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PAOFU80R DA UNIVERSIDADE DE L D&N

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DIAONÓSTICO DA ENFERMIDADE
ESPIRITUAL DO NOSSO TEMPO: .

TRADUÇXO DE
MANUeL VIEIRA
LIOUOU.DO KK •U.OLOGJA eaaMl•IOA

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Ambiente de decadência •
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Vivemos num mundo dementado. Disso esta .


.. • .

mos bem certos. Para ninguém seria surprêsa se


!

amanhã a loucura cedesse ao frenesi, e êste dei­


xasse a nossa pobre Europa num estado de tor·
I
.
por, de perturbação mental, com engenhos ainda
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J : a rodar, bandeiras tremulando ao vento . mas 9 . .

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Por tôda a parte há dúvidas quanto à solidez ·

da nossa estrutura social, vagos receios do futuro


• •

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.

• • iminente, um presságio de que a nossa civilização


trilha o caminho da rufna. Não são simples ansie•
dades informes as que nos perturbam as curtas
horas da noite, quando já a chama da vida é
apenas uma luz mortiça. Não; consideram-se
espectaüva�fundadas na observação e apreciação,
duma quantidade de factos esmagadora.! Como
evitar a constatação de que quási tudo o que
outrora parecia sagrado e imutável, a verdade e •

a humanidade, a justiça e a razão. se tomou

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. govêrno incapazes de continuar a exercer a sua


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função, sistemas de produção à beira do colapso,


fôrças sociais embriagadas de poder. A máquina
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atroadora dêstes espantosos tempos parece pre­
cipitar-se para um desastre.

'

l Mas logo surge a antítese a apoderar-se do


I

(
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nosso espírito. Em época alguma os homens.
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.

estiveram tão claramente cônscios do imperiosó
i
dever de cooperar na tarefa de preservação e­
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II '
aperfeiçoamento do bem-estar do mundo e da

ii
I
civilização humana. Em tempo algum o trabalho­
foi mais venerado. Jamais. o homem se atirou .

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'

com tanta coragem, sem poupar as fôrças, ao •



'

serviço da causa comum. Pelo menos ainda se



l

nlo perdeu a esperança.
Se queremos, pois, salvar esta civilização, se
I

l•I' a nlo queremos ver submersa em séculos de


I•
f barbarismo, mas antes consolidar os tesoiros da
I
I
sua herança em alicerces novos e mais estáveis,
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torna-se sem dúvida necessári� que todos os
li viventes compreendam bem até que ponto a

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decadência já avançou.

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É ainda muito recente a generalização das
apreensões dum destino ameaçador e dum dete·
�� rioramento progressivo da civilização. Para a
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I maioria dos homens foi a crise económica com o s

tl seus efeitos materiais imediatos (muitos de nós


sa:o mais sensfveis no corpo que no espírito), que

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. sentimentos desta ·natureza� Evidentemente que,


aquêles cuja ocupação é tratar sistemática e cri­ •

ticamente de problemas relativos à sociedadé e


civilização humana, filósofos e sociólogos, já há

muito viram que nem tudo estava bem nesta·


I moderna e vaidosa civilização. Reconheceram


.
I.
logo de início que o de5conjuntamento econó­
mico é · apenas um aspecto dum processo-trans­
I
.
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formação de âmbito muito mais extenso.


Os primeiros dez anos dêste século pouco ou
nada conheceram dos temores e apreensões rela­
I tivos ao futuro da nossa civilização. Atritos e :

J receios, abalos e perigos, houve-os então, como


l
sempre. Exceptuando, porém, a ameaça de revo­
lução que o marxismo fêz pender sôbre o mundo,
nada disso lhes pareceu um mal ruinoso para a
1

l

humanidade; e até a própria revolução se podia

.
evitar, pelo menos na idéia dos seus adversários,
'enquanto os seus advogados prometiam, não a

