. O objetivo era verem reco
pelos outms, ou seja, serem valorizados nhecida a interpretação do passa do de cada
pelos outros, num momento, logo depois um e, logo, a sua memória específica. A
da guerra, em que nin/,'IIém elaboração desse tipo de memória implica
guém quer mais ouvir falar em sofrimento. um trabalho muito árduo, que toma tempo,
Além do problema da valorização em re e que consiste na valorização e hierarqui
lação à sociedade em geral, na divelSidade zação das datas, das pelSOnagens e dos
das lembranças e das memórias revelam acontecimentos.
se também disputas e litígios entre os pro No instituto onde trabalho, o Institut
prios subgrupos de deportados. A deporta d'llistoire du Temps Présen� fIZemos pes
ção foi vivenciada de modo diferente, con quisas sobre a lembrança da Resistência e
forme suas razões oficiais. Um motivo 00- pudemos verificar que, nos anos 50, a per
mo a participaÇão na Resistência era mais centagem de resistentes que relatavam ter
fácil de valorizar depois da guerra do que, ouvido pessoalmente o apelo do general
por exemplo, ter sido preso numa blitz por De Gaulle, no 18 de junho de 1940, era
ser judeu. Ou ainda, ter sido deportado po r relativamente baixa. Mas se boje formos
condenação de delito penal, por ter atuado entrevistar antigos resistentes, teremos di-
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ficuldades em encontrar um que não tenha também em outros países esse fenômeno é
escutado o apelo do 18de junho.Sobcertos bem conhecido de todos.
aspectos, a memória gauUista conseguiu Por conseguinte, o trabalho de enqua
transformar-se em memória nacional, ou, dramento da memória pode ser analisado
pelo menos, deixou certo número de datas em termos de investimento. Eu poderia
extremamente valorizadas. dizer que, em certo sentido, uma história
Outro fato que constitui uma espécie de social da história seria a análise desse tra
amostra de acerto entre as diversas farrullas balho de enquadramento da memória. Tal
da Resistência é o personagem de Jean análise pode ser feita em organizações po
Moulin. Nos anos 50, Jean Moulin aparece líticas, sindicais, na Igreja, enfim, em tudo
como um dos líderes da Resistência que aquilo que leva os grupos a solidificarem
pouca gente conheceu pessoalmente. De o social.
pois do traslado do seu corpo para o Pant Além do trabalho de enquadramento da
•
héon, e do seu reconhecimento como líder memória, há também o trabaUIO da pr6-
inconteste da Resistência interna, ou seja, pria mem6ria em si. Ou seja: cada vez que
como aquele que foi enviado por Londres uma memória está relativamente constituí
e realizou a obra de unificação dos diversos da, ela efetua um trabalho de manutenção,
grupos da Resistência, ele passou a ser de coerência, de unidade, de continuidade,
conhecido pessoalmente por todos. da organização. Por exemplo, a partir do
Está claro portanto que a memória es momento em que o Partido Comunista
pecificamente política pode ser motivo de amarrou bem a sua história e a sua memó
disputa entre várias organizações. Para ca ria, essa mesma memória passou a traba
racterizar essa memória constituída, eu lhar por si SÓ, a influir na organização, nas
gostaria de introduzir o conceito de traba gerações futuras de quadros; os investi
lho de enquadramento da mem6ria. Vale mentos do passado, por assim dizer, rende
dizer: há um trabalho que é parcialmente ram juros. Esse fenômeno torna-se bem
realizado pelos historiadores. Temos histo claro em momentos em que, em função da
riadores orgânicos, num sentido tomado percepção por outras organizações, é pre
emprestado de Gramsci, que são os histo ciso realizar o trabalho de rearrumação da
riadores do Partido Comunista, os historia memória do próprio grupo. Isso é óbvio no
dores do movimento gauUista, os historia caso do Partido Comunista. Cada vez que
dores socialistas, os sindicalistas etc., cuja ocorre uma reorganização interna, a cada
tarefa é precisamente enquadrar a memó reorientação ideológica importante, rees
ria. Em relação à herança do século XIX, crevera-se a história do partido e a história
que considera a história como sendo em geral. Tais momentos não ocorrem à toa,
esséncia uma história nacional, podemos são objeto de investimentos extremamente
perguntar se a função do historiador não custosos em termos políticos e em termos
terá consistido, até certo ponto, nesse tra de coerência, de unidade, e portanto de
balho de enquadramento visando à forma identidade da organização. Como sabe
ção de uma história nacional. Este fenôme mos, é nesses momentos que ocorrem as
no é mais claramente acentuado em países cisões e a criação, sobre um fundo hetero
cuja unificação nacional se deu tardiamen gêneo de memória, ou de fidelidade à me
te, e onde a ciência histórica tinha uma mória antiga, de novos agrupamentos.
