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Texto apresentado como requisito parcial para conclusão da matéria Jurisdição Constitucional, ministrada
pelo Ministro Gilmar Mendes no curso de Mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.
Habermas; 2.1 Teoria dos atos de fala; 2.2 Pretensões de validade; 2.3
Discussão do tema; Conclusão.
INTRODUÇÃO
Esse contexto aponta para uma crise do Estado nacional, motivado pela
globalização e, principalmente, pela formação de blocos econômicos que vieram a mitigar a
soberania estatal interna.
2
“En la época de la globalización, el futuro de cada país depende cada vez menor de la política interna y
cada vez más de decisiones externas, tomadas em sedes políticas supranacionales o por poderes
econômicos globales.” Ibid., idem, p. 110.
3
Faller, ao tratar do Tribunal Constitucional Alemão afirma: “El Tribunal Constitucional debe interpretar
el orden constitucional em pronunciamientos que tienen el carácter de obligatorios; debe garantizar la
cooperación entre los diversos órganos estatales de la Federación y de los Länder según el espíritu de la
Constitución; controlar que los poderes públicos permanezcan dentro de sus limites frente a cada
A importância da Constituição e, por conseguinte, de sua defesa, que é
executada em diversos países, a exemplo do Brasil, por uma Corte Constitucional expõe a
necessidade de se perquirir acerca da legitimidade deste órgão.
1. DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL
ciudadano, y defender los fundamentos del orden democrático en um régimen de libertad contra los
ataques de fuerzas anticonstitucionales.” FALLER, Hans Joaquim. Defensa constitucional por médio de
la jurisdiccion constitucional em la República Federal de Alemania, p. 50.
Inicialmente, parte Habermas da análise dos conceitos empiristas e
normativistas de democracia. Isso porque ao expor o seu modelo de democracia,
Habermas pretende desenvolver a sua teoria do Direito sob um viés externo da facticidade
e da validade. No primeiro, legitimidade do direito e necessidade de legitimação não são
descritas a partir da perspectiva dos participantes4. Já no segundo, as práticas democráticas
são legitimadas a partir da perspectiva dos próprios participantes5.
4
“[...] o mesmo não acontece com uma teoria da democracia, delineada normativamente, cujos conceitos
empiristas e cujo olhar objetivador são tomados de empréstimo às ciências sociais. Ela pretende
demonstrar que as práticas democráticas podem ser legitimadas através de uma decisão empirista, na
visão dos próprios participantes.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e
validade, v. II, p. 11.
5
Ibid., mesma página.
6
Ibid., p. 19.
Por isso é que em sua visão procedimentalista o êxito da política
deliberativa irá depender da institucionalização dos procedimentos e das condições de
comunicação correspondentes e não da ação coletiva dos cidadãos7:
7
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Op. cit., p. 61.
8
Ibid., mesma página; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. II, p.
22.
9
Cf. ARCAYA, Óscar Godoy. Democracia y razón pública em torno a John Rawls. In: Estudios
Públicos, nº 81. http://www.puc.cl/icp/webcp/papers/o_godoy/rev81_godoy.pdf, consultado em
24.10.2007.
10
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro, p. 380.
contribuições, informações e razões, propiciando o surgimento da força do melhor
argumento11. Segue asseverando que “Em face de um procedimento como esse, legitimamente
reconhecido, ainda se pode fazer valer a diferença entre um resultado “válido” e um resultado
“racionalmente aceitável” (no âmbito institucional dado)”.12
11
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro, p. 341.
12
Ibid., p. 343. “O discurso de legitimação de uma democracia não só obriga a mesma a ser democrática
no seu conteúdo – abstraindo do fato de que o significado desse adjetivo ‘democrático’ pode ser matéria
de grandes controvérsias. Ele deveria sobretudo realizar também no seu próprio procedimento o que
designa, deveria, portanto, ser correlativamente estruturado, i.é: não formular afirmações em bloco, que se
imunizam contra a discussão, não apresentar-se qual dedução cogente, não falar por intermédio de
resultados antecipados. Muito pelo contrário, a legitimidade – como também a normatividade jurídica – é
um processo e não uma substância, uma essência ou mesmo uma qualidade de textos.” MÜLLER,
Friedrich. Quem é o povo?A questão fundamental da democracia, p. 107.
