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H 5 c offfl ^ Benedict Anderson

NAÇÃO
E CONSCIÊNCIA
NACIONAL
Tradução de
Lólio Lourenço de Oliveira
He regards it as his task to brush history against the grain*
Walter Benjamin, fí/uminations

Thus from a Mixture of ali kinds began,


That Hefrogeneous Thing, An Englishman:
In eager Rapes, and furious Lust begot,
Betwixt a Painted Britton and a Scot.
Whose gend'ring Offspring quickly learnt to bow,
And yoke their Heifers to the Roman Plough:
From whence a Mongrel half-bred Race there carne, •
With neither Name nor Nation, Speech or Fame.
In whose hot Veins new Mixtures quickly ran,
!nfus'd betwixt a Saxon and a Dane.
While their Rank Daughters, to their Parents just,
Rece'iv'd ali Nations with Promiscuous Lust.
This Nauseous Brood directly did contaín
SUMÁRIO
The well-extracted Blood of Engfíshmen...*"

Excerto de Daniel Defoe, The True-Bom Englishman

1. Introdução • 9
2. Raízes culturais 17
3. As origens da consciência nacional',, 46
l Encara como tarefa sua contrariar o sentido da história.
' Assim da uma mistura de todos os tipos começou
4. Antigos impérios, novas nações 57
£ssa coisa heterogénea, um inglês;
Gerado em estupros ardentes e arrebatada luxúria
5. Antigas línguas, novos modelos 77
Entre um bretso sardento e um escocês'.
' Cuja prole procriadora logo aprendeu a curvar-se,
6. Nacionalismo oficial e imperialismo 94
E jungiu suas novilhas ao arado romano:
.E dal uma raça mestiça impura se originou,
7. A última onda _____________ 124
Sem nome nem nação, sem fala ou fama.
Em cujas vaias ardentes novas mesclas logo se fundiram.
8. Patriotismo e racismo 154
Infundidas entre um saxão e um dinamarquês.
Enquanto suas filhas nobres, exatamente como os pais.
9. O anjo da história 169
Receberam todas as nações com promíscua luxúria.
Essa raça repulsiva continha do fato diretamente
Bibliografia __ 177
O sangue de boa extração dos ingleses...
índice alfabético 184
l
INTRODUÇÃO

Talvez não se tenha ainda percebido que está ocor-


J rendo uma transformação fundamental na história do
marxismo e dos movimentos marxistas. Seus sinais mais
perceptíveis são as recentes guerras entre o Vietnã, o Cam-
boja e a China. Essas guerras são de importância históri-
ca mundial, por serem as primeiras a ocorrer entre regi-
mes cuja independência e credenciais revolucionárias são
( inegáveis, e porque nenhum dos beligerantes procurou, se-
não perfunctoriamente, justificar o derramamento de san-
gue em termos de uma perspectiva teórica marxista aceitá-
vel. Embora fosse ainda perfeitamente possível interpre-
tar os conflitos fronteiriços de 1969 entre a China e a
União Soviética, as intervenções militares soviéticas na
Alemanha (1953), na Hungria (1956), na Checoslováquia
(1968) e no Afeganistão (1980), em termos de — confor-
me o gosto — "imperialismo social", "defesa do socialis-
í mo", etc., ninguém, penso eu, acreditará seriamente que
esse tipo de vocabulário tenha muito a ver com o que ocor-
reu na Indochina.
Se a invasão e a ocupação vietnamitas do Camboja,
em dezembro de 1978 e janeiro de 1979, representaram a
primeira guerra convencional em grande escala empreen-
t dida por um regime marxista revolucionário contra ou-
11

iro. ' o ataque da China ao Vietnã, em fevereiro, confir- nar-se nacionais não apenas na forma, mas também na subs-
as;/ rapidamente o precedente. Apenas os mais confiantes tância, isto é, nacionalistas. Nada indica que essa tendên-
-•leriam apostar que, nos anos finais deste século, qual- cia não persistirá". 3 E essa tendência não se limita ao
quer deflagração importante de hostilidades entre Estados mundo, socialista. Quase todos, os anos, as Nações Unidas
encontrará a União Soviética e a China Popular — para admitem novos membros. E muitas das "velhas nações",
não falar nos Estados socialistas menores — apoiando ou antes consideradas plenamente Consolidadas, vêem-se amea-
combatendo do mesmo lado. Quem pode estar seguro de çadas por "sub"-nacionalismoâ no interior de suas frontei-
que a lugoslávia e a Albânia não irão entrar em choque al- ras — nacipnalismos que, naturalmente, sonham com li-
gum dia? Os variados grupos que pedem a retirada do Exér- vrar-se algum dia dessa condição de "sub". A realidade é
cito Vermelho de seus acampamentos na Europa Oriental muito clara: o "fim dos tempos do nacionalismo", há tan-
devem recordar o quanto a presença dominante dessas for- to tempo profetizado, não está à vista, nem de longe. De
ças tem evitado, desde 1945, conflitos armados entre os re- fato, a nation-ness * constitui o valor mais universalmente
gimes marxistas da região. legítimo na vida política de nossa era.
Essas considerações são úteis para salientar o fato de Porém, se os fatos são evidentes, sua explicação conti-
que, desde a Segunda Grande Guerra, cada uma das revolu- nua sendo .tema de uma disputa há muito existente. Nação,
ções vitoriosas tem-se definido em termos nacionais — a Re- nacionalidade, nacionalismo — todos têm-se demonstrado
pública Popular da China, a República Socialista do Vietnã, difíceis de definir, quanto mais de analisar. Em contraposi-
e assim por diante — e, ao f aze-Io, basearam-se firmemente ção à enorme influência que o nacionalismo tem exercido
em um espaço territorial e social herdado do passado pré-re- no mundo moderno, é notoriamente escassa a teoria plausí-
voliicionário. Ao contrário, o f ato de a União Soviética com- vel a respeito de.le. Hugh Seton-Watson, autor do indubita-
partilhar com o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do velmente melhor e mais abrangente texto em língua ingle-
Norte o mérito incomum de não incluir a nacionalidade em sa a respeito do nacionalismo, e herdeiro de vasta tradição
sua denominação indica que ela tanto é a legatária dos Esta-r da historiografia e da ciência social liberais, observa pesaro-
dos dinásticos pré-nacionais do século XIX, quanto a precur- samente: "Desse modo, sou levado à conclusão de que não
sora de uma ordem internacionalista do século XXI. 2 se pode estabelecer nenhuma 'definição científica1 de nação;
Eric Hobsbawm está perfeitamente correto ao afirmar contudo, o fenómeno tem existido e continua a existir". 4
que "os movimentos e Estados marxistas tenderam a tor- Tom Nairn, autor da obra pioneira The Break-up of Bri-
tam, e herdeiro da não menos vasta tradição da historiogra-
1Exprimimo-nos dessa maneira apenas para enfatizar a escala e o estilo da luta, e não
fia e da ciência social marxistas, observa francamente: "A
como censura. Para evitar possíveis mal-entendidos, é preciso dizer que a invasão teoria do nacionalismo representa o grande fracasso histó-
de dezembro de 1978 originou-se de choques armados, possivelmente desde 1971,
entre guerrilheiros dos dois movimentos revolucionários. Depois de abri! de 1977, ata- rico do marxismo", s Até mesmo essa confissão, porém,
ques fronteiriços, iniciados pelos cambojanos, mas logo imitados pelos vietnamitas, é algo enganadora, na medida em que se possa considerar
aumentaram em grandeza e alcance, culminando na incursão vietnamita mais impor-
tante de dezembro de 1977, Nenhum desses ataques, porém, visava à derrubada do
regime do inimigo, ou ã ocupação de granda extensão de território, bem como o nú-
mero de soldados envolvidos n5o ers comparável ao que se deslocou om dezembro 3 Eric Hobsbawm, "Some Rofloctions on 'The Braak-up o.f Britain' ". tJeitr Lelt Review*
de 1978. A controvérsia a respeito das causas da guerra 6 investigada ponderadarnen- 105 (setambro-outubro de 1977). p, 13.
te em Stepnen P. Hader, "The Kampuchean-Vietnamese Confliet", in David W. P. El- " O autor emprega diversas vezes a palavra nation-ness, por ele cunhada, em lugar de
liott, org., The Ttârd Indochina Confíict, p. 21-67; Anthony Batnett, "Inter-Commu- ' natlonalíly !cf. p, 12). Impossível criar um correspondente português; por isso, manti-
nist Conflicts and Vietnam", Bvllstin of Concerned Asían Scbolars, 11:4 (outubro-de- ve em Inglês todas as vezes (MT).
zembro de 1979), p, 2-9; e Laura Summers, "In Matters of War and Sccialism An- 4 Ver seu Nations and States, p. 5. Grifo nosso.
thony Barnett would Shsme and Honour Kampuchsa Too Much", ibid., p. 10-8. 5 Ver seu "The Modern Jsnus", New Left Review, 94 Inovembro-dszembro do 1975),

3 Se alguém duvidar de que o Reino Unido merece asso tipo de paridade com a URSS, p. 3. Este ensaio foi incluído sem alterações como capitulo 9 do The Break-up of Brí-
devaié Indagar-se que nacionalidade sã denota por oste nome: grâo-breto-irlandês? tsin (p. 329-63I.
12

que implica no resultado lastimável de uma busca prolonga- nea de um "cruzamento" complexo de forcas históricas;
da e deliberada de clareza teórica. Seria mais exato dizer mas que, uma vez criados, tornaram-se "modulares", pas-
que o nacionalismo tem se revelado uma incómoda anoma- síveis de serem transplantados, com graus diversos de cons-
lia para a teoria marxista e, exatarnente por essa razão, tem ciência e a grande variedade de terrenos sociais, para se in-
sido amplamente evitado, mais do que enfrentado. Como corporarem à variedade igualmente grande de constelações
explicar de outro modo a falha do próprio Marx para ex- políticas e ideológicas. Procurarei também demonstrar por
plicar o pronome crucial em sua memorável formulação que esses artefatos culturais peculiares têm suscitado afetos
de 1848: "O proletariado de cada país deve, naturalmente,
antes de mais nada, ajustar contas com sua própria burgue- tão profundos.
sia"? 6 Como justificar doutro modo o emprego, por mais
de um século, do conceito de "burguesia nacional", sem
qualquer tentativa séria de justificar teoricamente a impor- Conceitos e definições
tância do adjetivo? Por que esta segmentação da burguesia
— uma classe mundial, visto que se define em termos das Antes de tratarmos das questões acima propostas, pa-
relações de produção — é teoricamente importante? rece aconselhável considerar sumariamente o conceito de
O que este livro pretende é oferecer algumas sugestões "nação" e oferecer uma definição viável. Os teóricos do
exploratórias para uma ínterpretaçãp mais aceitável da "a- nacionalismo têm, muitas vezes, ficado perplexos, para não
nomalia" do nacionalismo. Minha impressão é que, quan- dizer irritados, com estes três paradoxos: 1. A modernida-
to a esse tema, tanto a teoria marxista quanto a liberal têm- de objetiva das nações aos olhos do historiador vs. sua an-
se debilitado em um tardio esforço ptolomaico para "sal- tiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. 2. A uni-
var o fenómeno"; e que se requer, com urgência, uma reo- versalidade formal da nacionalidade como conceito socio-
rientação de perspectiva num espírito por assim dizer co- cultural — no mundo moderno, todo mundo pode e deve
pernicano. Parto de que a nacionalidade, ou, como talvez "ter", e "terá" uma nacionalidade, tanto quanto terá um
se prefira dizer, devido às múltiplas significações dessa pa- sexo — vs. a particularidade irremediável de suas manifes-
lavra, naíion-ness, bem como o nacionalismo, são artefa- tações concretas, tal que, por definição, a nacionalidade
tos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los ade- "grega" é sui generis. 3. O poder "político" dos naciona-
quadamente é preciso que consideremos com cuidado co- lismos vs. sua pobreza, e até mesmo incoerência, filosófi-
mo se tornaram entidades históricas, de que modo seus sig- ca. Em outras palavras, diversamente da maioria dos ou-
nificados se alteraram no correr do tempo, e por que, ho- tros "ismos", o nacionalismo jamais produziu grandes pen-
je em dia, inspiram uma legitimidade emocional tão profun- sadores próprios:-nem Hobbes, nem Tocquevilles, nem
da. Tentarei demonstrar que a criação desses artefatos, por Marxs, nem Webers. Facilmente, esse "vazio" desperta, en-
volta dos fins do século XVIII, 7 foi a destilação espontâ- tre intelectuais cosmopolitas e poliglotas, um certo ar de su-
perioridade. Do mesmo modo que Gertrude Stein diante
6 Karl Marx e Friedrich Engels, The Comrminist Manifesto, in Setscted Works, l, p. 46. de Oakland, poder-se-ia sem dúvida concluir rapidamente
Grifo nosso. Em qualquer exegese teórica, a palavra "naturalmente" seria um sina) que "lá não existe lá nenhum". É típico que até mesmo
de alerta para o leitor entusiasmado,
' Como observa Aíra Kemilãlnen, a dupla de "pais" do estudo académico sobre o nacio- um estudioso tão solidário com o nacionalismo quanto-Tom
nalismo, Hans Kohn e Carlaton Haves, argumentava persuasivamente em favor des-
sa datação, Creio que suas conclusões não foram seriamente contestadas, a não ser
Nairn tenha no entanto podido escrever que: "o 'naciona-
por ideólogos nacionalistas em determinados países. Kemilâinen observa também que lismo' é a patologia da moderna história do desenvolvimen-
a palavra "nacionalismo" sá passou a ser amplamente empregada em fins do século
XIX. Ela não aparece, por exemplo, em muitos dicionários correntes do século XIX. to, tão inevitável quanto a 'neurose' no indivíduo, trazen-
Quando Adam Srnith invoca a riqueza das "nações", não se refere com essa palavra do consigo muito da mesma ambiguidade essencial, uma ca-
senão a "sociedades" ou "Estados". Aira Kemilãinen, Nationalism, p. 10, 33 e 48-9-
pacidade implícita semelhante para degenerar em demência,
15

nos dilemas do desamparo imposto à maior par- tá tão ansioso em demonstrar que o nacionalismo se dissi-
;í do mundo (o equivalente do infantilismo, para as socie- mula sob falsas aparências, que assimila "invenção" a "con-
dades), e em grande medida incurável". 8 trafação" e "falsidade", ao invés de assimilá-la a "imagi-
Parte da dificuldade é que as pessoas tendem incons- nação" e "criação". Desse modo, insinua que existem co-
cientemente a hipostasiar a existência do Nacionalismo- munidades "verdadeiras" que se podem sobrepor vantajo-
com-N-grande — como se poderia fazer com Idade-com-I- samente às nações. De fato, todas as comunidades maiores
maiúsculo — e, a seguir, a classificá-"lo" como uma ideo- do que as primitivas aldeias de contato face a face (e, tal-
logia. (Observe-se que, se todo mundo tem uma idade, a vez, até mesmo estas) são imaginadas. As comunidades
Idade não passa de uma expressão analítica.) Creio que as não devem ser distinguidas por sua falsidade/autenticida-
coisas ficariam mais fáceis, se ele fosse tratado como asso- de, mas pelo estilo em que são imaginadas. Os aldeões ja-
ciado a "parentesco" e "religião", mais do que com "libe- vaneses sempre souberam que estavam ligados a pessoas
ralismo" ou "fascismo". que jamais haviam visto, mas tais vínculos eram outrora
Dentro de um espírito antropológico, proponho, en- imaginados de maneira particuiarista — como malhas inde-
tão, a seguinte definição para nação: ela é uma comunida- finidamente extensas de parentesco e de dependência. Até
de política imaginada — e imaginada como implicitamen- muito recentemente, a língua javanesa não possuía uma pa-
te limitada e soberana. lavra para significar a abstração "sociedade". Hoje pode-
Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das mos pensar na aristocracia francesa do ancien regime co-
menores nações jamais conhecerão a maioria de seus com- mo uma classe; mas certamente ela só foi imaginada desse
patriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar modo muito tardiamente. 12 À pergunta "Quem é o Con-
deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de X?", a resposta normal teria sido, não "um membro
de sua comunhão. 9 Renan referiu-se a esse ato de imagi- da aristocracia", mas "o senhor de X", "o tio da Barone-
nar, à sua maneira suavemente sarcástica, quando escreveu sa de Y", ou "um vassalo do Duque de Z".
que "Or l'essence d'une nation est que tous lês individus A nação é imaginada como limitada, porque até mes-
aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous mo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres hu-
aient oublié bien dês choses". 10 Algo ferozmente; Geílner manos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para
insiste de maneira semelhante quando estabelece que "o na- além das quais encontram-se outras nações. Nenhuma na-
cionalismo não é o despertar das nações para a autocons- ção se imagina coextensiva com a humanidade. Nem os na-
ciência: ele inventa nações onde elas não existem". u O in- cionalistas mais messiânicos sonham com um dia em que
conveniente dessa formulação, contudo, é que Geílner es- todos os membros da raça humana se juntem a sua nação,
do mesmo modo como foi possível que em certas épocas
8 The Bre&k-up aí Britam, p. 3S9.
os cristãos, digamos, sonhassem com um planeta inteira-
8 Cf. Seton-Watson, Nations antí States, p. 5: "O qua posso dizer é que uma naçSo mente cristão.
existe guando um número significativo de pessoas da uma comunidade considera
que constituem uma nação, ou se comportam como se constituíssem uma nação". É imaginada como soberana, porque o conceito nas-
Podemos traduzir "considera" por "Imagina".
10 Ernest Renan, "Qu'éít-ce qu'une nation?" in Oeuvres Completes, \. p. 892. Acres-
ceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução esta-
centa ele: "tout citoyen [rançais doit avoir oublié Ia SBint-Barthélemy, lês massacres vam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárqui-
du Midi au XVIils siècle. II n'y a pás en France dix familles qui puissent fournlr Ia preu-
ve d'une origine franqua..." (no texto: "... a essência de uma nação é que os indiví-
co, divinamente instituído. Atingindo a maturidade numa
duos tenham muitas coisas em comum e, também, que todos tenham esquecido
muitas coisas" — na nora: "todo cidadão francês deve ter esquecido a noite do S3o
Bartolomeu, os massacres do Sul, no século XVIII. Nio na dez famílias na Franca 12 Hobsbawm, por exemplo, "fixa" isso ao dizer que, em 1789, ela montava a 400.000
qua possam apresentar provas de origem franca...") pessoas, numa população de 23.000.000 (ver seu The Age of Rcvolution, p. 78).
11 Emest Gollnor, Thought and Change, p. 169. Grifo nosso. Mas essa descrição estatística da nobreza poderia ser pensada ao tampo do ancien régimoj
16

etapa da história humana em que até mesmo os mais devo-


tos adeptos de qualquer das religiões universais se defronta-
vam inevitavelmente com o pluralismo vivo de tais religiões,
e com o alomorfismo entre os reclamos ontológicos de ca- RAÍZES CULTURAIS
da fé e o território ocupado por ela, as nações sonham
em ser livres e, se sob as ordens de Deus, que seja direta-
mente. O penhor e o símbolo dessa liberdade é o Estado so-
berano.
Finalmente, a nação é imaginada como comunidade
porque, sem considerar a desigualdade e expioração que
atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre
concebida como um companheirismo profundo e horizon-
tal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possí-
vel, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões
de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente
por imaginações tão limitadas.
Essas mortes lançam-nos abruptamente cara a cara Não há símbolo mais impressionante da moderna cultu-
com o problema fundamental proposto pelo nacionalismo: ra do nacionalismo do que os cenotáfios e os túmulos de Sol-
o que faz com que as minguadas imaginações da história dados Desconhecidos. A reverência pública ritual outorgada
recente (pouco mais de dois séculos) dêem origem a sacrifí- a tais monumentos, precisamente porque estão deliberada-
mente vazios, ou ninguém sabe quem jaz dentro deles, não
cios tão colossais? Creio que as origens de uma resposta en- encontra precedentes em épocas passadas. ' Para que se sin-
contram-se nas raízes culturais do nacionalismo. ta a força dessa inovação, basta imaginar a reação geral a al-
gum intrometido que "descobrisse" o nome do Soldado Des-
conhecido, ou insistisse em introduzir dentro do cenotáfio al-
guns ossos de verdade. Seria um sacrilégio de estranha espé-
cie, contemporânea! Por mais que esses túmulos estejam va-
zios de quaisquer restos mortais identificáveis, ou almas imor-
tais, eles estão, porém, saturados de fantasmagóricas imagina-
ções nacionais.2 (Razão por que nações as mais diversas pôs-

1 Os antigos gregos tinham cenotáfios, porém para indivíduos determinados, conheci-


dos, cujos corpos, por uma ou outra razão, não pudessem ser recuperados para um
enterro normal. Devo essa informação a minha colega bizantinísta, Judith Herrin.
2 Considerem-se, por exemplo, estes notáveis tropos: 1. "A longa linha cinzenta jamais
nos -faltou. Se vocês fossem fazê-lo, um milhão de lantesmas em verda-oliva. em ca-
qui, em azul e em cinzento se ergueriam de sob suas cruzes brancas, bradando estas
palavras mágicas: dever, honra, pátria." í, "Minha avaliação Ido soldado norte-ame-
ricano] formou-se no campo do batalha, muitos anos atrás, a jamais se alterou. Eu o
via então, como o vejo agora, como uma das mais nobres figures do mundo; não sã
como e que possui es características militares mais perfeitas, mas também corno das
mais Imaculadas [sicl... Ele pertence á história como aquele que oferece um dos maio-
res exemplos de patriotismo bem-sucedido Isicl. Ele pertence à posteridade como o
mentor das futuras gerações nos princípios da independência e da liberdade. Ele pgr-
tance ao presente, a nós, por suas virtudes e porr MJ g s realizações." Douglas MacAr-
thur, "Duty, Honour. Country", discurso perante' ^Academia Militar dos EUA, West
Point, 12 da maio de 1962, em seu A Soldier Sp. is, p. 354 a 357.
19
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silêncio intolerante. 3 Ao mesmo tempo, e 6e diferentes
suem esse tipo de túmulos, sem sentir qualquer necessidade modos, o pensamento religioso reage também aos obscu-
de especificar a nacionalidade de seus ocupantes ausentes. ros sinais de imortalidade, em geral transformando a fata-
Que mais poderiam eles ser senão alemães, ou norté-america- lidade em continuidade (karma, pecado original, etc,).
nos, ou argentinos,... ?) Desse modo, ele se ocupa dos vínculos entre os mortos e
O significado cultural de tais monumentos torna-se os nascituros, o mistério da reencarnação. Quem vivência
ainda mais claro, se se procura imaginar, digamos, um Tú- a concepção e o nascimento do próprio filho sem ter a in--
mulo do Marxista Desconhecido, ou um cenotáfio para os definida sensação de uma mistura de conexão, casualida-
Liberais mortos. Não se poderia evitar um sentimento de de e fatalidade em uma linguagem de "continuidade"?
absurdo. Â razão disso é que nem o marxismo, nem o libe- (Também aqui a desvantagem do pensamento evolucioná-
ralismo, se preocupam muito com a morte e corn a imorta- rio/progressista é uma hostilidade quase heraclitiana a
lidade. Se a imaginação nacionalista se preocupa tanto, is- qualquer ideia de continuidade.)
to indica forte afinidade com as imaginações religiosas. Co- Trago à baila essas observações talvez simplórias,
mo essa afinidade não é absolutamente fortuita, será conve- primordialmente porque, na Europa ocidental, o século
niente iniciar pela morte o exame das raízes culturais do na- XVIII assinala não apenas o raiar da era do nacionalis-
cionalismo, por ser ela a última de toda uma escala de fata- mo, mas também o crepúsculo das modalidades religiosas
lidades. de pensamento. O século do Iluminismo, da secularidade
Se habitualmente parece arbitrária a maneira como racionalista, trouxe consigo suas peculiares trevas moder-
um homem morre, sua mortalidade é inevitável. A vida nas. Com o refluxo da fé religiosa, não desapareceu o só-'
frimento que a fé em parte mitigava. Desintegração do pa-
humana é cheia desse tipo de associação entre necessida- raíso: nada torna a fatalidade mais arbitrária. Absurdo
de e acaso. Estamos todos cientes da contingência e inevi- da salvação: nada torna mais necessário um outro estilo
tabilidade de nossa herança genética particular, de nosso de continuidade. O que se.demandava, então, era uma
sexo, da época em que vivemos, de nosso potencial físi- transformação secular da fatalidade em continuidade, da
co, de nossa língua maternaj e assim por diante. O gran- contingência em significado. Como veremos, poucas coi-
de mérito das visões de mundo das religiões tradicionais sas se adaptavam (se adaptam) melhor a essa finalidade
(que, naturalmente, deve distinguir-se de seu papel na le- do que uma ideia de nação. Se é amplamente reconheci-
gitimação de sistemas específicos de dominação e de ex- do que os Estados-nação são "novos" e "históricos",
ploração) tem sido sua preocupação com o homem-no-
cosmos, o homem como ser específico, e a contingência
da vida. A extraordinária sobrevivência, por milhares de 3 Cf. Régis Debray, "Marxism and the National Question", Wew Lett Ftevien, 105 (se-
tombro-outubro de 1977), p, 29. No correr de uma pesquisa de campo na Indonésia,
anos, do budismo, do cristianismo ou do islamismo, em na década de 1960, chocou-me a deliberada recusa do muitos muçulmanos o m acoi-
dezenas de formações sociais diversas, atesta sua respos- tar as ideias de Oarwin. De início, interpretei essa recusa como obscurantismo. Pos-
teriormente, vim a compreender que 03 trata de unia louvável tentativa de ser coe-
ta imaginativa à esmagadora carga de sofrimento huma- rente: simplesmente a doutrina da evolução ara incompatível com os ensinamentos
do Islã, Que devemos nos fazer com um materialismo cientifico que formalmente ad-
no — doença, mutilação, pesar, idade e morte. Por que mita as descobertas da física sobre a matéria e, contudo, esforça-se tão pouco pá*
nasci cego? Por que meu melhor amigo ficou paralítico? rã ligar essas descobertas à luta de classes, a revolução, ou ao que quer que seja?
O abismo entre os pró tons e o proletariado não ocultaria uma nfio admitida concep-
Por que minha filha é retardada? As religiões procuram ção metafísica do homem? Veja porém os interessantes textos de Sebastiano Ttmpa-
explicar. A grande fraqueza de todos os estilos evolucio- naro, On Materielisiw and The Freudian Sfíp: e a ponderada réplica de Ravmond Wil-
liams, "Timpanaro's Materialíst Chatlenge", A/etv Lett flewsw, 109 Imaio-junho de
nários/progressistas de pensamento, sem exclusão do 1978), p. 3-17.
marxismo, é que tais perguntas são respondidas com um
20 21

