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O encontro é uma ferida. Uma ferida que, de uma maneira tão delicada quanto
brutal, alarga o possível e o pensável, sinalizando outros mundos e outros modos
para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua
emergência disruptiva.
O encontro só é mesmo encontro quando a sua aparição acidental é percebida
como oferta, aceite e retríbuída. Dessa implicação recíproca emerge um meio, um
ambiente mínimo cuja duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e
inscrevendo como paisagem comum. O encontro, então, só se efectua – só
termina de emergir e começa a acontecer – se for reparado e consecutivamente
contra-efectuado – isto é, assistido, manuseado, cuidado, (re)feito a cada vez in-
terminável.
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Muitos acidentes que se poderiam tornar encontro, não chegam a cumprir o seu
potencial porque, quando despontam, são tão precipitadamente decifrados,
anexados àquilo que já sabemos e às respostas que já temos, que a nossa
existência segue sem abalo na sua cinética infinita: não os notamos como
inquietação, como oportunidade para reformular perguntas, como ocasião para
refundar modos de operar.
Com o pressuposto de que primeiro é preciso saber para depois agir, raramente
paramos para reparar no acidente: mal ele nos apanha, tendemos a bloquear a
sua manifestação ainda precária e incipiente. Recuamos com o corpo e
avançamos com o “olhar” – que julga apenas constatar “objetivamente” o que lá
está – ou com o “ver”, que parte da premissa de que há um sentido por detrás das
coisas, a ser interpretado “subjetivamente”. Num ou noutro caso, chega-se cedo
demais com um saber – lei ou ponto de vista, uno ou plural: ambos manipulação.
Ambos versões de uma mesma cisão entre sujeito e objecto, a repartir por decreto
o que pode e o que não pode cada um destes entes. A setorizar no sujeito, de
modo unilateral, toda a capacidade de agência e de produção de sentido, assim
como todo o direito de legislar sobre o objecto para fins de diagnóstico, controle,
classificação, pacificação do espírito, etc. Tornado objecto, o acidente é também
cancelado na sua inclinação e potência de afectação cabendo, à força, numa
certeza ou num “achar”. E assim se vai existindo. “Achando” antes de se encontrar.
Sendo esta a lógica dominante a operar no nosso quotidiano – a do desespero e
não a da espera; a da urgência e não a da emergência, a da certeza e não a da
confiança –um acidente, só é experimentado como tal se tiver a força de uma
catástrofe. Se for tão desproporcional na sua diferença, na sua discrepância em
relação à nossa expectativa e aos nossos instrumentos de decifração e
interpretação, a ponto de se antecipar e se sobrepor ao decreto de objectivação,
levando-nos, num só folgo, de sujeitos a sujeitados. Então não o conseguimos
ignorar nem o domesticar: ele, simplesmente, cai-nos em cima. Mas o que é
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trágico, é que mesmo este acidente-catástrofe, tão pouco tende a ser vivido como
encontro, já que a cisão entre sujeito e objecto preserva-se, apenas se invertem os
seus sinais. Destituídos do controle que julgávamos nos pertencer de direito,
paralisamos-nos ultrajados diante da súbita soberania do acidente. Entramos em
crise, colocamos tudo em dúvida; culpamos os deuses, os pais, o estado, o país.
Em desespero, precipitamo-nos para a arbitrariedade do “tanto faz” ou para a
prepotência do “tudo pode”: pomos-nos a resistir. E se mesmo assim não
funcionar, pior ainda, pomo-nos a desistir.
Só que aí já é tarde – nem o saber se aplica mais, nem os “achismos” nos salvam,
nem nos abrimos à estimativa recíproca, perdendo assim a oportunidade de
experimentar “ao que sabe” o encontro. Já não detemos o controle e muito menos
as certezas que o amparavam. Já claramente não somos nós quem decide.
Entretanto, como se nos tivéssemos esquecido de sincronizar os nossos
pressupostos à atualização do mundo, permanecemos reféns do decreto que nos
dava a ilusão de decidir. E é aqui que está o nó: não em termos perdido o “poder
de decisão” (será que alguma vez o tivemos?), mas em sermos incapazes de
tomar uma “des-cisão”, de revogar o decreto da cisão.
O mundo em que vivemos hoje é justamente este: aquele em que já percebemos
que não podemos decidir, mas ainda não aprendemos a des-cindir. Um mundo em
que, atônitos, nos sentimos consecutivamente apanhados por acidente atrás de
acidente, crise atrás de crise, incerteza atrás de incerteza. Apanhados pela
exasperada sensação de que "já é tarde". “Já é tarde” para insistir na ficção de que
detemos o controle. “Já é tarde” para insistir na negação das disparidades, dos
conflitos, das discordâncias, das intransigências, dos equívocos tornados lei. "Já é
tarde" para insistir em viver "como se" o consenso fosse possível ou mesmo
desejável. Para insistir numa existência inabalável, que pretende saber por
antecipação, apoiada num nexo apriorístico e transcendente: a cada coisa o seu
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nome, o seu enquadramento, a sua regularidade; nenhum susto ou risco, tudo
explicado, tudo previsto. E isso, tudo isto, já não se sustenta mais.
Mas se já não há como prosseguir numa existência acomodada, na pacata
desimplicação do "tá-se bem", também “já é tarde” tanto para a resistência como
para a desistência: fica cada vez mais claro que não há "saída" nem “solução” a
partir dessas duas maneiras de nos desresponsabilizarmos.
E, talvez por isso, seja este o momento justo para estancar o desespero e reparar
no que há à volta. Suspender o regime da urgência, criando as condições para
uma abertura desarmada e responsável à emergência. Substituir a expectativa
pela espera, a certeza pela confiança, a queixa pelo empenho, a acusação pela
participação, a rigidez pelo rigor, o escape pela comparência, a competição pela
cooperação, a eficiência pela suficiência, o necessário pelo preciso, o
condicionamento pela condição, o poder pela força, o abuso pelo uso, a
manipulação pelo manuseamento, o descartar pelo reparar. Reparar no que se
tem, fazer com o que se tem. E acolher o que emerge como acontecimento.
Reencontrar, naquela matéria simples e quotidiana em relação à qual aprendemos
a nos insensibilizar – a matéria da secalharidade – reencontrar aí, nesse
comparecer recíproco, toda uma multiplicidade de vias contingentes para abrir uma
brecha. Uma brecha para a re-existência.
De forma a explorar essa brecha é preciso abdicar das respostas, largar a
obstinação por se definir o que as coisas “são”, o que “significam”, o que “querem
dizer”, o que “representam”. Deixar de lado a obssessão pelas causas, pelos
motivos, pelas razões, e a procura insáciável por identificar e acusar culpados, por
fortalecer o lamento – enquanto, impávidas, as consequências vão seguindo os
seus rumos. É preciso, justamente, activar um trabalho com as consequências,
empenhado em assistir e rastrear no óbvio as oportunidades para entrar em plano
comum.
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Se há alguma razão no encontro, não é a das causas e a dos sensos, mas a razão
– o ratio – das distâncias que o com-põe enquanto modulação distributiva de
diferenças dinâmicas, autônomas porque co-dependentes. É este tipo de “razão”
que aparece quando nos envolvemos na estimativa das variantes em jogo, no
cálculo infinitesimal dos encaixes e das proporções suficientes.
Isso só pode ser feito se revogarmos os escudos protectores seja do sujeito seja
do objecto e se largarmos os contornos pré-definidos do eu e do outro. Isso só
pode ser feito se não avançarmos de imediato com a vertigem do desvendamento
ou com a tirania da espontaneidade, encontrando tempo dentro do próprio tempo
das coisas. Um tempo que já lá está, entre o estímulo e a resposta, mas que
desperdiçamos na ferocidade com que cedemos ao medo e recaímos no hábito,
nas respostas prontas ou numa reação impulsiva qualquer, apenas para saciar o
desespero de não saber. Isso só pode ser feito se abrirmos mão do protagonismo,
transferindo-o para esse lugar “terceiro”, impuro e precário, que se instala a meio
caminho no cruzamento das inclinações recíprocas: o acontecimento.
Se nos dermos esse tempo, esse silêncio, essa brecha; se suportarmos manter a
ferida aberta, se suportarmos simplesmente (re)parar – voltar a parar para reparar
no óbvio até que ele se “desobvie” – então, eis que o encontro se apresenta e nos
convida, na sua complexidade embrulhada em simplicidade.
Encontrar é ir “ter com”. É um “entre-ter” que envolve desdobrar a estranheza que
a súbita aparição do imprevisto nos traz. Desdobrar o que ela “tem” e, ao mesmo
tempo, o que nós temos a lhe oferecer em retorno. Desfragmentar, nas suas
miúdezas, as quantidades de diferença inesperadamente postas em relação.
Retroceder do fragmento (parte de um todo) ao fractal (todo de uma parte).
A situação que pede por esta situ-ação
A segunda prática, por sua vez, envolve o modo como o coletivo acolhe
as tomadas de posição individuais quando estas já aconteceram. Ou
seja, havendo ou não um cuidado no plano das micro-decisões, o
trabalho do grupo não é o de acusar, julgar ou comentar aquilo que
emerge, mas sim de acolher. Uma vez que a tomada de posição
individual se materializa, há muito pouca serventia em transformar a
relação num “discutir da relação”, que passa a se ocupar de sentenciar
culpados enquanto o acontecimento continua a se desenrolar sem
cuidado. O coletivo sustenta-se ou não a partir da matéria do que
acontece, não do que poderia ter acontecido. Não há como voltar atrás
ou apagar o gesto que pôs em causa a sustentabilidade do grupo – e
apontá-lo só irá fazer com que as regras imanentes que vinham
sustentando a vitalidade coletiva se enrijeçam em regras
transcendentes: ao invés de funcionarem como moduladores do juntos,
são subitamente evocadas para sentenciar o certo e o errado; tornam-
se, pois, modelos de conduta. Ou seja, da perspetiva do grupo, a
emergência de uma tomada de posição individual não co-operante
precisa, portanto, de funcionar como acidente ou primeira posição, não
valendo a pena perder tempo em avaliar quem a tomou. O que importa,
a esta altura, não é o “quem” ou o “porque” de um posicionamento, mas
o seu “que-como-quando-onde” que, ao se materializar no
acontecimento comum, convida a suspender as regras imanentes que
vinham sendo praticadas até então: a reiniciar o jogo, a re-parar (parar
novamente) para reparar (notar) e, assim, re-formular a relação, a
relação entre as relações e as próprias regras, preservando-as
imanentes.
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estamos a começar pelo meio. Ou, para sermos mais precisos ainda,
mesmo que a primeira jogada não se relacione com o tabuleiro
enquanto matéria-meio, ela só é mesmo primeira e originária para os
demais jogadores: para aquele que a propõe, ela é resultado de um
jogo consigo próprio e com os materiais, de uma decisão mais ou
menos explícita para si próprio, mais ou menos veloz, mas que é
processual, foi se fazendo antes de finalmente ir parar ao tabuleiro
como proposta. Ela é sempre meio.
Por outro lado, há esta outra dimensão que o jogo do tabuleiro revela: o
acidente, ao emergir, faz “zero” para aqueles que nele re-param. Não
propriamente porque elimine tudo que há à volta e faça do entorno um
quadro em branco – continuamos sempre a meio, povoados de
processos vitais de idades variadas, frágeis e precários justamente
porque vivos, e que são tudo o que temos como recurso, seja para
manter ou para mudar – mas porque suspende o sentido-direção do
que há. Ou seja, a cada vez que somos interrompidos, que as nossas
expectativas não se cumprem, que o que pretendemos não acontece, a
cada vez que somos afetados ou surpreendidos, há também a
oportunidade de mudança social – a oportunidade de aceitar a
suspensão provisória do passado e do futuro e encontrar um novo jogo
com o presente manifesto. Seja, portanto, da parte de quem propõe
uma jogada ou da parte de quem a recebe – no jogo AND jogado no
tabuleiro ou na vida – a mudança é sempre uma possibilidade concreta,
mas que envolve o risco de não saber, de não ter respostas prontas,
nem objetivos pré-definidos. A mudança está em potência em cada
intervalo relacional, mas no mais das vezes preferimos –
conscientemente ou não – reiterar os velhos jogos ao invés de nos
disponibilizarmos a enfrentar a micro-construção de novos jogos, auto-
geridos e auto-sustentados por aqueles que nele tomarem parte, sem a
chancela de um sentido prévio.
O comum custa, mas não por se fazer “às custas” da liberdade: pelo
contrário, é porque nos confronta com o desafio (e a responsabilidade)
de a exercermos de facto, de não termos um jogo dominante à partida,
a funcionar como script ou fórmula para as condutas, e portanto de
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Referências Citadas
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[1] Aí incluem-se as próprias formulações Modo Operativo É, OU e E – que são
apresentadas já sob a forma de diferentes modos de jogar o “jogo da
vida” (Eugenio 2010), e mesmo, de um modo direto, a formulação do Modo
Operativo AND enquanto “jogo das perguntas Que-Como-Quando-Onde” ou “jogo
de descrição-cicunscrição-performação”. O jogo com a materialidade e o sentido
das palavras perpassa todas as formulações conceituais que sustentam essa
prática, conformando uma espécie de “estilo”, no sentido que lhe dá Deleuze em
conversa com Parnet (Deleuze & Parnet 1977). Por exemplo, na tripla modulação
Re-parar/Reparar/Reparação, que funciona como síntese do procedimento AND, e
aparece ainda nas expressões inventadas pré-paragem e reparagem. Ou, ainda,
na presença frequente de relações de tensão para situar a operatividade que se
procura ativar com o AND: Composição/Posição-Com, Decisão/Des-cisão, Saber/
Sabor, Resistência/Re-existência, Manipulação/Manuseamento, Coerência/
Consistência, Explicação/Implicação, Representação/Presentação, Eficiência/
Suficiência, (In)dependência/Autonomia, Relevância/Relevo, Rigidez/Rigor, Justiça/
Justeza, (des)Fragmento-Fractal, Acaso/Co-Incidência etc (Eugenio 2012). Está
também presente no Diagrama do Posicionamento: feito do cruzamento de dois
eixos-vetores, Aberto-Fechado e Explícito-Implícito, permite situar o território da
posicionalidade AND na combinatória Aberto-Explícito, tendo como extremo oposto
o Modo Operativo É (situado no território da combinatória Fechado-Implícito), e
como duas zonas de possível despiste e confusão com o funcionamento recíproco
do E, mas que atuam, de facto, por Modo Operativo OU, aquelas formadas pelas
combinatórias Aberto-Implícito ou Fechado-Explícito.
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RESUMO
ABSTRACT
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Manifesto. Dos
modos de re-
existência: um
outro mundo
possível, a
secalharidade
Fernanda Eugenio (versões revistas 2014 e 2011; versão orginal 2010)
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Texto original de Fernanda Eugenio escrito como parte do seu projecto de pós-doutoramento no
Instituto de Ciências Sociais da Unversidade de Lisboa, em 2010. Em 2011, foi tornado público
numa versão assinada em conjunto com João Fiadeiro, por ocasião da proposição do projecto
colaborativo AND Lab, acolhido pelo Atelier Real até 2013. Em 2014, foi revisto mais uma vez,
recuperando-se a escrita original.
2014. (versão revista; original de 2010). Manifesto. Dos modos da re-existência: um outro mundo
possível, a secalharidade [on-line]. Disponível em: AND DOC | Acervo Digital do AND Lab.