13
ALMEIDA, Andréa de. Op. cit., p. 55.
Para entender de que forma a democracia procedimental de
Habermas pode contribuir para a legitimação das decisões das Cortes Constitucionais em
sede de controle de constitucionalidade, faremos uma breve análise da teoria dos atos de
fala de Austin, utilizado por Habermas para fundamentar seu pensamento. Após,
discutiremos as pretensões de validade do discurso propostas pelo filósofo tedesco,
culminando com uma análise sobre a aplicação de seu modelo de democracia as Cortes
Constitucionais.
Para tanto, ele parte da teoria dos atos de fala que, segundo ele, “[...] tem
dado origem a idéias que podem servir de base aos pressupostos fundamentais da pragmática universal.”15
14
HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e comunicação, p. 9.
15
Ibid., p. 45-46.
16
LORENSKI, Nelson. Da semântica à pragmática: a questão do significado em Habermas, p. 77.
17
LORENSKI, Nelson. Op. cit., p. 80.
que Habermas vai dizer que “[...] os objectivos ilocutórios não podem ser definidos independentemente
dos meios de entendimento”18.
18
Ibid., p. 193.
19
HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e comunicação, p. 121.
2.2. Pretensões de validade
20
HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e comunicação, p. 122. “As condições de compreensão, na
medida em que têm de ser satisfeitas nas práticas comunicativas do quotidiano, apontam assim para a
suposição de um jogo de argumentação em que o falante – enquanto proponente – poderá convencer o
ouvinte, como oponente, de que uma pretensão de validade suscetível de ser problemática é justificável.”
LORENSKI, Nelson. Op. cit., p. 82.
21
Ibid., mesma página..
Estabelecido o arcabouço teórico é possível discutir o tema democracia e
jurisdição constitucional, enfocando a legitimidade das decisões emanadas pelas Cortes
Constitucionais em sede de controle de constitucionalidade.
A discussão parte da seguinte questão: O juiz constitucional aplica o direito do
qual não é autor. Logo a sua atividade de interpretação da lei pode ser vista como criação do Direito?
Segundo Rousseau, o juiz constitucional pode ser visto como uma “boca
da Constituição”, pois sua função é apenas a de comparar texto da lei com a Constituição e
verificar adequação da primeira com a segunda. Assim, o juiz constitucional não inventa
nada. O sentido da norma é dado anteriormente22.
Outros, porém, entendem que as disposições constitucionais são apenas
marcas de papel, que não tem um significado objetivo que determine com segurança o
conteúdo da lei23.
Salienta Rousseau o papel de criação do direito. Segundo ele “En el
âmbito del Derecho, interpretar um texto significa outorgar vida jurídica.”24 A interpretação é vista
como um ato que implica poder de decisão.
Para ele o trabalho jurisdicional constitucional tem todas as
características de um trabalho político. Aqui surge a primeira questão relativa a
legitimidade: o poder de criação normativa dos parlamentos fundamenta a sua legitimidade
na eleição de seus membros por sufrágio, situação este que não serve para justificar tal
poder aos juízes25.
Uma outra questão envolve o papel do juiz constitucional como
legislador parcial. Ou seja, julgar a constitucionalidade das leis evoca outra questão acerca
da legitimidade dos Tribunais. O Parlamento vota uma lei e o juiz controla a sua
conformidade com a Constituição
O juiz constitucional, portanto, através das operações próprias do
controle de constitucionalidade participa do processo de elaboração da lei, na medida em
que obriga o legislador, nos casos de declaração total ou parcial da inconstitucionalidade, a
reformar seu trabalho, motivando aquilo que Rousseau chamou de uma Re-escritura
22
ROUSSEAU, Dominique. La justicia constitucional em Europa, p. 20-31.
23
Cf. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta, p. 101.
24
Ibid., p. 22.