as nações a que eles dão expressão política assomam de A comunidade religiosa


um passado imemorial, 4 e, ainda mais importante, desli-
zam para um futuro ilimitado. A mágica do nacionalis- Poucas coisas causam maior impressão do que a enor-
mo consiste em transformar o acaso em destino. Pode- me extensão territorial da Ummah Islam, do Marrocos ao
mos dizer, com Debray, "Sim, é inteiramente acidental Arquipélago Sulu; da cristandade, do Paraguai ao Japão; e
que eu tenha nascido francês; mas, afinal de contas, a do mundo budista, do Sri Lanka à península coreana. As
França é eterna". grandes culturas, sagradas (e, para nossos fins, é permissível
Não é preciso dizer que não estou declarando que o que incluamos o "confucionismo") incorporaram concep-
aparecimento do nacionalismo em fins do século XVIII ções de comunidades imensas. Porém, a cristandade, a Um-
foi "produzido" pela erosão das certezas religiosas, ou mah Islam, e até mesmo o Império do Centro — o qual, em-
que essa erosão não exija, ela mesma, uma explicação com- bora hoje pensemos nele como chinês, não se imaginava co-
plexa. Como também não estou sugerindo que de algu- mo chinês, mas sim como central — eram imagináveis em
ma forma o nacionalismo "suplanta" historicamente a re- grande parte mediante uma linguagem sagrada e um texto es-
ligião. O que proponho é que o nacionalismo deve ser crito. Basta tomar o exemplo do Islam: se maguindanaos e
compreendido pondo-o lado a lado, não com ideologias berberes se encontram em Meca, embora nada conheçam
políticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemas da língua um do outro e sejam incapazes de se comunicar
oralmente, compreendem no entanto os ideogramas uns dos
culturais amplos que o precederam, a partir dos quais
— bem como contra os quais — passaram a existir. outros, porque os textos sagrados que compartilham só exis-
tem em árabe clássico. Nesse sentido, o árabe escrito funcio-
Para nossos objetivos, os dois sistemas culturais rele- nou como os caracteres chineses para criar uma comunida-
vantes são a comunidade religiosa e o reino dinástico. de a partir dos signos, e não a partir dos sons. (Assim, ho-
Pois ambos, em seu apogeu, eram aceitos como verdadei- je em dia, a linguagem matemática continua uma velha tra-
ros quadros de referência, tanto quanto é, hoje em dia, dição. Os romenos não têm a menor ideia de como o sinal
a nacionalidade. É essencial, por isso, considerar o que " + '' é chamado pelos tai, e vice-versa, mas uns e outros
dava a esses sistemas culturais sua manifesta plausibilida- compreendem o símbolo.) Todas as grandes comunidades clás-
de e, ao mesmo tempo, salientar determinados elementos- sicas concebiám-se como cosmicamente centrais, mediante
chave de sua decomposição. uma linguagem sagrada vinculada a uma ordem de poder su-
praterrestre. Conseq-iientemente, o alcance do latim, do páli,
4 O falecido presidente Sukarno sempre falou com inteira sinceridade sobre os trezen- do árabe, ou do chinês escritos era, teoricamente, ilimitado.
tas e cinquenta anos de colonialismo suportados por sua "Indonésia", embora o pró- (Na verdade, quanto mais morta a lingua escrita — quanto
prio conceito de "Indonésia" seja ume invenção do século XX, e a maior parte da In*
donásia de hoje tenha sido conquistada pelos holandeses entre 1850 e 1910. Entre mais distante estivesse da fala — melhor: em princípio, to-
os heróis nacionais da indonésia contemporânea tem primazia o príncipe javanês do do mundo tem acesso a um mundo abstrato de signos.)
início do século XIX, Oíponegoro, muito embora as próprias memórias desse prfnci-
pe mostrem que ele, antes, pretendia "conquistar InSo ItbertarlJ Java". do que ex- Contudo, tais comunidades clássicas vinculadas por
pulsar "os holandeses". De fato, é evidente que ele não tinha um conceito de "ho-
landeses" como uma coletividade. Var Harry J. Bonda e John A. Larkin, orgs., The
línguas sagradas tinham caráter distinto das comunidades
WbfltiofSoulheastAsia, p, 158: e Ann Kumar, "Dtponegoro 117787-1855)", Indoné- imaginadas das nações modernas. Diferença essencial era
sia, 13 (abril de 1972), p. 103. Grifo nosso. Analogamente, K em ai Ataturk deu a
um de seus bancos estatais o nome de Eti Banka (Banco Hitita) s a outro. Banco Su-
a segurança das antigas comunidades quanto à sacralida-
meriano (Seton-Watson, Natlons and States, p. 259). Esses bancos são prósperos de singular de suas línguas e, daí, suas ideias a respeito
hoje em dia e não há razão pare duvidar-se de que muitos turcos, possivelmente sem
excluir o próprio Kemal, viarn e vêem, seriamente, nos hititas e nos sumerianos,
da admissão de novos membros. Os mandarins chineses en-
seus ancestrais turcos. Antes de começar a rir, devemos lembrar de Artur e Boadi- caravam com aprovação os bárbaros que penosamente
céia. e refletir sobre o êxito comercial das mitografias de Tolkien.
aprendiam a desenhar os ideogramas do Império do Centro.
23
22
realidade e não representações suas, aleatoriamente fabrica-
Tais bárbaros já estavam a meio caminho da absorção com- das. Todos conhecemos bem a longa disputa a respeito da
pleta. 5 Ser meio-civilizado era muitíssimo melhor do que língua adequada para as massas (latim ou língua vulgar").
ser 'bárbaro. Essa atitude não era por certo peculiar aos Na tradição islâmica, até muito recentemente, o Corão era
chineses, nem limitada à antiguidade. Observem, por exem- literalmente intraduzível (e, por isso, não era traduzido),
plo, a seguinte "política relativa aos bárbaros" formula- porque a verdade de Alá somente era acessível mediante
da em princípios do século XIX pelo liberal colombiano os insubstituíveis signos verdadeiros da língua árabe escri- '
Pedro Fermín de Vargas: ta. Não existe, neste caso, nenhuma ideia de .um mundo tão
Para expandir nossa agricultura seria necessário hispanizar desligado da língua que todas as línguas constituíssem pa-
nossos índios. Sua preguiça, sua estupidez e sua indiferen- ra ele signos equidistantes (e, portanto, intercambiáveis).
ça em relação aos empreendimentos humanos normais le- De fato, a realidade ontológica somente é apreensível por
vam a pensar que provêm de uma raça degenerada que meio de um sistema único e privilegiado de re-[a]presenta-
se deteriora à medida que se distancia de suas origens... ção: a língua-verdade do latim da Igreja, do árabe do Cõ-
seria muito desejável que os índios fossem extintos, pela rão, ou o chinês dos exames. 7 E, como línguas-verdade, im-
miscigenação com os brancos, sendo declarados livres de . pregnadas de um impulso em grande medida estranho ao
impostos e outros encargos, e sendo-lhes atribuída a pro- nacionalismo, o impulso para a conversão. Por conversão,'
priedade privada da terra. 6
não quero tanto dizer a aceitação de dogmas religiosos par-
Como é admirável que esse liberal ainda proponha "extin- ' ticulares, mas uma absorção alquímica. Os bárbaros torna-
guir" seus índios em parte "declarando-os livres de impos- ram-se "Império do Centro", os rif, maometanos, os ilon-
tos" e "atribuindo-lhes a propriedade privada da terra", è" go, cristãos. A natureza toda do ser. humano é maleável
não exterminando-os pelas armas e pelos micróbios, como do ponto de vista sagrado. (Contraste o prestígio dessas an-
seus sucessores no Brasil, na Argentina e nos Estados Uni- tigas línguas mundiais, pairando muito acima de todas as
dos começariam a fazer logo depois. Observe-se, também, línguas vulgares, com o esperanto ou o volapúk, que jazem
paralelamente à condescendente crueldade, o enorme otimis- ignorados entre aquelas e estas.) Afinal de contas, foi essa
mo: em última análise, o índio pode ser redimido — median- possibilidade de conversão pela língua sagrada que tornou
te fecundação com o sémen branco, "civilizado", e o rece- possível que um "inglês" se tornasse Papa 8, e um "man-
bimento de propriedade privada, como qualquer outra pes- chu", Filho do Céu.
soa. (Quão diferente é a atitude de Fermín da preferência Mas muito embora as línguas sagradas tornassem ima-
dos imperialistas europeus posteriores por "autênticos" ma- gináveis comunidades como a cristandade, o verdadeiro al-
laios, gurcas e haussas a "mestiços", "nativos semi-instruí- cance e plausibilidade dessas comunidades não podem ser
dos", "wogs", e coisas assim.) explicados apenas pelo texto sagrado: afinal,"seus leitores
Contudo, se as mudas línguas sagradas eram o meio eram pequeninos recifes letrados por sobre enormes ocea-
pelo qual as grandes comunidades globais do passado eram
imaginadas, a realidade de tais aparições dependia de uma
ideia em grande medida estranha ao pensamento ocidental "Llngua vulgar" foi a tradução que adotamos para vsrnacular, que o autor empre-
ga para referir-se à língua utilizada pelo comum das pessoas, G "n oposição Ss "lín-
contemporâneo: a não-arbitrariedade do signo. Os ideogra- guas sagradas" (NT).
mas da língua chinesa, latina ou árabe eram emanações da ' A Igreja grega pareço n3o ter atingido o status de uma Kngua-vardade. As razões
desse "fracasso" s3o divorsns, mus um fator-ciiavo (01 corlamontu o falo do quo n
Hngua grega continuou sendo uma fala vulgar viva (diferentemente do laiiml em gran-
de parte do império Oriental. Devo esse insight a Judith Herrin.
s Dal a equanimidade com que mongóis e manchus achinesados eram aceitos como 8 Michelas Brakespear assumiu o posto de pontífice entra 1154 e 1159, com o nome

Filhos do Céu, de Adriano IV.


6 John Lynch, Tfte Spanish-American Revoltitians, 1803-1826. p. 260. Grifos nossos.
24 25

nos analfabetos. 9 Uma explicação mais completa exige que vê a seguinte descrição reverente de Kublai Khan, feita pe-
se aluda à relação entre os homens de letras e suas socieda- lo bom veneziano cristão Marco Polo, em fins do século XIII:12
des, Seria enganoso encarar aqueles como uma espécie de
O grande cã, após obter essa memorável vitória, retornou
tecnocracia teológica. As línguas que eles sustinham, ain-
em grande pompa e triunfo à capital de Kanbalu. Isso teve
da que obscuras, nada tinham da obscuridade preparada lugar no mês de novembro, e ali continuava a residir nos
dos jargões dos advogados ou dos economistas, à margem meses de fevereiro e março; no último dos quais era nos-
da ideia que a sociedade tem da realidade. Ao invés disso, sa festa da Páscoa. Ciente de que essa era uma de nossas
os homens de letras eram iniciados, estratos estratégicos principais comemorações, ordenou que todos os cristãos
em uma hierarquia cosmológica cujo ápice era divino. 10 fossem até ele, trazendo consigo seu Livro, que contém
As concepções básicas a respeito de "grupos sociais" eram os quatro evangelhos. Após fazer com que ele fosse repeti-
centrípetas e hierárquicas, e não norteadas por fronteiras e das vezes perfumado com incenso, de maneira solene, bei-
horizontais. O espantoso poder do papado, em seu esplen- jou-o com devoção e determinou que o mesmo fizessem to-
dos os seus nobres ali presentes. Esse era seu rnodo habi-
dor, só é compreensível em termos de uma classe transeuro-
tual de agir em cada uma das festas cristãs mais importan-
péia de letrados em escrita latina e de uma concepção do tes, como a Páscoa e o Natal; e agia semelhantemente nas
mundo compartilhada virtualmente por todos, da qual a in- festas dos sarracenos, dos judeus e dos idólatras, Quando
telligenísia bilíngue, mediando entre a língua vulgar e o la- lhe foi perguntado o motivo dessa conduta, disse ele: "Há
tim, servia de mediador entre a terra e o céu. (O aterrador quatro grandes profetas que são reverenciados e venerados
da excomunhão reflete essa cosmologia.) pelas diversas classes de humanidade. Os cristãos encaram
Apesar de toda a grandeza e poder das grandes comu^ Jesus Cristo como sua divindade; os sarracenos, Maomé;
nidades imaginadas religiosamente, sua coerência não deli- os judeus, Moisés; e os idólatras, Sogomombar-kan, o mais
berada desvaneceu-se rapidamente depois do final da Ida- eminente de todos os seus ídolos. Reverencio e mostro res-
peito a todos os quatro, e invoco para mim a ajuda de se-
de Média. Dentre as razões dessa decadência, desejo desta-
ja qual for demre eles que é verdadeiramente o supremo
car apenas as duas que se relacionam diretamente com a sa- no céu". Porém, pela maneira pela qual sua majestade agia
cralidade singular dessas comunidades. diante deles, é evidente que encarava a fé dos cristãos co-
Em primeiro lugar, havia o efeito, na Europa, das mo a mais verdadeira e a melhor.,.
descobertas do mundo não-europeu, que, de modo prepon-
derante, mas de modo algum exclusivamente, "alargaram O que há de mais notável nessa passagem não é tanto
o tranquilo relativismo religioso (ainda que um relativismo
abruptamente o horizonte cultural e geográfico e, com is-
religioso) do grande -governante mongol, como a atitude e
so, também a concepção dos homens sobre as formas pos-
a linguagem de Marco Polo. Jamais lhe ocorre, embora es-
síveis de vida humana". " O processo já aparecia claramen-
crevendo para cristãos europeus seus iguais, qualificar Ku-
te no maior de todos os livros de viagem europeus. Obser-
blai de hipócrita ou idólatra. (Sem dúvida, em parte, por-
que "quanto ao número de súditos, à extensão do território
9 Marc Bloch lembra-nos que "a maioria dos senhores e muitos grandes barões (dos e ao montante da receita, ele supera qualquer soberano que
tempos medievais] eram administradores incapazes de examinar pessoalmente um
relatório ou uma conta". Feudal Society, l, p. 81. haja existido ou que agora exista no mundo".) n E na utili-
10 Isso nlo quer dizer que os analfabetos não liam. O que liam. porém, não eram pala- zação inconsciente de "nosso" (que se torna "seu") e na re-
vras, mas o mundo observável. "Aos olhos de todos os que eram capazes de refle
xão, o mundo material era pouco mais do que uma espécie de máscara, por detrás
da qual tinham lugar todas as coisas realmente importamas;'e!e lhes parecia tam-
bém uma língua, destinada a expressar por meio de símbolos uma realidade mais 1J Marco Polo, The Traveis of Marco Polo, p. 158-3. Grifos nossos. Observe-se que,
profunda." Bloch, p, 83. embora beijado, o Evangelho não é lido,
Erich Auerbach, Mimesis, p. 282. '3|bid., p. 152.
26

ferência à fé dos cristãos como "mais verdadeira", em vez


central do capitalismo editorial (print-capitalism) será discu-
de "verdadeira", podem-se descobrir as sementes de uma tida mais adiante. Basta que nos lembremos de sua dimen-
tcrritorializacão das fés, que faz antever a linguagem de são e ritmo. Febvre e Martin calculam que 77% dos livros im-
muitos nacionalistas ("nossa" nação é "a melhor" — em
pressos antes de 1500 ainda eram em latim (o que significa,
um campo comparativo, competitivo). no entanto, que 23% já eram em línguas vulgares). lfi Se das
Que contraste revelador oferece o começo da carta es- oitenta e oito edições impressas em Paris, em 1501, apenas
crita pelo viajante persa "Rica" a seu amigo "Ibben", de •oito não eram em latim, depois de 1575 a maioria era sem-
Paris, em "1712' V i . 14
pre em francês. n Apesar de uma reaparição temporária du-
O Papa é o chefe dos cristãos; é um ídolo antigo, agora re- rante a Contra-Reforma, a hegemonia do latim tinha seu
verenciado por hábito. Outrora, ele amedrontava até mes- destino marcado. E não falamos apenas da popularidade
mo os príncipes, pois podia depô-los tão facilmente quan- geral. Pouco depois, mas em velocidade não menos vertigi-
to nossos magníficos sultãos depõem os reis da Iremécia nosa, o latim deixou de ser a língua da alta intelligenísia
ou da Geórgia. Agora, porém, ninguém mais o teme. Ele pan-européia. No século XVII, Hobbes (1588-1678) foi
proclama ser o herdeiro de urn dos antigos cristãos, chama- uma figura de renome continental por escrever na língua-
do São Pedro, e essa é por certo uma rica herança, pois da-verdade. Shakespeare (1564-1616), por outro lado, com-
seu tesouro é imenso e eie tem um grande país sob seu pondo suas obras em língua vulgar, era virtualmente desco-
controle.
nhecido do outro lado do Canal da Mancha. 1B E se o in-
As deliberadas e elaboradas invencionices do católico glês não se tivesse tornado, duzentos anos mais tarde, a lín-
do século XVIII reproduzem o realismo ingénuo de seu pre- gua mais importante mundialmente, não teria ele conserva-
decessor do século XIII, mas agora a "relativizacão" e a do, em grande medida, sua obscuridade insular do início?
"territorializacão" são perfeitamente conscientes, e coro in- Enquanto isso, os quase contemporâneos destes homens
tenção política. Não seria razoável que urna elaboração pa- do outro lado do Canal da Mancha, Descartes (1596-1650)
radoxal dessa tradição, na identificação do Grande Satã fei- e Pascal (1623-1662), mantinham a maior parte de sua cor-
ta pelo Ayaíollah Ruhollah Khomeini, fosse vista'não co- respondência em latim; mas virtualmente toda a de Voltai-
mo uma heresia, nem mesmo como um personagem demo- re (1694-1778) era em língua vulgar. lô "Após 1640, com ca-
níaco (o pequenino Cárter dificilmente preencheria os requi- da vez menos livros saindo em latim, e cada vez mais nas
sitos), mas como uma nação! línguas vulgares, a atividade editorial foi deixando de ser
Em segundo lugar, foi uma deterioração gradual da . um empreendimento internacional [sic]." 20 Em suma, a de-
própria língua sagrada. Escrevendo a respeito da Europa cadência do latim exemplifica um vasto processo em que
ocidental medieval, Bloch observou que "o latim não era as comunidades sagradas, integradas pelas antigas línguas
apenas a língua em que se ministrava o ensino, ele era a sagradas, gradualmente se fragmentavam, pluralizavam e
única língua ensinada", l5 (Este "única" demonstra muito territorializavam.
claramente a sacralidade do latim — nenhuma outra língua
era considerada digna de ser ensinada.) Mas no século XVI 16 Lucien Febvre a Henri-Jean Martin, The Corning of the Book, p. 248-49.
tudo isso já se estava alterando rapidamente. As razões des- 17 Ibid., p. 321.
sa mudança não devem demorar-nos aqui: a importância « Ibid., p. 330.
13 Ibid., p. 331-32.
20 Ibid., p. 232-3. O original francês é mais modesto e historicamente exato: "landis
que ]'on edite de mói n s en mgins cfouvrages en lati n, et une proportion toujours
14 Henti de Montesquieu, Persian Leners, p, 81. As Lettres Persanes foram publicadas plus grande de taxtes an langue nationale, Ia commerca dia livre se morcelle en Euro-
• pela primeira vez em 1721. pé". L'Apparítiofi tíu Livre, p. 356. ("Uma vez que sã publicam cada vez menos
16 Bloch, Feudal Society, l, p. 77. Grifo nosso.
obras em latim e uma proporção sempre maior de textos em língua nacional, o co-
mércio do livro segmentou-se na Europa.")
28
burgos foi paradigmática. Como dizia o ditado, Bella ge-
O reino dinástico rant alH f u fel ix Áustria nube! A seguir, de modo algo resu-
mido, a titulação dos últimos dinastas: 23
Talvez seja difícil, hoje em dia, que alguém se coloque
empaticamente dentro de um mundo em que o reino dinásti- Imperador da Áustria; Rei da Hungria, da Boémia, da Dalmá-
co era visto pela maioria dos homens corno o único siste- cia, Croácia, Eslavônia, Gallcia, Lodomeria e Híria; Rei de Je-
ma "político" imaginável. Pois, de várias maneiras essen- rusalém, etc.; Arquiduque da Áustria [slcj; Grão-duque da
Toscana e da Cracóvia; Duque de Lotaríngia, de Salzburgo,
ciais, a monarquia "autêntica" é transversal a todas as con- Estíria, Caríntia, Carniola e Bukovina; Grão-duque da Transil-
cepções modernas de vida política. O governo do rei organi- vânia, Margrave da Morávia; Duque da Alta e Baixa Siiésia,
za tudo em torno de um centro elevado. Sua legitimidade de Módena, Parma, Piacenza e Guastella, de Auschwitz e
deriva da divindade, e não das populações, que, afinal de Sator, de Teschen, Friaui, Ragusa e Zara; Conde Principes-
contas, são súditos, não cidadãos. Na concepção moderna, co de Habsburgo e Tirol, de Kyburg, Gõrz e Gradisca; Du-
a soberania do Estado é plena, categórica e uniformemente que de Triento e Brizen; Margrave da Alta e Baixa Lausitz e
atuante sobre cada centímetro quadrado de um território le- da Istria; Conde de Hohenembs, Feldkirch, Bregenz, Son-
nenberg, etc.; Senhor de Trieste, de Cartaro, e acima da
galmente demarcado. No imaginar de antigamente, porém,
Windish Mark; Grande Voivoda da Voivodina, Servia... etc.
onde os Estados se definiam por centros, as fronteiras eram
porosas e indistintas, e as soberanias fundiam-se impercepti- Isso, observa Jászi com justeza, era, "não sem um
velmente umas nas outras. 21 Daí, bastante paradoxalmente, certo aspecto cómico... o registro dos inúmeros casamen-
a facilidade com que os impérios e reinos pré-modernos tos, negociatas e pilhagens dos Habsburgos".
eram capazes de manter seu comando sobre populações enor- Nos reinos em que a poligínia era sancionada pela re-
memente heterogéneas, e muitas vezes sequer contíguas, por ligião, sistemas complexos de concubinato ordenado eram
longos períodos de tempo. 22 essenciais para a integração do reino. De fato, as linha-
Deve-se recordar, também, que esses antigos Estados gens reais muitas vezes derivavam seu prestígio, à parte
monárquicos expandiam-se não só por meio da guerra, mas qualquer aura de divindade, da miscigenação, poderíamos
dizer. MJPois tais misturas eram símbolos de um staíus su-
também por uma política sexual — de espécie muito diver-
perior. É típico que não tenha havido uma dinastia "ingle-
sa da que hoje se pratica. Pelo princípio geral da verticali-
sa" governando em Londres desde o século XI (se tanto);
dade, os casamentos'dinásticos reuniam populações diver- e que "nacionalidade" devemos atribuir aos Bourbons? 25
sas sob novos dirigentes. Quanto a isso, a Casa dos Habs-

23 Oscar Jâszi, The Dissolution of Habsburg Monarchy, p. 34.


51 Observe-se 3 substituição na nomenclatura dos governantes, que corresponde a es- 24 De maneira a mais notável na Ásia pre-moderna. O mesmo principio, porém, ara
sa transformação. Os escolares lembram-sa dos monarcas por seus primeiros no- atuante na Europa crista monogamica. Em 1910, um certo Otto Forst publicou seu
mes (qual era o sobrenome da Guilherme, o Conquistador?), e dos presidentes pe- Ahnentafet Seiner Kaiserlichen una KõnigKchen Hoheft dês durchlauchíígsten Herrn
lo seu último nome (qual era o nome de batismo de Ebert?!. Num mundo de cida- Erzherzogs Fram Ferdiriend, que relacionava 2.047 dos ancestrais do arquiducue
dãos, todos eles teoricamente elegíveis para a presidência, o número limitado de no- prestes a ser assassinado, dentre os quais 1.486 alemães, 124 franceses, 196 ita-
mes "de batismo" torna-os inadequados como denominadores específicos. Nas mo- lianos, 89 espanhóis, 52 poloneses, 47 dinamarqueses, 20 Ingleses, bom como qua-
narquias, porém, onde o poder está restrito a um único sobrenome, são necessaria- tro outras nacionalidades. Esse "curioso documento" está citado em ibid., p. 136,
mente os nomes "ds batismo". acompanhados de números ou alcunhas, que propi- n. 1. Não posso deixar da citar aqui a admirável reacão do Franz Joseph à noticia
ciam as distinções necessárias. do assassinato da seu excêntrico herdeiro necessário: "Dessa maneira, um poder
23 Registramos aqui, de passagem, que Nairn certamente está certo ao descrever a superior restaurou aquela ordem que eu, infelizmente, estava Incapaz de manter"
Lei de 1707, de União entre a Inglaterra e a Escócia, como um "arranjo entre no- (ibid., p. 125).
bres", no sentido do que os arquitetos da união (oram políticos aristocratas. (Ver 55 Gstlnar salienta o caráter tipicamente estrangeiro das dinastias, mas Interpreta o fe-
sua lúcida exposição em The Break-up of Brítain, p. 136 et seqs.) Ainda assim, é di- nómeno de maneira muito estreita: os aristocratas locais preferem um monarca de
fícil imaginar um arranjo dessa tipo sendo realizado entre as aristocracias de duas fora,, porque ale não tomará partido em relação a suas rivalidades internas. Ttiought
repúblicas. A concepção de um Reino Unido foi por certo o elemento mediador cru- snd Change, p. 136.
cial que tornou poss-Vel esse entendimento.
30 31