tarefa de unificação e manutenção da uni Espero que esta rápida descrição da pro
dade. Estou me referindo a certa corrente blemática da constituição e da construção
da historiografia alemã do século XIX, social da memória em diversos níveis mos
marca da pelo nome de Traitschke, mas tre que há um preço a ser pago, em termos
MEMÓRIA E IDENIlDADE SOClAL 207
sobretudo, temos novos campos. A rigor, rentemente lão opostos apresentam uma
sem assumir O ponto de vista do positivis continuidade. Vejo também uma relação
mo ingênuo, podemos considenu que a particularmente estreita entre a história e
própria história das representações seria a certos subcampos da sociologia.
história da reconstrução cronológica deste Algo que quero voltar a sublinhar é o
ou daquele período. O que se tem feito problema da subjetividade e das fontes.
recentemente, como por exemplo a histó Em primeiro lugar, até as mais subjetivas
ria da auto-apresentação das elites de um das fontes, tais como uma história de vida
país, e também a história da cultura popu individual, podem sofrer uma crítica, por
lar, ou da autopercepção popular, é, a meu cnmnoclIto de informações obtidas a par
ver, uma história perfeitamente legítima. tir de fontes diferentes. Mas acredito que,
Por outro lado, .. multiplicação dos ob ao fazê-lo, e vou dar um exemplo, chega
jetos que podem interessar à história, pro mos rapidamente a esgotar a capacidade de
•
duzida pela história oral, implica indireta trabalho dos pesquisadores. E preciso re-
mente aquilo que eu chamaria de uma sen conhecer isso honestamente.
sibilidade epistemológica específica, agu Na pesquisa sobre histórias de vida de
çada. Por isso mesmo acredito que a mulheres deportadas, de onde foi extraído •
história oral nos obriga a levar ainda mais o meu artigo crLe témoignage", a primeira
a sério a crítica das fontes. E na medida em história de vida que recolhemos, com du
que, através da história oral, a crítica das ração de aproximadamente dez horas, foi
fontes toma-se imperiosa e aumenta a exi controlada sob todos os aspectos. Éramos
gência técnica e metodológica, acredito quatro pesquisadores para uma só história
que somos levados a perder, além da inge de vida, e começamos um controle muito
nuidade positivista, a ambição e as condi cerrado de todas as informações. Primeiro,
ções de possibilidade de uma história vista controlamos a data de nascimento da mu
como ciência de síntese para todas as ou lher, mediante consulta ao registro civil.
tras ciências humanas e sociais. Há uma Depois, controlamos as escrituras do apar
perspectiva que considera a história como tamC/lto de sua família em Viena, a data do
sendo a reconstrução, para um período de comhoio que a levou para o campo de
terminado, de todos os materiais que as extermínio, a data da operação que sofreu
outras ciências nos fornecem. Mas na me em Auschwitz. Achamos isso tudo. Para
•
dida em que os objetos da história se diver uma só entrevista, uma só história de vida,
sificam, se multiplicam, eu pessoalmente quatro pessoas trabalharam durante dois
vejo, nessa pluralização, uma grande difi anos. Fica evidente que se você fIZer um
culdade em manter a ambição da história projeto implicando uma centena de histó
como ciência de síntese. Pemo que, pela rias de vida, até mesmo umas trinta, irá
força das coisas, a história virá a ser uma logo esgotar a possibilidade de trabalho da
disciplina particularizada - sem se tomar equipe. Se pretendermos controlar todos
parcial, pois é isso que se crítica hoje na OS dados, será muito difícil realizar isso na
história oral, a sua alegada parcialidade. prática.
