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Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites* Ana Mercés Bahia Bock’* Compromisso social da Psicologia é um tema bastante importante e tem estado em voga nos congtessos e nas reflexGes criticas no campo da Psicologia. A [Mostra Nacional de Praticas em Psicologia: Psicologia e Com- promisso Social, de iniciativa do Conselho Federal de Psicologia, realizada em 2000, em Sao Paulo, apresentou uma determinada concepcao de com- promisso social da Psicologia. Foram milhares de trabalhos que se inse- riam na tematica porque se constitufam como experiéncias de servicos pres- tados a camadas sociais que tradicionalmente nao tém tido acesso ao traba- Iho do psicdlogo; ou ainda porque inovavam instrumentos de trabalho, es- * Versio adaptada e revista de intervencdo em mesa-redonda apresentada no I Congresso Brasileiro Psicologia: Ciencia e Profissao, setembro 2002, Sao, Paulo, SP. * Psicdloga, Professora Titular do departamento de Psicologia Social PUCSP; Pesquisadors do Niicleo “Adolescente: concepces ¢ questdes emergentes” do Programa de Pos-Graduagio em __ Psicologia Socal PUCSP. ancbock@zaz.combr 6 ANAM. B,BOCK capando de perspectivas “psicologizantes”, em favor de perspectivas mais sociais; ou ainda porque eram experiéncias interdisciplinares. Sempre se apresentavam como trabalhos mais “sociais”, incluido nesse termo qual- quer um dos aspectos anteriormente citados. A I Mostra de Praticas em Psicologia marcou assim um novo compromisso dos psicélogos e da Psico- logia com a sociedade brasileira, mas nao inaugurou 0 compromisso da Psicologia com a sociedade. Explicando melhor: a Psicologia sempre esteve vinculada a sociedade brasileira e sempre respondeu a demandas sociais, portanto, manteve em toda sua existéncia um determinado compromisso com a sociedade. Mas qual compromisso? Eis ai a questo. Nao se pode permitir que 0 entusiasmo com 0 compromisso social que a Psicologia esta construindo com a sociedade brasileira oculte a hists- tia de um compromisso com os interesses das elites no Brasil. E preciso retomar essa historia para superd-la definitivamente. Esse ¢ 0 objetivo des- ta reflexao. Uma historia de compromisso com as elites ‘A tradicao da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compro- misso com os interesses das elites e tem se constituido como uma ciéncia ¢ uma profissdo para o controle, a categorizacdo e a diferenciacdo. Poucas tém sido as contribuicées da Psicologia para a transformagao das condi- Ses de vida, tao desiguais em nosso pais. Se tomarmos a hist6ria da psicologia no Brasil, de acordo com estudos de Massimi (1990), Antunes (1991) e Antunes (1999), vamos ver queas idéias psicoldgicas produzidas e, posteriormente, as teorias responderam clara- mente a interesses das elites de controlar, higienizar, diferenciar e categorizar, interesses esses necessdrios 4 manutencao ou incremento do lucro e repro- dugao do capital. A colonizagao do Brasil, por Portugal, foi caracterizada fundamental- mente pela exploracdo, o que exigiu a construcdo de um forte aparelho re- pressivo. A Metrépole necessitava dominar e controlar os indigenas que viviam na Colénia, para que, doceis, permitissem e colaborassem na explo- ragdo da terra conquistada. Nesse periodo, as idéias psicol6gicas produzi- das, por representantes da Igreja ou intelectuais organicos do sistema por- tugues,-tiveram a marca do controle. Sao estudos que versam sobre as c2- racteristicas dos indigenas e as formas mais eficientes de controla-los: 0 3 NPD ite SEARS ISS Cea aR PSICOLOGIAE COMPROMISSO SOCIAL controle das mulheres e das criangas foi também objeto de estudo e de preo- cupagao. Estes estudos so considerados pertencentes ao campo da Psico- logia, por tratarem de comportamentos e de aoe toe morals que guiavam as condutas e as agdes da populacao que aqui vivia. No século XIX, o Brasil deixa de ser Col6nia e transforma-se em Impé- rio. As idéias psicolégicas vao ser produzidas principalmente no ambito da medicina e da educacio e responderam a outros interesses: 4 higienizacao da sociedade. Coma vinda da Corte portuguesa para o Brasil, surgiu uma demanda de servicos, até entao inexistentes, como a educacao nos seus diversos ni- veis, inclusive superior; e o século XIX assistiu a abertura de escolas que se tornaram referéncia no Brasil, como 0 colégio Pedro II, a Escola Normal em Niter6i e em Sao Paulo e o Pedagogium no Rio de Janeiro. Além disso, a vinda da Corte proporcionou um desenvolvimento rapido da cidade do Rio de Janeiro que, sem qualquer infra-estrutura para suportar esse desen- volvimento, se viu as voltas com doengas, miséria, prostituicdo e loucura. O século XIX assistiu, assim, ao desenvolvimento, no pais, das idéias de saneamento e higienizacao das cidades, higienizacio que sera entendida como material e moral. Estas idéias eram herdadas do pensamento euro- peu, mas encontraram no Brasil um terreno fértil. Buscava-se uma socieda- de livre da desordem e dos desvios. A educagio esteve marcada por praticas autoritdrias e disciplinares; a medicina, pela criagdo de hospicios como asilos higi8nicos e de tratamento moral (em 1842 é inaugurado no Rio de Janeiro o hospicio Pedro II; em 1852, em Sao Paulo, o Asilo Provis6rio de Alienados da cidade de Sao Paulo). A sociedade esteve dominada pela ideologia da ordem e da higienizacao. As idéias psicolégicas produzidas nesse periodo puderam colaborar significativamente no trabalho da educacao e da medicina, na busca da higienizagao moral da sociedade brasileira. A educa¢ao, marcada pela bus- ca do controle de impulsos considerados inadequados nas criangas, carac- terizou-se por praticas disciplinares e moralistas. Carregada de racionali- dade e de controle, a educagao buscou desenraizar o mal que caracterizava a natureza infantil. As idéias no ambito da medicina falavam da degeneres- céncia das racas e da imoralidade que isso acarretava na sociedade. Os pro- blemas sociais eram lidos a partir dessas perspectivas e a higienizaci cial almejada era obtida, se nao pela educacio, pela reclusao dos “imorais” em asilos higiénicos.

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