Contudo, durante o século XVII — por razões de de parte formados por "estrangeiros", os de seu sobrinho-
que não nos ocuparemos agora — a legitimidade automáti- neto Frederico Guilherme III (r. 1797-1840) já eram, em
ca da monarquia sagrada começou sua lenta decadência consequência das espetaculares reformas de Scharnhorst,
na Europa ocidental. Em 1649, Carlos Stuart foi decapita- Gneisenau e Clausewitz, exclusivamente "nacionais-prussia-
do na primeira das revoluções do mundo moderno e, no nos".29
correr da década de 1650, um dos Estados mais importan-
tes da Europa foi governado por um Protetor plebeu, em
vez de um rei. Contudo, mesmo ao tempo de Pope e Addi- Concepções do tempo
son, Ana Stuart ainda estava curando os doentes pela su-
perposição das mãos reais, curas executadas também pelos ' Seria uma visão acanhada, porém, pensar que as co-
Bourbons, Luís XV e XVI, na França do Iluminismo, até munidades imaginadas das nações simplesmente tenham
o fim do ancien regime. 26 Depois de 1789, porém, o prin- brotado das comunidades religiosas e dos reinos dinásticos
cípio da Legitimidade tinha de ser defendido em alta voz e tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunida-
e deliberadamente e, com o tempo, a "monarquia" tornou- des, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudan-
se um modelo semipadronizado. Tennõ e Filho do Céu tor- ça fundamental nos modos de apreender o mundo, que,
naram-se "Imperadores". No longínquo Sião, Rama V mais do que qualquer outra coisa, tornou possível "pen-
(Chulalongkorn) enviou seus filhos e sobrinhos para as
sar" a nação..
cortes de São Petersburgo, Londres e Berlim para aprende- Para uma primeira impressão dessa mudança, pode-
rem as complexidades do modelo universal. Em 1887, ins-., mo-nos voltar para as representações visuais das comunida-
tituiu o princípio indispensável da sucessão pela primoge-
des sagradas, tais como os relevos e os vitrais das igrejas
nitura legal, desse modo "alinhando o Sião com as monar-
medievais, ou as pinturas dos primeiros mestres italianos
quias 'civilizadas' da Europa", 27 O novo sistema condu-
ziu ao trono, em 1910, um homossexual caprichoso que e flamengos. Traço característico dessas representações é
certamente teria sido ignorado em outros tempos. Contu- algo enganosamente análogo à "aparência moderna". Os
do, a aprovação intermonárquica de sua ascensão ao tro- pastores que haviam acompanhado a estrela até a manje-
no como Rama VI foi ratificada pelo comparecimento a doura' em que Cristo nasceu têm feições de camponeses
sua coroação de príncipes vindos da Grã-Bretanha, Rússia, da Borgonha. A Virgem Maria é representada como filha
Grécia, Suécia, Dinamarca — e Japão! 28 de um mercador toscano. Em muitos quadros, o cliente
Ainda em 1914, os Estados dinásticos constituíam a que encomendou a obra, vestido como burguês ou em tra-
maioria dos componentes do sistema político mundial, jes de nobre, aparece ajoelhado em adoração ao lado dos
mas, corno assinalaremos pormenorizadamente mais adian- pastores. O que hoje parece incongruente obviamente pare-
te, muitos dinastas já vinham há algum tempo adquirin- cia inteiramente natural aos olhos dos devotos medievais.
do um cunho "nacional", à medida que o antigo princípio Estamos diante de um mundo em que a representação da
da Legitimidade fenecia silenciosamente. Enquanto os exér- realidade imaginada era irresistivelmente visual e auditiva.
citos de Frederico, o Grande (r. 1740-1786), eram em gran- A cristandade assume sua forma universal mediante uma

29 Mais de mi! dos sete a oito mil homens do exército prussiano, em 1806, eram estran-
26Marc Bloch, Lês fíois Thaumarurges, p. 390 e 398-9.
geiros. "Os prussianos de classe média aram superados pelos estrangeiros am seu
" Noel A, Battye, "The Militarv. Government and Society in Siam, 1868-1910", Te- próprio exército; isso dava colorido ao dito de que a Prússia não era um pais que ti-
se de Doutoramento IPhD), Cornell, 1974, p. 270. nha um exército, mas um exército que tinha um pais." Em 1798, os reformadores
18St9phan Green, "Trai Governmsnt and Admiriistraticn in the Reign of Rama VI
prussianos exigiram "redução è metade do número de estrangeiros que ainda repre-
(1910-1925)", Tese de Doutoramento fPhDS, Universidade de Londres, 1971, p. 92. sentavamcercade 50% dos praças..."AlfredVagts,/Wsroryo/M/ffíansm, p. 64 e 85.
32

infinidade de especifi cidades e de particularidades: este re- Se um evento como o sacrifício de Isaac é interpretado co-
levo, aquele vitral, este sermão, aquela fábula, aquela pe- mo a prefiguração do sacrifício de Cristo, de modo que,
ça moral, aquela relíquia. Embora a classe letrada transeu- no primeiro, encontra-se o último como foi anunciado e
ropéia que lia era latim fosse um elemento essencial na es- prometido, e o último "cumpre"... o primeiro, estabelece-
truturação da imaginação cristã, a mediação de suas con- se então uma conexão entre dois eventos que não se vin-
cepções para as massas iletradas, por meio de criações vi^ culam temporalmente, nem oausalmente — conexão im-
suais e auditivas, sempre pessoais e particulares, não era possível de ser estabelecida pela razão na. dimensão hori-
zontal... Ela só pode ser estabelecida se ambas as ocorrên-
menos essencial. O humilde pároco cujos antepassados e cias estiverem verticalmente vinculadas à Divina Providên-
cujas fraquezas eram conhecidos por todos os que assis- cia, a única capaz de traçar um plano de história como es-
tiam a suas celebrações ainda assim era o intermediário di- se e fornecer a chave para sua compreensão... o aqui e
reío entre seus paroquianos e o divino. Essa justaposição agora não é mais um simples vinculo em uma corrente ter-
do universal-cósmico e do particular-mundano significa rena de eventos, ele é simultaneamente algo que sempre
que por maior que pudesse ser a cristandade, e sabia-se existiu, e que será cumprido no futuro; e estritamente, aos
que era, ela se manifestava de maneira diversa a comunida- olhos de Deus, é algo eterno, algo onítemporal, algo já
des particulares, suábias ou andaluzas, como réplicas de- consumado na esfera do evento terreno fragmentário.
las mesmas. Representar a Virgem Maria com traços "se- Ele está certo em acentuar que tal ideia de simultaneidade
mitas" ou vestimentas do "primeiro século", dentro do es- é inteiramente estranha a nós mesmos. Ela encara o tem-
pírito de restauração do museu moderno, era algo inimagi- po como algo próximo do que Benjamin chama de tempo
nável, porque o pensamento cristão medieval não possuía messiânico, uma simultaneidade de passado e futuro em
uma concepção de história como infindável corrente de um presente momentâneo. " Dentro desse modo de ver as
causa e efeito ou de separação radical entre passado e pre- coisas, a expressão "enquanto isso" não pode ter significa-
sente. 30 Bloch observa que o povo pensava que devia es- ção real.
tar próximo o final dos tempos, no sentido de que a segun- Nossa própria concepção de simultaneidade tem esta-
da vinda de Cristo poderia ocorrer a qualquer momento: do em elaboração por muito tempo e sua emergência liga-
São Paulo dissera que "o dia do Senhor chega como um se certamente, de modos que precisam ainda ser bem estu-
ladrão no meio da noite". Era pois natural que o grande dados, ao desenvolvimento das ciências seculares. Mas é
cronista do século XII, bispo Oito de Freising, se referis- uma concepção de importância tão fundamental que, se
se seguidamente a "nós, que fomos colocados no final não a levarmos plenamente em conta, acharemos difícil in-
dos tempos". Bloch conclui.que tão logo os homens me- vestigar a génese obscura do nacionalismo. O que veio to-
dievais "entregavam-se à meditação, nada estava mais dis- mar o lugar da concepção medieval de simultaneidade lon-
tante de seus pensamentos do que a perspectiva de um lon- gitudinal ao tempo é, valendo-nos novamente de Benja-
go futuro para uma raça humana jovem e vigorosa". 3I min, uma ideia de "tempo homogéneo e vazio", no qual
Auerbach oferece-nos um inesquecível esboço dessa a simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo,
forma de consciência: 32 marcada não pela prefiguração e cumprimento, mas por
coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calen-
30 Para nos, a ideia de "trajes modernos", maneira metafórica de fazer equivaler pas- dário. 34
sado e presente, é um reconhecimento iridireto de sua irrevogável distinção.
31 Bloah, Feudal Society, l, p. 84-6.
32 Auerbach, Mimeste, p. 64. Grifo nosso. Confronte a descrição do Velho Testamen-
to, por Santo Agostinho, como "a sombra do [isto é, modalado da trás para dían- 33 WaltBr Banjarnin, llíaminsíions, p. 265,
le pelo] futuro". Citado em Bloch, Feudal Society, l, p. 90. 34 Ibid., p. 263. Essa nova ideia está tão arraigada que se poderia e f Irma r que todo con-
ceito fundamental moderno baseia-se num conceito de "enquanto isso".
35

Pode-se perceber bem melhor por que essa transforma- gados. 37 Segundo, que A e D estão encravados nas mentes
ção seria tão importante para o nascimento da comunidade dos leitores oniscientes. Apenas eles percebem os vínculos.
imaginada da nação se considerarmos a estrutura básica de Apenas'eíes, como Deus, observam A telefonando a C, B
duas formas de imaginar que pela primeira vez floresceram fazendo compras e D jogando sinuca, tudo ao mesmo tem-
na Europa, no século XVIII: o romance e o jornal. 35 Pois po. O fato de que todos esses atos são desempenhados no
essas formas ofereceram os recursos técnicos para "re-[a}pre- mesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, mas
sentar" a espécie de comunidade imaginada que é a nação. por atores que podem estar em grande medida despercebi-
Considere-se primeiro a estrutura do romance à mo- dos uns em relação aos outros, demonstra a novidade des-
da antiga, estrutura típica não só das obras-primas de Bal- se mundo imaginado evocado pelo autor nas mentes de
seus leitores. 38
zac, mas também de qualquer romanceco contemporâneo. A ideia de um organismo sociológico que se move pe-
Ela é evidentemente um instrumento para a apresentação lo calendário através do tempo homogéneo e vazio apresen-
da simultaneidade em um "tempo homogéneo e vazio", ta uma analogia precisa corn a ideia de nação, que também
ou um comentário complexo sobre a expressão "enquanto é concebida como uma comunidade compacta que s'e mo-
isso". Tomemos, para fins de ilustração, um segmento de. ve firmemente através da história. 39 Um norte-ámericano
urh enredo simples de romance, no qual um homem (A) jamais encontrará, nem mesmo saberá como se chama,
possui uma esposa (B) e uma amante (C) que, por sua vez, mais do que um pequeno número de seus 240.000.000 de
tem um namorado (D). Podemos imaginar uma espécie de compatriotas. Não tem ideia alguma sobre o que estão fa-
esquema temporal para esse segmento, da seguinte maneira: zendo em qualquer tempo. Mas está absolutamente segu-
ro de sua atividade constante, anónima e simultânea.
Tempo: 1 II NI Talvez a perspectiva que estou sugerindo pareça menos-
abstrata se nos dedicarmos a examinar rapidamente quatro
Eventos; A discute com B A lelsfona a C D beba em urn bar
C a D fazem amor ã vai és compras A janta em casa com S
obras de ficção de diferentes culturas, e de diferentes épocas,
D joga sinuca C tem um sonho sinistro todas menos uma, no entanto, indissoluvelmente ligadas a
movimentos nacionalistas. Em 1887, o "Pai do Nacionalis-
Observe-se que, no correr dessa sequência, A e D jamais mo Filipino", José Rizal, escreveu ò romance NoliMe Tange-
se encontram, e podem na verdade não ter sequer conheci- ré, hoje considerado o melhor produto da literatura filipina
mento da existência um do outro, se C tiver agido inteligen- moderna. Foi, também, quase o primeiro romance escrito
temente. 3S Então, o que é que realmente liga A a D? Duas por um "índio". * Eis a maneira admirável como começa:4l
concepções complementares: primeiro, que eles estão encra-
vados em "sociedades" (Wessex, Líibeck, Los Angeles). Es- 37 Essa potifona distingue decisivamente o romance moderno até mesmo de um precur-
sor tSo brilhante quanto o Satyrícon. de Petrônio. A narrativa deste dessnróla-se li-
sas sociedades são entidades sociológicas de uma realida- nearmente. Enquanto Encolpius lamenta a infidelidade de seu jovem amante, não te-
de tão firme e estável, que seus membros (A e D) podem rnos conhecimento simultaneamente de Gito na cama corn Ascyltus.
38 Nesse contexto, é recompensadora a comparação, de qualquer romance histórico,
até mesmo ser descritos como passando um pelo outro na com documentos ou relatos da época transformada em ficção.
rua sem jamais se relacionarem e, ainda assim, estarem li- 39 Nada demonstra melhor a Imersão do romance em um tempo homogéneo e vazio
do que a ausSnela daquelas genealogias preliminares, chegando multas veres até à
origem do homem, traço tão carsctarístieodas antigas crónicas, lendas e livros sagrados.
40 ftizel escreveu esse romance na língua colonial (o espanhol), que era, no época, a lín-
Embora a Príncesse tíe CIÊves já tivesse sido publicada sm 1678, a época ds Richard-
15 gua franca das elites euraslanas, emlcamonte diversificadas, e da elite nativa. Ao
son, Detoe e Fielding é o inicio do século XVIII. As origens do jornal moderno encon* mesmo tempo que o romance, surgia também, pela primeira vez, uma imprensa "na-
tram-sa nas gazetas do final do século XVII; porém, o jornal só se torna uma catego- cionalista", não apenas em espanhol, mas em línguas "aborígenes", como o tagato
ria geral de material impresso após 1700. Febvre e Martin, The Corning ofthe Book, a o ilocano. Var Leopoldo Y, Yabes, "The Modern literature of the Philippinss", p.
p. 197, 287-302, in Pierre-Bernard Lafcnt e Denys tombará (orgs.), Littératures contempo-
M De fato, a compreensão do enredo pode depender, nos Tampos l, II e llt, da que A, raines de l'Asíe du Sud-Est.
B. C e O não saibam o que se passa com os outras. 41 José Hizal, The Lost Éden, Noli Ma Tengere, p, 1.
37

Don Santiago de los Santos oferecia um jantar festivo gendo personagens, autor e leitores, que se movem para dian-
numa noite de fins de outubro da década de 1880. Embora, te pelo tempo do calendário. Observe-se também o tom. Em-
contrariando seu costume, só cr tenha anunciado na tarde bora Rizal não tenha a menor ideia da identidade de cada
do mesmo dia, logo se tornou o tema das conversas em Bí- um de seus leitores, escreve para eles com uma intimidade
nondo, onde ele morava, em outros distritos de Manila, e irónica, como se seu relacionamento com eles não fosse nem
até mesmo na cidadela espanhola de Intramuros. Don San- um pouco problemático.42
tiago era mais conhecido como Capitão Tiago — a patente Não há o que ofereça maior sentimento foucaultiano
não era militar mas política, e indicava que ele havia sido ou-
das abruptas descontinuidades da consciência do que compa-
trora o prefeito nativo de uma pequena cidade. Naquele tem-
po, ele tinha reputação de pródigo. Todos sabiam que sua
rar Noli com a mais célebre obra literária anterior de um "ín-
casa, como seu país, jamais fechava suas portas — exceto, dio", a Pmagdaanang Buhay nl Florante at w Loura sã Ca-
é claro, ao comércio e a qualquer ideia que fosse nova ou hariang Albânia [A história de Florante e Laura no Reino
ousada. da Albânia], cuja primeira edição impressa data de 1861, em-
De modo que a notícia de seu jantar correu como um bora talvez já tivesse sido escrita em 1838. 43 Pois embora
choque elétrico por toda a comunidade de filantes, parasitas Baltazar ainda fosse vivo quando nasceu Rizal, o mundo
e penetras, os quais Deus, em Sua infinita sabedoria, havia de sua obra-prima é, quanto a tudo o que tem de básico, es-
criado e generosamente multiplicado em Manila, Alguns de- tranho ao de Noli, Seu cenário — uma Albânia medieval fic-
les puseram-se em busca de polimento para suas botas; ou- tícia — é completamente distante no tempo e no espaço da
tros, de botões de colarinho e gravatas; mas cada um deles Binondo da década de 1880. Seus heróis — Florante, um no-
dedicou o melhor de seu pensamento à maneira como pode- bre albanês cristão, e seu amigo íntimo Aladin, aristocrata
riam saudar seu anfitrião com a fingida intimidade de,velha persa muçulmano ("mouro") — só nos lembram as Filipi-
amizade, ou, se houvesse ocasião, desculpar-se polidamen- nas pela ligação cristão-mouro. Enquanto Rizal salpica deli-
te por não haver chegado mais cedo onde presumivelmen- beradamente sua prosa espanhola com palavras de tagalo pa-
te sua presença era tão ansiosamente esperada. ra obter efeitos "realistas", satíricos ou nacionalistas, Balta-
O jantar foi oferecido em uma casa na Rua Anloague, zar, não intencionalmente, mistura expressões espanholas
que ainda pode ser reconhecida, a menos que tenha vindo em seus quartetos em tagalo, apenas para aumentar a gran-
abaixo com algum terremoto. Certamente não terá sido de-
molida por seu proprietário; nas Filipinas, isso se deixa em
diosidade e a sonoridade de sua linguagem poética. Noli foi
geral para Deus e a Natureza. Na verdade, às vezes se con-
feito para ser lido, enquanto Florante at Laura, para ser de-
sidera que eles estão contratados pelo governo exatamente
clamado em voz alta. O mais chocante é o manuseio do tem-
para esse fim...
po por Baltazar. Como observa Lumbera, "o desenrolar
do enredo não segue uma ordem cronológica. A história co-
Certamente não é necessário um longo comentário. Basta meça In medias rés, de tal modo que a história completa só
que se observe que, logo de início, a imagem (inteiramente nos chega mediante uma série de falas que servem como/fos/i-
nova na literatura filipina) de um jantar que é discutido por backs". ** Quase metade dos 399 quartetos são relatos da in-
centenas de pessoas anónimas, que não se conhecem entre fância de Fiorante, de seus anos de estudo em Atenas e de
si, em diferentes bairros de Manila, num determinado mês
de uma determinada década, evoca imediatamente a comuni-
4Í O reverso da obscuridade anónima dos leitores foi/é B celebridade Imediata do autor.
dade imaginada. E na frase "uma casa na Rua Anloague, Como varemos, esse obscuridade/celebridade tem tudo a ver com B disseminação
que ainda pode ser reconhecida...", quem reconhece somos do capitalismo editorial. Já em 1593, dominicanos ativos haviam publicado em Mani-
la a Doctrina CMstiana. A partir de então, porém, B por séculos, a imprensa foi man-
nós-os-leitores-fílipinos. A passagem natural dessa casa, do tida sob estrito controla eclesiástico. A liberalização só teve Inicio na década de
tempo "interior" do romance, para o tempo "exterior" da 1860. Ver Blenvenido L. Lumbera, "Tradition and Influer.ces in tha Development of
Tagatog Postry. 1570 a 1898", p. 35, 143 e 235.
vida quotidiana do leitor de Manila oferece uma confirma- *Mbid., p. metseqs,
ção hipnótica da solidez de uma comunidade singular, abran- 44 Ibid., p. 205-6.
suas subsequentes proezas militares, fornecidos pelo herói ignorante, muito embora depare com muita gente boa e sá-
em conversa com Aladin. 4S O "flashback falado" foi, pa- bia. Não tem disposição para trabalhar, nem para levar na-
ra Baltazar, a única alternativa de uma narrativa direta, li- da a sério, e se torna, sucessivamente, padre, jogador, la-
near. Se ficamos sabendo dos passados "simultâneos" de drão, aprendiz de farmácia, médico, funcionário numa cida-
Florante e Aladin, sua ligação apenas se dá pelas vozes em de do interior... Esses episódios permitem que o autor des-
conversa, e não pela estrutura do poema. Quão distante es- creva hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios, en-
tá essa técnica da do romance: "Naquela mesma primavera, quanto, ao mesmo tempo, martela num ponto importante
enquanto Florante ainda estudava em Atenas, Aladin era ex- — que o governo espanhol e o sistema de educação estimu-
pulso da corte de seu soberano...". De fato, nunca ocorre la m o parasitismo e a preguiça... As aventuras de Periquillo
levam-no diversas vezes a estar entre índios e negros...
a Baltazar "situar" seus protagonistas na "sociedade", ou
discuti-los com seu público. Como também não há muito Vemos aqui novamente a "imaginação nacional" funcionan-
de "filipino" nesse texto, a não ser pelo fluxo melífluo dos do nas andanças de um herói solitário por uma paisagem so-
polissílabos em tagalo. ^ ciológica de uma .estabilidade que funde o mundo de dentro
Em 1816, setenta anos antes de Noli ser escrito, José do romance com o mundo de fora. Esse tour d'horison pica-
Joaquín Fernandez de Lizardi escreveu um romance chama- resco — hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios,
do El periquillo sarmento [O papagaio sarnentoj, evidente- índios, negros — não é porém um tour du monde. O hori-
mente a primeira obra latino-americana desse género. Nas zonte é claramente delimitado: é o do México colonial. Na-
palavras de um crítico, e'sse texto é "uma feroz acusação à da nos assegura mais dessa solidez sociológica do que a su-
administração espanhola no México: ignorância, superstição cessão de plurais. Pois eles evocam um espaço social cheio
e corrupção são vistas como suas mais notáveis característi- de prisões comparáveis, nenhuma deJas por si só de qual-
cas". A forma essencial desse romance "nacionalista" es- quer importância singular, mas todas representativas (em
tá na seguinte descrição de seu conteúdo: 4S sua existência simultânea e distinta) da tirania desta coló-
Desde o inicio, [o herói, o papagaio sarnemo) é exposto a • nia.45 (Contraponham-se as prisões da Bíblia. Elas não são
más influências — criadas ignorantes incutem superstições, nunca imaginadas como típicas desta ou daquela sociedade.
sua mãe satisfaz seus caprichos, seus professores ou não ti- Cada uma delas, como aquela em que Salomé seduziu-se
nham vocação, ou não tinham capacidade para discipliná- por João Batista, está magicamente solitária.)
lo. E embora seu pai seja um homem inteligente que quer Finalmente, para afastar a possibilidade de que, por te-
que o filho se dedique a uma profissão útil, ao invés de ir en- rem Rizal e Lizardi escrito ambos em espanhol, as estrutu-
grossar as fileiras dos advogados e parasitas, é a supermãe
ras que temos estudado sejam algo "europeias", eis aqui o
de Periquillo que ganha a parada, manda o filho para a uni-
versidade e assegura assim que ele irá aprender apenas dis-
início de Semarang Hitaw [O Semarang negro], uma história
parates supersticiosos... Periquillo continua incorrigivelmente escrita pelo malfadado jovem indonésio nacionalista-comu-
nista, Mas Marco Kartodikromo, 50 publicada em folhetim,
em 1924:31
45 A técnica é semelhante à da Homaro, tão competentemente exposta por Auerbach,
Mimesis. cap. 1 ("Odysseus1 Scar").
46 "Paalam Albaniang pinamamayanam/ ng casama, %.lupit, bangis caliluhan,/ acong
49 Essa deslocamento de um herói solitário por uma paisagem social adamantina é típi-
tangulan mo, i, cusa mang pinatay/ sã iyo, i, malaquf ang panghihinavang."/
"Adeus, Albânia, agora reino/ do mal, da crueldade, brutalidade e decepção!/ Eu, co de muitos dos antigos romances (antí)coloniais,
seu defensor, que agora tu assassinas/ lamento, porém, o destino que te coube." 50 Após uma carreira curta, meteórica, como jornalista radical. Marco foi internado pe-
Essa famosa estrofe tem sido às vezes interpretada corno uma vetada afirmação de las autoridades coloniais holandesas em Boven Digul, um dos mais antigos campos
de concentração do mundo, nos longínquos pântanos interiores do oeste da Nova
patriotismo filipino. mas Lumbera demonstra, de maneira convincente, que tal inter-
Guiné. Al! morreu em 1932, após seis anos de confinamento. Henrl Chambert-Loir,
pretação ô anacrónica. "Tradition and Influenoes", p. 214-15. A tradução para o in-
"Mas Marco Kartodikromo (c. 1890-1932) ou L'&Jucation Politique", p. 203, in Lit-
glês é da Lumbera. Alterei ligeiramente o texto em tagalo apresentada por ele, para
tératures contemporaines de l'A$ia du Sud-£st.
ajustá-lo a uma edição da 1973 do poema, baseada na impressão de 1861.
47 Jean Franco, An tntroifuction to Spsnish-Arnerícsn Literature, p. 34.
51 Segundo tradução de Paul Tickell em seu Three Early Indonesian Short Stories t>y
Mas Marco Kartodikromo (s, {890-1932Í, p. 7. Grifos nossos..
ÍB Ibid., p, 35-6', Grifos nossos.
40 41