Acho que é este o destino da história, tal Acho que o que devemos fazer é levan
vez. Nisso vejo uma continuidade entre a tar meios de controlar as distorções ou a
história social quantificada e a história geslão da memória. Quanto menos uma
oral. Acredito que esses dois campos apa- história de vida for pré<onstruída, mais
•Em co-autoria com Nalhalic Hci.nich, publicado emÂclu tk la R«1serdte _ ScieJtCuSociaks, 62163:3-29,jui� 1986.
Ver liDda. de M .PoIlak. ali ""'sma revista, p.�!53. "La gestioo de l'iadicibJc".
MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL 209
isso funcionará. Numa história de vida outra mulher que não a en\revistada. Só
muito comprida, há certas coisas que são quando uma entrevistada nos contou o fato
completamente solidificadas. Na minha em relação a outra mulher que já Unhamos
experiência de trabalho, as coisas mais so entrevistado foi que pudemos tratar do as
lidificadas, assim como as coisas mais flui sunto. Essa outra mulher tinha tido real
das - ou seja, as que se transfonnam de mente uma criança no campo de extermf
uma sessão de entrevista para outra - são nio, e pudemos retomar então a sua própria
as mais problemáticas. Paradoxalmente, experiência. O que ficou claro foi que es'"
são ao mesmo tempo indicadoras de "ver fato tinha sido solidamente registrado ca
dade" e de "falsidade", no sentido positi mo acontecimento coletivo, mas não indi·
vista do tenoo. Aaedito que as partes mais vidual. Não podia aparecer como aconte
construídas dizem respeito àquilo que é CinlelltO individual por ser trágico demais,
mais verdadeiro para uma pessoa, mas ao traumatizante demais. Mas aparecia em
mesmo tempo apontam para aquilo que é todas as entrevistas com muita força. Nas
mais falso, sobretudo quando a construção histórias de vida publicadas logo depois da
de detenoinada imagem não tem ligação, guerra, aparecia talvez por ser mais ime
ou está em franca ruptura com o passado diatamente dizível do que depois de 1949.
real. O que mais nos deve interessar, numa No OISO de n ossas entrevistas, pudemos
entrevista, são as partes mais sólidas e as mostrar que o ato de relatar o evento pes
menos sólidas. Eu diria que no mais sólido soal, atribuindo-o a outra pessoa, não aten
e no menos sólido se encontra o que é mais dia a 'uma eventual vontade de falsear a
fácil de identi ficar como sendo verdadeiro, infonoação, mas era simplesmente uma
bem como aquilo que levanta problemas transposição necessária, que permitia
de interpretação. transmitir uma experiência extremamente
Vou dar um exemplo. Entre os fatos dolorosa. Por conseguinte, acredito que
mais traumativmtes dos campos de exter entre o ufalso" e o uverdadeiro", entre aqui·
múllo, havia alguns que apareceram nos lo que o relato tem de mais solidificado e
primeiros relatos publicados imediata de mais variável, podemos encontrar aqui
mente depois da guerra. Ora, tais fatos lo que é mais importante para a pessoa.
desapareceram dos relatos publicados en Voltando ao primeiro assunto, acredito
tre 1949 e 1980, para só reaparecer agora, que a história ta 1 como a pesquisamos pode
em dois relatos publicados recentemente. ser extremamente rica como produtora de
Esses fatos dizem respeito ao nascimento novos temas, de novos objetos e de novas
de filhos de mulheres deportadas. Nos interpretações. A história está se transfor
campos de exte nnínio, quando uma depor mando em histórias, histórias parciais e
tada estava grávida, a comunidade das mu plurais, até mesmo sob o aspecto da crono
lheres a escondia para que Dão fosse morta. logia. A esse respeito, gostaria de contar
Como não poderia ter no trabalho o mesmo um caso. Numa palestra sobre história oral
rendimento das demais, a grávida seria no llITP, ministrada por um pesquisador
morta logo que fosse descoberta. Então alemão, este relatou uma pesquisa realiza·
havia esse problema agudo.da realidade da na Alemanha, na qual tinha verificado
biológica da mulher, da alegria do nasci que as datas importantes da história alemã,
mento, coincidindo totalmente, naquele da história oral do Zé Povinho, não eram
universo, com a irevitabWdade da morte, 1933, nem 1938-39, início da guerra, nem
.