25
Mauro Cappelletti assevera que a legitimidade dos tribunais é extraída do grau de “exposição” ao
público. Segundo ele: “Assim, mediante tal praxe, os tribunais superiores sujeitam-se a um grau de
“exposição” ao público e de controle por parte da coletividade, que também os pode tornar, de forma
indireta, bem mais “responsáveis” perante a comunidade do que muitos entes e organismos
administrativos (provavelmente a maioria desses), não expostos a tal fiscalização continuada do público.”
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?, p. 98-99.
constitucional da lei, submetendo a aprovação da constitucionalidade de uma lei a sua
subjacência as modalidades de aplicação que a decisão de inconstitucionalidade enuncia.
Por esta razão Rousseau vai dizer que a lei que realmente se aplica não é
aquela produzia pelo legislador, mas sim aquela que o juiz constitucional completa, precisa
e neutraliza, assumindo aquilo que os italianos e alemães chamam de “micro-
constitucionalidade”.
Cita, ainda, Rousseau, que os Tribunais Constitucionais participam da
elaboração das leis pela simples existência de sua jurisprudência que, implicitamente supõe
um limite para o legislador quando elabora e discute as leis.
Portanto, a segunda questão acerca da legitimidade é: é legítimo o controle de
constitucionalidade das leis, a priori ou a posteriori, feito os Tribunais, que os leva a desempenhar um
trabalho de legislador negativo ou positivo, participando do sistema de produção de normas?
Sob a ótica da democracia procedimental de Habermas é fácil ver que o
Tribunal Constitucional pode ter sua legitimidade aferida em sede de controle de
constitucionalidade.
Ao pressupor que a democracia ocorre em uma sociedade heterogênea,
Habermas irá postular uma legitimidade das decisões construídas por todos os participantes
ou atores sociais. Não é, portanto, uma legitimidade construída pela decisão da maioria, o
que per si, não possibilita uma construção racional dessas decisões.
O entendimento da sociedade como heterogênea e, portanto, formada de
diversos seguimentos impõe a adoção de uma base normativa consensual para o exercício
das faculdades argumentativas no espaço público.
A Corte Constitucional, portanto, é o espaço público adequado para
discussões relativas ao controle de constitucionalidade, pois possibilita a defesa dos direitos
fundamentais, entendidos por Habermas como necessários para possibilitar o
desenvolvimento do agir comunicativo.
A outro giro, rejeitando a idéia republicana de valores dados a priori,
Habermas possibilita que as discussões efetuadas em sede de controle de
constitucionalidade produzam um direito atual, construído racionalmente, com base em um
consenso assumido sobre as pretensões de validade e que, portanto, tem maior eficácia e
aceitação social.
Se as relações político-parlamentares são carregadas de visões subjetivas
e particulares, de defesa de posições partidárias, que nem sempre correspondem ao ideal
dos eleitores, na jurisdição constitucional, segundo uma idéia procedimentalista, é possível
estabelecer, não apenas a inteligibidade como condição para os discursos nele
desenvolvidos, mas, ainda, as pretensões de validade enunciadas por Habermas.
Logo, não há espaço no controle de constitucionalidade para um
processo subjetivo26, pois como espaço público em que se processam os atos de fala
ilocucionários, a busca pelo entendimento acerca dos temas tratados exige a assunção de
um procedimento intersubjetivo, compatível com um controle de constitucionalidade de
índole objetiva.
Por isso o controle de constitucionalidade exige uma jurisdição-
participativa, capaz de propiciar a construção racional das decisões, partindo-se de um
consenso prévio sobre as pretensões de validade27.
Essa jurisdição-participativa, fundada em uma democracia procedimental
é capaz de produzir decisões racionalmente construídas pelos atores sociais, capazes,
portanto, de se verem como autores e destinatários do controle de constitucionalidade
produzido pelas Cortes Constitucionais.