Eram sete horas, sábado à- noite; os Jovens de Sema- mós bem ter caminhado por aquelas "peguentas" estradas
rang jamais ficavam em casa aos sábados à noite. Nessa de Semarang. Uma vez mais, um herói solitário é sobrepos-
noite, porém, não havia ninguém se mexendo. Pelo fato de to a uma paisagem social descrita em detalhes cuidadosos e
que a pesada chuva durante o dia todo deixara as estradas
gerais. Mas há também algo de novo: um herói que nunca
encharcadas e muito escorregadias, todos haviam ficado
em casa.
é chamado pelo nome, mas coerentemente mencionado co-
Para os trabalhadores de oficinas e escritórios, a ma- mo "nosso jovem". Exatamente o caráter canhestro e a inge-
nha de sábado era um momento de expectativa — expecta- nuidade literária do texto confirmam a "sinceridade" não
tiva do lazer e da alegria de circular pela cidade à noite, deliberada desse adjetivo pronominal. Nem Marco,' nem
mas dessa vez iriam se decepcionar — devido à letargia cau- seus leitores, têm qualquer.dúvida quanto à referenda. Se
sada pelo mautempaeàsestradaspeguentas noskampongs. na ficção jocosa e elaborada da Europa dos séculos XVIII
As estradas principais habitualmente abarrotadas de toda e XIX, o tropo "nosso herói" simplesmente ressalta um jo-
sorte de tráfico, as calçadas habitualmente apinhadas de go do autor com ura leitor (qualquer), o "nosso jovem" de
gente, tudo estava deserto. Vez por outra, o estalo de um Marco, não menos pela inovação, significa um jovem que.
chicote duma charrete, incitando o cavalo a tocar em fren- pertence ao corpo coletivo dos leitores do Indonésio, e assim,
te — ou o clip-clop dos cascos dos cavalos puxando as car- implicitamente, uma embrionária "comunidade imaginada"
ruagens.
indonésia. Observe-se que Marco não sente necessidade de
Semarang estava deserta. A luz das fileiras de lâmpa-
das de gás iluminava diretamente a estrada de asfalto brilhan-
especificar essa comunidade pelo nome: ele já está ali. (Mes-
te. De vez em quando, a luz clara das lâmpadas de gás se mo que os censores coloniais holandeses poliglotas se juntem
obscurecia, quando o vento soprava do leste... a seus leitores, eles estão excluídos de participar desse "nos-
Um jovem estava sentado num longo sofá de vime, so", como se pode ver pelo fato de que o ódio do jovem di-
lendo um jornal. Estava totalmente absorvido. Às vezes sua rige-se "ao", e não "a nosso", sistema social.)
irritação, às vezes seu sorriso eram sinal certo de que esta- Finalmente, a comunidade imaginada confirma-se pela
va profundamente interessado no que lia. Virava as páginas réplica de nossa leitura a respeito da leitura de nosso jovem.
do jornal, esperando talvez encontrar algo que o fizesse pa- Ele não encontra o cadáver do miserável vagabundo à beira
rar de se sentir tão miserável. Repentinamente, deu com de uma estrada peguenta de Semarang, mas imagina-o a par-
uma notícia intitulada: tir do que está impresso num jornal. 52 Ele também não se
PROSPERIDADE importa o mínimo com quem seja, individualmente, o mor-
Um miserável vagabundo f içara doente e morrera ao abando- to: ele pensa no corpo representativo, não na vida pessoal.
no à beira da estrada. É apropriado que, em Semarang Hiíam, apareça um
O jovem comoveu-se com esse breve relato. Imagina- jornal encravado na ficção, pois, se nos voltarmos agora pa-
va perfeitamente o sofrimento daquela pobre alma quando ra o jornal como produto cultural, vamos ficar chocados
jazia moribunda à beira da estrada... Por um momento sentiu
um ódio explosivo bem dentro de si. A seguir sentiu pieda-
por seu profundo caráter ficcional. Qual a convenção literá-
de. Em outro momento ainda, seu ódio dirigiu-se ao siste-
ria fundamental do jornal? Se olharmos uma primeira pági-
ma social que dava origem a tanta pobreza, enquanto torna- na típica de, digamos, The New York Times, ali encontrare-
va rico um pequeno grupo de pessoas.
Aqui, como em El periquillo sarmento, estamos num 62 Em 1924, um amigo Intimo e aliada político de Marco publicou um romanos intitula-
do Rasa Manlika [Samido llvro/O sentimento da libertada]. Sobre-o herói desse ro-
mundo de plurais: oficinas, escritórios, carruagens, kam- mance (que ele atribui erradamente a Marco], Chambert-Loir escreva que "não t a m
pongs e lâmpadas de gás. Como no caso de Noli, nós-os-Iei- ideia nenhuma tio sentido da palavra 'socialismo': não obstante, sente um profundo
mal-estar diarvte da organização social que o rodeia e sente necessidade de ampliar
tores-indonésios mergulhamos imediatamente num tempo seus horizontes por dois métodos: viagem e leitura", ("Mas Marco", p. 208. Grilo
de calendário e numa paisagem familiar; alguns de nós pode- nosso.) O papagaio sarnento mudou-se para Java e para o século XX.
42 43

mós reportagens sobre dissidentes soviéticos, fome em Mali, a salas de trabalho monásticas da Idade Média. Em 1455,
um horrível assassinato, golpe no Iraque, a descoberta de Fust e Schoeffer já geriam um negócio, equipado para a
um fóssil raro no Zhnbábue, e um discurso de Mitterand. produção padronizada e, vinte anos depois, grandes empre-
Por que se justapõem tais eventos? O que os liga uns aos ou- sas gráficas funcionavam por toda parte, em toda [sic] a Eu-
tros? Não é mero capricho. Contudo, é óbvio que a maioria ropa." 56 Em sentido muito especial, o livro foi a primeira
deles aconteceu independentemente, sem que seus atores ti- mercadoria industrial produzida em série no estilo moder-
vessem consciência uns dos outros, ou do que os outros esta- no. í7 O sentido que tenho em mente se revela, se compa-
vam fazehdo. A arbitrariedade de sua inclusão e justaposi- rarmos o livro com outros primeiros produtos industriais,
ção (uma edição posterior substituirá Mitterand pelo resulta1- como tecidos, tijolos, ou açúcar. Pois estas mercadorias são
do de uni jogo de beisebol) demonstra que a vinculação en- medidas em quantidades matemáticas (libras, volumes ou
tre eles é imaginada. unidades). Uma libra de açúcar^ é simplesmente uma quanti-
Essa vinculação imaginada provém de duas fontes indi- dade, um volume conveniente» não um objeto em si mes-
retamente relacionadas. A primeira é simplesmente coincidên- mo. O livro, porém — e, nisso,,ele antecipa os produtos du-
cia no calendário. A data no alto do jornal, a marca pecu- ráveis de nossa época — é um objeto bem definido, auto-su-
liar mais importante que ele apresenta, fornece a conexão es- ficiente, reproduzido com exatidão em grande escala. 5B
sencial — a marcação regular da passagem do tempo homo* Uma libra de açúcar confunderse com a seguinte; cada livro
gêneo e vazio.53 Dentro daquele tempo, "o mundo" cami- possui uma auto-suficiência erèmítica própria. (Não «admi-
nha decididamente para a frente. O sinal disso: se Mali desa- ra que bibliotecas, coleções pessoais de mercadorias produ-
parecer das páginas do The New York Times por meses a fio, zidas em série, já fossem um espetáculo comum, no século
depois de dois dias de reportagens sobre a fome, nem por XVI, em centros urbanos como Paris.)59
um momento os leitores imaginarão que Mali desapareceu, Desta perspectiva, o jornal não passa de uma "for-
ou que a fome exterminou todos os seus cidadãos.' O forma- ma extrema" do livro, um livro vendido em escala imensa,
to de romance que tem o jornal lhes assegura que, em algum porém de popularidade efémera. 'Poderia dizer-se que são
lugar fora dali, o "personagem" Mali se movimenta silencio- best-sellers por um só dia. 60 A obsolescência do jornal no
samente, aguardando sua reaparição seguinte no enredo. dia seguinte ao de sua impressão — é curioso que uma das
A segunda fonte de vinculação imaginada encontra-se
na relação entre o jornal, como uma forma de'livro, e o ss A grande editora Plant n, da Antuérpia, controlava, já no século XVI, 24 gráficas com
mercado. Calcula-se que, no correr dos quarenta anos entre mais de cem operários em cada uma delas. Ibíd., p. 125.
a publicação da Bíblia de Gutenberg e o final do século 57 Esse é um ponto bom estabelecido no meio das fantasias de Gutenberg Galaxy, de
Marshall McLuhan (p. 125). Pode-se acrescentar que, se o mercado do livro tornou-
XV, produziram-se ria Europa mais de 20.000.000 de volu- se pequeno diante dcs marcados de outras mercadorias, sau papal estratégico na dis-
mes impressos.54 Entre 1500 e 1600, esse número atingira en- seminação da ideias tornou-o, contudo, da importância fundamental para o desen-
volvimento da Europa moderna.
tre 150 e 200 milhões.5Í "Desde então... as oficinas gráficas 56 Quanto a isto, o principio é mais importante do que a escala de grandeza. Ata o sé-

mais se assemelhavam a modernas oficinas de trabalho do que culo XIX, as Bicões oram ainda relativamente pequenas. Até mesmo a Bíblia de L'j-
toro, extraordinário best-seUet, teve uma primeira edíçflo de apenas 4.000 exempla-
res. A primeira edição excepcionalmente grande da Encyc/opédie de Dlderot n5o foi
além da 4.260 exemplares. A tiragem média no século XIX era inferior a 2.000 exem-
53 Lar um jornal é como ler um romance cujo autor tivesse deixado de lado qualquer plares. Febvre e Martin, The Corning of lhe Book, p. 218-20. Ao mesmo tempo, o li-
ideia de um enredo coerente. vro sempre se distinguiu dos demais bens duráveis por seu mercado intrinsecamen-
54 Febvre e Martin, The Coming of lhe Book, p. 186. Isso montava a não menos de te limitado. Quem quer que tenha dinheiro poda comprar carros checos; apenas
35.000 edições produzidas em nada menos que 236 cidades. Já em 1480. havia grá- quem lá checo comprará livros em checo. Mais adiante, iremos examinar a importân-
ficas em mais de 110 cidades. 50 das quais na hoje Itália, 30 na Alemanha, 9 na Fran- cia ctsssa distinção.
ça, na Holanda e na Espanha, 8 em cada uma, na Bélgica e na Suíça, 5 em cada, 4 69 Além disso, já em fins do século XV, o editor venaziano Aldus havia sido pioneiro
na Inglaterra, 2 na Boémia e 1 na Polónia, "A partir daquela data, pode-$a dizer qua, no lançamento da uma "edição de bolso" portátil.
na Europa, o livro Impresso foi de uso universal." (p.182l 60 Como demonstra o caso do Semanng W/tam, os dois tipos de bast-sellers costuma-
86 Ibid., p. 262. Comentam os autores que, no século XVI, os livros estavam pronta- vam ser méis estreitamente ligados do que hoje. Dickens também publicava como fo-
mente à disposição de qualquer um que soubesse ler. lhetim em jamais populares seus romances populares.
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45

mais antigas mercadorias produzidas em série fizesse ante- Antes de iniciar uma discussão das origens específicas
ver assim a obsolescência implícita dos modernos produtos do nacionalismo, será conveniente recapitular as principais
duráveis — cria, no entanto, exatamente por essa razão, es- proposições apresentadas até aqui. Afirmei, fundamental-
ta extraordinária cerimónia de massa: o consumo ("o ima- mente, que a possibilidade mesma de se imaginar a nação
ginar") quase que. exatamente simultâneo do jornal-como- só surgiu historicamente quando, e onde, três conceitos
ficção. Sabemos que determinadas edições matinais e ves-
pertinas serão esmagadoramente consumidas entre tal e tal culturais básicos, todos extremamente antigos, deixaram
hora, apenas neste dia, e não em outro. (Contraponha-se de ter domínio axiomático sobre o pensamento dos ho-
isso ao açúcar, cujo uso se processa num fluxo contínuo, mens. O primeiro deles era a ideia de que uma determina-
não cronometrado; ele pode ficar ruim, mas não fica atra- da língua escrita oferecia acesso privilegiado à verdade on-
sado.) A significação dessa cerimónia de massa — Hegel tológica, precisamente por ser parcela inseparável daquela
observava que os jornais são, para o homem moderno, verdade. Foi essa ideia que permitiu que surgissem as gran-
um substituto das preces matinais — é paradoxal. Ela se des congregações transcontinentais da cristandade, do isia-
desenrola em silenciosa intimidade, bem no fundo da cabe- mismo e as demais. O segundo era a crença de que a socie-
ça, 61 Contudo, cada um dos comungantes está bem côns- dade era organizada de maneira natural em torno de e sob
cio de que a cerimónia que executa está sendo replicada, si- centros elevados — monarcas que eram pessoas distintas
multaneamente, por milhares (ou milhões) de outros, de cu- dos outros seres humanos e que governavam por alguma
ja existência está seguro, embora sobre cuja identidade não forma de disposição cosmoiógica (divina). As lealdades hu-
possua a menor ideia. Mais ainda, essa cerimónia é inter- manas eram necessariamente hierárquicas e centrípetas,
minavelmente repetida a intervalos de um dia, ou de meio porque o governante, como a escrita sagrada, era um pon-
dia, ao correr do calendário. Como se poderia representar to central de acesso à existência e a ela inerente. Em tercei-
ilustração mais vívida para a comunidade imaginada histo- ro lugar, a concepção de temporalidade, em que a cosmolo-
ricamente cronometrada? 62 Ao mesmo tempo, o leitor de gia e a história não se distinguiam, sendo essencialmente
jornal, vendo réplicas exatas de seu jornal sendo consumi- idênticas as origens do mundo e dos homens. Essas ideias,
das por seus vizinhos do metro, da barbearia ou de sua ca- associadas, enraizavam firmemente as vidas humanas na
sa, sente-se permanentemente tranquilo a respeito de que própria natureza das coisas, conferindo determinado senti-
o mundo imaginado está visivelmente enraizado na vida do às fatalidades diárias da existência (sobretudo à morte,
quotidiana. Como em Noli Me Tangere, a ficção desliza si- à privação e à escravidão) e propiciando vários modos de
lenciosa e continuamente para dentro da realidade, crian- libertar-se delas.
do aquela notável segurança de comunidade anónima que. Ajiecadência lenta e irregular dessas certezas encadea-
é a marca de garantia das nações modernas. das, primeiro na Europa ocidental e, depois, por toda par-
te, sob o impacto da mudança económica, das "descober-
tas" (sociais e científicas), e do desenvolvimento cada vez
61 "Material impresso estimulava a adesão silenciosa a causas cujos defensores não po-
diam ser localizados em nenhuma localidade 9 que se dirigiam de longe a um públi-
mais rápido das comunicações, cravou uma firme cunha en-
co invisível." Elizabeth L. Eisenstein, "Some Conjectures about trie Impact of Prirj- tre a cosmologia e a história. Não é pois surpresa que a
ting on Western Society and Thought", Jautri»! of Modern Hlstary, 40: 1 (março
de 1968), p. 42.
busca se processasse, por assim dizer, no sentido de um no-
s3 Ao escrever sobre a relação entre a anarquia material da sociedade de classe média vo modo de tornar a vincular fraternidade, poder e tempo
e uma ordem estatal política abstraia, observa Nairn que "o mecanismo representa- de uma maneira significativa. Talvez nada acelerasse mais
tivo converteu a desigualdade ds ciasse real no igualitartsmo abstraio de cidadãos,
os egoísmos individuais em vontade coletiva impessoal, o que de outro modo seria essa busca, nem a tornasse mais frutífera, do que o capita-
o caos dentro de urna nova legitimidade do Estado". The Break-up of Brítain, p. £4. lismo editorial, que tornou possível, a um número cada
Sem dúvida. Mas o mecanismo representativo (eleições?) á uma festa rara e móvel.
A geração da vontade impessoal, penso eu, antes só encontra nas regularídadss diá- vez maior de pessoas, pensarem sobre si mesmas, e se rela-
rias ds vida da imaginação. cionarem com outras, de maneira profundamente renovada.
47

Sendo uma das mais antigas formas de empresa capita-


lista, a edição de livros era afetada por toda a busca inces-
sante de mercados do capitalismo. As primeiras gráficas
AS ORIGENS DA instalaram filiais por toda a Europa: "desse modo, criou-
se-uma verdadeira 'internacional' de editoras, que ignora-
CONSCIÊNCIA NACIONAL va fronteiras nacionais [sic]". 4 E cbmo os anos de 1500-1550
foram um período de prosperidade excepcional na Europa,,
a atividade editorial participou da expansão geral. "Mais
do que em qualquer outro tempo" ela foi "uma grande in-
dústria sob o controle de abastados capitalistas". 5 Natu-
ralmente, os "livreiros preocupavam-se primordialmente
em conseguir lucro e em vender seiis produtos e, conseqúen-
temente, buscavam primeiramente aquelas obras que fossem
de interesse para o maior número possível de seus contem-
porâneos". 6
O mercado inicial foi a Europa letrada, ampla mas té-
Se o desenvolvimento da imprensa-como-mercadoria nue camada de leitores do latim. A saturação desse merca-
é a chave da geração de ideias inteiramente novas de simul- do levou cerca de 150 anos. O fato decisivo quanto ao latim
taneidade, ainda assim estamos simplesmente no ponto — fora sua sacralídade — é que ele era uma língua de biíín-
em que se tornam possíveis comunidades do tipo "horizon- gúes. Relativamente poucos haviam nascido para falar em
tai-secular, transversal ao tempo". Por que, dentro desse latim e menor número ainda, imagina-se, sonhava em latim.
tipo, a nação se tornou tão popular? Os fatores envolvidos No século XVI, a proporção de bilíngues na população to-
são obviamente complexos e variados. Pode-se, porém, de- tal da Europa era muito pequena; muito provavelmente
fender com'vigor a primazia do capitalismo. não maior do .que a proporção na população mundial de
Como já foi assinalado, pelo menos 20 milhões de li- hoje e — não obstante o internacionalismo proletário —
dos próximos séculos. Naquela época, como hoje, a gran-
vros já haviam sido impressos em 1500, ' indicando o sur- de massa da humanidade é de monoglotas. Assim sendo,
gimento da "era da reprodução mecânica" de Benjamin. a lógica do capitalismo indicava que, uma vez que o merca-
Se o conhecimento manuscrito era um saber escasso e mis- do latino de elite estava saturado, os mercados representa-
terioso, o conhecimento impresso vivia da reprodutibilida- dos pelas massas monoglotas, potencialmente enormes, se-
de e da disseminação. 2 Se, como crêem Febvre e Martin, riam o atrativo. É certo que a Contra-Reforma estimulou
é possível que 200 milhões de volumes já tivessem sido ma- um ressurgimento temporário da atividade editorial em la-
nufaturados por volta de 1600, não é de admirar que Fran- tim, mas, em meados do século XVII, o movimento esta-
cis Bacon julgasse que a imprensa havia alterado "a apa-
rência e o estado do mundo". 3
4 Febvre o Martin. The Corning of the Book, p. 122. (O texto original, porém, fala sim-
plesmente de "par-dessusles frorrtíères" í" por sobre as fronteiras"!. L 'Apparitíon, p. 194.)
6 Ibid., p. 187. O 1axtt> original fala ao capitalistas "puissants" (poderosos; a nlo "a-
1 A população da Europa em QU9 a imprensa era então conhecida era du cerca de
100.000.000. Febvre e Martin. The Corning of Ifie Book, p. 248-9. bastados". L'Apparitiorr, p. 281,
6 "Daf ter sido a introdução da imprensa, quanto a isso, uma atapa no caminho para
2 Característico disso é o livro das viagens de Marco Polo, que permaneceu em gran-
nassa atuo soc-iedsde de consuma da massa e de padronização." Ibid., p. 259-60.
de medida desconhecido até sua primeira impressão em 1559. Polo, Travsls, p. XIII.
3 Citado em Eisansteín, "Some Conjectures", p. 56.
(O textc original diz "une civilisation da masse et de standardisation", pue melhor
se traduziria por "civilização padronizada, de massa". L'AppBrition, p. 394.5
48 49

vá em decadência, e saturadas as bibliotecas ardorosamen- Suas obras representaram nada menos do que um terço
te católicas. Nesse meio tempo, uma escassez de dinheiro de iodos os livros em alemão vendidos entre 1518 e 1525.
por toda a Europa levou as gráficas a pensar cada vez Entre 1522 e 1546, foram publicadas 430 edições (integrais
mais em vender edições baratas nas línguas vulgares. 7 ou parciais) de suas traduções da'Bíblia. "Temos aí, pela
O impulso revolucionário do capitalismo no sentido primeira vez, uma verdadeira massa de leitores e uma litera-
da utilização das línguas vulgares recebeu um ímpeto adi- tura popular ao alcance de todo o mundo." 9 De fato, Lu-
cional de três fatores externos, dois dos quais contribuíram tero tornou-se o primeiro autor de grande vendagem conhe-
diretamente para o surgimento da consciência nacional. O cido como ta!. Ou, em outras palavras, o primeiro escritor
primeiro deles, e em última análise o menos importante, que vendia seus Sivros novos com base no próprio nome. 10
foi uma alteração no caráter da própria língua latina. Gra- Onde Lutero foi o primeiro, outros rapidamente se se-
ças ao labor dos humanistas, fazendo renascer a enorme li- guiram, dando início à colossal propaganda religiosa que
teratura da antiguidade pré-cristã e disseminando-a por avassalou a Europa toda no correr do século seguinte. Nes-
meio do mercado editorial, tornou-se patente, no seio da//l- sa gigantesca "luta para conquistar o pensamento dos ho-
telUgentsia transeuropéia, uma nova forma de apreciar os mens' ', o protestantismo sempre esteve basicamente na ofen-
elaborados resultados estilísticos dos antigos. O latim que siva, precisamente porque sabia como utilizar o crescente
agora se pretendia escrever tornava-se cada vez mais cicero- mercado da imprensa em língua vulgar que o capitalismo
niano e, como prova disso, cada vez mais afastado da vi- criava, enquanto que a Contra-Reforma defendia a cidade-
da eclesiástica e da vida quotidiana. Dessa maneira, ele ad- la do latim. Símbolo disso é o índex Llbrorum Prohibito-
quiriu uma característica esotérica, muito diversa da do la- rum do Vaticano — que não tinha correspondente no pro-
tim da Igreja da época medieval. Pois o antigo-latim não testantismo —, catálogo singular que se fez necessário devi-
era obscuro devido a seu conteúdo ou a seu estilo, mas ape- do ao maciço volume de subversão impressa. Nada trans-
nas por ser inteiramente escrito, isto é, devido a seu status mite melhor o sentido' dessa mentalidade de assédio do que
como texto. Agora, tornava-se obscuro devido ao que era a aterrorizante proibição de Francisco I, em 1535, que ve-
escrito, devido à linguagem em si mesma. dava a impressão de todo e qualquer livro em seu reino
Em segundo lugar, foi o impacto da Reforma que, — sob pena de morte por enforcamento! A razão para es-
ao mesmo tempo, deveu muito de seu êxito ao capitalis- sa proibição, e para sua inaplicabilidade, está em que, na
mo editorial. Antes da era da imprensa, Roma ganhava fa- época, as fronteiras orientais de seu reino estavam cerca-
cilmente todas as guerras contra a heresia na Europa oci- das por Estados e cidades protestantes que produziam uma
dental, porque sempre teve linhas internas de comunicação torrente maciça de material impresso contrabandeável. Pa-
melhores que seus desafiantes. Quando, porém, em 1517, ra nos atermos à Genebra de Calvino: entre 1533 e 1540,
Martinho Lutero afixou suas teses na porta da capela em haviam sido publicadas ali apenas 42 edições, mas esse nú-
Wittenberg, elas foram impressas em tradução para o ale- mero subiu para 527, entre 1550 e 1564, e nesta última da-
mão e, "no espaço de quinze dias [haviam sido] conheci- ta não havia menos de quarenta gráficas distintas trabalhan-
das em todos os cantos do país". 8 Nas duas décadas de do em horas extras. "
1520-1540, foram editados três vezes mais livros na Alema-
nha do que no período de 1500-1520, transformação espan-
tosa, para a qual Lutero foi absolutamente fundamental. s
10
Ibid., p. 291-5.
A partir desse ponto, era só um passo pars a situação na França do século XVII, on-
de Corrwllla, Molíèra s La Fomaine •vendiam suas tragédias e comédias manuscritas
diretamente- aos editoras., que as compravam como investimentos excelentes, ten-
7 lbid., p, 195. do em vista a reputação de seus autores no mercado. Ibid., p. 161.
8 Ibid., p, 289-SO. M Ibid. p. 310-5.
50
51

