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A deriva como procedimento de resistência ao modelo de cidade global e

o encontro com os africanos emigrantes no centro da cidade de São Paulo


Luanna Jimenes

Resumo
A noção de corporeidade aponta para uma dimensão estética para o corpo: da revolução
industrial e seus atributos mecânicos, na cidade moderna cada vez mais desconectado da
geografia ao seu redor, e da contemporaneidade mediado por territórios virtuais. Nos gestos
dos africanos recém-chegados no Brasil é possível perceber uma geografia implícita, que
contrasta com a da cidade à qual ele se adapta e, ao mesmo tempo, transforma. Esta
adaptação forçada dos africanos a uma metrópole como São Paulo parece refletir, em alguma
medida, o poder global a que são submetidos esses imigrantes deslocados de sua cultura.
Palavras-chave: corporeidade, cidade, São Paulo, performance, África

Introdução
A deriva e a livre deambulação podem ser entendidas como uma atividade conjunta que
relaciona o sujeito e a geografia. Os situacionistas do movimento Internacional Situacionista
na França na primeira metade do século XX assim designaram: “a apropriação do espaço
urbano pelo pedestre através da ação de andar sem rumo” (JAQUES, p.22, 2003) e desde
então vem sendo explorada por diferentes especialistas em todo o planeta; artistas de
diferentes técnicas e procedências vêm, cada um a seu modo, criando sentidos e poéticas
para as derivas.
Neste artigo pretende-se rever as noções de cidades, considerando-a como o lugar do
acontecimento e do encontro; sua estrutura arquitetônica, política e social é definitiva para a
noção de presença e corporeidade, portanto, a cidade é, nesse sentido, a “construção integral
de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (JACQUES, p14,
2003).

Luanna Jimenes é artista e pesquisadora em performance e artes do corpo com graduação em


Artes Cênicas na Unicamp e pós-graduação em cenografia e figurino na Universidade Belas Artes.
Desenvolvimento

Para Debord, é preciso rigor para pesquisar a estreita relação entre o corpo
(percepção) e a cidade, faz-se necessário considerar os aspectos históricos e políticos que
acometem o corpo habitante das cidades contemporâneas. De fato, caminhar no centro de
uma metrópole como São Paulo significa ter uma experiência de multidão e anonimato
contrário ao convívio pressuposto pela proximidade.

As pesquisas que precisam ser feitas sobre a disposição dos


elementos do quadro urbano, em estreita ligação com as sensações
que eles provocam, exigem hipóteses arrojadas que convém corrigir
constantemente, à luz da experiência, pela crítica e autocrítica
(DEBORD, p.41, 1955).

Revendo o processo histórico de inchaço das cidades, segundo o arquiteto Le


Corbusier, a máquina e o modo de produção industrial provocou o êxodo rural: “o emprego
da máquina alterou as condições de trabalho, rompeu um equilíbrio milenar, esvaziou o
campo entupindo as cidades ao desprezar harmonias seculares” (CORBUSIER, p. 22, 1993).
Em consonância, Debord (1992) sinaliza que a supremacia da cidade sobre o campo viria
acompanhada de transformações da estrutura política da sociedade, “se a história da cidade
é a história da liberdade, ela também foi a da tirania, da administração estatal que controla o
campo à cidade” (DEBORD, p.116, 1992).
Segundo Richard Sennett, a economia: “viabilizou a civilização urbana ao preço de
um amargo antagonismo que marca os significados dos termos ‘urbano’ e ‘rural’. No idioma
grego, tais expressões, asteios e avikos, também podem ser traduzidas como ‘refinado’ e
‘embrutecido’” (SENNETT, 2003. P. 34). Certamente foi preciso criar uma subjetividade
que atendesse ao modo de vida urbano, um imaginário que correspondesse ao inverso do
embrutecido do campo.
A pesquisadora Paola Berenstein Jacques define o desenvolvimento da estrutura
arquitetônica das cidades na modernidade segundo dois movimentos que parecem
antagônicos, porém têm o mesmo caráter: a cidade-museu e a patrimonialização de seu
centro histórico petrificado que serve de atrativo aos turistas; além disso, a construção
desenfreada de novos bairros nas áreas de expansão periféricas para a especulação
imobiliária.

Muitas vezes os atores e patrocinadores destas propostas também


são os mesmos, assim como é semelhante a não-participação da
população em suas formulações. [...] demonstrando que as duas
correntes antagônicas podem ser faces de uma mesma moeda, que
visaria tão-somente a uma espetacularização mercantil das cidades”
(JACQUES, p14, 2003).