Com frequência imaginamos a existência como algo que se desenrola dentro dos contornos que
separam e permitem distinguir o eu do mundo e inauguram-na – ela própria, a existência – como
mobilização infinita[1] empenhada na inesgotável tarefa de extrair o significado da “realidade”.
Este regime de operação da existência, embora dominante no Ocidente moderno, nunca esteve em
marcha sozinho: viu-se perturbado à partida com a concorrência disrruptiva de um outro
funcionamento. Pois com frequência resistimos a essa imagem do mundo e duvidamos (“Haverá
mesmo uma razão para tudo isto? Não serão muitas as razões? Ou nenhuma?”).
Amplo movimento que despontou aqui e ali, outrora e hoje, nas artes e nas ciências, discurso que
conviveu com o “Planeta Logos” moderno desde a sua fundação, na condição de sua “Lua
Romântica”, e se tornou visível com contundência (porque se nominou: a Pós-Modernidade) a partir
de meados do século passado. Um mundo em que a existência é experimentada como “resistência”,
que, no entanto, só faz proliferar os disciplinados binarismos “conteudistas” do regime moderno em
um batalhão de certezas incertas. Proliferação de “Eus”, proliferação de “artistas”, resultante da
pretensão de cancelar a relação hierárquica “sujeito versus objecto” através da proclamação – e
mesmo, às vezes, da ordenação mandatária – de sua simetrização.
Julga-se assim superar a cisão “sujeito versus objecto”, não através da supressão da própria cisão,
mas da deliberação de que esta separa, isso sim, “sujeitos versus sujeitos”. Há, então, tão somente
uma troca dos elementos divididos pela cisão – ela própria, no entanto, é conservada. O objecto, o
dado ou a realidade são aí suprimidos como certezas, substituídos pela interpretação e pela
aleatoriedade cambiante dos conteúdos, pelo jogo com sentidos liberados, pelo igualitarismo
também ad nauseum que se prolifera em ou, ou, ou.
Troca-se assim a rigidez de uma existência segura porém miserável pelo liberalismo da resistência,
não menos miserável, do desejo de alternativas, que por fim não instaura outra coisa senão um
generalizado “tanto faz”. Se no primeiro regime zela-se pela certeza das “condições iniciais” (a
realidade que “já é” desde o princípio), no segundo zela-se por sua conspurcação em realidade
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qualquer. Algum ganho de mobilidade, de fato, na medida em que a explicação unívoca se
fragmenta na polifonia da “diversidade” interpretativa das visões de mundo. Mas a brecha na
representação não tarda em se suturar: a interpretação entra com ainda mais pressão no ralo da
autoria que a explicação por ela criticada.
Um mundo no qual a diferença não fosse identitariamente congelada, como no regime moderno,
mas tão pouco fosse cancelada na indiferença do “tudo pode” pós-moderno. Um mundo no qual a
diferença pudesse se propagar em sua assimetria infinitesimal, sem ser oferecida em sacrifício para
que haja encontro, e no qual tão pouco o encontro precisasse ser sacrificado para que houvesse
simetria? Um mundo dissensual[2], em que o viver juntos fosse feito do cromatismo microscópico
dos ritmos singulares? Fantasia de idiorritmia[3], de comunidade, devir-minoritário[4] que circula e
circulou entre os dois outros regimes, activando-se aqui e ali, na maior parte das vezes de modo
fugaz, bacteriano e invisível. Fantasia de torná-lo habitação, de o visibilizar numa ética do
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suficiente (não do necessário, muito menos do compulsório) em relação à proclamação do Eu. Um
mundo que se inaugura não a partir da cisão, mas do esforço por perpetuar a relação ou a “des-
cisão” produzindo como plano comum de atuação o Acontecimento.
Eis uma terceira imagem do pensamento – e da acção, que neste caso não se opõem: a da
reciprocidade. Uma terceira imagem não assentada no pressuposto da entidade, da espécie, do
contorno prévio ao encontro, mas na qual arriscamo-nos a experimentar com as gradações da
relação, com a diferencialidade da diferença: e, e, e… Um modo de vida em que não temos de
escolher entre a existência conformada ou a resistência dos libertarismos tiranos, onde temos de nos
aplicar a um rigoroso (mas não rígido) trabalho de re-materialização[5] de ambos os movimentos na
operação da “des-cisão”: decisão de des-cindir, de prescindir do entitarismo, da certeza (ou da
desesperada busca pela certeza perdida pós-moderna) de que “sou” como condição para o encontro.
Re-existir a cada encontro, ser a conseqüência, e não a causa, da relação.
E isto porque nos parece que resistir, se não for re-existir, não atinge a relatividade: morre no
relativismo. Não atinge a relação, morre na compulsorização da interatividade ou na trincheira da
negação inconformista. Se o propósito positivo é a continuidade vital, então falemos antes em re-
existência, em resiliência: a força flexível da fragilidade adaptativa, que reside na explicitação
molecular e na aceitação re-inventiva, no lidar com “o que se tem” mais do que na insistência rígida
da negação ou na desistência indiferente do consentimento.
Será neste lugar-questão que se situará o presente projecto de investigação: nos modos de “fazer
problema” à antropologia contemporânea e aos modos sociais do viver junto colocados pela
Etnografia como Performance Situada e do Sistema E, tal como tal praticados por Fernanda
Eugenio.
O projecto (tal como acontece com este texto) adopta a forma do metálogo[7] – do pensar-fazer do
próprio através do pensar-fazer do outro, contaminação e re-invenção cruzada de problemas,
questões e modos de funcionamento. O metálogo: deslocar para existir (eis o re-existir), empenho
na manutenção-propagação da abertura e do dissenso; recusa à concordância desejavelmente
conclusiva do diálogo. Uma investigação sobre a existência/resistência entendida e vivida como re-
existência. Portanto, não como acto de “colocar-se contra”, mas como acto de “colocar-se com”.
Daí a importância crucial de se alargar a compreensão do que seja uma composição: muito
claramente, um “pôr-se com” o outro, a posição de cada agente dada pela relação com os demais, a
posição conseqüente, a “com-posição”.
Orienta este projecto um empenho por reformular a pergunta, na confiança de que um mundo novo
não se inaugura quando encontramos respostas, mas quando mudamos as perguntas. Não perguntar
pelo Ser (“o que é que isto é?”), mas pelo Ter[9] (“o que é que isto tem?”). Trabalhar para tornar
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visíveis as affordances[10] (as propriedades-possibilidades que convidam ao encaixe relacional
contingente) é, assim, também um esforço por não operar nem indutiva nem dedutivamente, mas
abdutivamente.[11] Um esforço por retroceder do que é vidente (o evidente) e abrir intervalo para
que se traga à superfície aquilo que o vidente obscurece (ou “obvia”).
O “motor” deste funcionamento é, assim, a pausa: não a cinética incansável do “to understand”, mas
a sua inibição, desafio de permanecer no adiamento da acção, no intervalo do “stand”.
Nesta velocidade que não é movimento, a criação encontra um território inteiramente outro para
fixar o seu sentido: nem criação no sentido bíblico (a partir do zero fazer o “é”), nem no sentido
romântico (a partir do “é” do artista fazer, por capricho, o “zero”). Mas criação como estigmergia:
trabalho colectivo, sem sujeito e sem objecto; trabalho ilimitado de re-materialização daquilo que
emerge da relação; trabalho com o que se tem a cada vez e com o que fica, com as marcas e os
rastros do viver juntos. Trabalho no qual ocupamo-nos tão somente em distrairmo-nos
suficientemente do Eu para activar a atenção ao entorno e ao manusear não-manipulativo dos
encaixes possíveis, à calibragem fina entre o persistir e o desistir para, então, re-existir.
Esta é, assim, uma investigação sobre um outro mundo possível, nem o da modernidade nem o da
pós-modernidade. Talvez, quem sabe, o da Secalharidade.
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5. Tetralema: o projecto como processo iterativo
Esta proposta pós-doutoral ir-se-á desdobrar, também, num projecto de investigação colaborativa
(entre as ferramentas que venho desenvolvendo e aquelas praticadas pelo coreógrafo João Fiadeiro,
cuja estrutura Re.Al acolherá a pesquisa por 9 meses, entre Setembro de 2011 e Junho de 2012), que
funcionará simultaneamente enquanto projecto piloto para criação de um Centro de Investigação
dedicado às políticas da convivência.
O Curso, a Criação e o Livro, três dimensões de um mesmo esforço para pensar e operacionalizar o
viver juntos recíproco (no quotidiano e na criação artística).
Ao accionarmos dispositivos tais como um curso, uma criação e um livro estamos atentos à carga
simultaneamente imprescindível e perigosa deste movimento. Por um lado, exteriorizar e
pronunciar – tomar posição, largando o devir-imperceptível a que a exploração rigorosa e delicada
da reciprocidade poderia conduzir –, é fundamental para “fixar a bandeira pirata” do modo de vida
da secalharidade, activando-o enquanto acontecimento inquietante, suficiente para fazê-lo emergir
no plano do visível e devolver-lhe a clareza da sua textura dissensual. A ambição será a de reabrir
de forma séria o debate que o relativismo pós-moderno tem logrado anestesiar sob a forma
interativa de uma mera tolerância asséptica, entre o indiferente e o festivo, na maior parte das vezes
apenas discursiva.
No entanto, se para afetar o visível é preciso ceder e frequentar seus modos de operação, então que
esta seja uma consessão mínima, apenas a suficiente. Pois há todo um conjunto de perigos a
desactivar para reabilitar esses dispositivos de poder, hierarquia, distinção, legitimação e
domesticação que são as ferramentas pedagógicas, artísticas e científicas: velhas estratégias
modernas de (re)produção de verdade, certeza, definição, comando. Como então fazê-los
instrumentos de um “uso menor”, transformá-los em lugar de encontro, quando sabemos o quanto
estão comprometidos com uma vocação quase irresistível e já há muito automatizada para a
recognição, para a fixação do significado reiterativo?[14]
Como conjurar, ao mesmo tempo, a reiteração e a interação? Porque já não basta quebrar o círculo
reiterativo da moderna partilha hierárquica mestre/aprendiz, artista/espectador, cientista/leigo (todas
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modalidades da oposição sujeito versus objeto, ou sujeito versus sujeitado) proclamando “no grito”
a pseudo-relação pós-moderna da interatividade igualitária.
Parece-nos que para encarar e enfrentar estes “monstros” em suas próprias casas (a escola, o teatro
ou o livro) teremos que desenvolver formas de disponibilidade para abrir os lugares fechados da
transmissão, da criação e da escrita através da contaminação recíproca de seus modos de operação.
Disponibilidade para traí-los[15] uns com os outros; para estar sempre entre eles. Para trabalhar na
iteração, modo de relação em espiral, que não é nem a interação (que a cada ciclo relacional retorna
ao zero) nem a reiteração (cujos ciclos são círculos, ou meras confirmações). Desalojar, assim, cada
um desses dispositivos de cisão que são a aula, o espetáculo e o conceito e usá-los, deslocados, para
perturbar o desenrolar pacífico dos demais, para propor indagações, para abrir possibilidades, para
alterar os seus regimes e expor os seus pactos tácitos. Para desfigurar e desorganizar[16] as suas
demarcações e manter vivo o incómodo. O incómodo será, talvez, o único anti-corpo capaz de
proteger o metálogo de sucumbir, seja ao monólogo da reiteração, seja ao diálogo da interação.
Esse projeto de imunologização cruzada dos dispositivos curso, criação e livro acciona-os, pois,
com a condição (mais uma vez) de “des-cindi-los”. Desenha-se sob a forma do tetralema[17]: o
curso é curso apenas na medida em que, simultaneamente, não é curso, é criação e livro, não é nem
criação nem livro. A criação é criação apenas na medida em que, simultanemanete, não é criação, é
curso e livro, não é nem curso nem livro. E o livro é livro apenas na medida em que,
simultaneamente, não é livro, é curso e criação, não é nem curso nem criação.
6. O programa
Temos assim um ambiente mínimo, feito de todas essas gradações, como lugar de encontro. Eis o
programa[18] da investigação: um conjunto de questões, mas não um tema; um propósito, mas não
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um motivo; uma disponibilidade, mas não uma causa. Um ponto de partida rigoroso, justamente
para permitir a flexibilidade de fazer passar algo que ainda não sabemos (…que sabemos).
3. Modos de viver e política: nem consenso nem não-senso, o trabalho pelo dissenso
d) Des-autorização e Com-posição
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4. Práticas de criação e de encontro: a chegada na representação
a) Dramaturgia como desenho cego ou de como não espantar o acontecimento: fazer-se pedra,
fazer-se elástico
Referências Citadas
[1] Sloterdjik, Peter. La mobilisation infinie. Paris: Christian Bourgeois Éditeurs, 2000.
[2] Rancière, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010; Rancière, Jacques. “A
comunidade como dissentimento”. In: Dias, Bruno Peixe & Neves, José (coord.) A política dos
muitos. Lisboa: Fundação EDP e Edições Tinta da China, 2010.
[3] Barthes, Roland. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[4] Deleuze, Gilles e Guattari, Felix. Milles plateaux. Paris: Minuit, 1980.
[5] Latour, Bruno. Reassembling the social: an introduction to Actor-Network-Theory. UK: Oxford
University Press, 2005; Latour, Bruno. “A cautious Prometheus? A few steps towards a philosophy
of design (with a special attention to Peter Sloterdijk)”. Keynote lecture, Seminário Networks of
Design. Cornwall, 2008.
[6] Latour, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru, SP: Edusc, 2002.
[7] Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind. London/Chicago: The University of Chicago
Press, 1972.
[8] Deleuze, Gilles. “Um manifesto de menos”. In: Sobre o teatro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
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[9] Tarde, Gabriel. Monadologia e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003.
[10] Gibson, James. “The Theory of Affordances”. In Shaw, Robert & Bransford, John (eds.)
Perceiving, Acting, and Knowing. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1977; Gibson,
James. The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979.
[11] Ginzsburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, emblemas, sinais.
Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[12] Urry, John. Sociology beyond societies. Mobilities for the twenty-first century. London/New
York: Routledge, 2000.
[13] Maturana, Humberto & Varela, Francisco. Autopoiesis and cognition. Boston: D. Reidel, 1980.
[14] Deleuze, Gilles & Parnet, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio d’Água, 2004.
[15] Idem.
[16] Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. “Comment se faire un Corps sans Organes?”. In: Milles
plateaux. Paris: Minuit, 1980.
[19] Ingold, Tim. The perception of the environment. London and New York: Routledge, 2000
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Um quase-
manifesto ante o
Irreparável
Fernanda Eugenio (2018)
Texto orginal produzido em abril de 2018, inicialmente para operar como sinopse da proposta da
edição #3 da Escola de Verão AND.
2018. (original) Um quase-manifesto ante o Irreparável [on-line]. Disponível em: AND Doc |
Acervo Digital do AND Lab
Elegendo como foco a PRÉ-PARAÇÃO, uma das novas ferramentas-conceito emergentes nas
investigações actuais desdobradas no Modo Operativo AND, pretende-se que a edição#3 da Escola
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de Verão AND seja território de preparação (inventário, experimentação e sistematização de
exercícios) para a pesquisa duracional com a qual o AND Lab se ocupará durante o próximo ano de
2019: a habitação intensiva da também recém-formulada palavra-conceito IRREPARÁVEL e da
questão “O que pode uma ética de reparação”.