A coalizão entre o protestantismo e o capitalismo edi- ciai foi substituído pelo francês normando. Enquanto isso,
torial, que explorava edições populares baratas, criou rapi- uma lenta fusão entre essa língua de uma classe dirigente
damente grandes públicos leitores novos — inclusive entre estrangeira e o anglo-saxão da população submetida deu
mercadores e mulheres, que tipicamente pouco ou nada. co- origem ao inglês primitivo. Essa fusão tornou possível que
nheciam de latim — e simultaneamente mobilizava-os pa- a nova língua, após 1362, viesse a ser a língua da corte
ra fins político-religíosos. Inevitavelmente, não era apenas — e para a abertura do parlamento. Veio a seguir, em 1382,
a Igreja que se abalava em seus fundamentos. O mesmo a Bíblia manuscrita em língua vulgar, de Wycliffe. u É fun-
terremoto produziu os primeiros Estados europeus não di- damental que se tenha ern mente que essa sequência consti-
násticos e não cidades-Estado de importância, na Repúbli- tuía uma série de línguas "de Estado", e não "nacionais";
ca da Holanda e na Comunidade dos Puritanos. (O pâni- e que o Estado envolvido abrangia, em épocas diversas,
co de Francisco I era tão político quanto religioso.) não apenas a Inglaterra e o País de Gales de hoje, mas tam-
Em terceiro lugar, havia a disseminação, lenta e geo- bém partes da Irlanda, da Escócia e da França. Obviamen-
graficamente desigual, de línguas vulgares específicas co- te, enormes parcelas das populações submetidas conheciam
mo instrumento de centralização administrativa por deter- pouco ou nada de latim, francês normando, ou inglês pri-
minados pseudomonarcas absolutos presuntivos bem posi- mitivo. l3 Só depois de quase um século após a entroniza-
cionados. É conveniente que se lembre, aqui, que a univer- ção política do inglês primitivo é que o poder de Londres
salidade do latim na Europa ocidental medieval jamais cor- foi varrido para fora da "França".
respondeu a um sistema político universal. -É instrutivo o No Sena, teve lugar movimento semelhante, ainda que
contraste com a China Imperial, onde o âmbito da burocra- em ritmo mais lento. Como diz ironicamente Bloch, "o fran-
cia dos mandarins e a dos caracteres desenhados coincidiam cês, vale dizer uma Síngua que, uma vez que era encarada
em grande medida. Com efeito, a fragmentação política meramente como forma adulterada do latim, levou diver-
da Europa ocidental, após o colapso do Império do Ociden- sos séculos para erguer-se à dignidade literária", M apenas
te, significava que nenhum soberano poderia monopolizar se tornou a língua oficial dos tribunais de justiça em 1539,
o latim e torná-lo sua língua oficial exclusiva e, desse mo- quando Francisco I expediu o Edito de Villers-Cotterêts. l5
do, a autoridade religiosa do latim nunca possuiu um ver-. Em outros reinos dinásticos, o latim sobreviveu por muito
dadeiro correspondente político. mais tempo — sob os Habsburgos até bem tardiamente no
O nascimento das línguas vulgares administrativas aã-. século XIX. Em outros, ainda, línguas vulgares "estrangei-
tecedeu tanto a imprensa quanto a revolução religiosa do 'ras" se impuseram: no século XVIII, as línguas da corte
século XVI, e deve, por isso, ser encarado (pelo menos ini- dos Romanovs eram o francês e o alemão. !6
cialmente) como fator independente na erosão da comuni- Em todo caso, a "escolha" da língua parece consti-
dade sagrada imaginada. Ao mesmo tempo, não há nada tuir-se num desenvolvimento gradual, não deliberado, prag-
que indique que quaisquer impulsos ideológicos, sem falar mático, para não dizer casual. Como tal, era inteiramente
em protonacionaís, profundamente arraigados estivessem diferente das políticas linguísticas deliberadas perseguidas
subjacentes à utilização de línguas vulgares onde ela ocor- pelos dinastas do século XIX, que enfrentavam a ascensão
reu. O caso da "Inglaterra" — na periferia noroeste da Eu-
ropa latina — é especialmente'esclarecedor. Anteriormen- 1S Seton-Walso-ri, Netions and States, p. 28-9; Bloch, Feudal Society, l, p. 75.
te à invasão normanda, a língua da corte, literária e admi- w Não se deve supor que a unificação da língua vulgar administrativa tenha sido realiza-
da Imediatamente ou tis maneira completa, É improvável que a Guiana, governada
nistrativa, era o anglo-saxão. No correr do século e meio a partir de Londres, tivesse sido administrada originariamente ern inglês primitivo.
seguinte, virtualmente todos os documentos reais eram es- M Bloch, Feudai Sociery, l, p,. 98.
15 Seton-Walsoo, Netfons anrf Slates, p. 48,
critos em latim. Entre cerca de 1200 e 1350, esse latim ofi- '«Ibid., p, 83.
53
52

de nacionalismos linguísticos populares hostis. (Ver mais ligeira importância, até que o capitalismo e a imprensa crias-
adiante, Cap. 6.) Sinal claro dessa diferença é que as anti- sem os maciços públicos leitores monoglotas.
gas línguas administrativas eram precisamente isto: línguas Embora seja essencial manter em mente uma ideia de
utilizadas pelo mundo oficial, por sua própria conveniência fatalidade, no sentido de condição geral de diversidade lin-
interna. Não havia qualquer ideia de se impor sistematica- guística irremediável, seria equivocado fazer equivaler es-
mente a língua às diversas populações submetidas ao dihas- sa fatalidade àquele elemento comum às ideologias naciona-
ta. " 'Não obstante, a promoção dessas línguas vulgares listas, que enfatiza a fatalidade primordial de determina-
ao stattts de línguas-do-poder, onde, em certo sentido, eram das línguas e de sua associação a unidades territoriais deter-
concorrentes do latim (o francês, em Paris, o inglês [primi- minadas. O essencial é a influência recíproca entre fatalida-
tivo], em Londres), contribuiu à sua maneira para a deca- de, tecnologia e capitalismo. >ía Europa pré-imprensa e,
dência da comunidade imaginada da cristandade. naturalmente, em outras partes do mundo, a diversidade
No fundo, é provável que a esoterização do latim, a das línguas faladas, aquelas línguas que, para seus falan-
tes, eram (e são) a trama e a urdidura de suas vidas, era
Reforma e o desenvolvimento casual das línguas vulgares ad-
imensa; tão imensa, de fato, que se o capitalismo editorial
ministrativas sejam significativos, neste contexto, primordial-
buscasse explorar cada mercado potencial de língua vulgar
mente em sentido negativo — como tendo contribuído pa- oral, teria permanecido um capitalismo de proporções insig-
ra o destronamento do latim e para a erosão da comunida-
nificantes. Mas esses idioletos variados eram passíveis de
de sagrada da cristandade. É perfeitamente possível conce-
se agruparem, dentro de limites definidos, em número mui-
ber o surgimento das novas comunidades nacionais imagina- to menor de línguas impressas! .A própria arbitrariedade
das, sem que algum deles, talvez nenhum deles, estivesse de qualquer sistema de signos para sons facilitava o proces-
presente. Num sentido positivo, o que tornou imagináveis so de agrupamento.20 (Ao mesmo tempo, quanto mais ideo-
as novas comunidades foi uma interação semifortuita, mas gráficos os signos, tanto mais vasta a zona de agrupamen-
explosiva, entre um sistema de produção e de relações pro- to potencial. Quanto a isso, pode-se descobrir uma espécie
dutivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a im- de hierarquia descendente partindo da álgebra, passando
prensa) e a fatalidade da diversidade linguística do homem. IS pelo chinês e pelo inglês, até os silabários regulares do fran-
O elemento de fatalidade é fundamental. Pois por cês ou do indonésio.) Nada serviu para "agrupar" línguas
mais que o capitalismo fosse capaz de feitos sobre-huma- vulgares correíatas mais do que o capitalismo que, dentro
nos, ele encontrou na morte e nas línguas dois tenazes ad- dos limites impostos pelas gramáticas e sintaxes, criou lín-
versários.19 Determinadas línguas podem morrer ou ser ex- guas impressas mecanicamente reproduzidas, passíveis de
terminadas, mas não havia, nem há, possibilidade de uma disseminação pelo mercado. 21
unificação linguística geral do homem. Contudo, essa in-
compreensibilidade recíproca era historicamente apenas de
zo Proveitosa exposição sobre essa questão encontra-se em S. H. Steinberg, Five Hun-
dfett V&sra cfPrinting, cap. 5. O fato do o signo, ough ser pronunciado diferentemen-
te nas palavras althaugh, bough. Itxigh. rougfi, cougti e hiccough demonstra tanto
17 Confirmação compatível dessa afi/mação ofereça-nos Francisco ! que, como vimos,
a variedade idiolâtica da qual proveio a ortografia Inglesa, agora padrão, quanto a ca-
proibiu toda e qualquer impressão de livros em 1535 e, quatro anos depois, fé: do
francês a língua de sua cortei racterística ideográfica do produto final.
11 Digo "nada ssrvíu... mais do que o capitalismo" intencionalmente. Tanto Stelnberg
18 Esse não foi a primeiro "acidente" dessa natureza. Febvre e Martin observam que,
quanto Eisenstein chegam muito perto de teornorf liar "a imprensa" que imprensa co-
embora Já existisse uma burguesia perceptível na Europa, em fins do século XIII, o
mo c gânio da história moderna, Febvre e Martin (amais se esquecem de que, por de-
papel não tevo uso generalizado antes do -final do século XIV. Somente a superfície
trás da imprensa, estio 33 gráficas e 35 companhias editoras. Nessa contexto, vale
bem lisa do pape! tornou possível a reprodução maciça de textos o figuras — e Isso
lembrar que embora a imprensa tivesse sido Inventada primeiro na China, possivel-
não ocorreu senão apôs outros setenta e cinco anos. Mas o papel náo era Invenção
rrvante quinhentas anos antes de- seu aparecimento na Europa, nSo teve qualquer im-
europeia. Chegou ali vindo de uma outra história — a da China - por intermédio do
pacto de maior importância, rnuito menos revolucionário — precisamente devida â
mundo Islâmico. Tfte Caming of t/ie Book, p. 22, 30 e 45.
15 N5o temos ainda multinacionais gigantes no mundo editorial. ausência do capitalismo ia.
54 55

Essas línguas impressas lançaram as bases para a cons- navam suas formas finais. Suas parentes em desvantagem,
ciência nacional de três modos diferentes. Antes de mais ainda assim assimiláveis à língua impressa que surgia, per-
nada, criaram campos unificados de intercâmbio e comuni- diam prestígio, antes.de mais nada por não serem bem-suce-
cação abaixo do latim e acima das línguas vulgares faladas. didas (ou serem apenas relativamente bem-sucedidas) ao in-
Os falantes da enorme variedade de línguas francesas, in- sistir em suas próprias formas impressas. O "alemão do no-
glesas, ou espanholas, que podiam achar difícil, ou até roeste" tornou-se o Platt Deutsch, largamente falado, e as-
mesmo impossível, compreender-se reciprocamente em con- sim um alemão subpadrão, porque era assimilável ao ale-
versa, tornaram-se capazes de compreender-se via impren- mão impresso de uma maneira em que não o era o checo fa-
sa e papel. No correr do processo, tornaram-se gradativa- lado da Boémia. O alto alemão, o inglês do rei e, mais tar-
mente conscientes das centenas de milhares, até mesmo mi- de, o tai central foram consequentemente elevados a uma no-
lhões, de pessoas existentes em seu determinado campo lin- va proeminência político-cultural.i (Daí as lutas, na Europa
guístico .e, ao mesmo tempo, que apenas essas centenas de desse fim do século XX, de determinadas "sub "-nacionalida-
milhares, ou milhões, a ele pertenciam. Esses co-leitores, des para alterarem seu síaíus subordinado forçando vigoro-
a que estavam ligados pela imprensa, formavam, em sua samente a entrada na imprensa -—• e no rádio.)
visível invisibilidade secular e peculiar, o embrião da comu- Resta apenas salientar que, em suas origens, a fixação
nidade nacionalmente imaginada. das línguas impressas e a diferenciação de status entre elas
Em segundo lugar, o capitalismo editorial atribuiu no- foram, em grande medida, processos não. intencionais que
va fixidez à língua, que, a iongo prazo, ajudou a construir resultaram da interação explosiva entre o capitalismo, a tec-.
aquela imagem de antiguidade, tão essencial à ideia subjeti- nologia e a diversidade Linguística humana. Mas, como tan-
va de nação. Como nos fazem lembrar Febvre e Martin, ta coisa mais na história do nacionalismo, uma vez "ali",
o livro impresso mantém uma forma permanente, passível elas se tornavam modelos formais a serem imitados e, quan-
de reprodução virtualmente infinita, temporal e espacial- do vantajoso, conscientemenle exploradas dentro de um es-
mente. Já não estava mais sujeito aos hábitos individualiza- pírito maquiavélico. Hoje em dia, o governo tai desestimu-
dores e "inconscientemente modernizadores" dos escribas la ativamente as tentativas de missionários estrangeiros de
monásticos. Desse modo, enquanto o francês do século oferecer a suas minorias tribais das montanhas sistemas
XII distinguia-se acentuadamente do francês escrito por próprios de transcrição, e de desenvolver publicações em
Víllon no século XV, a proporção de mudança diminuiu suas próprias línguas: esse mesmo governo é em grande me-
decisivamente no século XVI. "No século XVII as línguas dida indiferente ao que essas minorias falam. O destino
da Europa haviam, de modo geral, assumido suas formas dos povos de fala túrquica nas zonas incorporadas à Tur-
modernas." 22 Em outras palavras, no decorrer de três sécu- quia, Ira, Iraque e URSS atuais é especialmente exemplar.
los, essas línguas impressas estabilizadas foram se sedimen- Família de línguas faladas, outrora agrupável por toda par-
tando; as palavras de nossos antepassados do século XVII te, e portanto compreensível, dentro de uma ortografia ará-
nos são acessíveis de um modo que não eram, a Villon, bica, perdeu aquela unidade em consequência de manipula-
seus ancestrais do século XII. ções deliberadas. Para exaltar a consciência nacional da
Em terceiro lugar, o capitalismo editorial criou Ifaguas- Turquia turca em detrimento de qualquer identificação mu-
de-poder de uma espécie diversa da das antigas línguas vul- çulmana mais ampla, Atatúrk impôs uma romanização com-
gares administrativas. Determinados dialeíos estavam inevita- pulsória. 23 As autoridades soviéticas, seguiram o exemplo,
velmente "mais próximos" de cada língua impressa e domi- primeiro corn uma romanização compulsória antimucul-

52 The Corning of the Book, p. 319. Cf. L'Apperition, p. 477: "Au XVII" siècle, lês lan- 23 Hans Korin. The Age of Nationalism. p, 108. É provavelmente apenas justo acrescen-
gues nationales apparaissant u n peu partout cristallisées". ("No século XVII, as lín- tar que K-crnal esperava lambam, por ess.e meio, par o nacionalismo turco ern linha
guas nacionais mostram-se cristalizadas por toda parta."! com a c iu Tire cie madeira, ramanítada, da Europa ocidental. •;
56

mana e antipersa e, a seguir, na década stalinista de 1930,


com uma cirilização russificante compulsória. 24
Podemos resumir as conclusões que se podem tirar
da exposição até este ponto, dizendo que a convergência
do capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a diversi-
ANTIGOS IMPÉRIOS,
dade fatal das línguas humanas criou a possibilidade de
uma nova forma de comunidade imaginada que, em sua
NOVAS NAÇÕES
morfologia básica, prepara o cenário da nação moderna.
A extensão potencial dessas comunidades era inerentemen-
te limitada e, ao mesmo tempo, não mantinha senão a
mais fortuita relação com as fronteiras políticas existentes
(que eram, em geral, o ponto culminante dos expansionis-
mos dinásticos).
Contudo, é óbvio que, embora hoje em dia quase to-
das as pretensas nações— e também as nações-Estado —
possuam "línguas impressas nacionais", muitas delas pos-
suem essas línguas em comum e, em outras, apenas uma
fração mínima da população "usa" a língua nacional em Os novos Estados americanos do final do século XVIII
conversa ou no papel. Os Estados-nação da América Espa- e início do século XIX são de interesse incomum, por pare-
nhola, ou os da "família anglo-saxônica" são exemplos no- cer quase impossível explicá-los em termos dos dois fatores
táveis do primeiro resultado; muitos ex-Estados coloniais, que, provavelmente por poderem ser facilmente deduzidos
particularmente na África, do segundo. Em outras pala- a partir dos nacionalismos da Europa de meados do sécu-
vras, a formação concreta dos Estados-nação contemporâ- lo, têm sido dominantes em muito do pensamento europeu
neos não é de modo algum isomórfica com o alcance esta- a respeito do surgimento do nacionalismo.
belecido de determinadas línguas impressas. Para explicar- Em primeiro lugar, quer se pense no Brasil, nos EUA
se a descontinuidade-em-conexão entre línguas impressas, ou nas antigas colónias da Espanha, a língua não era um
consciências nacionais e Estados-nação, é necessário voltar- elemento que os diferenciasse de suas respectivas metrópo-
se para o amplo conjunto das novas entidades políticas les imperiais. Todos eles, inclusive os EUA, eram Estados
que brotaram no hemisfério ocidental entre 1776 e 1838, to- crioulos, constituídos e dirigidos por pessoas que comparti-
das as quais se definiram conscientemente como nações e, lhavam uma língua e uma descendência comuns com aque-
com a curiosa exceção do Brasil, como republicas (não di- les contra os quais lutavam. ] Na verdade, é justo que se
násticas). Pois não apenas eram elas historicamente os pri- diga que a língua nunca foi sequer um tema nessas antigas
meiros Estados desse tipo a surgir no mundo, e por isso lutas pela libertação nacional.
forneceram inevitavelmente os primeiros modelos reais de Em segundo lugar, há sérias razões para se duvidar
com que deveriam esses Estados "se parecerem", como tam- da aplicabilidade, em grande parte do hemisfério ocidental,
bém o número delas e seu aparecimento simultâneo ofere- da tese de Nairn, em outros casos convincente, e segundo
cem terreno fértil para um estudo comparativo.
a qual: 2

1 Crioula — pessoa da descendência europeia pura [pelo menos teoricamente), parem


Ji Seton-Watson. Nations and States, p, 317. nascida na América rã, mais tarde, por extensão, srn qualquer lugar fora tia Europa!.
2 77» Brsak-up ofõritein, p. 41.
58 59
O advento do nacionalismo num sentido distintamente mo- pac Amarú (1740-1781). 6 Em 1791, Toussaint L'Ouvertu-
derno esteve ligado ao batismo político das classes inferio- re comandou uma insurreição de escravos negros, que
res... Ainda que às vezes hostil à democracia, os movimen- deu origem, em 1804, à segunda república independente
tos nacionalistas têm tido uma perspectiva invariavelmen-
do hemisfério ocidental — e aterrorizou os grandes fazen-
te populista e procurado arregimentar as classes inferiores
para a vida política. Em sua versão mais típica, isto assu deiros da Venezuela, donos de escravos. 7 Quando, em
miu a forma de uma ciasse média e de uma liderança inte- 1789, Madri expediu uma-no vá lei, mais humanitária, so-
lectual inquietas, que procuram incitar e canalizar as ener- bre escravidão, especificando pormenorizadamente os di-
gias das classes populares para a sustentação dos novos reitos e os deveres dos senhores e dos escravos, "os criou-
.Estados. los repudiaram a intervenção estatal com base em que os
escravos eram propensos ao vício e à independência [!] e
Pelo menos na América do Sul e na América Central, eram fundamentais para a economia. Na Venezuela —'• na
as "classes-médias" ao estilo europeu ainda eram insignifi- verdade, por todo o Mar das Caraíbas espanhol — os fa-
cantes no final do século XVIII. Como também não havia zendeiros se opuseram à lei e promoveram sua revogação
algo semelhante a uma intelligenisia. Pois "naqueles dias em 1794". 8 O próprio Libertador Bolívar opinou, certa
. tranquilos da colónia era pouca a leitura a interromper o vez, que uma revolta de negros era "mil vezes pior que
ritmo faustoso e.snob da vida das pessoas". 3 Como vimos, uma invasão espanhola". * Também não devemos esque-
o primeiro romance hispano-americano só foi publicado cer que muitos dos líderes do movimento de independên-
em 1816, bem depois da deflagração das guerras de inde- cia das Treze Colónias eram magnatas agrários donos de
pendência. Os indícios .sugerem claramente que a lideran- escravos. O próprio Thomas Jefferson estava entre os fa-
ça estava nas mãos de ricos proprietários de terras, em alian- zendeiros da Virgínia que, na década de 1770, se irritaram
ça com um número muito menor de comerciantes e de di- com a proclamação do governador legalista que concedia
versos tipos de profissionais liberais (advogadas, militares, Uberdade aos escravos que rompessem com seus senhores
funcionários locais e provinciais). 4 sediciosos. 10 É instrutivo que uma das razões pelas quais
Ao contrário de procurar "arregimentar .as classes in- Madri conseguiu retornar com êxito à Venezuela, entre
feriores para a vida política", um fator-chave,que, de iní- 1814 e 1816, e manter, até 1820, o domínio sobre a longín-
cio, estimulou o impulso para a independência em relação qua Quito, foi ela ter conseguido o apoio dos escravos,
a Madri, em casos tão importantes como a Venezuela, o naquela, e dos índios, nesta, em sua luta contra os criou-
México e o Peru, era o medo de mobilizações políticas da los rebeldes, ll Além disso, a prolongada duração da lu-
"classe inferior": a saber, rebeliões de índios ou'de escra- ta continental contra a Espanha, na época uma potência
vos negros. 5 (Esse medo só aumentou quando o "secretá- europeia de segunda ordem, e que fora, ela mesma, recen-
rio do Espírito Mundial" de Hegel conquistou a Espanha temente subjugada, indica certa "fragilidade social" des-
em 1808, privando assim os crioulos de apoio militar da pe- ses movimentos de independência latino-americanos.
nínsula em caso de emergência.) No Peru, ainda estavam
vivas as lembranças da grande jacquerie liderada por Tu- 6 Talvez seja notável qu« Tupac Amarú não lenha rapudiado completamenta a compro-
misso de fidelidade ao rei espanhol. Ele e seus seguidores (na maior parte índios,
mas também alguns brancos e mestiços) ínsurglram-se contra'a administração de Li-
ma: Masur, Bolívar, p. 24.
3 Gerhard Masur, Simon Bolívar, p. 17.
7 Seton-Wstson. Noticns and Síntes, p. 201.
4 Lynch, The Spanish-Amef/can Revo/utíons, p. 14-7 e flnssim, Essas proporções pro- 11 Lynch, Tho Spanfsli-Amaficori ftovolulions, p. 192.
vem do faio de que as (unções comorciais o sdmirtistraiifas mais importantes oram albid.,p. 224.
em grande medida monopolizadas pelos espanhóis natos, enquanto a propriedade cia 10 Edward 5. Morgars, "Trie Haart of Jelferson", The tJsw HM* Review -o/ Books, 17
terra era inteiramente aberta aos crioulos.
d« agasto tfe 1&78, p. 2.
s Quanto s isto, há analogia evidente com o nacionalismo Bóer de um século mais tarde.
11 Masur, Bolívar, p. 207; Lyncri, The Spanfsíi-Americen fíevolutions, p, 237.
61