Um modelo de cidade-genérica pensado como empreendimento, como plano de


investimentos controlados pelo mercado financeiro regula o território e as experiências
humanas que ali acontecem. De fato, caminhar no centro de São Paulo escapando da
implicação útil de suas estruturas materiais, é necessariamente esbarrar em territórios
controlados: o antagonismo espaço público e espaço privado, ambos pautados pelo consumo,
assim como as regras de utilização dos espaços, estabelecem limites e descontinuidades entre
o corpo e a cidade.
Nas capitais contemporâneas a completa passividade social na cidade-espetáculo
parece sobretudo alertar para um modo de operar em “afirmação da aparência e a afirmação
de toda a vida humana – isto é, social – como simples aparência” (DEBORD, p.16,1992),
sem condições de criar a própria existência. É verdade que caminhar para ver e ouvir
estabelece necessariamente um movimento estranho à ordem local, a presença produz ao seu
redor uma zona de indefinição e estranhamento.
Em especial a falta de desejo e paixão assolou o espirito do homem moderno, o
caminho para a contemporaneidade o deixou entorpecido pelo espetáculo das imagens,
esquadrinhado por territórios de poder, controlado por aparatos de virtualidade,
invariavelmente restrito a consumidor: “O problema contemporâneo da privação sensorial a
que aparentemente estamos condenados pelos projetos arquitetônicos com modernos
edifícios; a passividade, a monotonia e o cerceamento táctil aflige o ambiente urbano”
(SENNET, p.16, 2003).
O corpo passivo dito por Sennet reforça a desconexão com o espaço pela condição
do deslocamento, um efeito produzido pela velocidade do automóvel que exige cada vez
menos do corpo e torna indiferente a paisagem: “Os deslocamentos são rápidos num meio
ambiente cujas referências tornaram-se secundárias” (SENNETT, p.18, 2003).
Com a subsistência assegurada, o corpo fica disponível e bem acomodado para o
espetáculo das imagens nos monitores da televisão e computador, assim como protegido pela
estrutura de metal e vidro do automóvel. As imagens produzidas pelo diretor de televisão
reproduzidas indefinidamente nos aparelhos de virtualidade inspiram modelos de vida
espetaculares. As vias e autopistas do engenheiro civil impõem um trajeto sobre a paisagem
entre centros urbanos; no deslocamento algo se perde, e fragmenta-se a noção de território:
“Ambos, o engenheiro civil e o diretor de televisão [...] enquanto um projeta caminhos por
onde o movimento se realize sem obstruções ou maiores esforços, e com a menor atenção
possível aos lugares de passagem, o outro explora meios que permitem às pessoas olhar para
o que quer que seja, sem desconforto” (SENNETT, p18, 2003).
A questão da corporeidade na deriva é central uma vez que consiste precisamente em
se diferenciar da passividade apontada por Sennett e tornar-se capaz de viver situações não
controladas pelas formas simbólicas do convívio contemporâneo. Significa partir para uma
espécie de embate físico, “cartografar as diferentes ambiências psíquicas” (JAQUES, 2003)
para recriar territórios disciplinados a partir do corpo, de seus próprios recursos de presença
e posicionamento, criar as condições para atravessar fronteiras.
A percepção do que se passa ao caminhar em deriva e sobretudo observar, na Praça
da República e imediações, se refere às tensões que aparecem quando em proximidade, as
atmosferas que limitam o corpo. Os africanos, recentemente aportados no Brasil, trazem em
si outros limites, no gestual e na linha de atenção dos sentidos se descreve outra paisagem e
ambiência, soa alheio e de todo desconhecido.
Na medida em que se repetiram os encontros com os africanos, os que se dispunham
à comunicação, criavam alguns pontos de proximidade, possibilidades de convívio mesmo
que acolhendo uma espécie de abismo; a falta de idioma comum fazia da comunicação verbal
um balizamento geral para a observação mútua e ademais pairava uma indefinição
interessante de se observar, haja visto a natureza dos encontros numa cidade global como
São Paulo.

Hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços


de controle que decompõem o vínculo social em elementos distintos.
Perante as mídias eletrônicas, os parques recreativos, os espaços de
convívio, a proliferação dos moldes adequados de sociabilidade
vemo-nos pobres e sem recursos [...] Assim, o sujeito ideal da
sociedade dos figurantes estaria reduzido à condição de consumidor
de tempo e de espaço, pois o que não pode ser comercializado está
fadado a desaparecer. Em breve, as relações humanas não
conseguirão se manter fora desses espaços mercantis: somos
intimados a conversar em volta de uma bebida e seus respectivos
impostos, forma simbólica do convívio contemporâneo
(BOURRIAUD, p.9, 2009).

