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8 i 2 ES A REBELIAO ROMANTICA DA ANTROPOLOGIA CONTRA O ILUMINISMO, ou de como ha mais coisas no pensamento para além da razao e da evidéncia * eae Richard A. Shweder: {62 SSSR AR QUBIGREEE SE 1 ERTIES. Qs antropologos cognitivistas infcriiam sobre a mente humana a partir do esiudo das ideias ¢ das accées de povos exdticos Ha mais de cem anos que os antropélogos cognitivistas se dividiram em duas escolas em disputa acerca da resposta a uma série de perguntas estrcitamente ligadas entre ue inferén- cias sobre a mente humana podem sei formuladas face aos incontéveis exern- pios etnogréficos ¢ historicos de crencas profundamente enraizadas, mas apa- rentemente faisas, ¢ praticas profundamente enraizadas, mas aparentemente itracionais? © que € que os dados de outias cultura nos podem dizer acerca do papel da razao e da evidéncia na formacao das erencas € condutz humanas? Como é possivel comparar os cénones que governam a linguagem e 0 pensa- mento do Cientista, do logico € estatistico ideais com os canones que governam a linguagem e 0 pensamento vulgares (quatidiano, popular, mundano ou selva~ gem) Qual o lugar da tacionalidade, irracionalidade ¢ da ndo-racionalidade nas questdes humanas? * Tradugio de Anténio M Magalhies € revislo cientifica de Stephen R.Stoer € de Antéaio M Magalies. docentes da FP CEUP gPUoAGdg socizpape & curiuras A polémica é, de facto, bastante antiga De um dos lados perfitam-se as figuras do -Iluminismo» (1) como Voltaire, Diderot e Condorcet; e antes deles Soctates, Espinosa e Hobbes; ¢ depois deles Frazer, Tylor, 0 primeiro Wittgenstein, Chomsky, Kay, Levi-Strauss e Piaget A visio do Iluminismo, pro- vocatoriamente resumida por Lovejoy (1974: 288 - 314; ver também Gay, 1959, 1964), sustenta que a mente humana € tendencialmente sacional e cientifica, que os ditames da razto sto igualmente obtigatérios para quem quet que seja, independentemente do tempo, do ugar, cultura, raca, desejo pessoal ou prefe- réncia individual, ¢ que é possivel encontrar na razio um padrao universal que permita julgar acerca da validade e do valor *Unidades e suniformidade sto 03 motes de um pensador ihuminista: uni- dade, no respeito da humanidade pela autoridade tinica da razio e da evi- déncia (a chamada unidade psiquica da humanidade); uniformidade, nas con- clusées substantivas acerca de como viver ¢ acerca do que acteditar a pattir do ctitério da razio e da evidéncia (a uniformidade normativa da humani- dade). Os homens, € claro, podem nio conseguir compreender os cinones do raciocinio comecto; podem cometer erros na avaliagio das evidéncias, ou, é claro, cegos pela paixio € pelo desejo, podem aderit a conclusdes indefensa- veis; contudo, o homem, esse animal que taciocina ¢ saciocina sobre as suas 1az6es, empenha-se em realizar a sua natureza Exposto as normas vilidas do pensamento logico, cientifico ¢ estatistico, acaba por se inclinar perante elas, reconhecer os seus eros © procura reformat as suas praticas Desta visio Iluminista deriva um desejo de descobrit universal: a idela de um direite natural, 0 conceito de estutura profunda, a nogao de progresso ou desenvolvimento ¢ a imagem da histéria das ideias como uma luta entre a razio ¢ a des-razdo, entre a ciéncia e a supersticio Do outro lado da disputa acerca da racionalidade perfilam-se os porta- -vozes da 1ebelido «romantica» (2) contra o Iluminismo: Goethe, Schiller, Schleiermacher; e antes deles, os Sofistas, Hume e Leibniz; e depois deles, Levy-Bruhl, o segundo Wittgenstein, Whorf, Kuhn, Schneider, Sahlins, Feyerabend ¢ Geertz O fio-condutor da visio romvintica é 0 de que as ideias & as préticas ndo possuem o seu fundamenio nem na ciéncia Logica nem na cién- cia empisica, que todas as ideias e priticas estio para além do ambito abran- g9¥O4CkS SOCIEDADE & CULTURAS gido pela cigncia dedutiva e indutiva, que as ideias ¢ priticas nao so nem racionais nem inracionais, mas apenas ndo-racionais, Desta perspectiva romantica deriva o conceito de arbitrario ¢ de cultura, a subordinagao da estrutura profunda a0 contetido superficial, o sublinhar do contexto local, a ideia de paradigma, quadros culturais ¢ seus pressupostos constitutivos, a perspectiva de que a acgdo € expressiva, simbélica ou semidtica e um forte pressuposto