Começar desde já a tactear essa questão deu-se por des-cisão. Acontece, ao lidar com o Irreparável,
que o impossível da tarefa a torna urgente. Ao mesmo tempo - e sem contradição -, há que
preparar(-se) suficientemente. Porque toda a reparação será sempre insuficiente e porque desde
sempre é já tarde demais, começar agora a re-unir as forças. Ou ainda: reconhecer no continuar o já
ter começado e, nos tantos re-começos, o continuar. E então continuar a continuar.
--- É também o afecto forte pelo Irreparável que faz a rebeldia desta apresentação: também ela
corpo transbordante, começou por tentar ser sinopse e foi-se escrevendo na direção do quase-
manifesto. Pronunciamento antes do salto, pronunciamento enquanto fervilhar. Porque este tomar
para si a questão do Irreparável é, na relação com a emergência do próprio Modo Operativo AND,
um re-tomar: completa-se aqui uma volta na espiral que, há mais de 15 anos, permitiu elaborar a
primeira formulação-proposição-análise do que poderiam (ser) os modos de vida E no plano das
relações íntimas. ----
A proposta para a edição #3 da Escola de Verão AND será, então, situar a investigação numa escala
proximal e microscópica, trabalhando com a matéria da DOBRA ENTRE O ÍNTIMO E O
POLÍTICO e com os modos como damos corpo ao mundo e mundo ao corpo. A aposta – aposta de
pesquisa, a ser percorrida em vivência com os cúmplices-colaboradores do AND Lab e quem mais
se sentir convocado – é a de que o grau de (ir)reparabilidade do mundo-como-é deriva directamente
do grau de consistência deste vínculo, que é também a passagem que não cessa de se fazer e refazer,
entre o dentro e o fora, o sujeito e o acontecimento. A aposta, ainda, é a de que uma ética de
reparação só poderá emergir da justa afinação desses fluxos, numa concertação recíproca entre o
infinitesimal e o cósmico, e num reconhecimento de que a luta pela descolonização precisa de ser/
estar pré-parada debaixo da pele. Não propriamente porque precise de ser planeada (embora, se
calhar, também) mas porque consistirá num já estar parade, lá onde o Irreparável não pára, nunca,
de (re)constituir o mundo-como-é.
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A proposta será, então, situar esta investigação colectiva nos (i)limites-confins do Reparar – a
operação-síntese do Modo Operativo AND, na sua tripla acepção de parar de novo (re-parar),
inventariar atentamente e manusear em concerto. Experimentar a frequência das suas bordas, beiras,
quase-abismos: pré-parar para nos prepararmos, prepararmo-nos para pré-parar ante o Irreparável,
assim freando a sua reprodução. Para isso, dispomo-nos a esgarçar o corpo, nas suas miudezas,
indagando nele e com ele todas as variantes, gradações e antípodas da operação Reparar. A
pergunta, a não responder, mas a proliferar em território de (an)coragem: COMO FAZER PARA SI
UM CORPO DE LUTA?
Reivindicamos, para compor este território de pesquisa situada, uma Presença e uma Luta: presença
sem Eu, luta sem reactividade. Exposição sem exibição, recusa sem antagonismo. Não a presença
que se debate com as questões da representação espectacular, pois comparecer é explicitar as
próprias fragilidades e não forjar a aparência de uma força. Não a luta que se organiza como
entrincheiramento sectário, disputa pelo poder ou mimetização-perpetuação da violência, pois é de
firmeza e não de intransigência que se trata, "de falhar de novo e de falhar melhor" (como na
máxima de Beckett): de escutar mais do que falar e de dizer sem fazer calar. E embora só se possa
lutar em contacto com a força-fragilidade das próprias feridas, também só se pode lutar em co-
passionamento: lá onde as feridas são de ume porque de todes, de todes porque de ume. Lutar é co-
incidir, é “estar à altura do acontecimento” (como na definição da ética em Deleuze), assim como
agir eticamente é uma luta constante. Lutar é a materialização da ética: é a sua per-formação.
Reivindicamos um corpo de luta para “fazer (n)o difícil” (e agora, como em Nancy) que é, a todo e
a cada dia, recomeçar pelo meio – pelo incontornável da usurpação-colonização constituinte do
mundo-como-é – e refazer aí, situadamente, a co-implicação e a co-operação. E desviar, aí, outra e
outra vez, todas as “pistas falsas” infiltradas nos modos de fazer e de viver construídos como se
fossem dados.
Tal como o desorganismo acarreta um esforço e um risco que começam por ser solitários, também
um corpo de luta precisa de começar (ou parar) no entre-si, para continuar através de um entre-
maior-do-que-si: um entre-muitas ou entre-todas as coisas humanas e não-humanas.
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Pan-sensibilidade, trans-corporificação: será possível manifestar outros dos nossos Múltiplos, além
daquele que viemos a chamar de “Eu”? Será possível começar por expropriar e desautorizar “Este
que Sempre Fala”, através de uma multiplicação do em-si-mesmado em um milhão de escutas
outradas? Será possível começar a dissidência pelo auto-descondicionamento?
Confiamos que não é apenas possível, nem apenas necessário: é também impossível e preciso e, por
isso mesmo, talvez seja a única chance ante o Irreparável.
Um corpo de luta não se faz sem que se gere atenção a toda e a cada uma das suas partes, das suas
camadas constituintes, geológicas e geográficas. Um corpo de luta não se faz sem torná-las
moventes e movediças, sem desfragmentá-las, reconhecendo-se como agregado não-compulsório,
para o qual nenhuma organização tem prerrogativa de auto-evidência. Não se faz sem enfrentar em
si o desafio da descolonização dos regimes da intimidade, dos modos do sozinho no juntes, em
especial nas formas mais imediatas e próximas de relação; sem des-privatizar os desejos e as
volições; sem des-normatizar as suas ecologias e noções de saúde e bem estar; sem des-automatizar
padrões reincidentes, hábitos de comportamento e conversas internas – monólogos da interpretose e
do ponto de vista – que não cessam de restaurar o mundo-como-é, num plano infinitesimal, à revelia
daquilo que se possa reinvidicar e pretender (re)presentar no plano identitário-societário. É então
preciso – mas é tão impreciso! –termo-nos para entre-termo-nos. E assim recursivamente.
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Dizer tudo isto não é já saber como sair desta (ou entrar nesta). Os procedimentos da PRÉ-
PARAÇÃO estão por ser cartografados-inventados, embora já se avolumem algumas pistas dadas
pelo saborear. Mais uma vez, a proposta é fazer com o que se tem. Por um lado, voltar a tensionar as
ferramentas já existentes do MO_AND para exercitar a fractalização, a des-hierarquização e a
redistribuição metaestável da atenção, bem como a sua materialização em co-passionamento e em
gesto suficiente. Por outro lado - e táctica principal quando se trata de afrontar o Irreparável -,
habitar as alianças, tanto na potência inerente de re-pergunta e de re-estranhamento, como na
potência de agregação de esforços em mutirão.
Por isso, nesta Escola de Verão #3, propomos colocar as ferramentas do MO_AND para vibrar em
conversa com outras forças: as ferramentas Bodyfulness do Movimento Autêntico, tal como
praticado pela Soraya Jorge e pelo Guto Macedo; os procedimentos de afinação sensível das
Práticas de Atenção propostas pela Sílvia Pinto Coelho; as incipientes Práticas Ético-Somáticas
emergentes na mais recente linha de pesquisa do AND Lab, o ANDbodiment (na qual trabalho em
colaboração, nesta edição da escola, com a Ana Dinger, a Flora Mariah e a Milene Duenha); além
de um acompanhamento-supervisão de todo o processo pelo Eduardo Passos e pelo Iacã Macerata,
ao fazerem o tracking dos modos como o MO_AND se (pode) torna(r) Prática de Cuidado e
Intervenção.
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Entre-modos. Um
jogo de re-
perguntas à volta
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do Modo Operativo
AND
Milene Lopes Duenha, Fernanda Eugénio, Ana Dinger (2016)
RESUMO
Um conjunto de inquietações acer- ca das relações entre corpo, lingua- gem, modos de fazer e
modos de vida, emergentes da vivência intensiva de um curso organizado pelo AND_Lab Cen- tro
de Investigação em Arte-Pensamen- to & Políticas de Convivência em Lisboa (PT), serviu de
disparador para um jogo de re-perguntas à volta das ferramentas ético-estéticas do Modo Operativo
AND (MO_AND). Tomando a forma de con- versa e de pensamento ao vivo, este jogo foi traçando
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um território de problemas na medida em que o percorria, desdo- brando questões de duração,
etnografia e escala na prática do MO_AND, e as re- lações-tensão sobre vs com, atenção vs
disponibilidade, ética vs estética e arte engajada vs engajamento.
ABSTRACT
A set of concerns regarding the re- lationshipbetweenbody,language,ways of doing and ways of life,
emerging from the intensive experience of a course or- ganized by AND_Lab Research Centre in
Art Thinking & Politics of Togetherness held in Lisbon (PT), served as the trigger for a game of re-
questioning around the ethical and aesthetic tools of the Modus Operandi AND (MO_AND). Taking
the form of a conversation and thinking live, this game drew a territory of problems as it was
unfolded, addressing questions such as duration, ethnography and scale in the practice of
MO_AND, and the ten- sion-relation of about vs. with, attention vs. awareness, ethical vs.
aesthetics and engaged art vs. engagement.
Keywords: Modus Operandi AND; Ethical-Aesthetics practices; Co(m)posi- tion; Body; Language.
Uma proposta intensiva que reunia vários profissionais das áreas da dança, antropologia, teatro e
performance para co-experimentar e encontrar ENTRE-MODOS de fazer. Esse era o convite da
Escola de Verão AND 2016 #1 Entre-modos de fazer, realizada pelo AND_Lab Centro de
Investigação em Arte-Pensamento & Políticas de Convivência, entre 1 e 16 de Julho no Pólo
Cultural Gaivotas Boavista, em Lisboa. O programa colocaria em relação a pesquisa desenvolvida
atualmente por Fernanda Eugénio no Modo Operativo AND, e as pesquisas dos artistas, professores
e investigadores convidados Ana Dinger, Ana Mira, Francisco Gaspar Neto, Gustavo Ciríaco,
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Mariana Ferreira, Sílvia Pinto Coelho e Soraya Jorge, em oficinas como Metálogo & Co-operação,
Corpo-Gesto & Construção de Documentos Sensíveis, Deriva & Arrumação, Etnografia
Circunscriptiva & Performance Situada, Práticas de Atenção, Corpo-Presente & Escutação.
O encontro aconteceria do outro lado do Atlântico. Perdi o vôo. Comprei outro bilhete. Dois dias
em trânsito. Primeira vez na Europa. Foi intensivo mesmo. Uma imersão que propiciou encontros e
a consequente incidência de afetos em um fazer/descobrindo que convidava, durante todo tempo, a
novos modos de olhar, de fazer, de conviver. A propósito, esse já é um relevo que caracteriza o
Modo Operativo AND, um modo de fazer que emerge e re-existe na intersecção entre ética e
estética, inventando mundo no ato de com-por, pôr-se com o outro – usando aqui algumas das
expressões e ferramentas-conceito do vocabulário AND. A comunidade momentânea que se forma é
responsável pela gestão de um plano comum de atuação que se estabelece no encontro entre corpos
(pessoas e objetos), cujas posições e consequências fazem e refazem corpo, pensamento e modos de
vida.
Nesse encontro entre as ferramentas do Modo Operativo AND e as das outras práticas, muitos
caminhos surgiam. Questões ebuliam em mim, e a vontade de dividir com o mundo aqueles mundos
possíveis, que insurgiam em ato, impulsionou-me ao convite à Ana Dinger e à Fernanda Eugénio a
realizarem o que se verá desenhado aqui nestas páginas. Trata-se de uma conversa entre as duas,
que se inicia por uma primeira posição/provocação, tomada por mim, como efeito dos
questionamentos emergentes na experiência desse encontro.
Tal posição carrega uma tentativa de problematizar escrita acadêmica e fazer artístico por meio
desse modo de fazer que não se ocupa em definir o que as coisas são, em uma lógica afirmativa do
é, substituindo-o pelo e, convidando a se perceber o que tem, a cada nova situação. Essa
substituição de palavras do Modo Operativo AND aparece na prática como um desafio a noções de
criatividade e de sujeito identitário, uma vez que o corpo é também percebido como coisa, o que
exige uma atenção a si e ao entorno, e uma constante gestão do ego. Algumas das questões que me
ocorreram nas experimentações e descobertas de entre-modos de fazer são, então, expostas à Ana
Dinger e Fernanda Eugénio como um desdobramento desse encontro entre vários, e que pode
provocar outros entres. São elas:
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Como a invenção de outros modos de operar que implicam uma estreita relação entre ética e
estética, a exemplo do AND, pode se presentificar no uso das palavras, mais especificamente no
espaço destinado a uma escrita acadêmica sobre a arte? Seria possível uma configuração que
explicite uma indissolubilidade entre conteúdo e forma, arte e mundo, mundo e arte? O que tem no
AND que pode vir a calhar como ferramenta no encontro entre corpos e palavras? Como as
palavras, usualmente identificadas no campo do significado e da representação podem ser
deslocadas para outro campo? Seria possível um uso das palavras (conceitos articulados) sem
percebê-las somente como ferramentas de interpretação do mundo? Uma espécie de oráculo da
vida?
As oficinas da Escola de Verão AND 2016 | #1 Entre-Modos de Fazer, realizadas no Pólo Cultural
das Gaivotas entre 1 e 16 de julho de 2016, bem como as atividades dos participantes pelas ruas e
entorno de Lisboa durante o curso, foram documenta- das pelo fotógrafo Filipe dos Santos
Barrocas, dando lugar a um ensaio, cujo nexo se articula por posição-com-posição de imagens, em
conversa com o funcionamento do Modo Operativo AND. Para esta publicação, Filipe selecionou
doze das imagens desse ensaio e as dispôs numa nova sequência-jogo.
F _ Um dos jeitos de falar do fazer-com tem a ver com o recurso laboratorial de fazer com
materiais, como uma maneira de exercitar a dobra, essa relação recursiva entre fazer, pensar sobre o
que estou fazendo, conseguir executar o que estou pensando... E essas coisas irem ganhando um
ritmo de retroalimentação a ponto de acontecerem mais ou menos ao mesmo tempo. A outra zona
do fazer-com é essa do fazer com os outros, usando ou não materiais. Vão estar lá sempre matérias
mas essas matérias podem não ser as do laboratório, podem ser as matérias do quotidiano também.
Em ambos os casos, as matérias são aquilo que está entre aqueles que estão fazendo – sem contar
que aqueles que estão fazendo são, também eles, matéria.
A _ Eu tenho pensado se o uso laboratorial evidencia esse com e se no uso quotidiano não será mais
difícil destrinçar o com do sobre. Se calhar, mais uma vez, dependerá da situação de que estivermos
a falar porque o quotidiano abarca muitas situações diferentes. Mas lido com a dúvida, às vezes, de
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onde acaba este com e o sobre começa. Ou se haverá entre eles, por vezes, uma separação tão clara
que nos permita, num trabalho de auto-observação e auto-regulação, distingui-los.