Logo, muito mais do que uma legitimação por sufrágio universal, fato
que per si, não legitima o parlamento, sobretudo quando se vê uma dissociação entre eleitos
e eleitores28, a legitimidade das decisões das Cortes Constitucionais em sede de jurisdição
constitucional, sob a ótica da democracia procedimental de Habermas, é construída pelo
fato de que as Cortes Constitucionais tornam-se espaços públicos em que importantes
decisões afetas a interpretação e aplicação da Constituição são submetidas a amplo debate29.
E, neste contexto, as pretensões de validade formuladas por Habermas
aparecem como elementos balizadores para a caracterização das Cortes Constitucionais
como espaço público por excelência onde questões de índole constitucional serão debatidas
e decididas.
26
Nos processos subjetivos, prevalece um teor perlocucionário dos atos de fala, orientado para
conseqüências. Nos atos de fala perlocucionários, as pretensões de validade são deixadas de lado, já que
se enunciam atos com aparência de ilocucionários, mas que em verdade, tem outras intenções, afastando,
por completo a pretensão de verdade e a de veracidade.
27
Importante ressaltar que o agir comunicativo em Habermas é orientado para o entendimento e não para
o consenso. O consenso em Habermas é acerca das pretensões de validade. Entendimento implica em
construção racional de decisões, situação em que os atingidos por ela tornam-se também seus autores.
28
Cf. ROUSSEAU, Dominique, Op. cit., p. 26-27.
29
“Não há dúvida de que é essencialmente democrático o sistema de governo no qual o povo tem o
‘sentimento de participação’. Mas tal sentimento pode ser facilmente desviado por legisladores e
aparelhos burocráticos longínquos e inacessíveis, enquanto, pelo contrário, constitui característica quoad
substantiam da jurisdição [...] desenvolver-se em direta conexão com as partes interessadas, que têm o
exclusivo poder de iniciar o processo jurisdicional e determinar o seu conteúdo, cabendo-lhes ainda o
fundamental direito de serem ouvidas. Neste sentido, o processo jurisdicional é até o mais participativo de
todos os processos da atividade pública.” CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., p. 100.
Todavia, essa formulação de Habermas apresenta um problema: essa
abertura procedimental naturalmente exige uma decisão, sob pena de eternizar-se o debate,
pondo abaixo qualquer possibilidade de construção racional da decisão. Essa questão
parece não ter sido resolvida de forma satisfatória por Habermas. Segundo Mônia Leal:
CONCLUSÃO
32
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro, p. 380.
33
Ibid., p. 326.
O consenso acerca das pretensões de validade propostas por Habermas
estabelece-se, então, como o ponto de partida para o desenvolvimento de uma jurisdição
constitucional aberta, em que são levados a sério os argumentos nele apresentados,
possibilitando atos de fala ilocucionários, ou seja, atos que possibilitam uma democracia
procedimentalista intersubjetiva, que busca um entendimento (não consenso) sobre algo no
mundo.
Todavia, esse modelo habermasiano não resolve uma questão
importante: qual o limite dessa abertura da jurisdição constitucional? Nesse ponto é que
alude-se a necessidade de fixação de uma pretensão de decidibilidade, ou seja, os
participantes de um discurso, ao aceitarem as “regras do jogo”, aceitam, outrossim, a
necessidade de que se busque, além de um entendimento, uma decisão sobre o que se
discute.
Ademais, não basta apenas que se queira decidir sobre algo no mundo. É
necessário que se outorgue, previamente, a alguém o papel de decidir por último.
Neste ponto é que vislumbra-se a legitimidade das Cortes
Constitucionais em sede de controle de constitucionalidade, como decorrente desse mister
de dar a última palavra nas questões constitucionais que é possibilitada pela aceitação dos
participantes do discurso do papel que é previsto na Constituição Federal aqueles tribunais,
eliminando qualquer possibilidade de se questionar o caráter democrático da atuação das
Cortes Constitucionais que, apenas de não terem seus membros eleitos pelo voto direto,
tem a sua atuação avaliada e fiscalizada pelos cidadãos quando efetivamente se exerce uma
jurisdição aberta à participação de todos os interessados no processo de construção das
decisões constitucionais.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica & legitimidade normativa. Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2005.
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