Contudo, eles eram movimentos de independência na- novos impostos, tornou mais eficiente sua arrecadação, for-
cional. Bolívar mudou de opinião a respeito dos escravos 12 taleceu os monopólios comerciais metropolitanos, restringiu
e San Martin, seu companheiro de luta pela libertação, de- em benefício próprio o comércio intra-hemisfério, centrali-
cretou, em 1821, que, "no futuro, os aborígenes não deve- zou as hierarquias administrativas e promoveu intensa imi-
rão ser chamados de índios, ou de nativos; eles são filhos gração de peninsulares, 1S O México, por exemplo, no início
e cidadãos do Peru e deverão ser conhecidos como perua- do século XVIII, provia a Coroa com uma renda anual de
nos". 13 (Poderíamos acrescentar: a despeito do fato de cerca de 3.000.000 de pesos. No finai do século, porém, es-
que, até então, o capitalismo editorial não havia ainda che- sa quantia quase quintuplicara, atingindo 14.000.000, dos
gado a esses analfabetos.) quais apenas 4.000.000 eram utilizados no custeio da admi-
Eis então o enigma: por que precisamente as comuni- nistração local. 16 Paralelamente à isso, o nível da migração
dades crioulas é que desenvolveram tão precocemente con- peninsular na década de 1780-1790 era cinco vezes maior
cepções de sua nation-ness — bem antes da maior parte do que havia sido entre 1710-1730. "
da Europa? Por que essas províncias coloniais, abrangen- • Não há dúvida, também, de que a melhoria das comu-
do em geral grandes populações oprimidas que não falavam nicações através do Atlântico, além do fato de as diversas
o espanhol, deram origem a crioulos que, deliberadarnen- Américas compartilharem línguas e culturas com suas res-
te, redefiniram tais populações como compatriotas? E a Es- pectivas metrópoles, significava transmissão relativamente
panha, 14 à qual estavam ligados de tantas maneiras, co- rápida e fácil das novas doutrinas económicas e políticas
mo inimigo estrangeiro? Por que o Império hispáno-ameri- que se estavam produzindo na Europa ocidental. O êxito
cano, que tivera existência tranquila durante três séculos, da revolta das Treze Colónias, em fins da década de 1770,
fragmentou-se tão subitamente em dezoito Estados distintos? e o começo da Revolução Francesa, em fins da de 1780,
Os dois fatores mais comumente mencionados como não deixaram de ter uma influência poderosa. Nada me-
explicação são o enrijecimento do controle exercido por lhor para confirmar essa "revolução cultural" do que o re-
Madri e a disseminação das ideias liberalizantes do Ilumi- publicanismo que impregnou as comunidades recém-inde-
nismo, na última metade do século XVIII. Não há dúvida pendentes.18 Em parte alguma houve qualquer tentativa sé:
de que é verdade que as políticas implantadas pelo hábil ria de reinstaurar o princípio dinástico nas Américas, a não
"déspota esclarecido" Carlos III (r. 1759-1788) decepciona- ser no Brasil; mesmo ali, isso provavelmente não teria si-
ram, irritaram e alarmaram cada vez mais a classe alta criou- do possível, não fosse a imigração, em 1808, do próprio di-
la. Naquilo que, por vezes, tem sido sardonicamente cha- nasta português, fugindo de Napoleão. (Ele permaneceu
mado de segunda conquista das Américas, Madri lançou ali por treze anos e, ao regressar, teve seu filho coroado lo-
calmente como Pedro I do Brasil.)
12 Não sem algumas idas e vindas. Elo libertou seus escravos pouco depois da declara-
Contudo, a agressividade de Madri e o espírito do li-
ção de independência da Venezuela, em 1810. Quando fugiu para o Haiti em 1816, beralismo, ainda que fundamentais para a compreensão
conseguiu ajuda militar do Presidente Alexandre Pétion, em troca da promessa de
terminar com a escravidão em todos os territórios libertados. A promessa foi cumpri-
do impulso de resistência na América espanhola, não expli-
da em Caracas, em 1818 — mas é preciso lembrar que os êxitos de Madri na Vene-
zuela, entre 1314 e 1316, se deveram em parte è emancipação pela metrópole dos
escravos leais. Quando Bolívar sã tornou presidente da GrS-Colombia (Venezusta, No- 15 Essa nova agressividade metropolitana era, em parta, produto das doutrinas do Ilu-
va Granada e Equador), em 1821, solicitou e obteve do Congresso uma lei libertan- minismo, em parta, de problemas fiscais crónicos a, em parto, após 1779, da guer-
do os filhos de escravos. "Não solicitara ao congresso que abolisse a escravatura, ra com a Inglaterra. Lynch, The Spanísh-American Revotutions, p. 4-17. *
por não querer atrair sobre si o ressentimento dos grandes proprietários de terra." 18 Ibid., p. 301. Quatro míriSBS iam para subsidiar a administracío de outras partes
Masur, Bolívar, p. 125, 206-7, 329 e 38B. da América, enquanto seis milhões eram de puro lucro.
13 Lynch, The Spanisfi-Amerícan Revolutions, p, 276, Grifos nossos.
" Ibid., P. 17.
14 Anacronismo. No século XVIII, o tarmo comum era ainda Lãs Espartas [As Espinhas] 1B A Constituição da Primeira República Venezuelana t1B11) era, em muitas partes, to-
e não Espana (Espanha). Seton-Watson, Naiions ertd States, p. 53. rrada de emptíslímo, palavra por palavra, da dos Estados Unidos. Masur, Bot/ver, p. 131.
62 63

cam, por si sós, por que entidades como o Chile, a Vene- pulco levava quatro meses, e a viagem de volta às vezes
zuela e o México vieram a tornar-se emocionalmente plau- mais tempo; a viagem por terra de Buenos Aires a Santia-
síveis e politicamente viáveis; l9 nem por que San Martin go demorava normalmente dois meses, e a Cartagena, no-
devesse decretar que determinados aborígenes fossem iden- ve. 22) Além disso, as políticas comerciais de Madri resulta-
tificados pelo neologismo "peruanos". Nem, afinal de con- vam em fazer das unidades administrativas zonas económi-
tas, apresentam a razão'dos verdadeiros sacrifícios que fo- cas separadas. "Toda competição com a mãe-pátria era ve-
ram feitos. Pois, embora seja certo que as classes altas criou- dada aos americanos e as distintas partes do continente
las, concebidas como formações sociais históricas, saíram- não podiam sequer comerciar entre si, As mercadorias ame-
se muito bem com a independência ao longo do tempo, ricanas, em curso de um lado a outro da América, tinham
muitos membros concretos dessas classes, que viveram en- de fazer uma tortuosa viagem via portos espanhóis, e a na-
tre 1808 e 1828, ficaram financeiramente arruinados. (Ape- vegação espanhola tinha o monopólio do comércio com
nas um exemplo: durante a contra-ofensiva de Madri, em as colónias." 23 Essas experiências ajudam à explicar por
1814-1816, "mais de dois terços das famílias proprietárias que "um dos princípios básicos da revolução americana"
de terras sofreram pesados confiscos''. 20) E outros tantos foi o do "utipossidetis, segundo o qual cada nação mante-
deram a vida voluntariamente pela causa. Essa disposição ria o status quo territorial de 1810, ano em que se haviam
ao sacrifício por parte de classes em situação confortável iniciado os movimentos pela independência''. 24 Sua influên-
é matéria para reflexão. cia contribuiu também, sem dúvida, para a desintegração
E então? O começo de uma resposta encontra-se no da efémera Grã-Colômbia de Bolívar e das Províncias Uni-
fato notável de que "cada' uma das novas repúblicas sul- das do Rio da Prata em seus antigos elementos constituti-
americanas havia sido uma unidade administrativa entre vos (hoje em dia conhecidos como Venezuela-Colômbia-
os séculos XVI e XVIII". 21 Quanto a isso, prenunciaram Equador e Argentina-Uruguai-Paraguai-Bolívia). Não obs-
os novos Estados da África e de partes da Ásia, em mea- tante, mercados regionais de caráter "natural"-geográfico
dos do século XX, e contrastam marcadamente com os no- ou político-administrativo, por si sós, não criam lealdades.
vos Estados europeus do final do século XIX e início do sé- Quem estaria disposto a morrer pelo Comecon ou pela CEE?
culo XX, A configuração original das unidades administra- Para perceber de que modo unidades administrativas
tivas americanas era, em certa medida, arbitrária e fortui- podem, com o correr do tempo, vir a ser concebidas co-
ta, assinalando os limites espaciais de determinadas conquis- mo pátrias, não só na América como também em outras
tas militares. Com o correr do tempo, porém, elas desen- partes do mundo, é preciso examinar de que modo organi-
volveram uma realidade mais estável,1 sob a influência de zações administrativas criam significado. O antropólogo
fatores geográficos, políticos e económicos. A própria vas- Victor Turner tem escrito de maneira esclarecedora a res-
tidão do Império hispano-americano, 'a* enorme variedade peito da "jornada", entre tempos, síaíus e lugares, como
de seus solos e climas e, sobretudo, a imensa dificuldade uma experiência criadora de significado. 2S Todas essas jor-
de comunicações numa era pré-industriaí contribuíram pa-
ra dar a essas unidades um caráter de auto-suficiência. (Na 42 Lynch, The Spanish-Amerícen Revolutions, p. 25-6,
época colonial, a jornada marítima de Buenos Aires a Aca- 23 Masur, Bolívar, p. 19. Naturalmente, essas medidas eram apenas em parte executá-
veis e sempre continuou a haver certa porção de contrabando.
**lbid., p. 546.
25Ver.de sua autoria, TheForesíof Symbols, Aspecrsof Ndembít Ritual, especialmen-
19 O mesmo se pode dizer da postura de Londres diante das Treze Colónias, o da ideolo- te a capítulo "BatwlM and Between: Thn Llminal Period ín ftius de Psssage". Elabo-
gia da Revolução de 1776. ração posterior mais e-nmplsxa ertcontra-s.e ern seu Dramas, Fieids. and Metaphors,
20Lynch, The Spanish-AmericanRevotutíons. p. 20B; cf. Masur, Bolívar, p. S8-9 e 231. Svmhotic Actron in Hatnan Soci&ty. capítulo 5 ("Pilgiimages as Social Processes")
21 Masur, Bolívar, p, 678, e S ("Passagas, Margíns, and Pcvarty: Religi-ous Symbols c-f Cornmunitas").
65
64

nadas exigem interpretação (por exemplo, a jornada do da cristandade ocidental em seu auge do que o fluxo espon-
nascimento à morte deu origem a diversas concepções reli- tâneo de fiéis seguidores vindos de toda parte da Europa
giosas). Para nossos fins, a jornada modal é a peregrina- para Roma, através dos célebres "centros regionais" de
ção. Não é simplesmente que, na mente dos cristãos, "mu- aprendizado monástico. Essas grandes instituições de fala
çulmanos ou hindus, as cidades de Roma, Meca ou Bena- latina congregavam o que hoje talvez víssemos como irlan-
res fossem os centros de geografias sagradas, mas sim que deses, dinamarqueses, portugueses, alemães e assim por dian-
sua centralidade era vivenciada e "realizada" (no sentido te, em comunidades cujo significado sagrado era diariamen-
da arte cénica) pelo fluxo constante de peregrinos que se te revelado a partir da justaposição de seus membros no re-
deslocavam em sua direção, vindos de localidades longín- feitório, justaposição que não se poderia explicar de qual-
quas entre as quais não existia qualquer outra relação. Na quer outra maneira.
verdade^ em certo sentido, os limites externos das antigas Embora as peregrinações religiosas sejam provavelmen-
comunidades religiosas da imaginação eram determinados te as mais tocantes e grandiosas jornadas da imaginação,
pelo tipo de peregrinação que as pessoas faziam. 26 Como elas tinham, e têm, equivalentes seculares mais modestos
já assinalamos anteriormente, a estranha justaposição físi- e limitados,2S Para nossos fins, as mais importantes foram
ca de malaios, persas, indianos, berberes e turcos em Me- as diferentes viagens criadas pelo aparecimento das monar-
ca é algo incompreensível sem uma noção de alguma for- quias absolutas e, finalmente, dos impérios mundiais com
ma de comunidade entre eles. O berbere que encontra o centro na Europa. O impulso inerente ao absolutismo era
malaio diante da caaba deve, por assim dizer, indagar-se: a criação de um aparato unificado de poder, controlado di-
"Por que esse homem está fazendo o que faço, pronuncian- retamente pelo governante, e leal a ele, em oposição a uma
do as mesmas palavras que pronuncio e, no entanto, não nobreza feudal particularista e descentralizada. Unificação
podemos falar um com o outro?" Existe uma única respos- significava permutabilidade interna de homens e documen-
ta, uma vez que se aprenda: "Porque nós.., somos muçul- tos. A permutabilidade humana era favorecida peia arregi-
manos". Pôr certo, sempre houve ura duplo aspecto da co- mentação — naturalmente de extensão variável — de homi-
reografia das grandes peregrinações religiosas: vasta multi- nesnovi, os quais, exatamente por essa razão,'não possuíam
dão de analfabetos, falantes de língua vulgar, forneciam a poder independente propriamente seu, e, assim, atuavam
densa realidade física da viagem cerimonial; enquanto que como emanações das vontades de seus senhores. 29 Desse
um pequeno segmento de iniciados letrados bilíngues, oriun- modo, os funcionários dó absolutismo empreendiam jorna-
dos 'de cada uma das comunidades de língua vulgar, execu- das que eram fundamentalmente diferentes das dos nobres
tavam os ritos unificadores, interpretando para seus respec- feudais. 3° Essa diferença pode ser representada esquemati-
tivos seguidores o significado de seu movimento coletivo. 27 camente da seguinte maneira: na jornada modal feudal, o
Numa época pré-imprensa, a realidade da comunidade reli- herdeiro do Nobre Á, com a morte de seu pai, ascendia
giosa imaginada dependia profundamente de inúmeras e um degrau para ocupar o lugar daquele pai. Essa ascensão
contínuas viagens. Nada é mais impressionante a respeito
." A "peregrinação secular" não deve ser tonada apenas como um tropo extravagan-
te. Conrad estava sendo iionico, mas também preciso, ao descreve' corno "paregri-
™ Ver Bloch, Feudal Society. l, p. 64.
ncs" os agentes espectrais <Je Leopoldo II na profundeza das trevas,
" Existe, neste caso. analogia evidente com os respectivos papéis ctas intetligentsias 23 Especialmente onde; (a) a monogamia era imposta pela religião B pela lei; (h) a primo-
bilingues e dos operários a camponeses, na maioria analfabetos, na génese de deter- genitura era a regra; (c) os títulos não-dinâsticcsetam não só hersditárlos como con-
minadas movimentos nacionalistas — antes do advento do rádio. Inventado apenas ceptuais e legalmente distintas de postas administrativos: isto é, quando as aristo-
em 1895, o rádio tornou possível ignorar a irnprensa e dar nascimento a uma repre- cracias das províncias possuíam poder independente significativo - a Inglaterra,
sentação auditiva da comunidade Imaginada, onde a página impressa dificilmente pe-
em oposição ao S ião.
netrava. Ssu papel nas revoluções vietnamita e indonésia e, em geral, nos nacionalis-
'« Ver Bloch, Feudal Soctety. II, p, 422 st saqs.
mos da meados do século XX, tem sido muito subestimado e muito mal estudado.
66 67

exigia uma viagem de ida e volta, até o centro para receber berano para as máquinas de seus adversários: por assim di-
a investidura, e de retorno à casa, para os domínios ances- zer, garantindo, que funcionários-peregrinos de Madri não
trais. Para o novo funcionário, porém, as coisas são mais fossem permutáveis com os de Paris.)
complexas. O talento, e não a morte, é que traça sua car- Em princípio, a expansão extra-européia dos grandes
reira. Vê diante de si um cume e não urn centro. Escala reinos do início da Europa moderna teria simplesmente am-
suas geleiras por uma série de arcos que o circundam, os pliado o modelo acima ao desenvolver as enormes burocra-
quais, espera, se tornarão menores e mais firmes à medi- cias transcontinentais. Na verdade, porém, isso não aconte-
da que se aproxime do topo. Enviado para a municipalida- ceu. A racionalidade instrumental do aparato absolutista
de A no posto V, pode retornar à capital no posto W; vai, — sobretudo sua tendência a recrutar e promover com ba-
a seguir, para a província B no posto X; prossegue para o se no talento e não no nascimento — funcionou apenas in-
vice-reino C no posto Y; e termina sua peregrinação na ca- termitentemente para além do litoral oriental do Atlântico.31
pital no posto Z. Nessa jornada, não há lugar seguro de re- O padrão é muito evidente na América. Por exemplo,
pouso; toda pausa é provisória. A última coisa que o fun- dos 170 vice-reís da América espanhola antes de 1813, ape-
cionário quer é regressar à pátria; pois ele não tem pátria nas 4 foram crioulos. Esses números são ainda mais impres-
com qualquer valor intrínseco. E mais: em sua rota espiral sionantes se observarmos que, em 1800, menos de 5% dos
de ascensão, depara-se com companheiros de peregrinação 3.200.000 crioulos "brancos" do Império Ocidental (que
igualmente ansiosos, seus colegas funcionários, oriundos se impunham aos cerca de 13.700.000 indígenas) eram espa-
de lugares e de famílias de que pouco ouviu falar e que es- nhóis nascidos na Espanha. Às vésperas da revolução do
pera certamente jamais ter de ver. Porém, com a experiên- México, só havia um bispo crioulo, embora os crioulos
cia de tê-los como companheiros de viagem, emerge uma no vice-reinado superassem os peninsulares na proporção
consciência de conexão ("Por que estamos nós... aqui... de 70 para 1. 32 E não é preciso dizer que dificilmente se sa-
juntos!"), sobretudo quando todos compartilham de uma bia de algum, crioulo que ascendesse a um posto de impor-
única língua-de-Estado. Então, se o funcionário A, vindo tância oficial na Espanha. 33 Além disso, as peregrinações
da província B, administra a província C, enquanto o fun- de funcionários crioulos não eram barradas apenas vertical-
cionário D, da província C, administra a província B — si- mente. Se os funcionários peninsulares podiam percorrer
tuação que o absolutismo começa a tornar provável — es- a rota de Saragoça a Cartagena, Madri, Lima e de novo
sa experiência de permutabilidade exige uma explicação pró- Madri, o crioulo "mexicano" ou "chileno" típico presta-
pria: a ideologia do absolutismo que, tanto quanto o sobe-
rano, os próprios homens novos elaboram.
Evidentemente, não 16 deve exagerar essa racionalidade. O caso do Reino Unido,
A permutabilidade de documentos, que fortalecia a 31
em que os católicos foram Impedidos de exercer cargos públicos até 1829, não é
permutabilidade humana, nutria-se do desenvolvimento único. Haverá quam duvide que essa prolongada exclusão tenha desempenhado pa-
pel Importante no fonalecirnanto do nacionalismo Irlandês?
de uma língua-de-Estado padronizada. Como demonstra 11 Lynch, The Spsnísh-Ameiican ftevolaiions, p. 18-9, 293. Descerca de 1 S.000penin-

a imponente sucessão do anglo-saxão, latim, normando e sulares, melada eram soldados.


13 Na primeira década do século XIX, parece não ter havido em momento algum mais
inglês primitivo em Londres, do século XI ao XIV, qual- de 400 sul-amerlcanps residentes na Espanha. Entre eles, o "argentino" San- Martin,
quer língua escrita pode, em princípio, desempenhar essa que foi levado para a Espanha quando criança, e ali passou os 27 anos seguintes, in-
gressou na Academia Real para jovens fidalgos/ e desempenhou papel destacado
função — desde que se lhe atribuam direitos monopolísti- na luta armada contra Napoleão antas de regressar à terra natal, quando soube ds
cos. (Pode-se, contudo, argumentar que, onde aconteceu sua declaração do Independênciaj e Ba II vá r qua, por al-gtim tempo, foi hóspede em
Madri de Manuel Mello, amante "americano" da rainha Maria Lulsa. Masur conta
de línguas vulgares, em vez do latim, assumirem o monopó- que Bolívar pertencia [c. 18051 a "urn grupo de jovens suf-arnaricanos" qua, como
lio, obteve-se uma função centralizadora mais profunda, ele, "eram ricos, ociosas s mal vistos na Corte. O rancor e o sentimento de inferiori-
dade d-e muitos crioulos em relação 9 metrópole iam-se tornando neles impulsos revo-
pela restrição do deslocamento dos funcionários de um so- lucionários". Botfver, p, 41-7 e 468-70 (San Marttn).
69

vá serviços nos territórios do México ou do Chile coloniais; maquiavelismo com o desenvolvimento de concepções de
seu movimento lateral era tão tolhido quanto sua ascensão contaminação biológica e ecológica, que se seguiram à dis-
vertical. Desse modo, o ápice de sua escalada espiral, o cen- seminação planetária de europeus e do poder europeu, do
tro administrativo mais alto para o qual podia ser designa- século XVI em diante. Da perspectiva do soberano, os criou-
do, era a capital da unidade administrativa imperial em los americanos, em número cada vez maior e com crescen-
que se encontrava. 34 Contudo, nessa peregrinação limita- te enraizamento a cada geração que se sucedia, apresenta-
da encontrava companheiros de viagem, os quais acabavam vam um problema político historicamente singular. Pela
por perceber que o companheirismo entre eles não se basea- primeira vez, as metrópoles tinham que lidar com números
va apenas naquele determinado .trecho da peregrinação, — para aquela época — enormes de "patrícios europeus"
mas na fatalidade, que compartilhavam, do nascimento (mais de três milhões na América espanhola, em 1800) re-
trans-Atlântico. Ainda que tivesse nascido na primeira se- motamente afastados da Europa. Se os indígenas podiam
mana dep.ois da migração do pai, o acidente do nascimen- ser conquistados pelas armas e pelas doenças, e controla-
to na América destinava-o à subordinação — ainda que, dos pelos mistérios da cristandade e de uma cultura inteira-
em termos de língua,, religião, origem familiar, ou manei- mente estranha (bem como pôr' uma organização política
ras, fosse praticamente indistinguível de um espanhol nasci- avançada para a época), o mesmo não se dava em relação
do na Espanha. Não havia nada a fazer quanto a isso: ele aos crioulos, que tinham, com as armas, as doenças, a cris-
era irremediavelmente um crioulo. Contudo, quão irracio-
nal deve ter parecido sua rejeição! Não obstante, oculta tandade e a cultura europeia, virtualmente a mesma rela- •
cão >que os metropolitanos. Em outras palavras, po:diam,
na irracionalidade estava esta lógica: nascido na'América, em princípio, dispor prontamente dos recursos políticos,
não podia ser um verdadeiro espanhol; ergo, nascido na culturais e militares para se afirmarem com êxito. Consti- '
Espanha, ò peninsular não podia ser um verdadeiro ameri- tuíam simultaneamente uma comunidade colonial e uma
cano. 35
O que fazia com que essa, exclusão parecesse racional classe superior. Deviam ser economicamente subjugados e
na metrópole? Sem dúvida a confluência de um venerável explorados, mas também eram essenciais à estabilidade do
império. Com isso em mente, pode-se observar certo para-
lelismo entre a posição dos magnatas crioulos e a dos ba-
34 Com a correr do tempo, as peregrinações militares tornaram-se tSo importantes quan-
to as civis. "A Espanha não possuía nem dinheiro nem efetivos para manter grandes
rões feudais, fundamentais para o poder do soberano, mas
guarnicães do tropas regulares na América, f) contava principalmente com milícias também uma ameaça a ele. Desse modo, os peninsulares en-
coloniais que, a partir de meados do século XVIII, foram ampliadas e reorganizadas,"
(Ibid., p. 10.) Essas milícias eram inteiramente locais, e hio peças intercambiáveis
viados como vice-reis e bispos desempenhavam as mesmas
de um aparato continental de segurança. Da 1760 em diante, desempenharam papel funções que os hominesnovi das burocracias proto-absolu-
cada vez mais crítico, à medida que se multiplicavam as incursões britânicas, O pai
de Bolívar fora um aminônte comandante de milícia, defendendo os portos venezuela-
ttstas. 3S Ainda que o vice-rei fosse uma pessoa eminente
nos contra os invasores. O próprio Bolívar, quando adolescente, servira na antiga em sua terra andaluza, aqui, distante treze mil quilómetros,
unidade de seu pai. (Masur, Boltvar. p, 30 e 381, Quanto a isso, ele foi típico da mui-
tos da primeira geração de lideras nacionalistas da Argentina: da Venezuela e do Chl-
sobreposto aos crioulos, ele era efetivamente um homo no-
lê. VerRobert G. Gilmore, CaudiUism antf Militarism ir> Venezuela, J810-J910 capítu- vus inteiramente dependente de seu patrão metropolitano.
los 6 ("The Militia"! a 7 ("Thia Mllitary"), •
ís Observe as transformações que a independência trouxe para os-americanos: os Imi-
O equilíbrio tenso entre o funcionário peninsulaj e o mag-
grantas de primeira geração tornavam-se agora "os mais baixos" ao invés de "os nata crioulo era,, assim, em novo cenário, uma expressão
mais altos", isto é, aqueles mais contaminados por um local ds nascimento inevitá-
vel. Inversões semelhantes ocorrem em reação ao racismo. O '.'sangue negro" — a da velha política do divide et impera.
nódoa negra — veio a ser visto, sob o imperialismo, iomò irremediavelmente conta-
minadorpara qualquer "branco". Hoje em dia, pelo menos nos Estados Unidos, o "mu-
lato" é peça de museu. O mais ligeiro traço de "sangue negro" torna a pessoa intei-
ís Dada a grande preocupação de Madri com que a administração das colónias estivas-
ramente negra. Compare isso com o programa otimista de miscigenação de Fermín
se em mios confiáveis, "eia axiomático que os sitos postos fossem praenchidos ex-
e sua ausência de preocupação com a cor da descendência esperada.
clusivanrente por eSpanh-Sis naios". Masur. Bolívar, p. 10,
70
71
Ademais, o crescimento das comunidades crioulas, perniciosa tendência foi dada pelo renascimento da escravi-
principalmente nas Américas, mas também em certas par- dão em larga escala (pela primeira vez na Europa, desde a
tes da África e da Ásia, levou inevitavelmente ao apareci- antiguidade), a qual teve o pioneirismo de Portugal a par-
mento de eurasianos, eurafricanos, bem como euramerica- tir de 1510. Já na década de 1550, 10% da população de
nos, não como curiosidades casuais, mas como grupos so- Lisboa era de escravos; em 1800, 'havia perto de um milhão
ciais evidentes. Seu surgimento permitiu que prosperasse de escravos entre os cerca de 2.500.000 habitantes do Bra-
um estilo de pensamento que prenuncia o moderno racis- sil português. 40
mo. Portugal, o. mais antigo dos conquistadores planetá- Indiretamente, o Iluminismo influenciou também a
rios da Europa,' fornece uma ilustração adequada disso. cristalização de uma distinção irrevogável entre metropolita-
Na última década do século XV, D. Manuel I pôde ainda nos e crioulos. No curso de seus vinte e dois anos no po-
"resolver" sua "questão judaica" pela conversão obrigató- der (1755-1777), o autocrata esclarecido Pombal não só ex-
ria em massa — sendo possivelmente o último governante pulsou os jesuítas dos domínios portugueses, como também
europeu a considerar essa solução não só satisfatória co- classificou como infração criminosa chamar os súditos "de
mo "natural". 37 Menos de um século depois, porém» en- cor" por nomes ofensivos, tais como "negro" ou "mesti-
contramos Alexandre ^Valignano, o grande reorganizador ço" [sic]. Justificou, porém, esse decreto citando antigas
da missão jesuíta na Ásia, entre 1574 e 1606, combatendo concepções romanas de cidadania imperial, e não as doutri-
veementemente a admissão de indianos e eurindianos ao sa- nas dos philosophes. 41 Ainda mais tipicamente, as obras
cerdócio, nos seguintes termos: 3S de Rousseau e de Herder, que afirmavam que o clima e a
->
Todas essas raças pardas são muito broncas e corrompi- "ecologia" tinham efeito constitutivo sobre a cultura e o
das e de índole a mais torpe... Quanto aos mestiços e cas- caráter, exerceram ampla influência. 42 A partir daí, era ex-
tiços, devemos aceitar muito pouco deles, ou nenhum; es- tremamente fácil fazer a dedução vulgar e conveniente de
pecialmente com respeito aos mestiços, uma vez que quan- que os crioulos, nascidos em um hemisfério selvagem, eram,
to mais sangue nativo possuem, mais se assemelham aos pela própria natureza, diferentes dos metropolitanos e infe-
indianos e menos são estimados pelos portugueses. riores a eles — e, portanto, inadequados para cargos de
(No entanto, Valignano estimulou ativamente a admissão de maior importância. *3
japoneses, coreanos, chineses e "indochineses" à profissão Até aqui, nossa atenção tem-se concentrado nos inte-
sacerdotal — talvez por não haver ainda, nessas regiões, resses dos funcionários na América — importantes, estrate-
mestiços em número suficiente?) Analogamente, os francis- gicamente, mas, ainda assim, interesses menores. Além dis-
canos portugueses de Goa combateram violentamente a ad- so, eram interesses que, com seus conflitos entre peninsula-
missão de crioulos na ordem, alegando que "mesmo quan- res e crioulos, antecipavam o aparecimento da consciência
do nascidos de pais brancos puros, foram amamentados nacional americana dos fins do século XVIII. As peregrina-
por aias indianas na primeira infância e, assim, têm o san- ções vice-reais limitadas não tiveram consequências decisi-
gue contaminado por toda a vida". 39 Boxer demonstra vas, até que suas extensões territoriais puderam ser imagi-
que as barreiras e exclusões "raciais" aumentaram notavel-
mente no correr dos séculos XVII e XVIII, em comparação *° Rona Fields, The Portuguese Revotution ancf tfis Armed Forces Movement, p. 15.
com a prática anterior. Pesada contribuição para essa 41 Boser, The Portuguesa Seaborne Èmpirc, p. 257-B.
*2 Kernilàinen. Nationalism. p. 72-3.
<3 Tenho ríslçado aqui as distinções rací-sias entre peninsulares e crioulos, porque o te-
ma principal de que estamos tratando é o surgimento do nacionalismo crioulo. Isso
''Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825, p. 286.
3»lbid.. p. 252. não deve ser compreendido como minimização da crescimanto paralelo do racismo
crioulo em relação a mestiços, negros e índios; nem a disposição de uma metrópole
' 9 lbld., p. 253.
n Só emeacada de proteger (-até ce-lo ponto) esses infelizes.
72
73

