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Introdução ao pensamento de Jacques Lacan1

Hudson Vieira de Andrade


hudson.deandrade@hotmail.com

“Bastam dez anos para que o que escrevo se torne claro a todos”, são com essas palavras
que o psicanalista francês Jacques Lacan encera uma das raras entrevistas concedida em 1971
à televisão. Passados 47 anos, qualquer leitor que tenha depositado o olhar sobre seus textos
pode contestar tal afirmação. O famigerado estilo gongórico do mestre, digno da escrita
elíptica de Joyce ou da montagem de um quadro surrealista, parece ter afastado sua obra do
público mais amplo. Ao contrário do que ocorreu com Freud, cujos textos tiveram maior
poder de circulação na cultura.
Se é verdade que seu estilo de transmissão se estabelece na aposta de colocar a linguagem
no limite do horizonte representacional da comunicação, assim como o inconsciente, onde o
sentido cederia lugar as homofonias e neologismo2. Isso não exclui que seu estilo se
caracteriza como uma atitude de resistência contra os comentários simplicistas, que reduzem e
deturpam um pensamento retirando dele sua potência.
Existe um valor a ser pago por aquele que tem interesse em se aventurar pela obra de
Lacan, cuja moeda de troca é o próprio desejo. Talvez Lacan tenha procurado leitores que não
recuassem diante de seu desejo, diante daquilo que não se deixa apreender facilmente. Deve
se permitir o tempo de lê-lo sem compreendê-lo, para salvar-se de entendê-lo sem lê-lo. Algo
que ressoa com sua aposta ética para a clínica psicanalítica: “não ceder diante o seu desejo”.
Althusser não cansou de insistir que os maiores inimigos dos psicanalistas não seriam os
neurocientistas ou os psiquiatras, mas ao invés disso, os próprios psicanalistas. Ou seja, a
melhor forma de retirar o potencial subversivo de uma prática não é por vias externas ao seu
saber, mas se infiltrando por dentro dela e conferindo um outro formato que aquele visado
anteriormente.
Ocorre que sob tutela dos pós-freudianos, a psicanálise teria se institucionalizado através
de uma forma padronizada, hierárquica e rígida tanto no que diz respeito a formação do
analista, quanto em sua concepção teórica e clínica.

1
Texto apresentado no GP de estudo Filosofia e Subjetividade.
2
Lacan, sugere como tradução para o francês do termo freudiano Unbewusste, não o inconscient, que guardaria
consigo uma relação de sentido em relação ao alemão, mas prefere usar l’une-bévue, apostando com isso, de
maneira poética, para dimensão do equívoco (bévue) e da homofonia presentes no inconsciente.
Em virtude de a psicanálise ter sido por muito tempo reclusa ao ciclo judaico, durante os
anos que se seguiram a segunda guerra mundial, aqueles que sustentavam essa prática na
alemã foram levados a se exiliarem no solo norte-americado. O próprio Freud teve que passar
seus últimos dias em Londres, atormentando pela angústia dos parentes deixados pelo
caminho e pelo câncer que sugava suas últimas energias.
A psicanálise se viu, no novo mundo, infiltrada por um viés psicologicista e biologicista,
onde o que o processo analítico visava era o fortalecimento do Eu. O que vemos é uma prática
fortemente inclinada por uma concepção individualista, onde o que se busca é a readaptação
do sujeito na sociedade, mesmo que a custa de aliená-lo nos padrões de conduta normativos.
Como veremos esse será um dos principais alvo de Lacan em sua releitura da obra freudiana.
Já em sua tese de doutoramento em medicina de 1932, Psicose paranóica em suas relações
com a personalidade, Lacan pretendia desvincular o estudo sobre a paranoia do forte viés da
psiquiatria em relacioná-la aos aspectos orgânicos. Não se trata de negar suas bases
biológicas, mas em demonstrar a insuficiência desse discurso em dar conta da totalidade do
sofrimento psíquico que se apresenta no contexto.
Finalmente o que Lacan faz, no seu estudo sobre a paranoia, é descrever como os delírios e
alucinações estão relacionados com aquilo chamado por ele na época de “história vivida do
sujeito” ou de “história psíquica”. O que ele descreve é como que através da fixação em
determinado ponto no desenvolvimento do indivíduo, onde ainda não existe uma distinção
entre ele e o mundo, seus pensamentos são projetados na forma de delírio3.
Logo após a defesa de sua tese, Lacan inicia sua análise didática na Sociedade Parisiense
de Psicanálise (SPP), que duraram 6 anos. Simultaneamente a isso, ele passa a frequentar os
seminários dado pelo russo Alexandre Kojevè sobre A fenomenologia do espirito de Hegel, no
qual mobilizou uma geração inteira de intelectuais franceses nesse período.
Há uma ideia que atravessa o pensamento de Lacan nesse período e poderíamos chamá-la
de gênese social do eu, se apresentando de maneira mais clara na conferência O estádio do
espelho como formador da função do eu de 1937. Para a criança não existiria desde seu
nascimento algo que se possa ser chamado de Eu, tampouco uma imagem unificada de seu
corpo. A princípio, o que ela teria são experiências em um corpo desfragmentado, sendo
necessária a presença constitutiva de um outro semelhante para que se possa delimitar certa

