O Nascimento do Saber
Cientifico
Apesar de todos os nossos conhecimentos, concordemos que o mundo
nfo & simples, e nfo facil viver nele. Imaginemos, entdo, o homem da
Pré-Hist6ria lutando com os elementos, confrontado com as forcas des-
ta natureza hostil que deve dominar para viver, para sobreviver... Tome-
mos 0 exemplo do fogo: um dia, apés uma tempestade, o homem pré-
histérico descobre que um raio queimou o mato; que um animal, nele
preso, cozinhou e ficou delicioso; e que o fogo dé, além disso, 0 calor.
Que maravitha é 0 fogo! Mas 0 que € 0 fogo? Como produzi-lo, conserva
Io, transporté-lo?
ara sobreviver ¢ facilitar sua existéncia, o ser humano confrontou-
se permanentemente com a necessidade de dispor do saber, inclusive de
construf-lo por si s6.
Ele o fez de diversas maneiras antes de chegar ao que hoje é julga-
do como o mais eficaz: a pesquisa cientifica, Os antigos meios de conhe-
cer, entretanto, no desapareceram e ainda coexistem com o método
cientifico, Neste capftulo, apresentaremos esses modos de aquisigdo do
saber, mas dando especial ateng&o ao aparecimento do modo cient
no contexto do advento da cigncia moderna, mais precisamente, das
cias humanas modemnas.
Os SaBeres EsponTANEOS
Ohomem pré-histérico elaborava seu saber a partir de sua experiénciae
de suas observagdes pessoais. Quando constatou que o choque de dois
slices, ou da répida fricgdo de duas hastes secas, podia provocar uma
faiscz.ou uma pequena chama capaz de queimar folhas secas, havia cons-
truido um novo saber: como acender 0 fogo. Esse saber podia ser reu-
tilizado para facilitar sua vida, Pois aqui est4 o objetivo principal da
pesquisa do saber: conhecer o funcionamento das coisas, para melhor
controli-las, e fazer previsdes melhores a partir dai.
APITULO
t18 Lavite & DIONNE
Mitos e explicagées do mundo
As religides ¢ as mitologias responderam, com freqiiéncia, as primeiras inquietudes do homem sobre o
mundo e seu funcionamento, seu proprio lugar nesse mundo e seu futuro. O que ndo se pode explicar pela
razao e pelo saber disponivel ¢ compensado pelos mitos ou pelo sobrenatural. Assim, esta lenda kayapo-
{gorotire é uma das verses a respeito da origer das plantas cultivadas, no caso o milho, de grande impor-
tancia na alimentagao dos amerindios brasileiros.
‘Origem das plantas cultivadas
[No tempo em que os Indios comiam apenas orelha-de-pau (urupé) e farelo de drvores podres, uma mulher
que tomava banho soube por um ratinho da existéncia do milho, que crescia numa drvore enorme, onde as
araras e os macacos brigavam pelos gros. O tronco era to grosso que foi preciso ir a aldeia pegar mais um
‘machado. No caminha, os meninos mataram e comeram uma mucura e se transformaram em velhos. Os
feiticeiros se esforcaram por devolver-thes a juventude, mas ndo conseguiram. Desde entéo, 2 came de
mucura 6 absolutamente proibida. Gracas ao milho, os indios passaram a viver na abundéncia. A medida
! que se multiplicavam, foram aparecendo tribos de diferentes linguas e costumes.
‘Segundo telat egsvado nono LEVISTRAUSS, Claude. Ocnre oozido. Tad, Betis Petrone Mists, Sto Paul: Bastions, 1991p
ie
Inémeros conhecimentos so assim adquitidos a partir da experién-
cia pessoal. A crianga que se queima ao tocar 0 fogio aceso, aprende
que é quente. Se o toca uma segunda vez, depois uma terceira, constata
que é sempre quente. Daf infere uma generalizagdo: 0 fogio & quente,
queima! E uma conseqiiéncia para seus comportamentos futuros: 0 fo-
gio, é melhor nao toc4-lo.
