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06/11/2018 A França no rumo do modelo colonial latino-americano

A França no rumo do modelo colonial latino-americano


por Philippe Chatelin [*]

Qualificar a Revolução francesa de "revolução burguesa" é um lugar comum, mas exprime


uma realidade: a formação de uma burguesia nacional portadora de ideais liberais e
igualitários. Em França, foi esta combinação ideológica que caracterizou nossa luta de
classes e nossa história. Se no século XIX o proletariado estava na Inglaterra e as classes
na Prússia (na constituição prussiana), a luta de classes estava em França! Em França, a
burguesia nacional não é completamente autónoma e não deve se tornar. Seu
comportamento depende das lutas e portanto da articulação das relações entre classes
populares e classes médias.

O que poderia se tornar o nosso país sem o ideal da nação e a realidade de uma
burguesia nacional? A França dos anos 2010 começa a aproximar-se perigosamente do
modelo latino-americano tão bem descrito por Eduardo Galeano.

O desmoronar de uma nação

A desindustrialização da França parece hoje coincidir com a desaparição da democracia.


Desde o estabelecimento do euro, a França instalou-se no défice comercial, processo que
é acompanhado por uma decomposição da vida política. Eis uma entrada em matéria
económica bastante conveniente para questionar as ligações entre economia e vitalidade
da nação. Pode-se imaginar um país desenvolvido sem indústria, sem capitalismo e sem
burguesia?
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Retornemos rapidamente ao passado e à ascensão, antes da queda.

Em França, como alhures, o desenvolvimento económico repousou amplamente numa


colaboração entre o Estado e a burguesia nacional. Durante a Primeira revolução
industrial, o governo deu os impulsos e decidiu grandes investimentos, depois deixou os
actores económicos capitalistas agirem livremente para explorar as infraestruturas.

Este período corresponde, com um pouco de atraso em relação à Inglaterra, ao momento


do desenvolvimento dos ideais democráticos. Crises económicas começaram a surgir, a
partir do Segundo império, quando o capitalismo pretendeu libertar-se das regulações
estatais. Mas este capitalismo permaneceu nacional, com elites ansiosas por moderar as
políticas que afectavam ramos industriais. Uma vida ideológica intensa, iniciada sob a
Revolução francesa, acompanhou o desenvolvimento industrial e permitiu conciliar
capitalismo e melhoria do nível de vida. O afrontamento entre princípios de liberdade e de
autoridade, de igualdade e desigualdade acabou por favorecer a luta de classes, a
democracia liberal e um controle nacional do capitalismo. Sua vida política muito rica fez
da França, então em posição central, um modelo de inovação.

Ainda que a França nunca tenha sido um grande país industrial, ela foi por excelência o
país da luta de classes e o ensaio clássico de Marx chama-se com efeito "As lutas de
classe em França". Esta definição da nação por classes que ali estão em luta durou, ainda
que amortecendo, até ao século XX. Uma inventividade social real decorreu da mesma,
incluindo um sistema de extracção na fonte da mais-valia do capital, o sistema das
contribuições para a Segurança social, ainda em vigor.
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Apanhado nesta dinâmica de longo prazo, o patronato, domado temporariamente em


1945, desde então silenciosamente reconstituiu suas forças, para finalmente querer sair
da dialéctica de classes e da nação, avançando com a "construção europeia". Esta
construção revelou-se uma arma de destruição maciça da democracia liberal, através do
contorno do quadro nacional da luta de classes. A criação da União Europeia foi o
culminar deste processo: em 1992, ao inventar o euro, nossas classes superiores
renunciaram a conduzir uma política económica independente. Os franceses, ao votarem
o Tratado de Maastricht, por sua vez renunciaram a existir enquanto nação. A sua
tradicional luta de classes não é mais possível, o seu mundo operário vai-se tornar outra
vez força de trabalho atomizada.

Mas segue-se um verdadeiro desastre económico, revelado pelo surgimento de um défice


comercial estrutural. Um "1940" de longa duração está inscrito nos tratados europeus TUE
e TFUE que constitucionalizam as políticas económicas. A entrada na era pós-nacional
certamente desembaraçou as classes superiores da democracia e da luta de classes, mas
o preço económico desta vitória social terá sido elevado: libertado da sua nação, o nosso
capitalismo implode. Entretanto não se pode estar seguro de que a nossa regressão
industrial seja um acidente, uma consequência não desejada por classes burguesas
pouco conscientes da ligação entre vitalidade da Nação e força da economia. Pois, com
efeito, as políticas efectuadas desde 1992 parecem realmente como sabotagem. A
escolha da Siemens em detrimento da Alstom e a destruição programada do SCNF talvez
não sejam senão elementos planificados de uma escolha anti-nacional em acção.