anti-normativo, anti-desenvolvimentista que culmina na concepgao de que o primitive ¢ o modero slo co-iguais ¢ de que a historia das ideias € a historia de uma sequéncia de modas ideacionais eniaizadas De acordo com a perspectiva roméntica, uma ordem social € uma quadror auto-limitado para compreender a experiéncia (Lovejoy, 1974), um -guido para 2 vida auto-suficiente (Benedict, 1946) Governados no interior pelas suas pro- ptias regras, diferentes quadros de comprcensto, diferentes guides para a vida nao se entregam a avaliagdes compazativo-normativas; assim, pezguntar qual é superior, o Isléo ou a Cristandade, uma visto do mundo animista ou uma visio mecanista do mundo, uma ordem social fundada no individualismo, igualdade @ monogamia ou uma outra fundada no holismo, hierarquia ¢ poligamia, € a mesma coisa que perguntar, qual é 0 modo mais valido de expresso artistica, 9 cubismo ou 0 impressionismo’ para os rominticos, a escolha entre mundos altemnativos aute-limitados tem de set um acto de fé Vigilantes em relacdo as tentativas de fazer 0 nao-racional surgin como racional, vigilantes em relacdo a qualquer estratagema para fazet surgir 0 genuino € inconfessével acto de fé como se fosse ditado pela razdo, os romAnticos vém a ciéncia (especialmente a ciéncia social) como sendo 90% ideologia, e vem a tradicao, a teligido € os ritos como sendo componentes indispensdveis do pensarnento ¢ préticas humanos Durante trés mil anos a tensdo entre as perspectivas Iluminista ¢ romantica da mente foi uma forca criativa no Ambito dos estudos cognitivos Dentro da antropologia cognitiva cada um dos Jados pressionou 0 outro, permitindo novas descobertas ¢ incitando ousadas interpretacdes ~ algumas das quais sero discutidas neste capitulo Fora do campo da antropologia, especialmente na disciplina inma da psicologia do desenvolvimento cognitive, Piaget, uma figura do luminismo, dominou o cenério Mas mesmo Piaget teve jé a sua parte de contestac’o; os primeiros sinais da rebeliio 1omintica sao visiveis por todo o lado qo¥OAGdg socispape & cuLruras O registo etnografico: falsa crenca e conduta irracional? Ao longo do tempo, em todas as sociedades, as-pessoas comuns, aparente- mente no seu perfeito juizo, acreditaram nas mais inacieditaveis crencas ¢ envolveram-se nas mais inacreditdveis praticas. A muitas dessas ideias € prati- cas, predicados normativos como -erréneo:, -etrado:, sconfuso», «ineficiente:, “impraticaveb, -imoral» ou falso-, pareceriem aplicaveis, pelo menos numa pri- meira abordagem Os Yir-Yiront, aborigenes da Austrdlia, por exemplo, nao estabelecem a conexao entre a copulacio ¢ a gravidez (a fertilizaco pelo espirito de um ani- mal ou de uma drvore é a teoria mais aceite) Os Ndembu defendem que a conflituosidade aumenta as hipéteses de infertilidade nas mulheres ¢ na Peninsula Arabica o leite do seio de uma mulher grivida é assumido como sendo venenoso. Os Azande consultam © ordculo Colocada uma pergunta de resposta sim ou nao ao oréculo, uma galinha, e, sendo-lhe administada uma pequena dose de estriquinina, a sesposta varia com a sva morte ou nao O ordculo ndo mente ~ pelo menos os Azande acreditam nisso Esses mesmos Azande tém uma forma unica de curar a epilepsia: ingerindo as cinzas de um cranio queimado de macaco vermelho Azar do macaco vermelho que exibe, 20 andar, movi- mentos bruscos Matar pessoas de fora do Ga é algo de popular entre os Gahuku-Gama — conduta que merece elogio - 2 menos que o estranho seja um parente materno Escrupulosos no evitat dos parentes uterinos durante os combates, as prescricées morais dos Gahuku-Gama nio conseguem generalizar-se: Outros homens do cla s4o -premiados- por decapitarem os feus parentes matemnos. Outros grupos da Nova Guiné praticam ostensivamente a homossexuali- dade A cforca da vida» da tribo tem de ser passada pelos machos de geracio em geracio Contida no sémen, a forca da vida é passeda directamente, oral- mente, através da fellatio entre os stios: os seus jovens sobrinhos- E por af adiante Reincarnagdo, circuncisio de adolescentes, evitamento familiar, feiticatia, imolacio pelo fogo de vitivas, reclusio durante a mesirue- clo, homens descendentes de deuses, homens descendentes de macacos (macacos vermelhos’), para cada um destes casos € possivel imaginar quais- evUedCdg SOCIEDADE sx CULTURAS quer figuras