.
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destruição, mas sim a salvação. O fin-de-siecle
: com a sua atmosfera de decadência dos anos de
noventa, mal se fizera sentir fora da esfera lite­
rária em moda. Com o assassinato de McKinley
o anarquismo activo parecia ter atingido a meta.
O socialismo parecia tomar o vulto dum movi-
I . mento de reforma. Apesar da guerra Boer e da
guerra russo-nipónica, a primeira conferência da
I
paz_ podia ainda ser considerada como arauto
duma nova era de ordem internacional. A nota
.
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' dominante do pensamento cultural e polftico era

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que, sob a supremacia da raça branca, o mundo


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seguia o caminho certo da prosperidade e da


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-concórdia, vigiado por um conhecimento e um
.poder que quási pareciam ter atingido o auge.
Prosperidade e concórdia ... Sim, se a poHtica


fôsse de mãos dadas com a razão. Mas nisto é

.
que êles falharam .
Não é para os ,�nos de guerra que temos de
l olhar para descobrir o virar da inaré. Tôdas as
atenções estavam nesse momento absorvidas
.

pela preocupação imediata. Para muitos, os pri-


meiros e poucos anos do após guerra apresenta­
ram-se plenos de optimistas esperanças num
novo internacionalismo .redentor. O súbito, mas
mal fundado erguer da prosperidade comercial
que havia de ruir em 1929, retardou por algum
tempo a emergência dÜm vasto sentimento de
• •

pess1m1smo.
Hoje, porém, a certeza de que vivemos no
meio duma violenta crise da civilização, amea­
çando completo fracasso, difundiu-se por tôda a
parte. O livro de Oswald Spengler, Untergang
des Ahelldlandes (15: foi o sinal de alarme para

Na:o quere isto dizer que todos aquêles que leram


o famoso trabalho de Spengler se tivessem con-

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(1) Edição inglesa: T/Je Decline oj the West, Londres,
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1 . George Allen � U nwin, Ltd.
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providencial do Progresso e os familiariz�u coin ·


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a idéia de um declínio da cultura e da civilização


contemporâneas. Presentemente, optimismo · im­
perturbável só é possível naqueles que por falta de

perspicácia não compreendem o que seja civili- .


zação doentia, porque êles próprios foram afecta­
tados pela doença; é possível ainda para os que,
fiéis ao seu credo social e político de salvação,
julgam possuir a chave de acesso ao recôndito
compartimento da felicidade terrena, donde pode­
rão · esbanjar pela humanidade as bênçãos da ,
civilizaçlo vindoura.
Entre os dois extremos, o do pessimismo
desesperador e o da crença na salvação pró­
xima, ficam todos aquêles que vêem as gravíssi­

mas faltas e enfermidades do nosso tempo, que


não sabem como hão-de ser remediadas e ven­
cidas, mas que trabalham e confiam, que se.
�sforcam por compreender: e se prontificam a
sofrer .




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Receios de Antes e de �gore .


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Poder-se-á preguntar se a gravidade da actual


crise não é -levada ao exagêro, . precisamente
porque os seus presságios se têm realizado duma
' maneira ta:o evidente. Períodos anterioreS de . .

perigosa tensão quási nada conheceram de eco-· · ·

nomias, de sociologias ou de psicologias. Por


!
outro lado, faltou-lhes tambêm a vasta e imediata
-
publicidade do dia-a-dia mundial. Hoje, porém,
não há lesão de tecidos que se não veja, nem

fractura de ar.ticulação que se não ouça. Os
nossos meios de informação, exactos e variados,

dão-nos inteiro conhecimento da extrema insta.


bilidade da estrutura social e por conseguinte do
. absoluto , perigosismo" da situação. O nosso
·. · espaço de antecipação não só se tornou muito
mais amplo, mas ainda, por meio do� telescópios
dum saber multiforme, conseguimos distinguir
nesse espaço as figuras com uma clareza ater-
• •
1
radora.