Fazer política e pretender governar é hoje ocupar-se da "redução dos défices" da gestão
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da polícia. A introdução do sistema da Dívida evoca a sorte dos países do Terceiro Mundo
pressionados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) nos anos 1970. Os franceses,
talvez por vaidade, querem continuar a crer que vivem numa das democracias do mundo
livre e dominante. A sua situação real é aquela do elo fraco num novo género de sistema
colonial, esta União Europeia que abrange países dominados e um país dominante, a
Alemanha, que impõe suas regras e seus homens.

Ora, existe um continente que vive esta situação desde há duzentos anos, próximo da
França culturalmente, pela língua e pelo temperamento, a América Latina cujo estudo
pode nos informar acerca do nosso futuro.

O nacionalismo como projecto social: o caso da América Latina

A sociedade latino-americana repousa numa dinâmica portadora dos ideais de liberdade e


igualdade, como a França. Estes encarnam-se em forças sociais que tomam uma forma
bastante diferente desta que existe na Europa: as guerrilhas, os movimentos indigenistas,
os cartéis, os grupos paramilitares. Estes dispositivos, cujo funcionamento é horizontal,
regulam o clima de violência inter-individual que caracteriza o continente, na ausência de
Estado.

Enquanto o Estado-nação construiu-se num longo período em França, a América Latina


não tem nem o Estado nem a nação. O nacionalismo, que não é um estado, portanto
também faz parte da dinâmica geral: "a causa nacional latino-americana é, antes de tudo,
uma causa social" afirma Eduardo Galeano [1] . No século XIX, a América Latina inspirou-
se muito nas ideias saídas da Revolução francesa. As correntes liberais,
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independentistas, afirmavam-se em oposição ao sistema hierárquico da monarquia


espanhola. Mas este modelo anti-autoritário não permitiu organizar o Estado: a relação do
indivíduo com o Estado é demasiado frouxa.

Esta fraqueza estrutural do Estado favoreceu a manutenção de um modelo económico de


tipo colonial e impediu a constituição de capitalismos nacionais. Ela impediu a formação
de burguesias nacionais capazes, como em França no prolongamento da sua Revolução,
que se sentissem responsáveis pelo conjunto da população, tal como a nobreza.

A descrição de um continente que conservou seu estatuto colonial apesar dos


movimentos de independência está no cerne da obra "As veias abertas da América
Latina", de Eduardo Galeano (1970) [NR] , painel sobretudo económico da História deste
continente.

A história da América Latina opõe-se à dos Estados Unidos, cujo modelo económico
repousa na autonomia em relação à Europa, não sendo expatriadas as riquezas
produzidas. Aparentemente, o valor da igualdade, da horizontalidade, enfraqueceu a
relação de autoridade necessária para um mínimo de eficácia económica.

Assim, a América Latina permaneceu pouco desenvolvida, conservando seu sistema de


grande propriedade: em 1910, na véspera da reforma agrária impulsionada pela
Revolução, as terras mexicanas eram detidas por cerca de 800 proprietários, dos quais
muitos eram estrangeiros a viverem na Europa ou nos Estados Unidos. Dos 15 milhões de
habitantes, 12 milhões trabalhavam nas haciendas [2] . Em 1911, o escritor americano
John Kenneth Turner lamentava que seu país tivesse transformado em vassalo o ditador
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Porfirio Diaz e transformado o país numa colónia escravizada [3] . Diante do governo
nacionalista de Lazaro Cardenas, cujas reformas sociais são comparáveis àquelas da
Frente Popular em França, o cartel petrolífero dos EUA impôs um embargo entre 1939 e
1942!! [4] A Standard e a Shell partilhavam o território mexicano. Cardenas nacionaliza a
exploração do petróleo. Mais ao Sul, a economia da Venezuela repartira-se no século XX
entre o petróleo e os latifúndios tradicionais. Nos anos 1950, a Venezuela, considerada
como o grande lago de petróleo da Standard Oil Company, era a maior base militar
americana presente na América Latina. Já no século XIX a indústria na América do Sul
repousava na boa vontade dos capitalistas europeus, que controlavam o comércio.

O livre comércio, tal como o "bom" nacionalismo, é um privilégio das potências


económicas. As independências beneficiaram assim as grandes potências comerciais,
organizando a indústria e destruindo as produções locais tradicionais. Durante esta época,
os Estados Unidos consolidavam sua economia através do proteccionismo. O exemplo
dos Estados Unidos a sairem da Guerra civil revela assim, sublinha Galeano, a existência
de dois modelos históricos, um baseado no livre comércio e na escravidão, o outro no
proteccionismo e na economia intensiva, "duas concepções do destino nacional".

