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ETIOLOGIA DOS TRANSTORNOS RELACIONADOS AO USO DE SUBSTANCIAS PSICOATIVAS PONTOS-CHAVE Luciane Ogata Perrenoud Marcelo Ribeiro YO consume de substan pio Y 0s modelos etcligicos da depen mmenutengao do ure de subetancias psicoetvas Y._No existe umm modelo eol6gio que responda a todas as questoes da dependéncia de substincis pscostvas VY, Atcha do tretamanto dependerd do contextoe des caracteristcas de cada indviduo. remonta ao principio da humanidade. cia 880 teorias com embasamento cientifico que buscam explicar os motivos Os modelos etiolégicos so teorias com embasamen- to cientifico que objetivam explicar, guiar e orientar as observacdes dos autores acerca do mundo real. A fina- lidade dessas teorias é explicar a ordem e 0 motivo da ‘ocorréncia de determinados fenémenos e oferecer uma base para que essas observagdes possam ser constatadas por outros pesquisadores, possibilitando, assim, a predi- ao dos fenémenos para fundamentar intervencdes. Os modelos etiolégicos sobre dependéncia de substancias psicoativas tentam, ainda, explicar os moti- vos do primeiro episédio de consumo, da permanéncia do uso ocasional, da manutengio do uso, do surgimento de padrées de uso nocivo e, por fim, as razées para 0 surgimento da dependéncia. ANTECEDENTES HISTORICOS ‘Oconceito de dependéncia quimica é extremamen te recente, se comparado ao consumo de substancias psicoativas pela humanidade, que compreende varios mnilénios.! Contudo, problemas relacionados a0 con: sumo sempre existiram. Uma das primeiras descric6es acerca do uso indevido de dlcool foi feita por Aristételes no século 4 a.C. Em seu relato, ele afirmou que a virtu- de em beber esté no equilibrio entre a sobriedade e exagero, denominando como “vicio” 0 uso extremado da substincia.? Outros relatos e observagées de padrées alterados no consumo de élcool e seus efeitos foram igualmente referidos em trechos biblicos.> Aspectos como tolerancia & substancia, ou seja, aumento progres- sivo do consumo, e influéncia de aspectos psicol6gicos, genéticos, ambientais e morais nas situagGes de beber abusivo também foram encontrados.* Na literatura mé- dica, por volta do ano 385 a.C., Hipécrates descreveu ‘0 uso de éleool como um fator predisponente a varias doencas, chegando a relatar fendmenos a respeito do delirium tremens em seu livro sobre as epidemias.° J4 0 poeta inglés Geoffrey Chaucer, no século XIN, se referia ao alcool como uma substincia que leva o individuo perda do controle sobre seus atos.® Como fildsofo, Aristételes achava que 0 uso des- regrado era uma escolha pessoal, ou seja, uma aticude consciente, ¢ que tais comportamentos deveriam receber sangBes ott punigdes sociais sempre que ocorressem.? Essa concep¢ao aristotélica permaneceu durante toda a Idade Média (séculos VI a XVI). O excesso, portanto, passou a ser considerado pecado, e 0 uso de qualquer utra substancia psicoativa, heresia, visto que outrora as mesmas faziam parte de rituais pagios. O papel da Igreja na formacio dessas atitudes foi determinante, pois o cristianismo condenava qualquer comportamen- to aberrante ou excessivo.’ No século XILl, em alguns paises como Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, aqueles que se embriagavam em demasia eram coloca- dos dentro de barris e insultados em praca publica.’ Entretanto, a disponibilidade das substancias nes- ses perodos era restrita devido aos poucos métodos de produgio em larga escala; por isso, 0 consumo se limi- tava, na maioria das vezes, a rituais religiosos e festivos. ‘Apés 0 advento da destilagdo, em um periodo de gran- des transformagées socioecondmicas (como a obtencio da tecnologia agricola e as Grandes Navegagées), as bebidas com altas concentracées alcodlicas (de 30 a 70%) comegaram a ser comercializadas, e 0 consumo passou a ser mais intenso e abusivo.** Posteriormente, com a Revolucio Industrial (século XVIII e a Revolucéo Cientifica (século XIX), foi possivel isolar principios ati- vos de substancias psicoativas e disponibilizé-las nas farmécias do mundo todo." A partir do século XVII, um novo fenémeno de consumo em massa tinha inicio com a disponibili- dade dessas substancias altamente concentradas em grandes quantidades, com acesso facilitado e pregos Fazodveis.