nadas como nações, em outras.palavras, até o advento do — notícias comerciais (partidas e chegadas de navios, quais
capitalismo editorial.
os preços, para que mercadorias, em que portos), bem co-
A imprensa chegou cedo à Nova Espanha, mas perma- mo ordenações políticas coloniais, casamentos dos ricos, e
neceu durante dois séculos sob o estrito controle da coroa assim por diante. Em outras palavras, o que colocava la-
e da Igreja. Até fins do século XVII, só havia gráficas na do a lado, na mesma página, este casamento com aquele
Cidade do México e em Lima, e sua produção era quase navio, este preço cora aquele bispo, era a própria estrutu-
que exclusivamente ligada à Igreja. Na América do Norte ra da administração e do sistema de mercado coloniais.
protestante, a imprensa praticamente não existiu nesse sécu- Desse modo, o jornal de Caracas, de maneira muito natu-
lo. No correr do século XVIII, porém, teve lugar uma ver- ral e até mesmo apolítica, criava uma comunidade imagina-
dadeira revolução. Entre 1691 e 1820, foram editados na-,
da entre uma determinada congregação de companheiros-
da menos de 2.120 "jornais", 461 dos quais duraram por
mais de dez anos. 44 leitores, à qual pertenciam esses navios, noivas, bispos e
preços. Naturalmente, só se podia esperar que, com o cor-
A figura de Benjamin Franklin está indelevelmente as- rer do tempo, aí entrassem elementos políticos.
sociada ao nacionalismo crioulo na América do Norte. A
importância de seu negócio, porém, pode ser menos eviden- Um traço criativo desses jornais era sempre seu provin-
te. Mais uma vez, Febvre e Martin nos esclarecem. Lem- cianismo. Um crioulo colonial, se tivesse oportunidade, po-
bram-nos que "a imprensa de fato não se desenvolveu na dia ler um jornal de Madri (o qual, porém, não diria na-
América do Norte durante o século XVIII, até que os im- da sobre seu mundo), mas muitos funcionários peninsula-
pressores descobrissem uma nova fonte de renda — o-jor- res, morando na mesma rua, não leriam o que se produzia
nal". "5 Os gráficos que abriam novas oficinas incluíam sem- em Caracas se pudessem deixar de fazê-lo. Assimetria, es-
pre um jornal em sua produção, do qual eram comumen- ta, que podia repetir-se infinitamente em outras situações
te o colaborador principal, senão único. Assim, o gráfico- coloniais. Outro traço desse tipo era a pluralidade. Os pe-
jornalista foi, de início, um fenómeno essencialmente nor- riódicos hispano-americanos que se desenvolveram no fi-
te-americano. Uma vez que o principal problema enfrenta- nal do século XVIII eram compostos com plena consciên-
do pelo gráfico-jornalista era atingir os leitores, desenvol- cia da existência de provincianos em mundos paralelos ao
veu-se uma associação tão estreita com o agente do correio seu. -Os leitores de jornal da Cidade do México, de Buenos
que, frequentemente, eles se tornavam um só. Daí ter a Aires e de Bogotá, ainda que não lessem os jornais uns
oficina gráfica surgido como o ponto chave das comunica- dos outros, estavam no entanto perfeitamente conscientes
ções e da vida intelectual da comunidade nos EUA. Na de sua existência. Daí a conhecida duplicidade do naciona-
América espanhola, ainda que de modo.mais lento e inter- lismo hispano-arnericano primitivo, a alternância entre seu
mitente, processo semelhante deu origem, na segunda meta- extenso âmbito e seu localismo particularista. O fato de
de do século XVIII, às primeiras gráficas locais. 46 os primeiros nacionalistas mexicanos escreverem, sobre si
Quais eram as características dos primeiros jornais, mesmos, corno nosotros los americanos e, sobre seu país,
norte ou sul-americanos? Eles começavam fundamentalmen- corno nuestra América\m sido interpretado como revela-
te como prolongamentos do mercado. Os mais antigos jor- dor da vaidade dos crioulos locais que, por ser o México,
nais continham — ao lado de notícias sobre a metrópole de longe, a mais valiosa das possessões da América espa-
nhola, se consideravam o centro do Novo Mundo. 47 De fa-
to, porém, por toda a América espanhola, as pessoas pen-
48
"'"'The Cornin9 of the Book'Pi 208"11 •
Franco, An Introduction, p. 28.
47 Lvach, The Spsnísk-AmerJcen fievaSulions, p. 33,
74
.78
savam em si mesmas como "americanas", uma vez que es- do que a Venezuela e equivalente a um terço do tamanho
sa expressão denotava precisamente a fatalidade do nasci- da Argentina. M Estando todas elas juntas geograficamen-
mento extra-espanhol que compartilhavam. "8 te, os mercados de Boston, Nova York e Filadélfia eram fa-
Ao mesmo tempo, vimos que a própria concepção cilmente acessíveis uns aos outros e suas populações liga-
do jornal implica na refracão de "eventos mundiais" idên- das de maneira relativamente firme pela imprensa, tanto
ticos em um determinado mundo imaginado de leitores na quanto pelo comércio. Os "Estados Unidos" puderam
língua vulgar; e, também, em quão importante é, para es- multiplicar gradativamente seu número no correr dos 183
sa comunidade imaginada, uma ideia de simultaneidade fir- anos seguintes, à medida que populações antigas e novas
me e sólida através do tempo. A imensa extensão do Impé- se deslocaram rumo ao oeste a partir do núcleo litorâneo
rio hispano-americano e o isolamento de suas partes com- do leste. Contudo, mesmo no caso dos EUA, há elementos
ponentes tornavam difícil imaginar uma simultaneidade co- de "fracasso" ou retração comparáveis — a não incorpora-
mo essa. *9 Os crioulos mexicanos podiam saber, meses ção do Canadá de fala inglesa, a década de soberania inde-
mais tarde, de acontecimentos ocorridos em Buenos Aires, pendente do Texas (1835-1846).'Se, no século XVIII, tives-
mas isso se daria por intermédio dos jornais mexicanos, se existido uma comunidade de fala inglesa de bom tama-
não dos do Rio da Prata; e tais acontecimentos antes pare- nho na Califórnia, não seria provável que tivesse surgido
ceriam "ser semelhantes aos" acontecimentos ocorridos ali um Estado independente, pára atuar como uma Argen-
no México, do que "fazer parte deles". tina em relação ao Peru das Treze Colónias? Até mesmo
Nesse sentido, o "fracasso" da experiência hispano- nos EUA, os laços afetivos de nacionalismo foram suficien-
americana em gerar um nacionalismo de âmbito hispano- temente elásticos, associados à rápida expansão da frontei-
americano permanente reflete, ao mesmo tempo, o nível ge- ra oeste e às contradições geradas entre as economias do
ral de desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia em norte e do sul, a ponto de precipitar uma guerra de seces-
fins do século XVIII, e o atraso "local" do capitalismo e são quase um século depois da Declaração da Independên-
da tecnologia na Espanha em relação à extensão adminis- cia; e, hoje, essa guerra nos faz lembrar vivamente as que
trativa do império. (A época da história mundial em que separaram violentamente a Venezuela e o Equador da Grã-
nasce cada nacionalismo tem, provavelmente, um impacto Colômbia, e o Uruguai e o Paraguai, das Províncias Uni-
significativo sobre seu alcance. Não será o nacionalismo in- das do Rio da Prata. 51
diano inseparável da unificação administrativa e de merca- À guisa de conclusão provisória, é conveniente voltar
do da colónia, após a Insurreição, realizada por poderes im- a acentuar a pretensão limitada e específica da exposição
periais os mais terríveis e avançados?) que fizemos até aqui. O que se pretende é menos explicar
Ao norte, os crioulos protestantes de fala inglesa esta- as bases socioeconômicas da resistência antinietropolitana
vam em posição muito mais favorável para concretizar a no hemisfério ocidental entre, digamos, 1760 e 1830, do
ideia de "América" e, na verdade, acabaram por ter êxito que a razão por que a resistência se concebeu sob formas
em apropriar-se do título habitual de "americanos". As
Treze Colónias originárias compreendiam uma área menor 50 A superfície,total das Tieze ColCnlas era de 835.202 quilómetros quadrados. A da
Venazuala. 311.£3-0; da Argentina, 2.776.439; e da América do Sul hispínica,
8.860,965 dui!õrnetros quadrados.
51 O Paraguai constitui um caso de excepcional interesse. Graças à ditadura relativa-
49 "Um peão velo queixar-se de que um inspetor espanhol de sua estância havia bati-
mente benevolente alt estabelecida pelos jesuítas em princípios do século XVII, os in-
do nele. San Martin ficou indignado, mas era antes uma indignação nacionalista do
dígenas foram mais bem tratados do que em qualquer outra parte da América espa-
que socialista. 'Ora, veja sol Depois de três anos de revolução, um maturrango [vulg.,
nhola 9 o Guarani alcançou o steíus <Je língua impressa. Com a expulsão dos jesuí-
espanhol peninsular] se atreve a erguer a mão para um americano!'." Ibid., p. 87,
tas da América espanhola pala Coroa, em 1767, -o território passou para o Rio de Pra-
49 Evocação fascinante da lonjura e do isolamento das populações hispano-americanas
ia, mas multo tardiamente & por pouco mais de uma geração. VarSaton-Watson, tJa-
á a descrição da fabulosa Macondo, feita por Márquaz em Cem anos de solidão.
liorr$ ancf States, p, 200-1.
76

nacionais "plurais" — e não de outras formas. Os interes-


ses económicos ern jogo são bem conhecidos e, obviamen-
te, de importância fundamental. O liberalismo e o Ihiminis-
mo tiveram evidentemente um efeito muito forte, sobretu- ANTIGAS LÍNGUAS,
do propiciando um arsenal de crítica ideológica do regime
imperial e dos anciens regimes. O que estou sugerindo é NOVOS MODELOS
que nem o interesse económico, nem o liberalismo, nem o
Iluminismo podiam criar, ou criaram, por si sós, o tipo,
ou a forma, de comunidade imaginada que se protegesse
contra a espoliação daqueles regimes; ern outras palavras,
nenhum deles proporcionou o quadro de uma nova consciên-
cia — a mal percebida periferia de sua visão.— em oposi-.
cão ao que estava no foco central de sua admiração ou de-
sagrado. 52 No cumprimento desta tarefa específica, os fun-
cionários crioulos peregrinos e os homens de imprensa criou-
los provincianos tiveram o papel histórico decisivo.
O término do período de movimentos de libertação na-
cional bem-sucedidos na América coincidiu quase que exa-
tamente com o início da época do nacionalismo na Euro-
pa. Se considerarmos o caráter desses novos nacionalismos
que, entre 1820 e 1920, alteraram a fisionomia do Velho
Mundo, dois traços notáveis os distinguem de seus precur-
sores. Em primeiro lugar, em quase todos, as "línguas im-
pressas nacionais" foram de fundamental importância ideo-
lógica e política, enquanto que o espanhol e o inglês ja-
mais foram temas na América revolucionária. Em segun-
do lugar, todos tiveram condições de aluar a partir de mo-
delos disponíveis propiciados por seus predecessores remo-
tos e, .após as convulsões da Revolução Francesa, não tão
remotos. A "nação" tornou-se, assim, algo a que se podia
aspirar desde o início, e não que se fosse definindo gradati-
vamente. Na verdade, como veremos, a "nação" mostrou
ser uma invenção que era impossível patentear. Ela se tor-
nou suscetível de plágio por mãos as mais variadas e, por
vezes, imprevistas. Por isso, neste capítulo, o centro de
nossa análise será a língua impressa e o plágio.
Com leviana despreocupação a respeito de alguns fa-
tos evidentes extra-europeus, o grande Johann Gottfried
54 É ilustrativo que a Declaração da Independência de 1776 fale somente de "o povo", von Herder (1744-1803) declarou, em fins do século XVIII,
enquanto a patavra "nação" só aparece pola primeira vez na Constituição de 1789.'
Kcrnílãinen, Netionslism, p. 105. que: "Denn/ecfes Volk i st Volk; es liai seine National Bil-
78
79
dung wie seine Sprache". ' ["Assim, todo povo é povo;
ele possui sua formação nacional como possui sua língua".] sua própria cultura como um modelo válido em igualdade
Essa concepção notavelmente e«£-européia da nation-ness de condições com a dos antigos, e impuseram essa opinião
como algo vinculado a uma língua própria e exclusiva te- ao resto da Europa". 4
ve ampla influência na Europa do século XIX e, mais limi- No correr do século XVI, a "descoberta" feita pela
tadamente, nas teorias subsequentes sobre a natureza do Europa das grandiosas civilizações de que até então só se
nacionalismo. Quais as origens desse sonho? O mais prová- ouvira falar vagamente — na China, Japão, Sudeste da
vel é que.se encontrem na profunda redução do mundo eu- Ásia e no subcontinente indiano — ou que eram completa-
ropeu, em tempo e espaço, que teve início já no século XIV, mente desconhecidas — o México asteca e o Peru incaico
causado inicialmente pelas escavações dos humanistas e» — sugeria um irremediável pluralismo humano. Em sua
posteriormente, de maneira bastante paradoxal, pela expan- maior parte, essas civilizações haviam-se desenvolvido com-
são planetária da Europa. pletamente isoladas da história conhecida da Europa, da
Como bem o diz Auerbach: 2 cristandade, da antiguidade, na verdade do homem: suas
genealogias eram exteriores e inaâsimiláveis ao Éden. (So-
Com a primeira alvorada do humanismo, começou a havei1 mente o tempo homogéneo e vazio permitiria acomodá-
um sentimento de que os eventos da história e da lenda las.) O impacto das "descobertas" pode ser aferido pelas
clássicas, bem como os da Bíblia, não estavam separados geografias peculiares das sociedades imaginárias da época.
do presente unicamente por uma extensão de tempo, mas
A Utopia de Thomas Morus, surgida em 1516, simulava
também por condições completamente diversas de vida.
Com seu programa de restauração das antigas formas de
ser o relato de um marinheiro que o autor encontrou em
vida e de expressão, o humanismo cria uma perspectiva Antuérpia, o qual participara da expedição de Américo
histórica em profundidade tal como nenhuma época ante- Vespúcio à América, em 1497-1498. A Nova Atlântida de
rior de que temos conhecimento jamais possuiu: os huma- Francis Bacon (1626) foi talvez original sobretudo porque
nistas vêem a antiguidade em profundidade histórica e, so- se localizava no Oceano Pacífico. A majestosa Ilha dos
bre esse pano de fundo, o período intermediário de trevas Houyhnhnms, de Swift (1726), apresentava um mapa fictí-
da Idade Média... [Isso tornou impossível] restabelecer a cio de sua localização no Atlântico Sul. (Ô significado des-
vida autárquica natural da antiga cultura, ou a ingenuida- ses cenários fica mais claro se se considerar quão inimagi-
de histórica dos séculos Xíl e XIII, nável seria localizar a República de Platão em qualquer ma-
O desenvolvimento do que se pode chamar "história com- pa, fictício ou real.) Todas essas utopias enganosas, "mode-
parada" levou, com o tempo, à concepção até então inau- ladas" sobre descobertas reais, são descritas, não como Pa-
dita de uma "modernidade" explicitamente justaposta à raísos perdidos, mas como sociedades contemporâneas. Po-
"antiguidade", e de modo algum necessariamente em bene- deria afirmar-se que tinham de ser assim, uma vez que fo-
fício desta última. A questão foi encarniçadamente debati- ram compostas como críticas a sociedades contemporâneas,
da na "Batalha dos Antigos e Modernos" que dominou a e que as descobertas tinham dado fim à necessidade de bus-
vida intelectual francesa na última quarta parte do século • car modelos em uma antiguidade desaparecida. 5 Na estei-
XVII. 3 Citando mais uma vez Auerbach, "Na época de ra dos utopistas, vieram os astros do Ilumimsmo, Viço,
Luís XIV, os franceses tiveram a 'coragem de considerar Moníesquieu, Voltaire e Rousseau que, cada vez mais, ex-

1 KemilâMen, Nstionalism. p. 42. Grifos nossos. * Mimesis, p. 343. Observe que Auerbacn diz "cultuis" e não "língua". Deveríamos
2 M/mesis, p. 282. Grifo nosso.
também sar parcimoniosos, em atribuir "fisrton-r.esf" a assa "sua própria".
3 A batalha se iniciou em 1639, quando Charles Perra u't, com 69 anos, publicou seu 5 Analogamente, há um claro contraste entre os cois famosos mongíis do teatro inglês.
poema Síécíe de LQUIU lê Grend, que afirmava que as ar.es e as ciências haviam atin- Tamburlaifia r/te Qraat (1587-158.8], da Marlowe, descreve um fabuloso dirtasta mor-
gido plena prosperidade em seu próprio tempo e lugar. to desde 1407. Aurangieb \fàlfi). de Dtyden, rettala um Imperador contemporâneo
reinante n 358-1707],
80 81

pioraram uma não-Europa "real" para uma bateria de A partir daquele momento, as antigas línguas sagra-
obras subversivas dirigidas contra as instituições sociais e das — o latim, o grego e o hebreu — foram obrigadas a
políticas europeias então vigentes. De fato, tornou-se possí- misturar-se em condições de igualdade ontológica com va-
vel pensar a Europa como apenas uma entre muitas civiliza- riegada e plebeia multidão de línguas vulgares rivais, num
ções, e não necessariamente a Escolhida, ou a melhor. 6 movimento que complementava sua .degradação anterior
No devido teiripo, as descobertas e conquistas causa- no mercado pelo capitalismo editorial. Se agora todas as
ram também uma revolução nas ideias europeias a respeito línguas compartilhavam um status (intra)mundano comum,
da língua. Desde os primeiros momentos, marinheiros, mis- então, em princípio, eram todas igualmente dignas de estu-
sionários, comerciantes e soldados portugueses, holandeses do e de admiração'. Mas por quem? Logicamente, uma vez
e espanhóis, por motivos práticos — navegação, conversão, que agora nenhuma delas pertencia a Deus, pôr seusnovps'
comércio e guerra — colecionaram listas de palavras de lín- donos: os falantes — e leitores — nativos de cada língua.'.
guas não-européias, que seriam reunidas em dicionários ele- Como nos mostra de maneira muito proveitosa Seton-
mentares. Mas somente em fins do século XVIII é que o es- Watson, o século XIX foi, na Europa e em sua periferia
tudo comparado de línguas, de caráter científico, realmen- imediata, uma idade do ouro para os lexicógrafos, gramáti-
te se iniciou. Pa conquista inglesa de Bengala se originaram cos, filologistas e literatos das línguas vulgares. '? A vigoro-
as investigações pioneiras de William Jones sobre o sânscri- sa atividade desses intelectuais profissionais foi fundamen- •
to (1786), que levou a uma compreensão crescente de que. tal na moldagem dos nacionalismos europeus do século
a civilização indiana era muito mais antiga do que a da Gré- XIX, em total contraste com a situação na América entre
cia ou da Judéia. Da expedição de Napoleão ao Egito veio 1770 e 1830..Os dicionários raonolíngúes eram enormes
a decifração dos hieróglifos por Champollion (1835), "que compêndios do tesouro impresso de cada língua, que se po-
multiplicou a antiguidade extra-européia. 7 Progressos nos diam transportar (ainda que às vezes com dificuldade) da .
estudos semíticos abalaram a ideia de que o hebreu fosse oficina para a escola, do. escritório para a casa, Os dicioná-
singularmente antigo, ou de proveniência divina. Mais uma rios bilíngues tornavam evidente um igualitarismo mais apro-
vez, iam-se concebendo genealogias que só poderiam conci- .ximador entre as línguas — fosse qual fosse a realidade po-
liar-se em um tempo homogéneo e vazio. "Â língua tornou- lítica exterior, dentro das capas do dicionário Checo-ale-
se menos urna continuidade entre um poder exterior e o fa- mão/Alemão-checo, as línguas, lado alado, possuíam idên-
lante humano do que um terreno interior criado e realiza- tico staíus. Os rriourejadores visionários que dedicavam
do, entre eles mesmos, pelos usuários da língua." 8 Dessas anos e anos à compilação dos dicionários eram necessaria-
descobertas surgiu a filologia, com seus estudos de gramáti- mente levados para as grandes bibliotecas dá Europa, so-
ca comparada, classificação de línguas em famílias e, por bretudo as das universidades, ou por elas sustentados. E a
dedução científica, reconstruções de "protolínguas" tira- maior parte de sua clientela imediata constituía-se, não me-
das do esquecimento. Como observa correiamente Hobs- nos inevitavelmente, de estudantes universitários ou pré-
bawm, ali estava "a primeira ciência a encarar a evolução universitários. A afirmação de Hobsbawm de que "o pro-
comp sua própria essência". 9 gresso das escolas e das universidades dá a medida do nacio-
nalismo, exatamente como as escolas, e particularmente as
0 Assim, enquanto o imperialismo europeu abria vigorosamente seu caminho descuida-
do pelo mundo, outras civilizações se viam traumaticamente confrontadas por pluralis- 10 "Exatsmente porque a historiais língua, hoje em dia, é, em geral', mantida tão rigi-
mos que aniquilavam suas genealogias sagradas. A marginalizarão do Império do Cen- damente separada da historia política, económica e social convencional, é quçtfné pa-
tro para o Extremo Oriente é simbólica desse processo. receu desejável associá-la a estas, ainda que com o risco de menor domínio da área."
' Hobsbawm, The Age of Revolution, p. 337,
Nations and States, p. 11. De lato. um dos aspectos mais valiosos do texto de Se-
8 Edward Said, Otientatism, p. 136.
ton-Wauon é exatamems a stençáo que dedica à historia da língua — embora se
s Hobsbawm, The Age of Revolulion. p. 337.
possa discordai do modo como a utiliza,
82
83
universidades, se tornaram seus paladinos mais conscien-
tes", certamente está correia em relação à Europa do sécu- que a separa da glória de seus ancestrais. Essa dolorosa
lo XIX, se não para outras épocas e lugares. " descoberta, porém, não lança os gregos no desespero: so-
Pode-se, assim, reconstituir essa revolução lexicográfi- mos os descendentes dos gregos, dizem tacitamente a si
ca como se poderia fazer com o estrondàr de um arsenal mesmos, e, ou devemos tentar tornar-nos novamente dig-
em chamas, quando cada pequena explosão acende outras, nos desse nome, ou não devemos ostentá-lo.
até que a explosão total final transforma a noite em dia. Analogamente, em fins do século XVIII, apareceram
Em meados do século XVIII, o extraordinário traba- gramáticas, dicionários e histórias do romeno, seguidos
lho de estudiosos alemães, franceses e ingleses não apenas de um movimento, inicialmente bem-sucedido nos reinos
havia tornado acessíveis, em formas impressas de fácil ma-
nejo, virtualmente todo o corpus existente dos clássicos gre- dos Habsburgos e, posteriormente, nos dos otomanos,
gos, juntamente com os anexos filológicos e lexicográficos em prol da substituição do alfabeto cirílico pelo alfabeto
necessários, como também recriavam, em dezenas de livros, romano (distinguindo nitidamente o romeno das vizinhas
a antiga civilização helénica, fulgurante e firmemente pa- línguas eslavas ortodoxas). l5 Entre 1789 e 1794, a Acade-
gã. No último quartel do século, esse "passado" tornou- mia Russa, moldada na Academia Francesa, produziu
se cada vez mais acessível a um pequeno número de jovens um dicionário russo em seis volumes, a que se seguiu,
intelectuais cristãos de fala grega, a maioria dos quais ha- em 1802, uma gramática oficial. Ambos representaram
via estudado ou viajado para fora dos limites do Império uma vitória da língua vulgar sobre a língua eslava da Igre-
Otomano. l2 Entusiasmados pelo filo-helenismo dos cen- ja. Embora, já entrado o século XVIII, o checo fosse ain-
tros da civilização europeia ocidental, empenharam-se em da a língua apenas dos camponeses da Boémia (a nobre-
"desbarbarizar" os gregos modernos, isto é, em transfor- za e as classes médias ascendentes falavam o alemão), o
má-los em seres dignos de Péricles e de Sócrates. 13 Símbo- padre católico Josef Dobrovsky (1753-1829) escreveu, em
lo dessa mudança de consciência são as seguintes palavras 1792, Geschichte der bòhmische Sprache una ãltern Litera-
de um desses jovens, Adamantios Koraes (que mais tarde, tur, primeira história sistemática da língua e da literatu-
se tornou um ardoroso lexícógrafo!), em discurso para ra checas. Em 1835-1839, foi publicado o dicionário pio-
um público francês, em Paris, em 1803: M neiro checo-alemão, em cinco volumes, de Josef Jung-
Pela primeira vez, a nação reconhece o espetáculc horroro-
mann. 16
so de sua ignorância e estremece ao avaliar a distância Sobre o nascimento do nacionalismo húngaro, escre-
ve Ignotus ser ele um acontecimento "suficientemente re-
cente no tempo: 1772, ano da publicação de algumas obras
The Age a! Revolufion, p. 166. As instituições académicas não tiveram significado
11
para os nacionalisrnos americanos. O próprio Hobsbawm observa que, embora hou-
ilegíveis do versátil autor húngaro GyÕrgy Bessenyei, na
vesse 6.000 estudantes universitários em Paris, na época, eles n5o desempenharam época morando em Viena e trabalhando na escolta de Ma-
virtualmente pape! algum na Revolução Francesa (p. 167). Ele também nos faj ver,
proveitosamente, que, embora a educação se disseminasse rapidamente na primei- ria Teresa... A magna opera de Bessenyei destinava-se a
, rã metade da século XIX, o número de adolescentes nas escolas ainda era mínimo provar que a língua húngara adaptava-se ao mais eleva-
pelos padrões de hoje: não mais de 19,000 estudantes de lyoée na França, em 1842;
20.000 alunos no secundário, numa população de 68.000,000 da Rússia Imperial,
do género literário". n Estímulo ulterior foi propiciado
* em 1850; e um total aproximado da 48.000 estudantes universitários em toda a Eu-
i ropa, em 1848. Nas revoluções deste ano, porém, esse grupo reduzido, mas estraté-
gico, desempenhou papel essencial (p. 166-7).
15 Não pretendendo simular qualquer conhecimento especializado sobre a Europa Les-
12 Os primeiros jornais gregos surgiram em 1784, em Viena, Philike Hetairia, a socieda-
te e Central, na análise que se segue baseei-me grandemente em Seton-Waison, A
• de secreta responsável sm grande medida pelo levante antiotomano de 1821, foi fun- respeito do romeno, ver Narions and States, p. 177,
dada "em Odessa, o grande novo porto russo rfe grãos", em 1814. «> Ibid., p, 150-3,
13 Ver a introdução de Elíe Kedouríe a Nalionalism ín Ásia en<j África, p. 40.
17 Paul Ignoius, Hungaty, p. 44. "De fato o provou, mas seu ímpeto polémica era mais
1-1 Ibid., p. 43-4. Grifo nosso. O texto integrai de Koraes, "The Present State of Cíviliza-
convincente do sue o valer estático dos exemplos que criou," Talvez valha a pena
tion In Greece" encontra-se nas p. 157-82. Ele contém uma análise espantosamen-
te moderna das bases sociológicas de nacionalismo grego. observar que assa passagem sã encontra em uma subsecão Intitulada "The Inven-
ting of trie Hu-ngarian Nation", que se inicia com esta sugestiva frase: "Uma nação
nasce quando algumas pessoas decidem que ata deve existir".
84 85