A intuigio
INTUICAO percepgs0
imediata sem Um saber desse modo construfdo ¢ aceito assim que uma primeira com-
eee as Preensio vem & mente, Assim, da observagdo que 0 Sol nasce todos os
taciocinio (Aurétio) €, dias de um lado da Terra e se pde do outro, o homem pensou, por muito
por exceléncia, otipo tempo, que o Sol girava em torno da Terra. Essa compreensio do fendme-
do saber espontineo._ no parecen satisfatéria durante séculos, sem mais provas do que a sim-
ples observagao.
Em nossa linguagem de hoje, chamam-se tais explicagdes esponti-
neas de “senso comum’, as vezes de “simples bom-senso”. Ora, 0 senso
comum é, com freqiiéncia, enganador. Acreditar que 0 Sol gira em tomo
da Terra é uma ilustragao patente disso. O bom-senso faz-nos dizer mui-
tas outras dese género. Quem, por exemplo, nao ouviu a declaragao de
que os diplomados sdo “desempregados instrufdos”, ao passo que a taxa
de desemprego é inversamente proporcional ao nivel de escolaridade;
ou que os segurados sociais “so preguicosos”, a despeito da considera-
do das condigdes reais do emprego; ou que as mulheres siio menos
capazes de raciocinar matematicamente que os homens, enquanto que,A ConsTRUGAO DO SABER
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feitas as verificagées, nfo é nada disso, Poder-se-ia multiplicar os exem-
plos dessas compreensdes répidas vindas do senso comum, ou seja, dos
saberes origindrios de observagGes imediatas e sumérias da realidade.
‘0 senso comum no deixa de produzir saberes que. como 0s de-
mais, servem para a compreensio de nosso mundo e de nossa sociedade,
e para nela viver com o auxilio de explicagdes simples e cémodas. Mas
deve-se desconfiar dessas explicagdes, uma vez.que podem ser um obsté-
culo & construgio do saber adequado, pois seu cardter aparente de evidén-
cla redaz a vontade do verfic-fo. Falls, provaveimente o quo Ibes
permite, muitas vezes, serem aceitas apesar de suas lacunas. Desse modo,
em nossa sociedade, nfo se aceitam igualmente os ditados “Diga-me
com quem andas e te direi quem és” € "Os opostos se atraem”, ou até
“Tal pai, tal filho” e “Pai avarento, filho prédigo”, mesmo se tais dita-
dos se contradigam?
A tradicaio
Resta que, quando tais explicagdes parecem suficientes, deseja-se di-
vulgé-las, compartilhé-las. E desse modo que se elabora a tradigao, prin-
cipio de transmissao de tal saber,
Na familia, na comunidade em diversas escalas, a tradig&o lega sa-
ber que parece titil a todos e que se julga adequado conhecer para con-
duzir sua vida, Esse saber é mantido por ser presumidamente verdadeiro
hoje em dia, e 0 € hoje porque o era no passado e deveria assim perma-
necer, pensa-se, no futuro. A tradicHio dita o que se deve conhecer, com-
preender, ¢ indica, por conseqiiéncia, como se comportar. Diz, por exem-
plo, qual é 0 melhor momento para semear o campo, para langar sua
rede; ensina quais sfo as regras bésicas de convivéncia, como curar tal
ou tal doenga; pode chegar a desaconselhar a ingestio de leite com man-
2, como em algumas regides do Brasil, ou afirmar que um dente de
alho acaba com a gripe...
Os saberes que a tradigao transmite parecem, as vezes, néo se base-
arem em qualquer dado de experiéncia racionalizada. Assim, transmite-
se, em uma sociedade como a nossa, a superstigfio de que o mimero 13
(raz azar — a ponto de, em certos hotéis ou edificios pablicos, nao ser
contado 0 décimo terceiro andar! Mas, em relaco a outras crengas do
género, pode-se suspeitar da validade da experiéncia. Assim, acreditar
{que passar sob uma escada dé azar vem provavelmente de infelizes ex-
periéncias reais (pode-se imagind-las facimente!). Do mesmo modo,
bem antes de se dispor dos conhecimentos trazidos pela ciéncia moder-
na sobre as conseqiiéncias do incesto e dos casamentos consangilineos,
a tradigdo proibia essas préticas na maioria das sociedades: pode-se su-
por que a observagiio de suas conseqiiéncias teria oportunizado um si
ber espontineo.