Na América Latina, esta situação impediu a emergência de burguesias nacionais. Os


burguesas não são senão os comissários de um capitalismo estrangeiro dominador (os
marxistas falam de "burguesia compradora"). Para eles, a nação não é portanto um
objecto a defender:

"A nação não é senão um obstáculo a ultrapassar – pois a dependência por vezes
desagrada – e um fruto delicioso a devorar. (...) A grande galopada do capital
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imperialista encontrou a indústria local indefesa e sem consciência do seu papel


histórico. Quanto ao Estado, sua influência sobre a economia latino-americana,
que se enfraquece desde há duas décadas [em 1970] foi reduzida ao mínimo
graças aos bons ofícios do FMI. (...) Na América Latina, o processo de
desnacionalização foi muito mais rápido e mais económico e tem tido
consequências incomparavelmente mais terríveis"[5] .

Ao contrário da Europa, cuja burguesia industrial se tornou hegemónica, a empresa na


América Latina foi essencialmente obra do Estado: "O Estado ocupa o lugar de uma
classe social (...): ele encarna a nação e impõe o acesso político e económico das massas
populares aos benefícios da industrialização. Nesta matriz, obra dos caudilhos populistas,
não se forma uma burguesia industrial radicalmente de classes até então dominantes".[6]
E, com excepção do México, os populistas, como Péron na Argentina, não tocaram na
estrutura latifundiária.

Na América Latina, a burguesia, subordinada às potências económicas, portanto teme


mais a pressão popular do que aquela do imperialismo estado-unidense. Na Europa e nos
Estados Unidos, ela se desenvolve de maneira muito diferente.

Esta realidade explica a capacidade da burguesia latino-americana de sabotar as


economias dos seus próprios países quando consideram necessário, por razões políticas,
em geral com o apoio dos Estados Unidos: a história do continente é assim pontuada por
movimentos de desestabilização económica interna, com o objectivo de se opor às
reivindicações populares e à democracia liberal: no México dos anos 1920, um dos
aspectos da guerra dos Cristeros contra a Reforma Agrária é a execução de um boicote
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económico para reverter o governo revolucionário. No Chile, em 1973, um bloqueio


económico interno, nomeadamente de produtos de primeira necessidade, visava o
derrube do governo de Salvador Allende. As desestabilizações deste tipo pontuam desde
1999 a história da revolução bolivariana.

Retorno à Europa

Entregar-se de pés e mãos atados a uma potência dominante, com menosprezo de um


capitalismo nacional, quer actue a partir dos Estados Unidos, para a América Latina, ou da
Alemanha, para a Europa, não faz senão arrastar nações já constituídas para uma
situação de tipo colonial na qual as burguesias ex-nacionais voltam-se contra os seus
povos. A ideia de "nacionalismo como causa social", conforme a expressão de Galeano,
deverá portanto retomar seu caminho.

Este desvio pela América Latina revela de maneira empírica o erro fundamental dos
ideólogos de esquerda que pretendem que a saída do capitalismo passaria pela
destruição do Estado-nação.

O paradoxo actual é que as convicções europeias das classes verdadeiramente médias,


que incluem as profissões intermediárias e os professores universitários, são muito
superficiais. Contentando-se em estigmatizar, aquando de movimentos sociais ou nos
seus programa políticos, o Presidente da República ou a Constituição da Vª República,
elas mostram que não encaram a luta senão no quadro nacional. Trata-se de uma
estratégia de evitamento da questão europeia ou simplesmente de uma incapacidade
visceral em se projectar mentalmente fora das fronteiras nacionais para analisar os
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mecanismos de dominação? Parece em qualquer caso existir um sério "fosso teórico"


sobre a questão da inserção das lutas nas relações internacionais. Mas sejamos
optimistas. Não será preciso muita coisa para que as classes verdadeiramente médias se
juntem às classes populares, numa rejeição comum do desmantelamento do Estado-
nação.

24/Março/2018
1. Eduardo Galeano, Les veines ouvertes de l'Amérique latine, 1970, Pocket/Terre humaine, p. 330.
2. Ibid., p. 167.
3. John Kenneth Turner, "Mexico barbaro", 1911.
4. Eduardo Galeano, op. cit., p. 221.
5. Ibid., p. 289.
6. Ibid., p. 291.

[NR] "As veias abertas da América Latina" pode ser descarregado aqui .

[*] Historiador

O original encontra-se em www.les-crises.fr/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


~
04/Abr/18

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