° O inchago das cidades e uma legitio de pessoas desempregadas vivendo em cortigos e guetos, em situagdes miserdveis, também contribuiram para a disseminacdo do uso.” Assim, uma grande quantidade de individuos comegou a apresentar problemas rela- cionados ao consumo de dleool, opidceos e cocaina.? OS PRIMEIROS MODELOS ETIOLOGICOS DA DEPENDENCIA QUIMICA Modelo moral ‘© modelo moral foi a primeira tentativa da socie- dade contempordnea de entender e controlar 0 uso de substncias psicoativas, Esse modelo enfatiza a escolha pessoal como o fator de causa primordial." Dessa forma, foi uma reedicio de tudo 0 que fora concebido acerca do uso excessivo do alcool desde a Antiguidade, p © modelo entendia 0 uso excessivo como uma violagdo consciente das normas sociais, sendo, por isso, passivel de castigos e peniténcias. Somente a partir de 1790, com as teorias dos médicos Benjamin Rush! (1745. -1813) e Thomas Trotter (1761-1832), foi possivel desenvolver ideias congruentes com a Idade da Razio, ou Tluminismo, em contraponto ao obscurantismo dos séculos anteriores.* Modelo da temperanga Para Rush e Trotter, o beber excessivo néo era um Pecado, mas um hébito a ser desaprendido.’ Trotter considerava a embriaguez. uma doenca, e ambos con- cordavam que 0 resultado era uma perda de controle € comprometimento do equilibrio corporal. Segundo Rush, 0 consumo “comega com uma escolha, torna-se um habito © depois uma necessidade’.!" Pela primeira vez, consideraram que a intensidade do consumo varia- va ao longo de um continuum de gravidade, e que os problemas ocorriam ao longo do tempo, ou seja, tinham ‘uma histéria natural? Modelo da degenereseanci neurolégica As ideias de Rush e Trotter revolucionaram 0 ensamento da época, e, em 1849, na Suécia, apds a Publicagao do trabalho de Magnus Huss denominado Alcoolismus Choronicus, 0 termo “aleoolismo” foi usado pela primeira vez como sinénimo de “ebriedade”. O al coolismo era, entao, entendido como uma doenca, ¢ 0 conceito foi difundido pelo mundo. Onovo conceito enfatizava sobretudo as alteragdes linicas decorrentes do uso prolongado do élcool, dando ouca atencao a suas repercussées psiquicas e compor- tamentais. O modelo da degenerescéncia neurolégica indicava internagdes prolongadas ¢ o tratamento fisico, como ténicos, banhos a vapor, estimulagio farddica e até uso de sanguessugas, para “tonificar as células ner- vosas"” © modelo era utilizado com frequéncia nesse periodo.s1914 Na maior parte do século XIX, a antiga aborda- gem religiosa continuou a funcionar, Porém, nesse periodo surge nos Estados Unidos 0 movimento so- cial “temperanga”,!* um movimento de leigos, ligados & maioria das igrejas ctistas, em especial as igrejas livres.” Ele pregava as massas a abstinéncia, ofere- cendo ajuda individual ao bebedor. Os regenerados, apés se salvarem da degradacio advinda do consu: mo excessivo do dlcool, eram apresentados em pracas paiblicas como espetéculos.® No movimento de tem- Peranca, 0 ex-bebedor podia encontrar apreco e uma nova identidade.” Esse movimento, na década de 1920, evoluiu para a radicalizacao, acreditando nao ser possivel nem mes- mo 0 consumo moderado, pois este necessariamente levaria os individuos a situagdes ou lugares predispo- rnentes ao abuso do dlcool. O movimento culminou com a proibigdo da fabricagdo e do uso da substancia por meio da Lei Seca (1920-1933). Um movimento contré- rio levou & revogacao dessa lei pelo entdo presidente Franklin D, Roosevelt.'* © COLAPSO DOS MODELOS INICIAIS E SEUS DESDOBRAMENTOS CONTEMPORANEOS Com o fim do proibicionismo, néo era mais pos- sivel considerar o alcool um mal per se. Desse modo, 0s individuos e a relacéo que estabeleciam com a subs- {ancia se tormaram alvos de observacdes e pesquisas. Na primeira metade do século XIX, os tratamentos para complicagées decorrentes do uso erdnico do dlcool tenta ‘vam abolir os estigmas social e moral ainda existentes.'* Ao final desse século, outras substancias também esta- vam sendo estudadas, como 0s opiceos, o tabaco € 0 café. O comportamento abusivo dessas substdncias era, entio, conceituado como algo genérico e relacionado a vulnerabilidade biolégica individual herdada ou adqui- rida.!*1” Na década de 1950, o alcoolismo foi inclufdo znos manuais diagndsticos de uso mundial"®” em trés categorias: dependéncia, episédios de beber excessivo e beber excessivo habitual. Em 1960, Jellinek publicou seu livro intitulado The Disease Concept of Alcoholism, no qual classifica subtipos de aleoolismo, configurando-o como doenca € ndo doenga. E assim, a doenca do alcoolismo se es ja mais das concepcdes morais ¢ se apro- dicina, passando a ser tratada como uma progressiva.?! 1970, Edwards e Gross propuseram o conceito Jo de “sindrome de dependéncia do aleoo!”. passou.a ser reconhecida como um con- sinais e sintomas, e sua etiologia, advinda de fisicos, psicolégicos € sociais individuais.2? 