cos tais como a tomada do poder pelo 3" - Sobre a tendência da hist6ria oral a
Reich haviam sido recalcados, ou então valorizar o subjetivo por oposil;ão ao ob
não tinham sido vividos como tão marcan jetivo:
tes. Mas as duas datas lembradas eram
datas marcantes po rque correspondiam a Posso dizer que, de fato, há esse movi
uma clara melhoria econômica. Para mui mento, bastante primário. Vi isso nas con
tas famJIias alemãs, 1935 era a primeira ferências internacionais sobre história oral.
vez que se assistia à estabilização do em O historiador estava se restringindo aos
prego e da renda familiar, assim como arquivos, e, de repente, está se confrontan
1948 era o ano da reforma monetária. Por do com a realidade concreta. Numa atitude
tanto, o acontecimento marcante não era a quase militante, quer dar a palavra àqueles
criação da República Federal Alemã em que jamais a tiveram, daí essa vontade de
1949, não era o fim da guerra em 1945, mas reabilitar o subjetivo frente ao objetivo.
era 1948, data da reforma monetária. De Cria-se assim uma oposição entre história
repente, de um dia para outro, o mercado oral e história social quantificada, enquan
negro foi substituído por um mercado mais to eu, por mim, não vejo oposição, e sim
acessível, houve um começo de estabiliza continuidade potencial.
ção econômica, e isto se fixou na cronolo Acho que hoje a questão objetivo versus
gia vivenciada. Agora, como podemos dis subjetivo está um pouco ultrapassada. Em
tinguir uma clo/lOlogia "verdadeira" de certos artigos de Bertaux, e sobretudo de
uma Clonologia "falsa"? Acredito que a Régine Robin, a questão foi transportada
única coisa que se pode dizer é que existem para outro nível. O debate entre subjetivi
cronologias plurais, em função do seu mo dade e objetividade transformou-se num
do de construção, no sentido do enquadra debate opondo a escrita literária à escrita
mento da memória, e também em função cientificista. Haveria de um lado o vazio, o
de uma vivência diferenciada das realida seco, o enfadonho, que seria o discurso
des. científico, ainda por cima reducionista e,
O mais engraçado dessa história foi que diz Régine Robin, fechado à pluralidade do
na discussão que se seguiu um historiador real, enquanto a história oral seria uma das
francês disse: "É um absurdo, é inadmissí possibilidades de reintroduzir nas ciências
vel, não se pode ignorar as realidades, não humanas, depois do período estruturalista,
se pode dizer que 1948 é mais importante uma escrita não apenas subjetiva, mas so
que 1945'" Só que o historiador alemão bretudo literária. Régine Robin toma como
não tinha dito nada disso, disse apenas que paradigma daquilo que deveríamos fazer o
as cronologias flXadas são plurais e dife roma nce clássico do século XIX e do início
renciadas. Para o historiador francêS isso do século xx, portanto, o próprio romance
era inadmissível. Mas quando se passou a polifônico, do tipo Prous� Musil, James
falar da França, e do 8 de maio de 1945, e Joyce. Dizela que a pluralidade do ro mance
de 1944, cuja importância relativa depen é em realidade o critério do verdadeiro no
dia da vivência, Dt$SC caso ele não se co discurso sobre o social. Ou seja: o discurso
locou problema al,gum! Ele aí admitia mui científico, com o seu fechamento e sua
to bem essa polifonia das datas fixadas. tendência reducionista, é um discurso que
Esta é apenas uina historinha, mas que restringe a rea lidade, e por conseguinte não
mostra bem, a meu ver, que a única saída é verdadeiro, já que não leva em conta O
é admitir a pluralidade da história, das plurnl- aqui se trata mais do plural do que
realidades, e, logo, das cronologias histo do subjetivo, o subjetivo não é mais o pro
ricamente admissíveis. blema para Régine Robin. A história de vida
MEMOilIA B IDENTIDADE SOCIAL 211
individual diretamente relatada, que a pri timação. Acho que é muito mais interes
meira geração de bÍSloriadores coloca em sante estudar as condições de possibilidade
termos de oposição, é recusada por ela, dessas oposições do que levá-las a sério em
porque ela acha que a história individual si mesmas. A rigor, quaodo aparece esse
expressa , de fato, o pré-ainstruído socia� tipo de discussão, não se deve dar impor
em vez da verdade, enquanto a construção tância, a não ser, é claro, que se queira
romanesca seria o modo privilegiado da utilizar um desses pólos numa tática desti
escrita, capaz de restituir a verdade social nada a marcar fortemente uma posição.