pelas inúmeras publicações de Ferenc Kazinczy (1759-1831), nios do tzar, em 1809, a língua oficial tornou-se o russo.
"o pai da literatura húngara", e pela mudança, em 1784, Mas o "despertar" de um interesse pela língua finlande-
da pequena cidade provinciana de Trnava para Budapes- sa e pelo passado finlandês, expresso de início por textos
escritos em latim e em sueco, em fins do século XVIII,
te, do que viria a ser a Universidade de Budapeste. Sua na década de 1820 passou a manifestar-se cada vez mais
primeira expressão política foi a reação hostil da nobreza na língua vulgar, 20 Os líderes do nascente movimento na-
magiar que falava o latim, na década de 1780, contra a de- cionalista finlandês eram ''pessoas cuja profissão consis-
cisão do imperador José II de substituir o latim pelo ale- tia em grande medida no manejo da língua: escritores,
mão, como língua principal da administração imperial. 18 professores, pastores e advogados. O estudo do folclore
No período de 1800-1850, em consequência do trabalho e a redescoberta e reconstituição da poesia épica popular
pioneiro de estudiosos locais, três línguas literárias diferentes caminhavam par a par com a publicação de gramáticas e
se formaram ao norte dos Bálcãs: o esloveno, o servo-croa- dicionários e levava ao surgimento de periódicos que eram
ta e o búlgaro. Se, na década de 1830, havia sido geral a úteis para padronizar a língua finlandesa literária [isto é,
ideia de que os "búlgaros" eram da mesma nação dos ser- impressa], em nome da qual se poderia propor reivindica-
vos e dos croatas, e de fato haviam participado do Movimen- ções políticas mais vigorosas". il No caso da Noruega,
to Ilírico, em 1878 passaria a existir separadamente um Esta- que por muito tempo compartilhara uma língua escrita
do nacional búlgaro. No século XVIII, o ucraniano (o pe- com os dinamarqueses, ainda que com pronúncia comple-
queno russo) era desdenhosamente tolerado como língua de tamente diferente, o nacionalismo surgiu com a nova gra-
caipiras. Em 1798, porém, Ivan Kotlarevsky escreveu sunAe- mática (1848) e o novo dicionário (1850) noruegueses de
neid, poema satírico extremamente popular sobre a vida ucra- Ivar Aasen, textos que eram uma resposta e um estímulo
niana. Em 1804, foi fundada a Universidade de Karkov, que às reivindicações de uma língua impressa especificamen-
se tornou rapidamente o centro de uma explosão da literatu- te norueguesa.
ra ucraniana. Em 1819, apareceu a primeira gramática ucra- Em outra parte, nos anos iniciais do século XIX, en-
niana — apenas 17 anos depois da gramática oficial russa. contramos o nacionalismo africâner a que deram início os
pastores e literatos bóeres que, na década de 1870, foram
E vieram a seguir, na década de 1830, as obras de Taras Shev- bem-sucedidos em fazer do dialeto holandês local uma lín-
chenko, a cujo respeito observa Seton-Watson que "a forma- gua literária e denominando-a não mais como europeia.
ção de uma língua literária ucraniana aceita deve mais a ele Os maronitas e os coptas, muitos deles produtos do Ameri-
do que a qualquer outro indivíduo. O uso dessa língua foi can College de Beirute (fundado em 1866) e do College Je-
a etapa decisiva na formação de uma consciência nacional suíta de São José (fundado em 1875) foram os que mais co-
ucraniana". 19 Pouco tempo depois, em 1846, a primeira or- laboraram para o renascimento do árabe clássico e para a
ganização nacionalista ucraniana foi fundada em Kiev disseminação do nacionalismo árabe, M E as sementes do
— por um historiador! nacionalismo turco podem ser facilmente descobertas no
No século XVIII, a língua de Estado na Finlândia surgimento de uma ativa imprensa em língua vulgar em Is-
de hoje era o sueco. Após a união do território aos domí- tambul, na década de 1870. 23

z°Kemilâinen,/Víf/ona/ís/n, p. 208-15.
16 Seton-Watson, Nations and States, p. 1E8-61. A reaçêo foi suficientemente violen-
ta para persuadir seu sucessor, Leopoldo II (r. 1790-1792), a restaurar o latim. Ver
21 SetoivWatson, Nations and States, p, 72.
"Ibid., p, 2329261.
também adiante. Capitulo V). É ilustrativo que Kazinczy tenha apoiado potiticaman-
23Kohrv, The Age of fjaííana!ism. p. 105-7. Isso significava urna rejaiçSo do "otoma-
te José II nessa questão flgnotus, Hungary, p. 48).
no", língua oficial dinástica que misturava B ementas do turco, do persa e do áraba.
'9 Nations and States, p. 137. Não é preciso diíer que o Tzarismo liquidou rapidamen-
Ê típico que Ibrahlm Sinssi, fundador do primeiro jornal desse tipo, houvesse acaba-
te com essas passoas. Shevchenko foi destruído na Sibéria. Os^absburgos, porém,
do de vohar de cinco anos de estudos na França. Quando ele saiu à frente, outros la-
encorajaram um pouco os nacionalistas ucranianos na Galícia — para contrabalançar
os poloneses. go o acompanharam. Em 1875, havia sete diários em Ungua turca em Constantinopla.
86
87

E não se deve esquecer de que essa mesma época assis- sua metade civil subiu de O, em 1804, passando por 27,
tiu à popularização de outra forma de página impressa: a
partitura. Depois de Dobrovsky veio Smetana, Dvorak e em 1829, e 35, em 1859, para 55, em 1878. Nas forças ar-
Janácek; depois de Aasen, Grieg; depois de Kazinczy, Bé- madas, revelou-se a mesma tendência, ainda que tipicamen-
ía Bártok; e assim por diante pelo nosso século adentro. te em ritmo mais lento e mais tardio: o componente de clas-
se média do corpo de oficiais subiu de 10% para 75%, en-
Ao mesmo tempo, é patente que todos esses lexicógra- tre 1859 e 1918. K
fos, filólogos, gramáticos, folcloristas, jornalistas e compo- Se a expansão das classes médias burocráticas foi um
sitores não desenvolviam suas atividades revolucionárias
no vácuo. Afinal de contas, eles produziam para o merca- fenómeno relativamente uniforme, ocorrendo em taxas com-
do da imprensa, e se vinculavam, por intermédio desse si- paráveis tanto nos Estados adiantados quanto atrasados
lencioso bazar, ao público consumidor. Quem eram esses da Europa, a ascensão das burguesias comercial e industrial
foi, claro, extremamente irregular — maciça e rápida em
consumidores? No sentido mais geral: as famílias das clas-
ses leitoras — não apenas o "pai que trabalhava", mas tam- alguns lugares, lenta e interrompida em outros. Mas não im-
porta onde tenha ocorrido, essa "ascensão" deve ser com-
bém a esposa rodeada de criadas e os filhos em idade esco- preendida em suas relações com o capitalismo editorial
lar. Se observarmos que, ainda em 1840, mesmo na^Grã-
em língua vulgar.
Bretanha e na França, os Estados mais adiantados da Euro-
As classes dirigentes pré-burguesas geraram sua pró-
pa, quase metade da população ainda era analfabeta (e na
atrasada Rússia, quase 98%), "classes leitoras" significa- pria coesão em certo sentido independentemente da língua,
ou, pelo menos, da língua impressa. Se o governante do
va gente de algum poder. Mais concretamente, elas eram,
Sião tomava uma'nobre malaia como concubina, ou se o
além das antigas classes dirigentes da nobreza e da peque- Rei da Inglaterra se casava com uma princesa espanhola
na nobreza fundiária, os cortesãos e membros do clero,
— terão eles alguma vez conversado verdadeiramente um
as camadas médias ascendentes de pequenos funcionários com o outro? As solidariedades eram produto do parentes-
plebeus, os profissionais liberais, e as burguesias comercial
e industrial. co, da dependência e de lealdades pessoais. Nobres "fran-
ceses" podiamajudar reis "ingleses" contra monarcas "fran-
A Europa de meados do século XIX assistiu a um rá- ceses", não com base na língua ou na cultura que compar-
pido aumento das despesas do Estado e das dimensões das
burocracias estatais (civil e militar), a despeito da inexistên- tilhassem, mas, cálculos maquiavélicos à parte, com base'
em parentescos e amizades comuns. O tamanho relativa-
cia de qualquer guerra local de maior importância. "Entre mente pequeno das aristocracias tradicionais, suas bases po-
1830 e 1850, a despesa pública per capita aumentou de 25%
líticas estáveis, e a personalização das relações políticas su-
na Espanha, 40% na França, 44% na Rússia, 50% na Bél-
gica, 70% na Áustria, 75% nos EUA e mais de 90% nos bentendidas nas relações sexuais e na herança, indicam que
sua coesão como classe era tão concreta quanto imagina-
Países Baixos". 2* A expansão burocrática, que significou da. Uma nobreza analfabeta ainda podia atuar como no-
também especialização burocrática, abriu as portas da no-
breza- Mas e a burguesia? Eis aí uma classe que, falando
meação oficial a números muito maiores e a origens sociais figuradamente, só veio a ser uma classe mediante muitas
muito mais variadas do que até então. Veja-se até mesmo cópias. Um dono de fábrica em Lille só estava ligado á
a máquina estatal austro-húngara, decrépita, plena de sine-
um dono de fábrica de Lyon por reverberação. Eles não ti-
curas e dominada pela nobreza: a porcentagem de homens nham uma razão necessária para conhecer a existência um
originários da classe média nos postos mais elevados de
do outro; tipicamente, não se casavam com a filha um do

"Hobsbawm, The Age of Revotution, p. 229.


25petei J. Kateen&tein, DisfainedParfners, Áustria and Germany sints WJ5, p. 74, 112.
88 89

outro, nem herdavam as propriedades um do outro. Mas a língua inglesa expulsou o gaélico da maior parte dai Irlan-
chegavam a visualizar de um modo geral a existência de da, o.francês limitou o âmbito do bretão e o castelhano
milhares e milhares de outros como eles por intermédio compeliu o catalão à marginalidade. Em reinos como a
da língua impressa. Pois é difícil imaginar uma burguesia Grã-Bretanha e a França, onde, por razões absolutamente
analfabeta. Assim, em termos de história mundial, as bur- externas, ocorreu que houvesse, em meados do século,
guesias foram as primeiras classes a consumar solidarieda- uma coincidência relativamente alta entre língua de Esta»
des numa base essencialmente imaginada. Porém, numa Eu- do e língua da população, 26 a interpenetração geral a que
ropa do. século XIX, em que, há perto de dois séculos, o la- aludimos acima não teve consequências políticas dramáti-
tim fora vencido pelo capitalismo editorial em, língua vul- cas. (Esses casos aproximam-se! mais dos da América.)
gar, essas solidariedades tinham seu maior alcance limita- Em muitos outros reinos, dos quais a Áustria-Hungria é
do por legibilidades em língua vulgar. Dizendo doutro mo- provavelmente o exemplo extremo, as consequências foram
do, pode-se dormir com qualquer pessoa, mas só se pode inevitavelmente explosivas. Em seu vasto domínio desman-
ler a escrita de um certo povo. telado, poliglota, mas cada vez mais letrado, a substituição
Membros da nobreza, pequenos nobres fundiários, do latim por qualquer língua vulgar, em meados do sécu-
profissionais liberais, funcionários e homens do mercado lo XIX, assegurava vantagens enormes àqueles de seus sú-
— eram estes, então, os consumidores potenciais da revolu- ditos que já utilizassem aquela língua impressa, e parecia
ção filológica. Mas tal clientela não estava plenamente rea- ameaçador, na mesma.proporção, aos que não a utilizassem.
lizada quase em parte alguma e as combinações dos consu- Grifei a palavra qualquer, uma vez que, como veremos
midores concretos "variava consideravelmente de região pá- adiante mais detalhadamente, a exaltação do alemão no sé-
ra região. Para perceber por que, é preciso que se retorne culo XIX pela corte dos Habsburgos, ela mesma alemã co-
ao contraste básico antes traçado entre a Europa e a Amé- mo alguns podem considerá-la, não tinha nada a ver com
rica. Na América, havia um isomorfismo quase perfeito en- o nacionalismo alemão. (Em tais circunstâncias, seria líci-
tre o âmbito dos diversos impérios e o de suas línguas vul- to esperar que um nacionalismo cônscio de si mesmo sur-
gares. Na Europa, contudo, esse tipo de coincidência era gisse por último, em cada reino dinástico, entre os naturais
raro e os impérios dinásticos intra-europeus possuíam basi- da terra que lessem a língua vulgar oficial. E tal expectati-
camente mais de uma língua vulgar em seu território. Em va é corroborada.pelos registros históricos.)
outras palavras, o poder e a língua impressa mapeavam rei- Em termos das clientelas de nossos lexicógrafos, não
nos distintos entre si. * admira pois que se encontrem conjuntos muito diferentes
O crescimento generalizado da alfabetização, do co- de clientes segundo as diferentes condições políticas. Na
mércio, da indústria, das comunicações e das máquinas es- Hungria, por exemplo, onde virtualmente não existia uma
tatais, que caracterizou o século XIX, criou novos impul- burguesia magiar, mas uma de cada 8 pessoas reivindica-
sos vigorosos no sentido da unificação das línguas vulgares va algum status aristocrático, a preservação do húngaro im-
dentro de cada reino dinástico. O latim se manteve como presso contra a maré montante do alemão era defendida
língua de Estado na Áustria-Hungria até inícios da déca- por segmentos da nobreza menos importante e da peque-
da de 1840, mas desapareceu quase imediatamente a seguir. na nobreza fundiária empobrecida, 21 Pode-se dizer o mes-
Poderia ser a língua de Estado, mas não poderia, no século mo dos leitores poloneses. Mais típica, porém, era a coali-
XIX, ser a língua dos negócios, das ciências, da imprensa
ou da literatura, especialmente num mundo em que essas
Como vimos, a adoça» de línguas vulgares corno Itnguss de Estado nesses dois rei-
/línguas se interpenetravam continuamente. 26
nos estava em andamento desde muito cedo, No casa do Beira Unida, & submissão
Nesse ínterim, as línguas de Estado vulgares assumiam militar do Gaeltactrt no início do Século XVIII B a depressão da década de 1B40 foram
cada vez mais poder e status em um processo que, pelo me- poderosos fstores concorrentes, ,
27 Hobsbawm, The Age effíevolutlon, f>. 165. Excelente e pormenorizada exposição en-
nos de início, era em grande medida não planejado. Assim, contra-se em Ignotus,Hungary. p. 44-55: vertarnbCmJàszi, TheDissolution.p. 224-5.
90 91

zão entre os nobres menores, os académicos, os profissio- ram-se aos revolucionários poloneses, ainda que estes hou-
nais liberais e os homens de negócio, na qual, frequente- vessem de fato proclamado a abolição da servidão, prefe-
mente, os primeiros forneciam os líderes de "reputação", rindo massacrar os cavalheiros e confiar nos funcionários
os segundos e terceiros, mitos, poesia, jornais e formula- do Imperador". 30 Mas por toda parte, na verdade, à medi-
ções ideológicas, e os últimos, dinheiro e facilidades de da que era maior a alfabetização, tornava-se mais fácil con-
mercado, O agradável Koraes oferece-nos uma vinheta pre- seguir o apoio popular, quando o 'povo encontrava um no-
cisa da clientela inicial do nacionalismo grego, em que pre- vo motivo de orgulho na exaltação pela imprensa de lín-
dominavam os intelectuais e os empresários: 2S guas que haviam falado humildemente por tanto tempo.
Nas cidades que eram menos pobres, que possuíam al- Até certo ponto, pois, a impressionante formulação
guns habitantes abastados e algumas escolas e, conseqúèn- de Nairn -— "A nova intelligentsia de classe média do na-
temente, alguns indivíduos que podiam pelo menos ler e cionalismo tinha de convidar as massas a entrar na história;
compreender os autores antigos, a revolução começou e o convite tinha de ser escrito numa língua que elas enten-
mais cedo e pôde progredir mais rápida e animadoramen- dessem" 3I — está correta. Mas será difícil perceber por
te. Em algumas dessas cidades, as escolas já estão sen- que o convite parecia tão atraente, e por que alianças tão
do ampliadas e o estudo de línguas estrangeiras e até mes- diversas eram capazes de emiti-lo (a intelligentsia de classe
mo das ciências que são ensinadas na Europa [sic] está média de Nairn não era absolutamente o único anfitrião),
sendo introduzido nelas. Os ricos patrocinam a impressão
de livros traduzidos do italiano, do francês, do alemão e
a menos que nos voltemos finalmente para o plágio.
do inglês; enviam para a Europa, a suas expensas, jovens Hobsbawm observa que "A Revolução Francesa não
ávidos de aprender; dão a seus filhos melhor educação, foi feita nem conduzida por um partido ou movimento or-
sem exclusão das meninas... ganizado, no sentido moderno, nem por homens que esti-
vessem procurando levar a cabo um programa sistemático.
Coalizões de leitores, com composições que se localizam Ela nem mesmo projetou 'líderes' do tipo a que nos habi-
de maneira diversa na gama de variação entre a húngara e tuaram as revoluções do século XX, até que surgisse a figu-
a grega, desenvolveram-se de maneira semelhante por to- ra pós-revolucionária de Napoleão". 3Z Mas uma vez que
da a Europa Leste e Central e, com o avançar do século, ela aconteceu, ingressou na memória acumuladora da im-
pelo Oriente Médio. 29 Em que medida as massas urbanas prensa, A irresistível e desconcertante concatenação de even-
e rurais participavam das novas comunidades linguistica- tos experimentada por seus autores e por suas vítimas tor-
mente imaginadas naturalmente também variava muito. Is- nou-se uma "coisa" — e com um nome próprio: Revolu-
so dependia muito das relações entre essas massas e os mis- ção Francesa. Do mesmo modo que uma imensa rocha in-
sionários do nacionalismo. Num extremo, talvez, pode-se forme se torna um penedo arredondado pela ação de inu-
indicar a Irlanda, onde um clero oriundo do campesinato, meráveis gotas de água, aquela experiência foi modelada
e próximo dele, desempenhava papel mediador essencial. por milhões de palavras impressas como um "conceito" so-
Outro extremo é sugerido pelo comentário irónico de Hobs- bre a página impressa e, no devido tempo, como um mode-
bawm de que: "Os camponeses galicianos, em 1846, opuse- lo. Por que "ela" irrompeu, a que "ela" visava, por que
"ela" foi bem-sucedida ou fracassou, tudo passa a ser te-
28Kedourie, org., Nationallsm in A$i» and África, p. 170. Grifos nossos. Tudo aqui é ma de polémicas infindáveis por parte de partidários e de ad-
exemplar. Quando Koraes olha para a "Europa", á por sobre o ombro; o que onça-
rã ds frente é Constantinopla. Q otomano nSo 6 contudo uma língua estrangeira, E
. as fuigras esposas som trabalho ingressam no mercado da impransa,
23 Para exemplos, ver Seton-Watson, Nutions and States, p. 72 (Finlândia), 145 (Bulgá- 30 TheAgecfRewkttion, p. 169.
ria), 153 (Boémia) e 432 (Eslováquia); Kohn, The Age of Nationalism, p. E3 (Egito) 3' The Sreak-up ofSrítBrrt. p, 340.
e 103 (Pérsia). 3! The Age of fígvoàittón, p. 80.
92

versários: mas de que "ela" foi alguma coisa, seja o que reacionárías, tiveram grandes dificuldades em não realizar
for, ninguém jamais teve muita dúvida. J3 um espetáculo de "convidar a entrar" (ainda que apenas
De modo muito semelhante, assim que se imprimiu até a copa) seus compatriotas oprimidos. Se quiserem, a ló-
a respeito deles, os movimentos de independência na Amé- gica da peruanização de San Martín estava funcionando.
rica se tornaram "conceitos", "modelos" e, de fato, "pro- Se "húngaros" mereciam um Estado nacional, então isso
jetos". Na "realidade", o medo de Bolívar das insurrei- queria dizer "os húngaros", todos eles; 3i queria dizer um
ções de negros e a convocação de San Martin de seus indí- Estado em que o locus fundamental da soberania tinha
genas à peruanidade chocam-se caoticamente. Mas a pala- que ser a coletividade dos falantes e leitores húngaros; e,
vra impressa eliminou o primeiro quase^.que'imediatamen- no devido tempo, a liquidação da servidão, a promoção
te, de tal modo que, ainda que lembrado, aparece como da educação popular, a expansão do sufrágio, e assim por
uma anomalia inconsequente. Da confusão americana bro- diante. Desse modo, o caráter "populista" dos primeiros
tam estas realidades imaginadas: Estados-nação, institui- nacionalismos europeus, mesmo quando liderados, demago-
ções republicanas, cidadania universal, soberania popular, gicamente, pelos grupos sociais mais retrógrados, era mais
bandeiras e símbolos nacionais, etc., e a liquidação de profundo do que na América: a servidão tinha que termi-
seus contrários: impérios dinásticos, instituições monárqui- nar, a escravidão legal era inimaginável — também porque
cas, absolutismos, vassalagens, nobrezas hereditárias, ser- o modelo conceptual estava colocado num lugar inerradicável.
vidões, guetos, e assim por diante. (Nada mais chocante,
nesse contexto, do que a "supressão" generalizada da es-
cravidão maciça dos EUA "modais" do século XIX, e
da língua compartilhada das repúblicas "modais" da Amé-
rica do Sul.) Além disso, a validade e a generalidade do
'projeto se confirmaram indubitavelmente pelo pluralismo
dos Estados independentes.
De fato, na segunda década do século XIX, se não an-
tes, já havia um "modelo" "do" Estado nacional indepen-
dente à disposição para ser plagiado. 34 (Os primeiros gru-
pos a fazê-Io foram as coalizões de pessoas instruídas ba-
seadas em línguas vulgares marginalizadas, que este capítu-
lo focalizou.) Mas exatamente porque era então um mode-
lo conhecido, impunha certos "padrões" em relação aos
quais não se permitiam desvios muito acentuados. Até mes-
mo as pequenas nobrezas húngara e polonesa, atrasadas e

33 Compare-sei "O próprio nome de RsvoluçSo Industrial reflete seu impacto relativa-
mente tardio sobre a Europa. A coisa Isicl existia na Grã-Bretanha antes da palavra.
Não foi senso na década de 1820 que socialistas Ingleses e franceses — eles próprios
um grupo sem precedentes — a inventaram, provavelmente por analogia com a revo-
lução política da França". Ibid., p. 45. 35 Não que isso fosso uma questão muito definida. Metade dos súdito» do reino da Hun-
34 Seria, provavelmente, mais preciso dizer que o modelo era uma complexa mistura gria sra nõo-rnagiar. Ap&nas um terço dns servos falavo magiar. No Início do século
da si e mantos franceses e americanos. Mas a "realidade observável" da França, até • XIX, a alta aristocracia magiar falava irancâs ou alemão; B nobreza media e infericr
depois de 1870, eram monarquias restauradas e o dinasticismo ersatz do sobrinho- "conversava em um latim vulgar salpicado de expressões do magiar, mas também
neto de Napoleão. 0.0 eslovaco, da ESrvio B do romano, bem coma do alemão vulgar.,," Ignoius, Hun-
gtry, p..45-6 e 81.

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