1977, a Organizagio Mundial da Satide finiu um novo sistema conceitual que perdura s atuais. Nessa perspectiva, a dependéncia de sta como uma sindrome com um continuum fazendo distingo entre o abuso e a de- ia da substincia. conseguinte, modelos etiolégicos da depen. quimica considerando também o individuo e idiossincrasias comecaram a aparecer na tentativa ituais, inluindo ainda o modelo de sate piblica e exletismo informado. MODELOS CONTEMPORANEOS: Modelo do aconselhamento confrontativo Na década de 1960, com raizes no modelo mo- a, © aconselhamento confrontativ, ou modelo anon, criado por Charles Dederich, pregava que 0 pendente era um individuo que recebera muitas pro- es no decorrer da vida, sem aprender a compartilhar ido adulto, Desa maneira, o método propunha a ia comunitdria rigidamente hierarquizada entre os ndentes, utilizando-se da terapia denominada “choque”.® © modelo confrontativo teve grande aceitagio durante a década de 1960, perdendo influéncia de progressiva nas décadas seguintes, quando es- ios baseados em abordagens centradas na empatia “ena motivagéo demonstraram maior eficdcia O de- pendente deixou de ser um individuo acometido por m transtorno da personalidade suis generis, no qual negagao ¢ a resisténcia dominam suas atitudes e 0 Jevam de forma irremediavel ao fundo do poco, a no et que sejam confrontados, para se tornar portador je uma doenca passivel de tratamento. “Como foi que assamos a acreditar que um certo tipo de ser humano senta uma condic&o tinica que exige que utilize- mos confrontagio agressiva se desejamos ajudé-lo?", indagou William Miller, o principal tedrico da entre- vista motivacional, considerando absurda a estratégia terapéutica baseada na coercdo, um modelo nitida- ‘mente anacrdnico e prejudicial, mas que ainda nao foi detodo abandonado. Modelos naturais As primeiras teorias naturais embasavam-se_no ‘conceito de que os homens possuem uma tendéncia ina- tae universal ao consumo de drogas. O dependente, por sua vez, era visto como “fraco” diante da incapacidade de se controlar ‘Apesar de mais distante do moralismo, a teoria na- tural responsabiliza 0s usudrios por suas escolhas pelo excesso, ainda que evoque os tabus sociais e culturais ‘como participantes de tal desvirtude. Desse modo, int _meros sao os questionamentos acerca dessas teorias, pois, ‘do elucidam como comportamentos ditos universais resultam em incontaveis tipos de preferéncias e padroes de uso, Tampouco explicam como individuos podem ser responsabilizados por suas “tendéncias inatas"?> Modelos biol6: © modelo biolégico parte do aspecto orgénico na tentativa de explicar as alteragées fisicas e psiquicas da dependéncia quimica. Essas teorias sugerem uma predisposigéo bioldgica para o desenvolvimento do uso indevido de substdncias psicoativas, considerando 1 estigios biolégicos da dependéncia. Dentre elas, hi ‘modelos em destiso por auséncia de evidéncia cient- fica, como 0 modelo constitucional, que acreditava que diferencas constitucionais entre dependentes e nao de- pendentes os impediam de beber de forma moderada; era como se nascessem dependentes de alcool, porta: dores de uma “alergia” & substincia, faltando apenas 0 primeiro contato com ela.” Outras teorias desse modelo, porém, como as explicagdes neurobioldgicas genéticas, trouxeram avancos incontestaveis para o entendimento atual da dependéncia. Pesquisas neurobiolégicas tém obtido significa- tivos avangos utilizando-se de inovacdes para melhor compreender 0 fendmeno da dependéncia, como a neuroimagem e a farmacoterapia.** Nessa perspectiva, © consumo de substancias psicoativas estimula regibes cerebrais limbicas, principalmente o sistema de recom- pensa, gerando estimulos de prazer e aumentando a Propensio a um novo episédio de uso. Com 0 uso cré- nico, 0 organismo adapta-se & presenca constante da substncia, gerando 0 fenémeno da tolerancia, e, com a diminuigéo do uso ou a cessacio, os sintomas da abs- tingncia surgem, deixando o individuo mais propenso a repetir 0 uso para evitar o desconforto da falta.” A existéncia de uma base genética para a depen- déncia quimica vem sendo demonstrada por meio de estudos epidemiolégicos e moleculares. Os primeiros utilizam modelos de agregacao familiar, de gémeos e de adogao. A observacio de familias mostra que ha uma relagéo direta entre o risco de dependéncia e o niime- 10 de membros da familia com esse mesmo desfecho. Jd os resultados de pesquisas com gémeos, apesar de alguma controvérsia, demonstram que a probabilidade

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