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NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

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Será, portanto, de tôda a utilidade orientar


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nossa consciência de crise no sentido histórico,.
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servindo-nos para isso da comparação com as.
grandes perturbações do passado. E logo salta J
aos olhos uma diferença capital entre o passado· II
I
e. o presente. A sensação de que o mundo, quer I

o pequeno quer o grande, corre sério risco, de


que o ameaça a decadência ou o colapso, con-· •

servou-se viva através de muitas épocas; mas,.


duma maneira geral, tais receios faziam parte da J


.I
,
espectativa escatológica de um fim próximo de I
tôdas as coisas. O resultado foi nem sequer se

'
I

ter pensado em evitar o mal. Uma formulação· I


I
sistemática da consciência de crise nos tempos-
I
I idos estava, à priori, fora de discussão. Isso era I
I }
:.
essencialmente de natureza religiosa. Na medida •

em que as apreensões concernentes ao juízo final •


t

davam lugar a ansiedades terrenas, estas ficavam


suspensas numa atmosfera de vagos temores que,
I

até certo ponto, se dissolviam em ódio aos pode-
rosos, a quem se atribuíam tôdas as desgraças do

I
I
I mundo, quer se tratasse dos perversos em geral, .

\
I

quer dos herejes, dos bruxos e dos feiticeiros,.


dos ricos, dos conselheiros reais, dos aristocratas, II

I



dos jesuítas ou dos pedreiros-livres; a escolha
dependia da mentalidade particular de cada época.
Em círculos extensos, o reaparecimento de nor-·
mas de juízo tôscas e vulgaríssimas fêz reviver
I
I

os fantasmas dessas fôrças satânicas talhadas só


para o mal. Até mesmo hoje, gente educada se ,


•.
conforma com uma espécie de sentença maligna.

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RECEIOS DE ANTES E DE AGORA 15

que dificiltilente seria desculpável na mais· abjecta.


e ignorante das ralés. •

I
Contudo, a esperança de melhor porvir e a
desaprovação do presente nem sempre tomam

I inteiramente a forma de visões dum fim próximo


do mundo e duma recompensa eterna. Contam·
I
·Se por várias as épocas da história em que a

� promessa dum futuro risonho,.. substituindo o ·


,
•I
espinhoso presente, fêz transbordar os espíritos
de fagueiras esperanças. Porém, ainda aqui há

.

I

I um embate com a mentalidade do nosso tempo.


I

A esperada felicidade parecia estar, por assim

.
J
I
dizer, sempre à mão, ao alcance de todos. Reco· -

I
t
nhecer o êrro da nossa conduta, subjugar uma

_çrença falsa e regressar à virtude.. eis tudo quanto


I

era preciso. A mudança parecia revulsão imi­


nente.
Assim a considerava qualquer doutrina reli­
giosa que pregasse a salvação eterna e a paz

)
entre os homens. Foi também assim que Erasmo
q
a viu. Com a redescoberta dos antigos, fràn uea.
' •
ra-se o caminho às fontes puras da fé. Já nada
I
havia que retardasse a aquisição dum grau de
perfeição terrena, dentro dos limites permitidos
pela ordem das coisas. Concórdia, humanidade e
t
'
civilização surgiriam imediatamente do recém­

t
-conquistado poder de observação. À idade da

Razão e de Rousseau o bem-estar do mundo
parecia basear-se igualmente na penetração íntima

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e na· obediência aos seus ditames. Para a pri­ •

meira, êstes consistiam no repúdio da supei'sti­



ç � e no triunfo do conhecimento ; para a
segunda, no regresso à natureza e na prática da
. virtude. Desta velha e sempre renovada repre­

l sentação duma simples revulsão ou reversão da


sociedade, nasceu o conceito de Revolução.

�t

O têrmo revolução derivou-se da rotação duma


\ ·- roda. No fundo da imagem estava sempre a Roda
I

da fortuna. No.-sentido político o têrmo fica de


início limitado a uma simples e imediat� revira­
volta, como por exemplo a de 1688. Não é senão
depois do grande acontecimento de 1789 que o
conceito de revolução, no decurso do século XIX,


vem a ser imbuído de todo o s i nificado que o
socialismo lhe havia de dar. volução como
conceito ideal, preserva sempre oeoneúdo pri­
mário do pensamento original- aperfeiçoamento
súbito e duradoiro.