F _ Quando estamos a discutir isso, por exemplo, no campo da criação artística, a diferença entre
fazer-sobre e fazer-com talvez seja mais evidente – ou é mais evidente só porque já exploramos
mais essa questão. Há uma tendência a começar por representar ou por executar uma ideia feita, a
fazer-sobre ela. Mas há outro funcionamento, mesmo que minoritário em relação a este: o do fazer-
com o que se apresenta (situações, coisas, encontros), sem ideia prévia, permitindo que o trabalho
vá emergindo como consequência. No quotidiano, essas duas tendências – representar e presentar -
também se manifestam. Mas talvez existam nuances no sobre que ficam mais explícitas neste
plano. Eu acho que, no quotidiano, podemos distinguir, talvez, dois modos de fazer-sobre algo: um
que tem mais a ver com uma ‘invenção do assunto’ e, a partir de então, o sobre ser qualquer coisa
da ordem de uma disputa entre pontos de vista; outro que poderia ter a ver com fazer algo a respeito
de. Não é sobre algo, no sentido de transformá-lo numa espécie de assunto ou de tema a ser
discutido e escrutinado para que se chegue a uma verdade ou a um diagnóstico ou uma opinião. É,
antes, ter em consideração uma questão que surge e em relação à qual é preciso fazer alguma coisa.
Ela não pode ser ignorada. Se for nessa voltagem, o sobre e o com começam a ficar parecidos.
A _ Entre esses dois modos do sobre pode, talvez, um estar mais ligado a uma ética de
manuseamento e o outro, por oposição, a um uso mais manipulativo ou usurpador. Sendo que a
manipulação do assunto pode não ser necessariamente mal intencionada. A manipulação ou
usurpação podem nem ser da ordem daquilo que é consciente. Remetendo para a própria escrita
acadêmica, é muito notória, às vezes, não só essa tendência para inventar o assunto como forçar, ou
mesmo forjar, uma série de associações que fazem das coisas analisadas exemplos da ideia prévia
que se tem sobre elas. Às vezes até negligenciando outras dimensões ou outros aspectos do que se
está a tentar analisar. Parte deles são, de certa forma, obscurecidos, camuflados ou ignorados, em
prol da coerência de uma ideia-tese que se quer passar. Então, são os perigos desse sobre, que é
mais impositivo, ou até colonizador, que me preocupam. Mas agrada-me essa possibilidade de
haver dois modos ou duas modulações ou voltagens do sobre.
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F _ Talvez se possa pensar que há uma voltagem do sobre, aquela do a-respeito-de, que é um
trabalho de cuidado e de manuseamento de um problema que ninguém escolheu mas que se
apresenta, de modo que não é possível, eticamente, se abster, sob pena de não-comparecimento. O
outro sobre, aquele que envolve a construção da coerência, de fato ativa uma tendência a manipular,
como você estava dizendo. Selecionar os exemplos ou imagens que convêm... Neste caso, é um só
discurso, que se deseja unívoco, que está sendo alimentado. Por exemplo: na escrita acadêmica, isso
pode corresponder à tendência de reter apenas as citações que amparam aquele argumento, ir buscar
somente os autores que concordam com aquilo... Se for numa pesquisa mais ligada ao campo, o
nativo fala só ‘na hora que interessa’ e só fala os bocados escolhidos para confirmar a tese que está
sendo defendida. Ou, ainda, se for na criação de uma peça, as matérias que entram são só aquelas
que contribuem para aquele sobre vingar e ficar fechado numa dramaturgia coerente - todas as
outras matérias, ou corpos, ou coisas, ou movimentos, que não reiteram aquela direção, são
eliminados. Em inglês, por exemplo, é possível traduzir o sobre como about ou como on. Em
português não dá: tem o a-respeito-de, que talvez seja o equivalente ao on, mas não tem um
sinônimo para esse sobre mais ligado à coerência, que talvez seja o equivalente ao about.
F _ Mas ficar por cima não tem necessariamente esse sentido de se sobrepor ao afeto. Talvez tenha
mais um sentido de ligação, de entrar on, de se colocar em sintonia. O about talvez seja mais da
ordem da construção de um território com contornos ou fronteiras definidos - esse tema coerente -,
não se determinando só o território mas tudo o que o povoa e o que não o pode povoar. O on, se o
aproximarmos a um fazer-a-respeito-de ou a uma sintonização com o alheio, envolve a construção
de um plano de consistência, ou seja, não fronteiras coerentes mas limites consistentes. Agora, ainda
dentro do pensar e do fazer em simultâneo, se o sobre for colocado nessa lógica de a-respeito-de,
ele é o lugar em que o pensamento praticado ou investido no problema se materializa, ao mesmo
tempo que o fazer acompanhado do pensamento praticado é um fazer-pensado ou um fazer-
pensante. É aqui que a operação do sobre se aproxima da operação do com, porque ao se trabalhar a
respeito do problema que emerge o que se está a fazer é acolher o acidente: nesta voltagem, não é
possível fazer sobre sem fazer com.
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A _ Pergunto-me se será possível evitar algum grau, por ínfimo que seja, de manipulação, em todas
as circunstâncias. Mas penso, também, que talvez exista uma forma de proteção que nos permita
frequentar ou situarmo-nos mais num funcionamento de manuseamento e menos num
funcionamento de manipulação. Ou seja, um investimento continuado de auto-regulação, que
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resulte do treino de um determinado tipo de disponibilidade. Dentro da terminologia do AND
usamos frequentemente o termo awareness, que é correlacionável ou pode até mesmo revelar-se
equivalente a disponibilidade, que eu proponho tratarmos aqui. Foi através de um texto de Walter
Benjamin – intitulado “O Narrador” ou “O contador de histórias” –, mais precisamente através de
uma tradução para português, do João Barrento, que cheguei a disponibilidade. Expondo em nota de
rodapé a justificação da sua escolha, Barrento decidiu traduzir a palavra alemã Langeweile, não por
tédio – como é também habitualmente traduzida para inglês (boredom) – mas por disponibilidade
(que não acarreta o sentido pejorativo de tédio). Ao ler esse texto, pareceu-me que, apesar das
diferenças, é possível encontrar algumas afinidades entre a atenção/awareness, tal como praticada
no AND, e a disponibilidade benjaminiana. Ambas se apresentam como uma espécie de estado, mas
também como capacidade ou agilidade, que implica uma relação peculiar com o tempo, uma relação
de uso do tempo que joga com a sua elasticidade, esticando-o. Por outro lado, se no AND se treina
uma atenção redobrada (e que se desdobra), a disponibilidade benjaminiana, supostamente, depende
de uma certa desatenção, desprendimento ou, se quisermos, distração. Aliás, ambas implicam algum
tipo de distração, mas são distrações de diferentes ordens. A distração que subjaz à disponibilidade
benjaminiana seria a de um certo entorpecimento da consciência, talvez – um estado de relaxamento
-, ou, melhor, de uma distribuição da atenção por tarefas outras que não depositam toda a tensão/
atenção no ato de ouvir. Já a distração no AND está mais associada, a meu ver, e usando a
terminologia própria, a um ‘despistar do Eu’ (ego), a uma suspensão temporária da condição de
sujeito predeterminado. Uma distração de nós próprios, por assim dizer, que é outro tipo de
desprendimento dos nossos preconceitos e padrões (etc.), e que só pode resultar do mapeamento de
nós mesmos e do entorno. Esse mapeamento faz uso de uma atenção ‘filigranar’, não meramente de
uma desatenção porosa. Finalmente, a disponibilidade benjaminiana aparece associada a uma
formação temporária de comunidade – a teia que une o contador de histórias e os seus ouvintes –
que se aproxima da experiência do AND talvez mais obviamente na escala do jogo, na coabitação
do encontro em busca de um plano comum. Mas para regressar à questão central desta minha
intervenção, o trabalho ou treino do Modo AND é de aplicação tão transversal que se pode tornar
um modo alternativo de funcionar (em diferentes facetas da vida). Adquirir a capacidade de ativar
este outro modo, que não é o predominante, talvez nos proteja, nos impeça de cair na armadilha da
manipulação com tanta frequência.
F _ Eu acho que tem uma distribuição da atenção (awareness) – distribuição aqui no sentido de
espalhamento e afinação - que vai sendo gerada com a prática continuada do AND. Quase como um
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alongamento: se se fizer todos os dias, vai-se ganhando espaço articular. Se se deixar de praticar,
este espaço vai voltando a encurtar. É bem parecido. A prática do AND, assim como a do
alongamento, não muda e não pretende mudar as condições ou as tendências que nós temos.
Trabalha justamente com essas condições, tanto na sua dimensão tangível de limite como nas suas
virtualidades de ilimite. No caso do AND, o alargamento vem da geração de uma maior clareza
sobre as condições de cada situação, corpo, encontro etc. – o que eles potenciam e o que não e,
dentre as potências que lá estão, quais estão ativas, quais são tendências minoritárias, quais são
aquelas que se organizaram em padrões viciados que, eventualmente, até podem estar a encobrir
outras potencialidades. A prática da atenção constante, essa frequentação persistente do problema do
encontro, com as suas recorrências e as suas diferenças emergentes, vai explicitando as tendências
de cada praticante. Esta explicitação, por sua vez, permite que aquilo que poderia ser um padrão
fechado e recorrente se disponibilize como matéria, abrindo-o, desfragmentando-o, fractalizando-o.
Essa zona da prática do Modo Operativo AND – a zona que vai do re-parar ao reparar, ou seja, do
acknowledgement à awareness – é uma zona de treino da atenção antes do fazer. É toda uma zona
de ‘pré-ação’. Ou, mais precisamente, de entre-ações, de intervalo entre uma posição e outra. Neste
sentido, é um trabalho que acontece num plano ainda sem efeito e, portanto, completamente ‘sem
caráter’: ainda não se sabe que uso posterior vai-se dar a esta capacidade de atenção alargada ou a
materialidade que ela disponibiliza. Isso só se vai definir quando a pessoa agir, tomar uma posição.
Este treino prepara e convida a que esta posição seja uma posição-com – e não uma imposição –
mas não garante por si só que assim seja. Há depois mais a trabalhar, a fim de sustentar a atenção
filigranar enquanto distração do ego – e não dispersão porosa apenas – permitindo assim uma
tomada de posição ética e suficiente.
A _ Por isso é que gosto também da palavra disponibilidade, além da palavra atenção. Porque, para
mim, disponibilidade, de certa forma, encerra em si o potencial para o desdobramento. Claro que
podemos falar em práticas de atenção ou numa prática de atenção continuada mas, se atendermos só
às palavras isoladas - atenção e disponibilidade -, atenção parece-me algo mais transitório, que
acontece dentro de um enquadramento espácio-temporal apertado, e a disponibilidade uma coisa
que se expande, que não está circunscrita a esse enquadramento espácio-temporal mas que, se
quisermos, tem início nesse ponto originário de atenção mas que continua, que persiste. Talvez aqui
seja interessante também introduzir outro termo de articulação que é o de latência. Num certo
sentido, é como se a disponibilidade fosse uma espécie de capacidade, que se adquire e fica latente,
permitindo ativar ou reativar essa atenção específica.
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F _ Várias vezes o Modo Operativo AND é referido como uma ferramenta ético-estética. Talvez, em
algum momento, tenha sido eu mesma a formular as coisas assim; hoje já não uso muito essa
formulação. Parece-me que bastaria sublinhar que o AND é sobretudo um ferramenta para o
funcionamento suficiente: a suficiência é a sua ética. Ela tomará, sempre e a cada vez, uma forma;
daí por consequência vir a ser também uma estética. Mas não se começa por um primado estético de
nenhum tipo. A ética da suficiência pode vir a pedir por movimentos minimais, precisos e pontuais
ou pelo extremo oposto, movimentos elaborados, complexos, cheios. Por isso, talvez seja mesmo
importante ressaltar que esta ordem – ético-estética e não estético-ética – faz toda a diferença. Esta
sequência sinaliza uma direção: começar por uma ética, chegar a uma estética por consequência.
Sinaliza também o que está a ocupar o lugar de funcionamento ou força, e o que está a ocupar o
lugar de forma, aparência, aparição. Isto tem a ver com o que estávamos falando há pouco, sobre o
que acontece depois da atenção ser gerada. Depois de se passar por um trabalho de reparagem, de
rastreamento e de inventário do que existe e está disponível no momento – seja nas minhas próprias
habilidades, na esfera do meu corpo, do meu imaginário, dos meus afetos, seja no que está em meu
redor, seja ainda no plano dos colaboradores com quem eu convivo etc. – existe então uma entrada
em relação. E como é que se dá essa entrada em relação? Ela pode se dar pela via do
manuseamento, o que implica que essa entrada em relação vai procurar a suficiência do gesto e a
menorização do Eu numa mínima condução das coisas – ela não toma a frente, não lidera, não
conduz os materiais, não faz os materiais passarem pelos seus desejos, manipulando-os; mas, ao
contrário, procura interrogar quais são os desejos dos materiais e se colocar a serviço deles e dos
acontecimentos. Essa decisão – que será, na prática, uma des-cisão - é que é a entrada em ética.
Porque o primeiro trabalho que tem a ver com mapear o que é situadamente possível, o que está
disponível de modo contingente e acidental – essa zona, embora já pertencendo, em latência, a uma
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ética, não assegura por si só um funcionamento ético, não o garante. O fato de se ser capaz de
escrutinar tudo o que está aqui disponível de modo franco e não-interpretativo não assegura que, a
seguir, não se utilize este inventário filigranar justamente como ‘munição’ para manipular. É uma
capacidade, de fato, importantíssima, mas que pode ser posta, depois, ao serviço de um
funcionamento primeiramente estético e não ético. Então, o momento em que sabemos se estamos
num trabalho ético-estético ou estético-ético – ou só estético, até, porque o ético neste caso
corresponderia apenas a uma forma ou aparência, não a uma operação – é aquele momento em que
passamos ao ato. E como fazemos isso? Como entramos em relação? Como damos corpo a todo
esse esforço cartográfico que aconteceu, que foi a prática atenta do inventário? Se acontecer desse
mapeamento todo depois ser posto ao serviço de um ‘eu quero’, ‘eu acho’, ‘para mim é assim’ ou
‘eu tive uma ideia’, não se começará pela ética, mas pela estética. A forma tomará o lugar do
funcionamento, numa inversão perversa, pois pode ser até que, no produto final, a gente não a
consiga reconhecer – aliás, a manipulação bem-feita tem mesmo essa componente perversa de
esconder-se muito bem, se tornando indemonstrável – se tornando implícita. Enquanto o
manuseamento, ao contrário, trabalha sobretudo num plano de explicitude, sendo sempre rastreável
e acessível – é possível seguir o seu desdobrar. Mas se o que se ativa na entrada em relação é um
funcionamento estético, o que se passa é, sub-repticiamente e por antecipação, haver o privilegiar
de uma zona de questões – aquelas que povoam o imaginário do autor. Ao invés da entrada em
relação se dar por des-cisão, ela se dá por decisão: uma decisão que é tomada de antemão e, depois,
dentro da matéria que foi inventariada, isso levará a se ir fazendo uma espécie de casting do que
pode e do que não pode entrar, de que corpos combinam com aquela ideia e que outros não podem
entrar porque não lhe interessam. Poderá haver, por exemplo, a escolha do corpo esguio, ou do
corpo veloz e ágil, do corpo destemido; e o descarte tácito dos corpos que não podem fazer o que
quer e prescreve o imaginário do autor. A depender de que imaginário estético for este – se for, por
exemplo, um imaginário minimal ou formalista – até pode ser que a obra ou o trabalho resultante
desse funcionamento assuma uma aparência similar a um funcionamento ético, sendo que será
mesmo só isso: uma similaridade formal. Pois isto de ter corpos eleitos, por exemplo, seria
impensável num funcionamento ético-estético, que trabalha por des-cisão, com os corpos incidentes
na relação sejam eles quais forem. Neste funcionamento, serão os corpos – e o que eles puderem ou
não oferecer à relação e, depois, o manuseamento dos modos como eles se podem suficientemente
conectar e desdobrar – que levarão a uma estética emergente. Uma estética, portanto, sem
imaginário de autor; sobre a qual ninguém legislou de antemão.