em todas as suas alternativas e toda a sua •
mada, que dói na vista e que só nos pennite zar os dados com outras fontes, as próprias
apertar um botão. Há historiadores que são fontes são bastante duvidosas, só se dispõe
fãs dos arquivos, que sentem a necessidade de jornais, que são considerados fontes de
de segurar o papel velho, e que falam disso, terceira ou quarta categoria. Aíjunta-se um
do mesmo JJVVjo que eu posso falar, depois monte de obstáculos, de inconvenientes.
da entrevista, do cafeDoho servido por
aquela velha senhora que quase me cha - Sobre a suposta superioridade da fonte
mou de ftlho. . Acho que há uma sensibili
.
escrita:
dade no trabalho científico, e cada vez que
ocorre uma mudança no trabalho, ela se
Na França tivemos exemplos disso, em
traduz quase que fisicamente na sensibili
relação a assinaturas de manifestos. Quan
dade das manipulações. Seria muito inte
do o historiador. positivista, que acredita
ressante refazer uma história das ciências
naquilo que está escrito, nas assinaturas
questionando a importância dessa sensibi
que constam no manifesto, ouvir as pes
lidade no contato com os materiais sobre
soas que supostamente assinaram, ele vai
os quais a gente trabalha, em relação àquilo
levarum susto com o susto dessas pessoas.
que a gente pesquisa e sobre o que a gente
Isto porque, freqüentemente, as pessoas
escreve.
que organizam os abaixo-assinados não
têm tempo de telefonar para todo mundo,
- Sobre a Iimitaçãc da história oral ao
contam com a concordância de um cida
tempo presente:
dão, colocam seu nome e depois esquecem
de avisá-lo. Este é um caso em que a fonte
A história oral pennite fazer uma histó
escrita não possui validade superior à da
ria do tempo presente, e essa hisJ6ria é
fonte oral.
muito contestada. Há vários tipos de hos
tilidades. Por exemplo, há uma oposição
entre fontes clássicas, legítimas, e fontes - Sobre o depoimento pré-construúfo, co
que estão adquirindo nova legitimidade. mum entre os polltieos:
Na França há também a "dIgnidade" do
período. A história medieval, por exemplo, A esse respeito, posso falar a partir das
é o máximo, é o que existe de mais fino. É entrevistas que fiz com as deportadas. En
claro que quando você está acostumado a tre elas, havia militantes deportadas por
trabalhar com a Idade Média, vai ser difícil razões políticas, por ações na Resistência,
se recic1ar em entrevistas I Mas há também mas havia também algumas que tinham
um problema de legitimidade, até mesmo sido deportadas quase que por acaso, por
em relação à história contemporânea. A que tinham escondido uma mala, algo as
história do período seguinte à Primeira sim, ou seja, por um ato não-político. l0-
Guerra Mundial é vista como bem menos go, haveria uma oposição entre o discurso
"digna" do que a história de períodos mais destas últimas e o das outras, um discurso
antigos. Por tradição, a corporação dos relativamente construído, de mulheres que
historiadores já não vê com muito bons depois da Libertação tiveram funções po
olhos O campo da história do tempo pre líticas, foram deputadas à Assembléia Na
sente, e a história oral, então, é o nee plus cional na França. Se quisermos fazer a
ultra da novidade. análise desses relatos, será necessário in
O problema da história contemporânea troduzirmos outros elementos que não o
é que geralmente os arquivos ainda não conteúdo, elementos que dizem respeito ao
foram abertos, não há possibilidade de cru- estilo.
MEMÓIlIA E IDENllDADE SOClAL 213
Na cbegada do comboio, bavi.a lima imediata seleção que separava 06 grupos e dirigia parte dos rea!:m-chegad06 paR
a dmaR de sú. oum para os barracões etc., a parnrde critérios jamais escla�cidos (N.d.T.).
MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL 215