3
Lacan envia sua tese para Freud e é respondido muito tempo depois, como uma singela carta de apenas duas
linhas dizendo simplesmente que seu texto estava muito bem escrito.
unificação corpórea. Assim, o processo de constituição do Eu dependeria do movimento de
alienação na imagem desse outro.
Durante toda obra de Lacan, é persistente o destaque no processo de dependência de certa
alteridade da constituição subjetiva. O que por si só nos lembraria que não há nada de próprio
na imagem de si. Ou ainda, que naquilo que chamamos de eu não está ligado a sínteses
psíquicas, mas do desconhecimento de sua própria determinações. É pensando nisso que
Lacan abre seu Escritos com as palavras do poeta Rimbaud: “o Eu é um outro”.
Essa proposição deve orientar uma clínica que não vise formas de fortalecimento do Eu
que garantiria maior autonomia, como pretendiam os pós-freudianos, visto que isso cairia no
engodo de reforçar as alienações que constituem o Eu. Se existem formas de sofrimento que
tem o poder de dissolver os horizontes de uma subjetividade, há também aquelas que derivam
do excesso de identificação às fronteiras de um Eu. A orientação clínica lacaniana só poderá
ser pensada como uma forma de crítica da alienação.
Sendo o Eu o resultado de processos sociais de identificação derivados de modos de
alienação, teríamos que pensar em algo da existência que não seja um Eu, algo que teria sido
“recalcado” pelo seu advento. Esse algo estranho ao Eu, Lacan nomeia como sujeito, é nele
que residiria o desejo. Existe um esforço por parte de Lacan em estabelecer essa divisão
subjetiva, por exemplo, quando separa o moi (eu produzido pela identificação alienada) e je
(como sujeito do desejo, no limite, como sujeito do inconsciente). Assim, o sujeito na
psicanálise lacaniana seria irremediavelmente descentrado, nunca se confundindo com o Eu.
A noção de desejo em Lacan assinala seu pertencimento à iniciação que teve nos textos
hegelianos durante os seminários de Kojevè, que frequentou na década de 30. O desejo seria
pura negação, nunca satisfeito plenamente nos objetos empíricos encontrados, ele seria um
vazio entorno daquilo que não se deixa nomear. O sujeito não seria marcado por uma essência
positiva que o determinaria por meio de predicados, esquemas fechados e papeis sociais, mas
ao invés disso, seria marcado por uma falta-ser, por uma errância. Ou seja, antes de operar
com uma noção de síntese do Eu, que ampliaria seu horizonte reflexivo, a psicanálise
lacaniana buscaria uma forma de reconhecimento pelo sujeito naquilo que não se manifesta
conforme a imagem construída sobre si.
Para Deleuze, a sustentação da negatividade do desejo daria contornos pastorais à
psicanálise, pois selaria sua filiação a certa moral da resignação e da perpetua falta. Para ele,
“não falta nada ao desejo, não há objeto que lhe falte”, como insistentemente afirma n’Anti-
Édipo. Contudo, o posicionamento de Deleuze parece ignorar toda crítica de Lacan ao caráter
normativo que pretende instalar uma relação de identidade entre sujeito e objeto. A noção de
negatividade no pensamento lacaniano serve para localizar tudo aquilo que do sujeito se
mostra avesso ao modelo identitário, unificado e coerente.
Lacan até a década de 50, assim como boa parte do pensamento francês, guarda várias
ressalvas à psicanálise. Seu interesse se localiza sobretudo na contribuição da disciplina
acerca do processo de constituição do Eu, deixando de lado sua noção de inconsciente.
Nesse mesmo período seu nome começa a circular por Paris, sendo considerado como um
dos psicanalistas mais famosos da França. Seus seminários que aconteciam inicialmente em
sua casa, passam para o Hospital Saint-Anne em virtude do crescente público que se mostrava