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A _ Talvez possamos pensar na questão do efeito. Porque nós temos vindo a pensar muito no afeto
mas menos no efeito, ainda que pensemos em consequência(s). Em inglês, effect e affect são muito
próximos, o que dá azo a imensas confusões, algumas até bastante profícuas. Em português nem
tanto, afeto e efeito diferem em mais do que uma letra. Aqui, talvez possa ser interessante
reformular a questão anterior, fazendo uso do termo efeito. Uma determinada estética pode ser,
efetivamente, resultado de uma postura ética e de um procedimento seguindo essa mesma postura, e
então existir uma correspondência, mas também pode acontecer o oposto, ou seja, o efeito pode não
assentar numa correspondência mas numa qualquer coincidência.
F _ Enfim, as coisas para acontecerem é porque tomaram forma. Elas se per-formaram. Performar,
uma das maneiras pelas quais podíamos abordar isso, seria esse fazer-forma ou entrar-na-forma.
Envolverá sempre um gesto, uma tomada de posição de um agente, um fazer. Mas há doses,
diferentes gradações de interferência, que poderemos distribuir num continuum que vai do
manuseamento suficiente à máxima manipulação e desejo de controle. Performar pode, na sua
mínima versão, ser quase só cumprir uma potência que já lá esteja naquilo que foi mapeado e,
então, quase que esse per tem uma dimensão de perfazer, de percorrer, de circundar ou
circunscrever para, por adensamento, juntar-se ao formar – e assim efetuar e dar corpo... Se assim
for, aquilo que se per-formar será aquilo que precisar acontecer, o que for mais justo na relação com
o que já lá estava. E o ato será menor, menorizado em autoria. Ou seja, sem a imposição de uma
direção que venha, por exemplo, de um repertório estético em particular. Em vez disso, será uma
escuta disponível às condições e fatores de situação, um deixar-se afetar pelo que é possível e
preciso a cada vez – será isso que irá disparar o processo da per-formance. Um trabalho a partir dos
afetos e desapegado de controlar os efeitos explicitará e acentuará um funcionamento que começa
por percorrer o problema, por entrar em co-passionamento com o alheio e, só depois, e porque se
cumpriu enquanto percurso (sem saltar etapas, sem pressupor, mas indo de posição em posição, de
perto em perto), chega a performar qualquer coisa. Chega à forma; não já começa por ela. Chegar à
forma será o mesmo que dizer: chegar a uma estética emergente de uma ética. É óbvio, porque
quando se entra em acontecimento é porque também se entra em forma: aquilo tudo que era força se
instancia, se performa. Mas se estamos a praticar uma ética da suficiência, o desejo de controlar
essa forma final dá lugar a um engajamento no próprio dobra-desdobra relacional, a uma afetação
sustentada, que vai cuidando dos efeitos emergentes, sem se ocupar de gerar, ela própria, qualquer
efeito. Porque não é preciso ‘causar’ – e nem há tempo ou espaço para isso – quando se está
dedicado ao consequenciar dos acontecimentos.
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F _ O Modo Operativo AND ganhou finalmente esse nome nos anos recentes mas ele não é
diferente da etnografia, em particular de um certo modo de fazer etnografia que em algumas épocas
chamei de etnografia recíproca, noutras de etnografia performativa, noutras ainda de etnografia
como performance situada. Esse modo de fazer emergiu, primeiro, contra o pano de fundo do
campo antropológico, emergiu como um imperativo crescente que fui sentindo em levar a sério a
vivacidade da experiência do encontro etnográfico, a dimensão de performatividade e invenção
recíproca que estão em jogo ali, e que quase sempre tendem a sucumbir quando se passa ao plano
da análise, da construção da coerência explicativa ou interpretativa do outro. Percebi logo, em
especial durante o doutorado, que precisava mesmo de tirar as consequências disso, de permanecer
no problema com rigor e franqueza: o campo do meu doutorado me confrontou com a necessidade
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de invenção de conceitos-ferramentas, conceitos que pudessem não só ser ditos mas também feitos,
efetuados, colocando num mesmo plano aquilo que eu poderia defender em termos de pensamento e
aquilo que eu era capaz de fazer. Foi ali que formulei pela primeira vez o AND – na época o chamei
de ‘estilo de vida E’ - enquanto funcionamento transversal, de regras imanentes. Fiz isso num
esforço de pensação, de concretizar conceitos, ou seja, desfragmentá-los, fazê-los passar ao plano
do uso e do funcionamento: fazer com os conceitos e conceituar com o fazer. Diversos outros
encontros e situações contingentes concorreram para que, lentamente, de uma conversa meio
“endógena” com o campo antropológico, o pensamento do AND fosse se autonomizando como uma
ferramenta transversal, um fazer do comum, um modo de estudar o funcionamento das relações, as
consequências dos nossos gestos, os modos do acontecimento e da convivência. Acho que o AND
ter-se organizado enquanto prática, modo operativo, é, em grande parte, consequência não só de
uma tomada de posição em relação a problemas bastante concretos da antropologia, mas do fato de
eu ter passado longos anos a ser professora de primeiros períodos na graduação. Isso me confrontou
com a questão, por um lado, de que a etnografia é ‘inensinável’ e de que, por outro, não se pode
desistir. Geralmente é o que se faz, desiste-se do campo ou mitifica-se o campo como uma
experiência a se ter “um dia, mas não agora”. E ensina-se uma antropologia estritamente conceitual,
que mesmo assim tem uma grande eficácia em arejar a cabeça das pessoas, mas que se ficar só no
plano conceitual pode não passar de discurso, um politicamente correto relativista sem
consequências no modo como se vive e se convive. Foi nesta fase, por exemplo, que emergiu o
exercício prático, ainda hoje um exercício central para ativar a reparagem no MO_AND, de passar
do porque ao como, enquanto chave para praticar o não-interpretar, para desviar da tentação de
atribuir significado e se concentrar num trabalho minucioso de descrição-circunscrição do que
acontece, como acontece, quando e onde acontece. Praticar insistentemente um certo tipo de
etnografia, aquela que assume que quase tudo ou tudo que vai vir a ser o seu trabalho de
investigação acontece ali, naquele encontro, no modo como se posiciona, no modo como se
negocia, e depois no que emerge entre as pessoas, numa espécie de co-posicionamento ao vivo,
trabalho de mapeamento recíproco e de povoação lenta daquela relação entre você e aquele outro
mundo com o qual se decidiu entrar em relação de empatia... foi isso que me levou a esbarrar depois
nos dois grandes outros encontros que são chaves para o AND ter tomado (e estar sempre re-
tomando) o corpo que tem hoje. Por um lado, o encontro com o campo da dança e da performance –
e, junto com ele, com o dispositivo do laboratório e do estúdio, um recurso que não existe na
antropologia, e que traz a possibilidade de jogar com as escalas de um modo muito mais
experimental, sem ainda as consequências radicais do encontro em escala humana. Por outro lado, e
ainda mais recentemente, o encontro com os campos psi, em especial com os modos de fazer da
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clínica transdisciplinar praticada no Brasil, que tem entrado em conversação de forma muito potente
com toda uma dimensão da minha pesquisa ligada à performatividade do afeto.
A _ O AND, sendo alguma coisa a que as pessoas podem ou não aderir, e havendo adesão, varia
ainda na forma como as pessoas o trazem para as suas vidas e o adaptam, que uso lhe dão, o quanto
se entranha. De certo modo, podemos dizer que o AND tem angariado seguidores. Há grupos que se
reúnem regularmente para uma prática partilhada, há investigadores, artistas, artistas-investigadores
e investigadores-artistas, enfim, pessoas vindas das mais diversas áreas e com as mais variadas
trajetórias que encontram diferentes formas de articulação (aplicação, transposição, reajuste, etc.)
entre as suas práticas, as suas inquietações, as suas ocupações e o AND. Talvez se possa dizer que
há uma espécie de comunidade emergente – que não corresponde às formações temporárias
permitidas pelo dispositivo jogo de que falei acima, que está além, num outro plano -, a que eu às
vezes apelido afetuosamente de AND_people, numa referência ao Fahrenheit 451, do Ray
Bradbury, em que um grupo de pessoas – book people – memoriza livros ou trechos de livros
proibidos num futuro distópico, assegurando a sua continuidade através de uma relação metonímica.
É, novamente, de responsabilização e compromisso que falo e, desta feita, é do compromisso com a
duração que proponho tratar. O tempo que cada um se permite de contato com o AND, o tempo que
se dedica ao treino, a frequência com que se regressa aos workshops, o grau de infiltração no
quotidiano. O AND ser algo em que se insiste e que assim subsiste e persiste. Diferentes graus de
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abertura, entrega ou investimento têm diferentes consequências. A relação ser duracional é
importante.
F _ Sim, de fato a prática ser duracional é importante, porque o trabalho que leva mesmo tempo é o
de desativar ou pelo menos suspender um pouco os funcionamentos com o quais se chega – a uma
oficina ou workshop, mas também a uma nova relação. São funcionamentos habituais que muitas
vezes operam por desatenção, à nossa própria revelia, e que, sendo muito diversos, são variações de
um modo operativo ‘é’, pois estão definidos à partida, ao invés de se construírem em relação. Por
isso precisamos de alguns dias, nos workshops; não porque a prática que está se propondo ali tenha
um grau de complexidade absurdo, ou um repertório a se assimilar, já que o MO_AND não é uma
técnica, não tem conteúdos preestabelecidos: precisamos de tempo justamente porque não tem nada
para aprender. Tem é um trabalho de desaprender: reconhecer, desautomatizar, desacelerar e
menorizar certos funcionamentos. Eu até acho que este tempo não é assim tanto – uns dias de
prática para sintonizar com outra faixa de frequência? – se considerarmos a pujança do ‘é’, o
quando ele é pervasivo e dominante, o quanto o nosso entorno e as nossas relações, do micro ao
macro, estão organizados em modo de predeterminação das regras, de modelos, expectativas e
cobranças, de certos e errados, de permissões e interdições a priori etc. Mas uma coisa é
conseguirmos, no espaço-tempo de uma oficina, colocar o ‘é’ entre parênteses, gerar coletivamente
um “platô”, uma ‘zona autónoma temporária’. A outra tem a ver com o construtivismo permanente
necessário para se continuar a praticar o ‘e’ a cada vez, num plano de extensividade. Acho que é
sobretudo por conta disso que precisamos de um trabalho na duração. Porque, num certo sentido,
este é um trabalho interminável: ninguém consegue se tornar, finalmente, um perito em AND, um
especialista, alguém que incorporou aquilo de tal maneira que vira o seu funcionamento automático.
O MO_AND é justamente um desautomatismo, é um trabalho sobre não-saber. E nunca se acaba de
não-saber. Por isso, se ele se automatizar, deixa logo de ser “e” e se torna numa das muitas faces do
“é”. Quando muito, creio que isso pode acontecer no plano laboratorial, quando de tanto praticar
gera-se um domínio muito grande dos materiais, o que pode dar azo a uma espécie de ‘zona de
truque’, de ‘pseudo-expertise’ – é pena, porque cai-se de novo na tentação de já saber. Aliás, eis
aqui um bom modo de visualizar aquilo de que estávamos falando há pouco: como se pode se ir
enrijecendo numa estética minimal-racional ou racionada – apenas formalmente parecida com uma
ética rigorosa da suficiência. Persistir na duração vai revelando que a suficiência é algo a se
trabalhar inevitavelmente a cada vez, pois a relação, o encontro, o acidente, nunca fazem problema
para nós do mesmo modo, mesmo quando se repetem. A cada vez que se re-instanciam, colidem
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conosco em diferentes alturas, as circunstâncias são sempre contingentes, e portanto também o que
se disponibiliza como matéria é diverso, o possível e o impossível não param de ganhar e perder
doses fractais, de se reorganizar. O inventário precisa ser constante, considerando que a
disponibilidade das coisas, das pessoas e das situações é flutuante. A cada vez, é preciso refazer os
modos, reconstruir situadamente o caminho justo para parar, re-parar, reparar, e depois ainda manter
uma lógica de reparação que irá permitir sustentar a relação. É tão frágil; a qualquer altura do
processo, pode ‘desandar’. Ter conseguido antes não dá prerrogativas a ninguém, não assegura que
se vai continuar a conseguir. É também por isso que o MO_AND é uma investigação interminável:
o que faço é, sobretudo, partilhar perguntas e um conjunto de exercícios e práticas que foram se
afinando por frequentação insistente, mas não tenho nada a ensinar. E de fato, como na comparação
que você faz com as “pessoas-livro”, as “pessoas-AND” modulam e reformulam o AND à sua
maneira, metonimicamente, sendo este processo contínuo a própria forma de propagação e
reinvenção do AND, permitindo que o sistema esteja sempre se “sistemando” e se “assistemando”
ao mesmo tempo, se pondo em questão, se reperguntando. Quando estamos em modo oficina –
juntos ou separados por um oceano – estamos ajudando uns aos outros a continuar a desaprender, a
partir do manuseamento de matérias suficientemente quaisquer para que possamos investir toda a
nossa atenção em tornar explícito o funcionamento dos acontecimentos que somos, e também
daqueles acontecimentos que se dão entre nós.
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A _ Será sempre insuficiente ficar apenas na escala da vida ou apenas no laboratório, entenda-se a
escala lupa. Porque aí, na escala reduzida, a dimensão de jogo é acentuada, mas não como jogo
sério, que envolve todas essas questões da responsabilidade, da atenção às consequências e por aí
fora, e que é no fundo, a proposição, mas de um jogo lúdico que corre o risco de cair num ‘tudo
vale’, em que as pessoas por vezes se precipitam por tendência ou impaciência. Porque as pessoas
se precipitam seguindo uma ideia de que não há regras quando, na verdade, não há regras
preestabelecidas mas há regras emergentes. A escala lupa pode, assim, propiciar uma atitude menos
responsável, menos implicada.