do lluminismo argumentarem que hd normas universais, aormas que devem ter uma autoridade universal sobre aquilo que pensamos ¢ como agimos; sempre que a luta entre a raz40 contra a des-razao estiver presente, ha a tentagao de rotular as ideias e as praticas de outros povos como sendo supersticiosas, enéneas, confusas, desadaptadas ou imoiais De facto, os regis- tos etnogrificos sto to bizarzos que ninguém ficaria surpreendido se ouvisse dizer que um determinado grupo, convencido da ligacdo mistica entre progenia € colheitas, fertilidade € fecundidade, ejaculasse nos seus campos antes de plantar as primeiras sementes Homem racional em (des)adaptagdo: a per spectiva iluminista Crencas partilhadas que sio falsas Priticas institucionalizadas que sio ina- cionais O que é que nos podem dizer acerca da mente humana? Dentro da moderna antropologia, a antropologia dos ultimos cem anos, 0 tema foi desen- volvido - uma perspectiva iluminista, um contiaponto romantica As figuras ihi- minisias fundadoras sio EB Tylor (1871) ¢ JG Frazer (1890). A figura soman- tica fundadora foi L_ Levy-Bruhl (1910) Todos os povos sio tendencialmente racionais e cientificos E esta a pri- meira metade da visto de Tylor ¢ de Frazer acerca da mente humana A outra metade € que os outtos povos (e g, os Azande e os seus crfnios de macaco) ndo so muito bons nisso Tylor e Frazer transmitiram a antropologia a imagem do estranho como sendo um deficiente l6gico, um mau estatistico e um con- tuso cientista empitico Pelo critétio iluminista de Tylo:, todos os povos guiam a sua vida pela razio € pela evidéncia Todos eles procuram conhecimento empitico acerca daquilo que causa aquilo. Procuram adaptar o seu comportamento as exigén- cias do seu ambiente Procuram consisténcia nas suas ctencas e praticas Mais, todos 05 povos perseguem esses objectivos racional-cientificos envolvendo-se em actividades como a de coligir informacdo, avaliar as evidéncias, calcular semelhancas, fazendo prediccGes, retirando inferéncias indutivas e dedutivas construindo teorias explicativas Infelizmente, outros povos nado fazem isto muito bem Tylor e Frazer, 2 ev¥ EAC SOCIEDADE & cuttunas defensores da distincdo ente 0 «primitivor ¢ 0 moderno» dizem o seguinte acerca da smente primitiva:; 0 primitivo respeita a :az30 e a evidéncia, mas nao consegue aplicar os cAnones da ldgica, da estatistica ¢ da ciéncia experimental de uma forma comecta Assim, por exemplo, o primitivo entrega-se ao pensa- mento mégico, confundindo similitude com causa¢do € manipulando modelos (eg, amarando 4s costas de uma mulher estéril a réplica de uma crianca) como se aquilo que é andlogo tivesse um poder causal A abordagem iluminista, como atras se disse, € definida pela assuncao de que as crengas ¢ as praticas do homem vacilam perante a 1azio e a evidéncia, € de que aquilo que 1azio € a evidéncia conoboram € o mesmo para todos Por razor as figuras iluministas assumem os cZnones da logica dedutiva, os padrées do raciocinio hipotético, o pensamento guiado pelos ptincipios da inferéncia estatistica ou da légica experimental, ete Por evidénciay, elas assu- mem a percepcao pelos sentidos ¢ a observacio de conexdes regulares entre as coisas (¢.g, se cortamos um dedo profundamente com uma faca este san- guard). Por exemplo, de um ponto de vista iluminista, a determinago de selacées contingentes € um processo racional Se alguém pretender determinar se o facto de se ingerir as cinzas do crinio do macaco vermelho cura a epilepsia ou se as mulheres conflituosas esto condenadas 2 infeitilidade ou se o leite de uma mulher gravida é venenoso, h4 melhores € piores maneitas de o fazer E a mais correcta no inclui a indicagio dos movimentos bruscos do macaco ver- melho quando acorda ou a indicacdo de uma mulher que seja ao mesmo tempo estéril e conflituosa. As figuras do Tiuminismo inclinam-se para afirmar que as pessoas que fazem tal tipo de conexdes estio confundidas e enadas; € © iluminista esté confiante que ele ou ela podem demonstarlhes o erro dos seus processos A assuncio € a de que © nosso aparelho sensorial, os in-puts sensoriais « modos de operagZo intelectual sao (a) j4 suficientemente calibra- dos on (b) com o tempo podergo tomar-se suficientemente calibrados pata poder produzir-se convergéncia ou acoido acerca de como o mundo realmente € ou realmente devia ser Assim, a abordagem iluminista assume que a mente do homem deve ver- gar-se pecante a tazdo € a evidéncia ¢ que os ditames da razio e da evidéncia sio os mesmos para todos. Uma vez adoptada esta assuncao levanta-se uma qv ¥EACky SOCIEDADE (2 CULIURAS questio secundatia crucial: ser4 conhecimento wdiido aquilo que a tazio e a evidéncia ditam como sendo possuido igualmente por todos? A resposta a esta pergunta divide s figuras do Iluminismo em dois campos: 0s universalistas e os desenvolvimentistas Assim, por exemplo, para os univer- salistas como Hobbes ¢ Voltaire, a resposta a perguntas como -Quais tudes morais’ (¢ g, cumprir 0 prometido, procurar a paz, arbitrar de uma forma independente) nao s6 € ditada pela razio (derivavel através de um sim- ples taciocinio hipotético: Se eu tenho que preservar o meu proprio bem-estar devo fazer isto © aquilo; e eu quero intensamente preservar 0 meu bem-estar pessoal; Mackie, 1980) como € dbvia para a razto Cinteligivel até para a menor das capacidades;; Hobbes, 1651; ou como Voltaire diz; «Um dia basta para 0 homem saber os seus deveres:) Ver Turiel (1979) ¢ Nucci e Turie! (1978) para uma versio contemporanea do universalismo no dominio moral (ver também Shweder, Turiel ¢ Much, 1981; Shweder, 1982a) De facto, Turiel diz que aquilo que € moral € tio dbvio para a razdo que é universalmente: compreendido, mesmo até pelas criancas de tenra idade Os desenvoivimentistas, por outro lado, tipicamente negam que os ditames universalmente vatidos da 1azZo sejam igualmente acessiveis a todas as pessoas Tylor, Frazer e, mais recentemente, Piaget atgumentam que os padides normati- vos (e g, 2 légica) — por referéncia aos quais uma pessoa ou um povo ajuiza 0 pensamento ou 2 acco como sendo bem sucediddos ou mal sucedidos — pres supdem desenvolvimento Na perspectiva de Tylor, Frazer e Piaget todas as pessoas ¢ povos possuem padides normativos para regular o pensamento, mas © conhecimento dos padides corectos (e g,, as tegras de Bayes para avaliacio da evidéncia, as regras de Mill para o raciocinio experimental, os principios da justica de Rawl}, 0 conhecimento daquelas normas que sio merecedoras de res- peito universal, s6 é conseguido por apenas algumas culturas (as eivilizadas) Kohlberg (1981) adianta um agumento semelhante com especial referéncia 2 motalidade. A sua ideia basica é a de que aquilo que merece ser moral € 0 mesmo em todas as culturas e a0 longo da historia ¢ a de que 0 conhecimento dessa moralidade objectiva e extema é possivel através da lgica dedutiva e/ou indutiva Ble tiga as variagdes do pensamento constatadas entte as diferentes culturas 4 disiribui¢ao desigual dos processos do pensamento racional (eg, pensa- 10. as vit- goUlA Sag SOCIEDADE S& CULTURAS mento formal operacional) de cultura pata cultura (ver Shweder, 1982c para uma revisao) Assim, as figuras do Iluminismo sao de dois matizados, universalistas € desenvolvimentistas Cada grupo, 4 sua maneira, elaborou 0 esquema concep- tual do pensamento iluminista Dos universalistas herdamos a paixao pela des- coberta de leis gerais € universais, 0 conceito de estrutura profundas (um con ceito fundamental se se pretende descobrir universais), ¢ @ ideia de que algu- mas coisas sao «naturais: (9 homem €, por natureza, uma criatura de 1azéo; por isso, € snatural- que siga os ditames do raciocinio comecto. O raciocinio cor- recto revela aquilo que é vicioso € aquilo que é virtuoso, por isso é natural que Se seja virtuoso, Contranatura o cometer actos Viciosos ~ € g , 0 incesto, arbitra- gem parcial, etc} Dos desenvolvimentistas herdamos 0 conceito de progresso (passos ou estidios com vista 4 construgao das normas adequadas « formas vilidas de compreensio), uma énfase na adaptagio e tesolucio de problemas (os estidios primitivos sio adaptagées falhadas; os problemas iniciais so 1esol- vidos em estidios posteriores) € a visio correlata de que a historia das ideias € a historia de cada vez mais adequadas representacdes da realidade e de que a historia das praticas humanas € a historia de cada vez melhores adaptacdes 4s exigéncias do ambiente A ideia de um universal é 2 ideia de um conteudo invariante O que nado quer dizer grande coisa, dado que duas perguntas ficam por responder:

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