interessado por sua leitura, abrindo o espaço para uma reconstrução da teoria de Freud.
Devido sua extravagância teórica, ele é expulso da sociedade de psicanalistas que fazia
parte, dessa primeira expulsão seguirão outras duas que ele chamou em tom messiânico de
excomunhão. Tendo que criar juntos com alguns outros membros, também expulsos, uma
nova instituição chamada de Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). Como uma das figuras
maior dessa nova sociedade, Lacan se coloca na linha de frente para reelaborar o pensamento
freudiano, dando uma noção relativamente inédita de inconsciente.
Durante toda década de 50 Lacan coloca em curso o programa que intitulou sob o slogan:
“retorno à Freud”. Contudo, esse slogan guarda alguns traços peculiares, pois o inconsciente
utilizado por Lacan não virá de Freud, mas do estruturalismo. Além do mais, antes de um
retorno original ao pai da psicanálise, trata-se de uma releitura de sua obra sob a ótica de
disciplinas que vinham se desenvolvendo naquele período, tais com: a linguística estrutural
(Saussure e Jakobson), a antropologia estrutura (Lévi-Strauss), noções do pensamento de
Heidegger, a leitura hegeliana de Kojève, além de enxertos de lógica e matemática.
Se faz necessário localizar Lacan em uma cena maior, inserido em um movimento ainda
amorfo na década de 50 que começa a adquiri força na França com Claude Lévi-Strauss em
sua dianteira, ele se caracteriza como campo altamente heterogêneo que reuni disciplinas tais
como linguística, antropologia, fonologia, marxismo, psicanálise e teoria literária, sendo
nomeado apenas no início dos anos 60 pela impressa francesa como estruturalismo. O
estruturalismo provocou um verdadeiro frenesi no pensamento francês nos anos subsequentes,
junto com o gradativo desinteresse pelo trabalho de Jean Paul-Sartre, produzindo um
acontecimento que revolucionou o interior das ciências humanas daquele período. O sujeito
da consciência e da intencionalidade vão apagar-se em proveito da regra, do código e da
estrutura.
A linguística moderna de Ferdinand de Saussure será tomada por esse movimento como a
ciência modelo que possibilitará conferir consistência teórica e metodológico equivalente
aquela utilizada pelas ciências da natureza. Esse movimento de retomada para um momento
fundador de um pensamento, criou um constante programa que mobilizou Althusser aos textos
de Marx, Lacan aos de Freud e Lévi-Strauss aos de Marcel Mauss.
Para Lacan, trata-se antes de mais nada de desvincular o inconsciente de certa concepção
psicológica, pois ele não estaria ligado à memória, sensação, atenção ou intencionalidade. A
máxima que orientará sua leitura nesse período é que: O inconsciente é estruturado como
linguagem”. O inconsciente passa a ser regido por um sistema de leis que estruturam e dão
forma ao pensamento.
Segundo Lacan, o inconsciente não se resumiria à linguagem, mas ele teria uma estrutura
homologa a ela, isso nos permite duas constatações: (i) nos diz que o inconsciente é
estruturado, isto é, ele não é algo arbitrário ou obscuro como pregado por todo o romantismo
alemão. Longe de ser algo na margem da razão, o inconsciente obedeceria uma lógica e uma
gramática de funcionamento, que não estaria submetida aquelas da consciência, ou como dizia
Lacan, o Isso pensa.
Por fim, não haveria no inconsciente qualquer verdade profunda, mas algo insuportável,
isso justifica porque Lacan falou das três paixões do homem como sendo o amor, o ódio e a
ignorância. A ignorância teria uma proximidade com o discurso do inconsciente no que diz
respeito aquilo que não quero saber, isso que jugo não me concernir.

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