F_ Pois é, o dispositivo da lupa é extremamente valioso se for encarado, sobretudo, como uma zona
intensiva e intervalar de prática, mas que está sempre a ser transposta e devolvida à escala da vida
quotidiana. Porque, pelo fato de trabalhar no plano da ‘ficção’, e também pelo fato de ativar
sobretudo agentes não-humanos, o dispositivo da escala lupa suspende um pouco as ‘consequências
gravíssimas’ dos acontecimentos. Embora, dentro da proporção de escala dos agentes que estão ali
implicados, as consequências sejam, por vezes, até mesmo ‘letais’ – uma caneta, um rolo de fita
adesiva, todas estas coisas podem ‘morrer’ ou ficar seriamente danificadas por descuidos ou não-
comparências nossas -, como aquele jogo não está sendo jogado numa escala em que nós próprios
somos agentes, as consequências não recaem diretamente sobre nós. No jogo mundo-dentro-do-
mundo, podemos até usar a matéria dos acontecimentos laboratoriais emergentes para pensar as
consequências dos gestos ‘irresponsáveis’ que possamos ter praticado à escala daquele problema
mas, no fim das contas, sempre podemos limpar o espaço e recomeçar. No plano do quotidiano não
há esta hipótese de ‘zerar’. E será neste plano – o da escala da vida quotidiana, no qual as
consequências são mesmo consequências, e são ‘do nosso tamanho’ – que se jogará efetivamente o
AND. Pois no estúdio, mesmo que a gente vá aumentando as dimensões do tabuleiro, a ponto de os
agentes à escala daquela zona corresponderem já ao tamanho do nosso corpo e, portanto, a gente
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poder entrar com o corpo lá – mesmo fazendo isso, estamos trabalhando com uma zona de
inconsequência que não se compara à zona de consequência da vida, em que qualquer gesto abre
uma série interminável que continua a se propagar indefinidamente.
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A _ Eu concordo que, seja qual for a gradação da escala lupa, essa que inclui apenas esses corpos
‘menores’ dos ‘objetos’ ou a que já permite a entrada deste corpo-situação que habitamos, a zona de
consequência será incomensuravelmente mais contida. É frequente pensar na dimensão de clausura
do corpo, eu própria usei a expressão habitar, como se o corpo fosse uma carcaça, uma jaula, um
recipiente. Mas eu também falei em situação, e passo a enfatizar, porque a situação se pode habitar
não de vez mas a cada vez e não tem necessariamente contornos definidos ou, pelo menos,
predefinidos. Ou seja, estamos (n)este corpo mais do que somos este corpo, vamos acumulando
esses estares em contínuo devir. Há um verso de um poema da Sophia de Mello Breyner Andresen
que aproxima este corpo-situação e paisagem: “eu era semelhante às paisagens esperando”. Quando
se dá esta coabitação de paisagens, a dos muitos mundos que estão em jogo e este novo conjunto de
relevos (para usar uma expressão do AND) a que nós chamamos ‘corpo’, mesmo com todos os seus
pontos cegos, há diferenças relativamente à escala menor, a dos ‘corpos-objetos’, aparentemente
mais abarcável.
F _ O que muda, fundamentalmente, parece-me, é que quando se passa a trabalhar com o corpo
como matéria de com-posição, a dimensão perspectivista do trabalho se torna mais explícita. Ela já
estava lá, quando os corpos eram os agentes-objetos. Só que, para se pudesse acessar essa
dimensão perspectivista na escala do ‘menor do que nós’, teríamos de ter uma capacidade – que não
temos, com o aparato corporal e cognitivo de que dispomos – de nos deslocar e viajar através dos
cortes fractais que não nos pertencem – dos microcosmos aos macrocosmos. E olhar o mundo da
perspectiva de uma tampa de caneta, por exemplo. As nanotecnologias, assim como algumas das
gigatecnologias de zoom out em larga escala, têm vindo a proporcionar o acesso a perspectivas
humanamente inviáveis, funcionando um pouco como prolongamentos corporais. Talvez por isso, o
que se propõe com o AND de modo tão analógico e concreto – a fractalidade das coisas ou o
“multiverso”, ou seja, a co-participação simultânea, porém sempre diferenciada, de uma mesma
matéria em diferentes mundos, com diferentes escalas de grandeza, etc. – seja até ligeiramente
imaginável hoje. Ainda assim, conseguir ter um vislumbre experiencial do que seja ser tampa de
caneta envolverá sempre um esforço muito grande de sintonização. Eu nunca saberei, realmente, o
que é estar na posição de uma tampa de caneta. Quando aumentamos as proporções do tabuleiro,
não saímos da escala lupa nem da zona segura do estúdio, mas o fato de que entramos na mesma
posição em que estavam aqueles agentes-objetos, disponibiliza subitamente a possibilidade – que
podemos ainda assim não usar – de perceber e experienciar concretamente que nunca está
acontecendo só um jogo, que em cada situação estão sempre se (des)dobrando incontáveis camadas
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de acontecimento em simultâneo. Quando se passa do corpo dos objetos ao nosso corpo como
matéria, a rigor, não há mudança de escala – distinguir uma escala corpo de uma escala lupa seria
reiterar a cisão entre humanos e não-humanos que a própria escala lupa ajuda a visibilizar como
‘pista falsa’. A nossa experiência se altera sobretudo porque o nosso corpo não está apenas colado à
nossa perspectiva – no sentido muito imediato de que esta é sempre uma resultante contingente da
posição que ocupamos. Culturalmente, ele está incontornavelmente colado ao Eu, ao ego. É um
pouco mais do que fixar que o Eu nunca consegue ir a lugar nenhum sem carregar aquilo, o corpo,
com ele – porque, tanto nas voltagens mais iluministas quanto nas mais pós-humanistas dos desejos
humanos, andou-se inconformadamente às voltas com a tentativa de superar o corpo – ‘essa coisa
limitada e obsoleta!’ – para seguir avançando com o Eu. A nossa noção de pessoa mais pervasiva e
mais aglutinada ao modo operativo ‘é’ é aquela que sentencia sobretudo que o corpo é que nunca
consegue ir a lugar nenhum sem carregar aquilo, o Eu, com ele. Quando entramos no plano de com-
posição com a matéria corpo, há portanto um complicador que se acende instantaneamente: o Eu vai
a reboque e tudo o que acontece tende a ser organizado sob a lógica do ponto de vista. Embora se
torne prontamente disponível à nossa percepção, a dimensão fractal e perspectivista dos
acontecimentos tende a ser obscurecida pela tendência a interpretar, a ‘ler’ as situações (que
entretanto não são textos!), e a tomar tudo como pessoal. Isto tudo se manifesta mesmo no jogo com
os agentes-objetos, mas enquanto estamos lidando com os materiais ‘menores do que nós’ há a
possibilidade de gerar um Fora provisório, a partir do qual o funcionamento arraigado do Eu se
visibiliza mais facilmente para a própria pessoa. Quando se entra no jogo com o corpo, se agrava a
tendência a entrar sempre com o ponto de vista: o Eu não consegue sustentar a espera necessária ao
reparar, pois desespera. E é a zona do já-saber que serve de refúgio ao desespero, daí a tendência à
paralisia ou à ativação de padrões recorrentes, clichês pessoais, soluções do tipo ‘carta na manga’,
etc. O desafio – sempre o mesmo – se torna mais ostensivo: persistir no reconhecimento da
multiplicidade perspectivista dos acontecimentos, não transformar a perspectiva que emerge da
posição ocupada pelo corpo num ponto de vista. Conseguir incluir no seu próprio mapa-em-ato –
não como ideia ou imagem abstrata, mas como presença efetiva e consequente – a multidão de
perspectivas que co-participam num acontecimento. Conseguir sustentar o investimento
infinitesimal em escrutinar o que há na sua própria perspectiva – o que ela pode e o que não pode –
e, ao mesmo tempo, também o investimento disperso e alargado na clareza de que aquilo não é o
mundo inteiro (pois todos os outros, das suas posições, estão também mapeando em simultâneo, e
outros mundos não param de se desenhar a partir daquelas mil outras posições). Conseguir adotar
como critério de des-cisão isto: isto de ser feito de outros e dos outros também se fazerem a partir
de partículas minhas. Alargar a lupa até experimentar usar também o corpo dos ditos sujeitos no
mesmo plano que estávamos a usar o corpo dos ditos objetos é um excelente modo de exercitar esse
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desdobrar. E o plano laboratorial do estúdio permite fazê-lo ativando o funcionamento ficcional tão
crucial para realizar (no sentido de dar-se conta) o real (no sentido do que acontece). Mas, para
aquém e para além deste plano, está a vida quotidiana, a ‘grande outra’ da escala lupa, mesmo da
lupa mais alargada: aí, não apenas estamos ‘completamente dentro’, sem foras, sem bordas, sem
tréguas, mas estamos numa zona de sombra. Continuamos a ter tudo isto que se visibiliza com os
dispositivo da lupa –o perspectivismo, o multiverso, as dobras a acontecer de perto em perto, sem
saltos nem cortes – mas o ritmo dos eventos é intenso, o espaço é extenso, as co-implicações são
subtis e quase invisíveis. Entretanto, é aqui que toda esta prática de reparagem encontrará a sua
justeza de uso e poderá, a cada vez, vir a cumprir a sua pertinência ética.
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J o g o d a s
Perguntas: O Modo
Operativo AND e o
viver juntos sem
ideias
Fernanda Eugénio, João Fiadeiro (2013)
2014. Jogo das Perguntas: o Modo Operativo AND e o viver juntos sem ideias. In Passos, E.;
Kastrup, V.; Tedesco, S. (orgs). Pistas do Método da Cartografia, vol 2. Porto Alegre: Sulina Editora
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2013. (original ) Jogo das Perguntas: o Modo Operativo AND e o viver juntos sem ideias. In Fractal
Revista de Piscologia, v.25, n.2. Rio de Janeiro: UFF, Depto de Psicologia.
2013. O Jogo das Perguntas | The Question Game (Dossier AND Lab). In Revista A.Dnz, ano 1, no.
1, Santiago de Chile: Universidade de Chile, Facultad de Artes, Departamento de Danza.
RESUMO
O jogo das perguntas "como viver juntos?" e "como não ter uma ideia?" compõe o Modo Operativo
AND, sistema que emergiu da contaminação recíproca entre a Composição em Tempo Real e a
Etnografia como Performance Situada. No plano "como viver juntos?", o jogo tem o ritmo da
improvisação coletiva em tempo real - podendo ser jogado no interior de qualquer acontecimento
quotidiano ou ser praticado de modo laboratorial. No plano "como não ter uma ideia?", o jogo
assume o ritmo da investigação solitária e a temporalidade da depuração: é o jogo que jogamos ao
executar uma tarefa ou criar uma obra, em qualquer área de atuação.
ABSTRACT
The question game "how to live together?" and "how to not have an idea?" composes the Operative
Mode AND, a system that emerged from the reciprocal contamination between Real Time
Composition and Ethnography as Situated Performance. On the "how to live together?" plan, the
game has the rhythm of real time collective improvisation - it can be played within any everyday
event or in laboratory practice. On the "how not to have an idea?" plan, the game takes the rhythm
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of a solitary research and the temporality of depuration: this is the game we play every time we
work on the execution of a task or on the creation of an artcraft in any field of activity.
Uma: a inquietação acerca de como viver juntos, considerando que o aparato de que dispomos para
isso foi todo articulado em torno da obsessão pelo separado, pelo controlo, pela esquadrinhamento,
pelo saber. A inquietação acerca de como não ter uma ideia, ou seja, como prescindir desta obsessão
pelo saber e pela decisão controlada, controladora ou controlável, disponibilizando-nos para tomar
uma "des-cisão": entre humanos e não-humanos, sujeitos e objetos, eu e o entorno, pessoa e
acontecimento, teoria e prática, pensamento e ação, agência e passividade, ética e estética e tantos
dos outros opostos-complementares replicantes que sustentam a nossa visão de mundo.
Tanto o AND_Lab como o M.O_AND funcionam de modo fractal em torno das duas perguntas-
chave do nosso pensamento - "como viver juntos?" e "como não ter uma ideia?" - tornadas num
jogo em espiral. Ou seja, dentro (ou fora) de cada uma delas reencontramos mais duas perguntas e,
dentro (ou fora) destas, outras duas que, por sua vez, concretizam-se não por serem respondidas,
mas por serem situadas. Esta operação dá-se, assim, por (des)dobramento: perante cada situação, a
fim de navegarmos pelas perguntas "como", perguntamos "o quê" e "onde-quando". O quê, no que
há? Como, com este quê? Onde-quando, com este como?
Como consequência, chegamos à pergunta-síntese: como podemos viver "sem" ideia e "com" o que
há? Esta operação desativa aquela a que estamos mais acostumados: viver "com" ideias e "sem" o
que há, ou seja, em relação privilegiada com o que acreditamos, achamos ou sabemos e não com as
pessoas, lugares e circunstâncias concretas que nos interpelam.
Por meio do recurso às formas interrogativas da linguagem "como", "o quê", "onde" e "quando" - e
desviando astuciosamente daquelas que mais frequentamos por hábito ("por quê" e "quem") -
ativamos um modo de reencontrar, no terreno daquilo que concretamente se apresenta, as perguntas
que nos importam, encarando-as com a matéria que dispomos e que a situação nos oferece, entrando
em posição com a posição do que nos envolve. Entrando em "com-posição".
Todo este trabalho, por ser situado e relacional, nunca chega a um termo, a uma resposta ou
verdade. É mais um funcionamento, um meio para nos tornarmos "advérbio de modo" e
escaparmos, a cada vez, de sermos "sujeitos de verbo". Um caminho para a colaboração baseada na
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confiança, para a conjuração da competição e das certezas. Concretamente, o que desenvolvemos
com o M.O_AND foi um "jogo de perguntas", que pode ser jogado desde a "escala maquete" do
laboratório à "escala humana" das relações quotidianas ou da criação de artefactos. Um jogo em que
o obstáculo é percebido enquanto "condição" e não enquanto "condicionante". Um jogo cujas regras
emergem enquanto se joga, sustentadas na "consistência" (e não na "coerência") do que se vive e do
que se partilha. Um jogo que só acontece porque deixamos de nos ocupar em "saber por quê" e nos
concentramos em "saborear o quê", desdobrando "a que sabe" o acontecimento.
Despertar este outro modo de operar para lidar tanto com o que acontece à nossa volta enquanto
matéria daquilo que nos afecta e nos põe a trabalhar, envolve abdicar da lógica do "era uma vez" e
de uma relação linear com o tempo, dispondo-nos a começar (e acabar) a história pelo "meio".
Tomar o meio como lugar de trabalho não é habitual e, parecendo simples e mesmo óbvio - já que
estamos sempre "a meio" ou "em meio" de qualquer coisa e viver é sempre gerúndio - tendemos
antes a começar pelo "fim". Os modos operativos que mais praticamos, por diferentes que sejam,
raramente partem do "fator de situação" do meio: articulam-se todos pelo fim e variam tão somente
no modo como o entendem. Se o situam no futuro, colocam-nos para começar pelo "fim-finalidade":
objectivo, meta ou expectativa. Se o situam no passado, colocam-nos para começar pelo "fim-
causalidade": causa, origem, motivo, razão, tradição ou, aqui também, expectativa. Essa simples
escolha em se começar pelo fim encerra esses modos operativos num formato-lei - a lei da
expectativa, que nos põe à partida na posição de "narrar o que foi, o que é e o que será" - apoiados
por algum gênero de saber ou pressuposto. Aliás, este é um outro modo de falar do mesmo
problema: os jogos que estamos habituados a jogar são aqueles em que, sendo as regras dadas de
antemão, as posições também são postas mesmo antes de lá estarem: na prática, não são postas, mas
"pressupostas", acabando, assim, por serem também "impostas".