O limite das possibilidades para o encontro de forma geral restrito ao previsível, e


invariavelmente mediado por situações de mercado e consumo, é questão central na deriva
uma vez que a pratica da deambulação é uma espécie de abrir caminhos para o imprevisível
e criar novas condições para o encontro. Porém o enunciado aqui estabelecido para o
programa da deriva cria uma tensão ainda maior em relação ao corpo passivo que habita as
cidades contemporâneas e o previsível, uma vez que há um desafio predeterminado. A
experiência parece trafegar por estados de tensão ainda mais extremos, o que poderia
acontecer dentro dos espaços mercantis não está nem se quer apontado, nem se insere nas
regras de utilização dos espaços; ao contrário, cria alguns desafios, dentre eles o de dar
duração e sentido ao encontro com os Africanos, contornando diferenças e estranhamentos.
A duração do encontro esteve consonante e interdependente das interações com lugares e
espaços.
No que diz respeito à procura pelos africanos era preciso tatear cada palavra e gesto
para, na medida do suportável, resistir ao abismo social e histórico. Entre os senegaleses na
Praça da República por exemplo, foi preciso num primeiro momento desfazer a imagem de
cliente que ouve as poucas explicações da cultura que subjaz os tecidos com estampas
artesanais ou industriais com grafismos e motivos padronizados e os artesanatos. Resistir no
primeiro momento para a seguir procurar novos acessos, depoimentos do modo de vida
deixado no Senegal e de como se adaptam a esta nova realidade, relatos que revelam o
contraste entre paisagens e sistema político.
A intensidade da experiência na deriva e em especial nesse desafio, no que tange à
corporeidade, pode ser comparada ao corpo sem órgãos em consonância com Gilles Deleuze
e Félix Guattari, que corresponde a um corpo não previamente organizado. O corpo sem
órgãos: “não é uma noção, nem é um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de
práticas” (DELEUZE; GUATARRI, p.12, 1999). O corpo sem órgãos vive intensidades a
partir dos próprios sentidos e não corresponde ao socialmente produzido, organizado para
atender preceitos sociais. O corpo sem órgãos se produz na deriva a partir de sua natureza
dinâmica e relacional.
A intensidade dos sentidos na pratica do corpo sem órgãos se torna uma experiência
concreta diante dos africanos; o olhar quando na proximidade dos encontros ganha duração
imprevista, mesmo que hesitante, sendo possível olhar indefinidamente porque ali não se é
capturado pelo esgotamento do previsível, ali se prefigura o desconhecido. A cada contorno
impreciso dado pelas poucas palavras, novas curvas e direcionamentos inesgotáveis. Ver,
nessa situação, é inegavelmente uma experiência da pele, como indicaram Deleuze e
Guattari, na invenção psicofísica que atravessa o corpo sem órgãos: “Por que não caminhar
com a cabeça, ver com a pele, respirar com o ventre [...] vamos mais longe, não encontramos
ainda nosso corpo sem órgãos, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu” (DELEUZE;
GUATARRI, p.12, 1999).
Desfazer suficientemente nosso eu para ir mais longe compõe a exata tradução do
encontro nesta pesquisa; o que se vê e ouve não configura um discurso do eu e o outro, mas
uma experiência de continuidade e descontinuidade; o que se refere como longe prefigura
um lugar, uma geografia, uma paisagem em contradição com a cidade de São Paulo e o corpo
da cidade contemporânea, passivo ao espetáculo, mediado pelo consumo e controlado. Ao
contrário, no comportamento dos africanos no centro de São Paulo é possível ler de forma
geral um campo de atuação do olhar e o alcance da voz que estabelecem ao seu redor um
horizonte que ali não existe. O volume da voz parece anunciar o descontrole, assim como a
corporeidade não corresponde ao território arquitetônico e subjetivo da cidade e nela parece
fissurar as regras de conduta no limite do policiamento. Encontrar os africanos pode ser
entendido como um programa performático, uma prática do corpo sem órgãos, uma vez que
se devolve o corpo aos sentidos e a fronteira do previamente fixado se desfaz por um instante
que não se caracteriza pela duração.
Conclusão
No presente artigo procurou-se relacionar a prática das deambulações à observação
das relações entre estruturas materiais da região central da cidade de São Paulo e o
comportamento de seus habitantes. Em especial, no que se refere aos africanos emigrantes
recém aportados na cidade, experimentar aproximações para perceber as tensões que
aparecem quando em contato. A histórica confluência dos africanos com este território
parecia ressoar no decorrer do convívio. Que seja possível criar procedimentos para
dissolver limites e fronteiras para ver e ouvir com a intensidade dos sentidos, a beleza e a
dignidade do povo africano que nos convida a sair do caminho do rolo compressor da
produtividade.

Referências bibliográficas

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 28 de novembro de 1947 – como criar para si um
Corpo sem Órgãos. In: Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.3 São Paulo: Editora 34,
1999.
GOMES, P. C. C. A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro:
Bertrand, 2002.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
JACQUES, Paola. B. (org.) Apologia da Deriva: Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio
de Janeiro: Casa da palavra, 2003.
LAZARATO, Maurizio. Signos, Máquinas e subjetividades. São Paulo: n-1 edições,2014
SENNETT Richard. Carne e Pedra. Trad. Marcos Reis - 3 ed. – Rio de Janeiro, 2003

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