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Em jogos desse tipo, há pouco ou nenhum espaço para aquilo que não seja esperado e sabido. O
imprevisível, se e quando aparece, não consegue ativar senão o mesmo jogo do saber, e neste jogo
não consegue ocupar lugar positivo: aparece quanto muito no negativo da "falta". "Falta de
sentido", que nos remete imediatamente, não para lidar com o concreto do que o imprevisível traz
consigo, mas com o abstracto do que supomos que ele nos tira, e que procuramos sem demora
repor: o tal fim, o porquê nas suas infinitas gradações de finalidade ou causalidade. Nesse jogo do
saber, portanto, não há espaço para o não saber: ou se sabe (o porquê) ou se procura saber (por
quê?). Ou seja, resolver e responder. O jogo do saber é também o jogo da resposta: ou já a temos, e
o imprevisível nem se nota, ou de súbito não a temos, pois este imprevisível intruso a rouba. E,
nesse caso, há sempre algo que julgamos saber, há sempre uma resposta que ainda levamos
escondida na manga: é preciso a todo o custo explicar ou interpretar, recuperar o porquê e o fio da
narrativa-expectativa, devolver as coisas aos seus "devidos" e domesticados lugares.
Dizíamos que para ativar o M.O_AND é preciso começar pelo meio. Mas, em quê consiste esse
trabalho, afinal? Consiste, tão simplesmente (e por isso, complexamente), em ocuparmo-nos não
dos porquês, mas do "quê" que há no meio. Começar pelo meio é começar pelo imprevisível, ou
melhor: começar justo aí, no imprevisível, nesse lugar-situação envolvente em que acidente e
acidentado irrompem e se interrompem mutuamente, funcionando como ocasião recíproca para
encontrar um novo jogo, um outro jogo. Para substituir o jogo do saber e o jogo das respostas pelo
"jogo do sabor" e pelo "jogo das perguntas".
A ativação desse outro modo operativo acontece exatamente aí, justo nesse meio: o meio ambiente
do encontro com o inesperado, que se acena como "janela de oportunidade" para nos desviarmos da
expectativa. Nesse jogo já não é a situação em redor que ocupa o lugar daquilo que se espera, mas
nós próprios é que entramos em "modo espera". O primeiro (e talvez a único) gesto do M.O_AND é
mesmo este: parar. Ou, melhor dizendo, "re-parar": voltar a parar lá onde o acidente irrompe e nos
interrompe.
Ao sermos interpelados pelo inesperado, em qualquer escala - seja a dos grandes acidentes ou a dos
pequenos imprevistos - "pôr em marcha esta paragem" consiste, portanto, em nos dispormos a
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suspender a reação padrão de (já) saber ou de voltar a saber e tomar - este quê ainda sem nome -
sem passado para lhe dar causa ou futuro para lhe dar meta - como meio.
Logo que "re-paramos" o meio ganha relevo. Isso porque "re-parar" é também, e quase de imediato,
"reparar" no que há à volta, nos fatores de situação cujas inter-relações emergem enquanto teias de
um imenso e envolvente mapa vivo: diferentemente das tramas lineares das narrativas-expectativa
(que operam por desenvolvimento e não por envolvimento), essas teias não fazem história mas sim
geografia: operam por (des)dobramento. Estamos em pleno meio: somos o que temos e o que nos
têm, nesta implicação recíproca que nos torna, junto com o acidente, simultaneamente espaço,
tempo, matéria e relação. Aqui, nesse terreno, o saber de nada serve - a não ser na medida em que
também tem, como tudo o que lá está, matéria passível de ser trabalhada. Saber não permite reparar,
mas apenas "olhar" (operação de constatação do porquê) ou "ver" (a operação de interpretação do
porquê). Mas, quando aguentamos "ficar no meio", quando aguentamos não saber, eis que o reparar
se ativa: já não há uma procura por respostas, mas uma navegação pelas perguntas que a teia de
relações ali presentes nos oferece.
Reparar e saborear consistem numa experiência imediatamente junto ao "quê" que lá está. Enquanto
a operação do olhar/ver/saber, produz separação e cisão entre o sujeito (do conhecimento-narrativa)
e o objeto (que é conhecido-narrado), reparar/saborear só se "realiza" (no duplo aspecto de tomar
lugar e dar-se conta do lugar) como ato de aproximação, contacto, relação: como ato de des-cisão. É
no "juntos" que se re-para e repara.
E para que o reparar e o saborear tenham lugar enquanto "modo de fazer" e enquanto "como", é
preciso, antes de mais, não responder a este "como". Pois ao perguntar "como" - Como viver
juntos? Como não ter uma ideia? - corremos sempre o (sério) risco de responder e assim nos vermos
reenviados para o jogo do saber. Daí a tática: a cada pergunta, uma re-pergunta.
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No âmbito do M.O_AND, se a nossa primeira e única pergunta é o "como", o nosso trabalho é
(des)dobrar esta pergunta em outras perguntas que se interrogam, e se voltam a perguntar.
O jogo começa quando nos deixamos apanhar pelo imprevisível. Se quisermos ser rigorosos em
tomar a vida na sua condição de "constante inconstância" acidentada, o jogo poderia, então,
virtualmente, começar a cada instante e em qualquer momento. Mas o acidente só se cumpre como
tal na medida em que é "usado"; por isso, para que o jogo comece é preciso fazer do imprevisível
uma "zona de atenção", um lugar de encontro em potência: não basta que o acidente nos interrompa,
é preciso que reparemos nessa interrupção.
O laboratório permite-nos acionar aquilo a que chamamos "escala maquete", enquanto o trabalho de
campo dá-nos acesso ao jogo à "escala humana". Essas "escalas" correspondem a diferentes cortes
fractais, que, entretanto, operam do mesmo modo no que se refere ao seu funcionamento. O "modo"
como nos implicamos e o ativar do trabalho de re-parar e reparar ativa, ao mesmo tempo, seja em
que escala for, um viver da vida - negociação permanente com a imprevisibilidade - e um
laboratório de investigação do viver juntos.
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A diferença entre a maquete e o trabalho em campo, a haver, estará no modo como a "zona de
atenção" - o intervalo entre a manifestação e a percepção do evento imprevisto que funciona como
ponto de partida para o jogo das perguntas - irrompe e se instala. Enquanto na escala humana dos
acontecimentos quotidianos o "enquadrar" do evento pela nossa percepção acontece a meio e no
meio de qualquer coisa, na escala maquete do laboratório é necessário esperar pela primeira tomada
de posição de um dos "jogadores" para que o acidente irrompa para os demais. Essa Primeira
Posição inaugura a com-posição colectiva, por meio do desdobrar de uma "regulação imanente" e
comum. Como em qualquer processo de improvisação, uma vez instalada a Primeira Posição, na
vida ou no estúdio, ninguém controla de antemão o que cada "jogador/agente" fará, nem o que será
feito do que cada um faz. Mas, ao contrário de uma improvisação tradicional, cujo código passa em
grande medida pela liberdade individual arbitrária - ao ponto de raras vezes se chegar a jogar "com"
alguém, sendo o resultado mais comum a soma de um conjunto de propostas contíguas, mas não
coexistentes - cada posição, nesse caso, é tomada em relação com as "propriedades-possibilidades"
da posição precedente (após a primeira posição) e da relação precedente (após a segunda posição).
Esse procedimento não é mais do que uma tática para "nos protegermos de nós próprios". Só assim
a partilha deixa de ter um sentido-significado, para passar a ter um sentido-direção.
Quando jogamos o "jogo do saber", o "comum" é pensado enquanto código pré-existente (e, de
preferência, consensual): para se jogar precisamos saber um conjunto de regras e, em seguida,
reproduzi-las. Quando nos dispomos a jogar o "jogo do sabor", o primeiro trabalho é "encontrar o
jogo" (ou a direção comum) a partir do que temos e de onde estamos: um plano de convivência para
as diferenças que trazemos para o encontro, feito dos encaixes possíveis entre elas (um plano,
portanto, "dissensual"). Isso perfaz todo um primeiro trabalho em torno do viver juntos, por meio de
uma entrada em com-posição negociada situacional com o colectivo.
Como nesse jogo não há regras pressupostas, esta negociação só pode ser feita com o que há (e não
com o que gostaríamos que houvesse). Assim, desde logo precisamos estar atentos à temporalidade
da própria situação, pois esta funciona, simultaneamente, enquanto componente e enquanto
condição de tudo o que há. Ou seja, todo esse trabalho de com-posição não se pode impor como
"pausa artificial", tendo, ao contrário, de encontrar tempo "dentro do próprio tempo" para se
realizar. Viver juntos dá-se (ou não se dá) em "tempo real": e este não consiste numa linearidade
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objectiva universal, mas no tempo realizado pela emergência própria do evento, na duração da
"autonomia de voo" de cada situação.
É dentro da zona de autonomia entre as posições - o intervalo temporal dentro do qual uma posição
autônoma repete-se a si própria sem diferir - que podemos re-parar e reparar. É esse o tempo real
que temos para aceitar o acidente, investigar os encaixes possíveis com aquilo que temos a oferecer
e nos prontificar para retribuir. Todo um ciclo de "dar-receber-retribuir" pode caber nesse intervalo
entre o sermos convocados a agir e a ação em si.
Para isso é preciso deixar de repartir o presente entre elementos subjetivos e objetivos: entre aquilo
que o "eu" pensa/sente/quer/imagina e a suposta "objetividade" dos "objetos". Não se trata de listar
as "propriedades" do entorno, nem as "possibilidades" de "pontos de vista". Antes, trata-se de fazer
um inventário das "propriedades-possibilidades" da relação, encaixes em potência entre os relevos e
tendências contingentes ali manifestos, que fazem da situação um campo de forças. Um inventário
das affordances que emergem do encontro com a Primeira Posição e, dentre elas, daquelas que
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carreguem como tendência a "intensidade extensiva" e a "extensividade intensiva" (nem só
extensividade, nem só intensidade). E reparar nas affordances não é uma reflexão separada à tomada
de ação, é já uma "pensação", um colocar-se junto e "com", um "holograma" do corpo-a-corpo com
o entorno, um fazer que difere de sua execução apenas em densidade, não em natureza.
Esta é a paragem-movimento que se desdobra entre a Primeira e aquela que será, ao mesmo tempo,
a Segunda Posição e a Primeira Relação do jogo. Somente depois de tomada a Segunda Posição é
que, retroactivamente, a Primeira Posição ganha corpo e é (contra-)efectuada, na medida em que, de
todos os mundos possíveis que o encontro-acidente carrega consigo, apenas um será ativado.
Temos então uma primeira relação entre duas posições; uma primeira com-posição. Dela, mais uma
vez, emergem novas affordances, um pouco mais complexas de serem reparadas, porque já não se
trata de reparar no que uma posição autônoma oferece, mas na relação entre posições autônomas,
naquilo que sustentam em co-dependência, na ambiência entre elas. O nosso trabalho, aqui, é o de
encontrar uma brecha para estabelecer uma relação com esta relação: a Terceira Posição será, assim,
simultaneamente a Segunda Relação. "Relação de relações", o que equivale dizer: entrada em plano
comum.
Se a Segunda Posição funciona como "sugestão" de um possível plano comum, a Terceira Posição
tem a responsabilidade de "realizá-lo" - no duplo sentido de "dar-se conta" e "dar-lhe
corpo". Assim, o encontrar do jogo - ou o ser encontrado pelo jogo - envolve um mínimo de três
posições. E isso porque é também este o mínimo para que emerjam duas relações: uma relação
(entre a Primeira e Segunda Posições) e uma relação com esta relação (entre a Terceira Posição e a
Primeira Relação).
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Evitar o desperdício é parte crucial da "ética da suficiência" que atravessa todo esse jogo. Fazer com
o que temos e "menorizar" a pressuposição, o controle e a manipulação, substituindo-os por um
posicionamento justo e pelo manuseamento atento, bem como por um modo de estar no qual os
jogadores são antes de mais gamekeepers (e não autores) do acontecimento. Saem do quadro desse
jogo as orientações baseadas na "competência" e na "eficiência" - modos de estar dos jogos
competitivos - uma vez que aqui só se pode ganhar o que se aceita perder e só se ganha quando
todos ganham.
Se são suficientes três posições e duas relações para encontrar um jogo/plano comum, o nosso
trabalho é criar as condições para que estas emerjam nesse intervalo mínimo, de modo a que
possamos, o quanto antes, dar início ao jogo. Isto é: a viver juntos. E viver juntos será, no quadro da
ética e dos procedimentos propostos pelo M.O_AND, tão somente "adiar o fim". Demorarmo-nos a
encontrar o jogo seria adiar não o fim, mas o início - e isto é justamente o que costumamos
experimentar nos "jogos do saber", que raramente chegam a saborear a experiência do "juntos".
Neste trabalho de "precisão" (nem menos, nem mais) e "prontidão" (nem antes, nem depois), a
nossa atenção concentra-se em não nos deixarmos apanhar pelo saber, que poderia converter o
plano comum em plano consensual e a precisão do acontecimento em "necessidade", estancando o
espiralar do jogo das perguntas num andar em círculos à volta da resposta. Este cuidado, crucial
para a preservação da dimensão de regulação imanente do jogo, evita que as condições iniciais do
encontro, que nos serviram para chegar a um sentido-direção partilhado, sejam capturadas pela
máquina da explicação/interpretação e do sentido-significado, enrijecendo-se sob a forma de
condicionantes. Através dele podemos nos proteger de fabricar coerência em relação ao que se
passa, uma coerência que carregaria consigo, via expectativa, a fixação dos passos seguintes.
É isso "adiar o fim": adensar a consistência desse "jogar do jogo" sem que ele descambe em
coerência. E, por isso mesmo, para se adiar o fim tem que se começar por "aceitar o fim". É a nossa
capacidade e clareza em acolher um plano comum na sua condição de "finito" que nos protege que
ele sobrevenha em lei. Pois começar a relação com a promessa ou a pretensão de um "para sempre"
imposto por decreto teria como consequência restituir os velhos papéis marcados, condensar
expectativas e autorizar toda a panóplia de acusações e cobranças com base num "deve ser".
Bloqueamos a nossa capacidade de seguir reparando, já que restringimos a com-posição ao "limite-
contorno" da lei: ao mesmo tempo que proclamamos um "infinito", o convertemos em "limitado".
Por fim, as quantidades de diferença em relação tornam-se qualidades demarcadas, e as tomadas de
posição deixam de ter margem de manobra para repetir diferindo; está instalado o círculo
do looping: a paragem enquanto desistência e resignação.
Adiar o fim é, por isso, um trabalho com o ilimitado, com o alargar em espiral dos "limites-tensão"
da direção comum, realizando o seu prolongamento na medida da sua "meta-estabilidade". É,
portanto, um trabalho com o "finito": dentro do ciclo de vida ou do espaço-tempo de autonomia da
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situação. A clareza da finitude é o que permite o envolvimento responsável no manuseamento
daquilo que se tem e o compromisso em comparecer de modo atempado e justo. Essa clareza é
também o instrumento que possibilita a prática concreta da suficiência, trabalhando para que o fim
não se consuma na vertigem do descarte e do desperdício, mas se alargue em duração.
Mas, para adiar o fim, não basta aceitá-lo. O "jogar do jogo" na duração é feito também e em
simultâneo a um outro movimento imóvel: o de se "antecipar o fim". Este trabalho antecipatório
nada tem que ver com precipitação, antes o contrário. Consiste no alargamento e na distribuição da
atenção entre aquilo que se realiza - a complexidade da duração e a densificação da relação - e o
conjunto de possíveis e impossíveis, a cada vez que não para de se atualizar. "Antecipar o fim"
envolve um empenho para que a "concentração" no gamekeeping do jogo (o trabalho a ser feito no
interior de cada posição) se faça acompanhar pelo "espalhamento" da clareza (o trabalho a ser feito
no exterior de cada posição), de modo a que sejamos capazes de acolher e dar-nos conta dos "sinais
virtuais": as quantidades de diferença ainda não efectuadas no plano comum, que desencontram
dele tão somente em densidade, mas que não cessam de atravessá-lo. Interceptar os sinais, admiti-
los mas sem reagir a eles de imediato: isto é antecipar o fim. Ou seja, e em última análise, antecipar
o fim não é mais do que "gerir diferenças" em vez de "gerar diferenças".
É por meio da ativação dessa atenção distribuída - awareness mais do que consciência - que
podemos interceptar a diferença ainda em estado imperceptível, antes mesmo que ela tome "corpo
de consequência". Essa operação permite-nos recolher em constante inventário as diferenças que
emergem da repetição enquanto jogamos. Habilita-nos, também, a manusear essa matéria de
diferenças emergentes, fazendo delas matéria e combustível para seguirmos juntos adiando o fim.
Pois, se para seguirmos juntos precisamos preservar o plano comum, para preservar o plano comum
precisamos, de quando em quando, mudar. Mudar de centro a cada jogada, mas também "mudar de
plano" quando for "preciso" - no sentido de justo e não de necessário.
Sim, "adiar o fim" faz-se "aceitando o fim": não apenas admitindo o plano comum como finito mal
ele se estabelece, mas também acolhendo o fim quando ele sobrevêm, por esgotamento ou
saturação. Os sinais recolhidos no trabalho de antecipação indicam-nos, se estivermos atentos, a
justeza da hora de parar. Se pudermos acolhê-los e fazer do próprio "ponto de situação" o critério da
situação, estaremos prontos para fazer dessa hora de parar, mais uma vez, um "re-parar". Para assim
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fazer do fim um novo "meio", encontrar um novo início de jogo e prolongar o desejo (e não o
prazer) de se viver juntos.
O jogo da pergunta "como não ter uma ideia?" pode ser encontrado em diferentes recortes fractais
no âmbito do M.O_AND. Por um lado, é "interior" ao jogo "como viver juntos?", acontecendo em
tempo real no intervalo entre cada tomada de posição - é, portanto, um "jogo que se joga durante o
jogo", que se desenrola em cada jogador. Por outro lado, é "anterior" ao jogo (e "posterior", pois em
espiral o fim é também início), podendo aí ser descrito e vivido de diversas maneiras: amplamente
falando, "não ter uma ideia" funciona como condição para se viver juntos, de modo que é este o
jogo que precisamos jogar para, a cada vez, (re)aprender a oferecer aquilo que temos em relação
com aquilo por que somos tidos. E esse trabalho tanto pode ser o artesanato que nos permite propor
uma Primeira Posição para o jogo colectivo - na vida-laboratório ou no laboratório-vida - como
pode dar lugar a um outro modo de experimentar o ato criativo individual.
O modo mais corrente pelo qual se entende a criação - seja no modelo bíblico da criação "a partir do
zero", seja na concepção romântica da criação como rompante autoral - parte da ideia. Ou, melhor
dizendo: restringe-se à ideia. Esta é uma das muitas vias pelas quais chegamos ao conjunto das
"cisões" modernas, assim como à manutenção, como ponto cego dos nossos esquemas de vida, de
alguma "transcendência" a afiançar os nossos atos. Que a execução siga a ideia, permanecendo
invariavelmente aquém dela. E que a ideia surja "do nada" - para Deus ou para os deuses-
indivíduos, e, especialmente, entre estes, para os deuses-autores. Com esse gênero de pressuposição,
mesmo antes de fazer seja o que for, já começamos a nossa relação com o mundo em dívida para
com a transcendência da ideia-modelo. E, nesse caso, o jogo que se aciona é de soma ou
diminuição: de competição, não de cooperação, seja com o outro ou com o entorno, ambos, em
algum grau, objetificados.
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Por estarmos todos mais ou menos imersos nesse esquema, o jogo do "como não ter uma ideia?"
envolve o mais complexo dos desafios: sermos capazes de jogar com a matéria daquilo a que
chamamos "eu". De reabilitar para o "uso" aquilo que está antes desenhado para o "abuso". A
complexidade dessa tarefa está no facto de que mesmo antes de começar a jogar, precisamos
desfragmentar ou fractalizar este "eu" e re-encontrar enquanto "forças" aquilo que nos move
enquanto "seres" - aquilo que o "esquema da ideia" já tratou de formatar em clichê: os nossos
afectos e desejos. Se, para não se ter uma ideia é preciso multiplicar o "eu" dividindo-o (ou dividi-
lo, multiplicando-o), fica claro que viver juntos funciona, também e reciprocamente, como condição
para não se ter uma ideia. Trata-se de uma só operação, portanto, a das duas perguntas - que,
entretanto, a escala na qual as jogamos (a do "eu" ou a do "grupo") não para de reformular.
Também nesse jogo começamos pelo "meio", por aquilo que nos cerca, nos atravessa e nos faz: a
matéria dos nossos afectos. O "Isso" inominável que, contudo, assume forma de "Isto" a cada vez
que é partilhado. E não poderia ser de outra maneira, pois a criação de um artefacto é um ato de
"oferecer" - e, uma vez que "só se pode dar o que se tem", os nossos afectos são tudo o que temos (e
tudo o que nos têm).
Entretanto, e antes que nos apressemos a fazer dos afectos que temos uma ideia, um projeto, uma
obra a ser oferecida, convém percebermos que a relação com essa matéria dos afectos passa
primeiro pela capacidade que temos de "receber" - e que a oferta da "obra" é, assim, mais um
"retribuir" do que um "dar". Pois são encontros, os afectos: são, ao mesmo tempo, aquilo que temos
de mais próprio e de mais alheio. E não os escolhemos, os afectos: somos encontrados por eles. De
modo que, também eles são acidentes que nos interrompem de quando em vez, sob a forma de
inquietação - uma inquietação que detona aquilo a que chamamos de processo criativo.
O problema é que, mal as inquietações emergem, a nossa tendência é apartarmo-nos delas - e não
fazer "com" elas. Mal emergem, percebemo-las e assimilamo-las como ideias. Dito de outro modo,
mal nos damos a oportunidade de conviver com o "Isso" nesta sua condição de inefável: muitas
vezes, já o experimentamos via os canais dos nossos clichês, já o experimentamos como "Isto"
decifrado. Não aguentamos tempo suficiente para inibir o hábito de decifrar, dizer, diagnosticar,
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interpretar, saber - e, assim, desativamos a hipótese de serem elas, as inquietações, que nos afectam,
a nos dizerem "a que sabem". Tornadas inspiração, idealização ou modelo, amparam a nossa
"intenção". E, de posse já não do afecto mas dessa "intenção", o nosso processo criativo toma o
trilho da representação: obra "sobre" a ideia "implícita" e não artefacto "com" o afecto "explícito".
Pior ainda: de posse dessa "intenção", já não podemos reparar na "inclinação" do terreno-afecto, no
sentido-direção para o qual ele tende e nos convida. Já estamos, tão depressa, mergulhados na
decifração do sentido-significado pessoal que aquela inquietação nos desperta. Já estamos, tão
depressa, na viagem da "ilusão biográfica", trabalhando para produzir um "efeito" a partir desse
afecto que tão logo tomamos como "causa".
O problema é que os critérios pessoais da intenção só por uma feliz coincidência permitem que a
"obra" funcione como ocasião de partilha, posto que a inscrevem na constelação dos códigos e
significados individuais de quem a faz. De modo que, como Primeira Posição, emerge um
fragmento "fechado" e "completo" em si mesmo ou, quando muito, "aberto" porque "incompleto".
Em nenhum dos casos estes reúnem as condições para um posicionamento autônomo, capaz de
convidar sem impor, existir sem exigir: as condições que só uma posição ao mesmo tempo "aberta"
e "completa" poderiam proporcionar de modo justo. A criação que tem como único amparo e
legitimação a "intencionalidade do autor" tem pouca chance de operar, desse modo, como franca e
disponível zona de autonomia, ocasião para um encontro possível, ocasião para a co-dependência
recíproca.
Assim, por mais "bem-intencionados" que estejamos (ou justamente por estarmos), aquilo que
oferecemos tende a tomar a forma de um "fragmento independente", que dispensa o outro ou o
interpela como palavra de ordem. Ao outro resta tão somente a hipótese de se posicionar diante
dessa "oferta sem brechas" ou dessa "brecha sem oferta", em termos de "gosto" ou "não gosto". E,
como costumamos dizer, "gostos não se discutem", de modo que, tendo o gosto como base, há
poucas hipóteses de relação.
O afecto não é um gosto: enquanto este se inscreve na lógica do prazer e da satisfação, aquele
desdobra-se na lógica do desejo e da inquietação. O gosto organiza-se em resposta, o afecto
desorganiza-nos em pergunta. O gosto é pessoal; o afecto é transversal e, desse modo, impessoal.
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Mas ,como, então, abrir uma brecha no "esquema da ideia" que nos permita trabalhar com a matéria
que nos afecta, e não sobre ela? Como conjurar a ideia, esta resposta que tão rapidamente nos
sobrevêm e nos põe a repetir sem diferença, com todo o conservadorismo da nossa "liberdade" de
indivíduo-autor, apartando-nos de sermos muitos e de estar com muitos?
"Isso", quando emerge, é nuvem: agregado de relações de relações que nos interpela à superfície.
De tão explícito, é "ób-vio", afastado e raptado da visão: com ele o mergulho da explicação/
interpretação nada pode. É na superfície, portanto, que precisamos conseguir permanecer para fazer
"com" ele. Enquanto ób-vio emergente, "Isso" é acidente, obstáculo, "relevo" que nos faz parar.
A primeira pergunta que nos ocorre, quando "Isso" nos acontece: "o que é Isto?" Eis a pergunta da
ideia, pois quando ela nos sobrevêm a nossa tendência é saltarmos de imediato para o plano da
resposta. Daí que, no âmbito do M.O_AND, a proposta é simples, embora de difícil execução:
primeiro, há de substituir este "o que é", que nos levaria a ir procurar as respostas por trás ou por
baixo do que lá está - num suposto significado implícito a ser explicado - por um outro gênero de
interrogação, que nos permita tactear os relevos que se "apresentam", em vez de mergulhar nas
suposições daquilo que eles poderiam "representar". Em vez do ser, o haver: "o que há n'Isso, o que
Isso tem, o que, n'Isso, inquieta?"
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Em vez de mergulhar, navegar. Re-perguntar, reformular a pergunta, mas seguir não respondendo:
eis a brecha para um trabalho que nos permite continuar no "explícito", que navegue na superfície
do ób-vio sem evidenciá-lo. Trabalho de mapas, trabalho etnográfico, trabalho de reparagem. O
jogo do "como não ter uma ideia?" opera numa sequência, mais uma vez espiralada, de mapa-
navegação-mapa-navegação.
E como é que isso funciona? Se o nosso primeiro mapa a desenhar é um Mapa do O Quê, esta é
exatamente a pergunta a não responder. Fazer o Mapa do O Quê consiste em "circunscrevê-lo"
perguntando "como" e "onde-quando": "Como Isso me encontrou? Onde-quando Isso me
encontrou?"
Explorar essas duas perguntas não envolve um trabalho explicativo nem interpretativo, mas
descritivo. Envolve uma plena disponibilidade para "receber" o evento, para investigar as condições
nas quais Isso "se deu", se ofereceu a nós. Trabalho que se situa no próprio evento como meio,
território de relevos a serem re-percorridos de modo a serem circunscritos. O Mapa do O Quê tem
sobretudo a responsabilidade de preservar o Isso na sua condição de "nuvem-agregado", de
"envelope", "dobra", "origami". Afinal, Isso só nos convoca porque é mesmo esta forma-força
autônoma, aberta e completa como um origami: aberta, na medida em que se sustenta nas suas
próprias dobras, sem cola; completa, na medida em se nos apresenta numa forma concreta, a dessas
dobras. Mapear o que essa dobradura traz consigo é trabalho que se faz nas bordas: circunscrição de
uma instância ou campo de forças e não a inscrição de uma substância ou campo de significado.
Deste modo, saímos do Mapa do O Quê não com algo a saber, mas com algo a fazer. Voltamos,
assim, a estar prontos para a navegação.
Mas como navegar no Mapa do O Quê? Como efetuar a tarefa? Como operacionalizar o Isso em
artefacto? A emergência mesma dessa pergunta funciona como sinal de que demos início a um novo
ciclo da espiral e estamos já em pleno trabalho topográfico de mapeamento do Como.
Do mesmo modo que o fizemos com o primeiro mapa, neste segundo mapa - o Mapa do Como - a
tática será também desviarmo-nos da resposta. Uma vez clarificada a operação que nos transporta
para uma tarefa de criação, temos de ter o cuidado de não nos anteciparmos em decidir como a
executaremos, ou logo nos veremos devolvidos ao modo operativo da manipulação e separados da
oportunidade de manusear. Portanto, mal a questão do "como executar" emerge, o nosso
compromisso é distraí-la e distrairmo-nos outra vez do "eu". À pergunta "como", voltar a perguntar
"o quê" e "onde-quando": "O que tenho para trabalhar? Com o que posso efetuar esta tarefa? Onde
situá-la, em qual interface? Quando executá-la, qual a sua temporalidade?"
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Essas perguntas dirigem-nos para um lidar com a concretude mesma do artesanato enquanto este se
efetua. Mas só podemos perguntá-las honestamente, disponíveis, se não soubermos de antemão um
como-fazer que já carregue consigo as suas premissas em termos de técnicas e modo, por um lado, e
em termos de materialidades, "suportes" e espaços-tempos específicos, por outro. Ou seja, fazer o
Mapa do Como acontece somente na medida em que somos capazes de interrogar o que "convém" à
própria operação a fim de executá-la.
Viver e habitar com franqueza o Mapa do Como só é possível se, no terreno e com ele, nos
dispusermos a descobrir, a cada vez, os materiais a serem acionados (palavra, corpo, imagem etc),
onde os vamos situar (num teatro, numa galeria, numa interface audiovisual, fotográfica, presencial
etc) e qual sua temporalidade (a do instante, a da duração, qual duração etc)
Chegando aqui, não há muito mais a dizer. Estamos em plena navegação sem ideias, no corpo-a-
corpo da mistura com o que temos e com o que nos têm. Eis o nosso terceiro mapa, fator de
situação: o Mapa do Quando-Onde que consiste na própria tomada de posição do artefacto como
espaço-tempo no qual "co-incidem" e se impessoalizam os nossos afectos e tudo o que ainda lhes é
alheio. Eis uma Terceira Posição que é também Primeira, um retribuir que é também um dar, a
convidar o outro e o entorno a receber e a inaugurar, uma e outra vez, o jogo do viver juntos.
REFERÊNCIAS CITADAS
Este texto, assim como o M.O_AND, foi desenhado e efectuado em com-posição com as posições
que se seguem, bem como com incontáveis outras que não têm "forma de livro". Optamos por não
apontar entradas de referências bibliográficas no texto, uma vez que este gênero de remissões não
dá conta do modo como esses outros pensamentos aparecem no nosso: não como "fragmentos de
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ideias" capazes de ilustrar ou legitimar aquilo que defendemos, mas como companheiros de uma
longa conversa, daquelas que já nem permitem identificar "quem disse o quê".
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