Esta representação, consagrada pelo tempo,



duma revulsão da sociedade, abrupta e conscien­
ciosamente desejada, é das que o espírito do
nosso tempo se recusa a aceitar, baseado no
moderno e. bem fundado conhecimento, que
considera tudo o que se encontra no homem e
natureza �orno produto de numerosas fôrças
interdependentes, actuando a longo prazo. No
processo de fôrças sociais em acçao recíproca o
espírito vê na �acção da vontade humaua_um sim­
ples factor de significação reduzida, sem por êsse
motivo professar aderência a um determinismo

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RECEIOS ·nE ANTES E DE AOOR.A 17·


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' :.�,-. ·rfgido. Agrupando-se eficientemente e fazendo


uso das suas energias, com o melhor resultado


possível, o homem pode tirar vantagem das fôr­
.ças naturais e sociais que regem os processos
dinâmicos da sociedade. Pode influenciar
.
certas
·tendências do processo, mas na o alterar-lhe o I
sentido principal. Esta convicção da , Irreversibi­

lidade, do processo social encontrou a sua
,

. expressão formal na palavra Evolução. E um


.conceito que encerra em si a própria contradi­

tória, mas que apesar disso se tornou indispensá-'


vel como instrumento social, pôsto que bastante i
'

rudimentar . . Evoluça:o quere dizer necessidade i


limitada; est� em oposição directa cQm Revulsa:o, J ..

Revolução. Em contraste com as ingénuas espe- . ! .,.


ranças de outrora, que aguardavam a aproxima- ;


.ção do fim de tôdas as coisas ou duma idade de
-

oiro, o pensamento moderno baseia-se na con­


vicção firme de que a crise que atravessamos é
uma fase duma seqüência progressiva e irrever­
sfvel. Seja qual fôr a nossa fé ou o nosso credo,
·todos sabemos que para trás não se anda, que
• • temos de arripiar caminho. Esta é que é a cara­
cterística inteiramente nova da consciência · de I

crise dó nosso tempo.

O terceiro contraste entre as apreensões de


<.leclrnio do passado e as do presente est! já


implfcito no contraste que acabámos de mencio­
·nar. Através de tôda a história, os arautos de •

..

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melhores coisas e melhores tempos, reformado•


.

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mentos, restaurações e révellS, sempre aponta- �·
.�
'

ram as glórias passadas como exemplo a s,eguir,


.
.
.
I
'

aconselhando o regresso e restabelecimento da. J

antiga pureza. Os Humanistas, os homens da


. I

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I
Reforma e os moralistas dos tempos romanos,

Rousseau, Maomé, e até mesmo os profetas de •

qualquer tribo de negros da África central, �odos •

\

.
'

êsses, jamais deixaram de ter perante os olhos a .
·.

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.

I
visão obcecante dum passado ilusório de mais­ •

.

.
. requintada qualidade que o grosseiro presente. •

I
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E era a êsse passado que êles exortavam a huma-· .
I

(,

nidade a regressar.
.

(

Nós, em nossos dias, nem ignoramos nem·


menosprezamos as glórias do passado. Sabemos­

1
que em muitos períodos muitas coisas . foram
.

.
. •

melhores do que o sa:o hoje. E possível que· r


I
.

certas e determinadas afinidades possam um dia


'

j
.


reaproximar-se de formas mais antigas e mais

aceitáveis. Atlas isto é que não oferece dúvidas:
l
uma marcha geral à retaguarda está fora de
'

l

discussão. Não há outro remédio senão avançar,
mesmo que fiquemos aterrados com os miste­ '•

i
• riosos precipícios e com as distâncias a cobrir; '

mesmo que o futuro, já perto, nos defronte, qual I


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I escancarado abismo envolto em negra e opaca I
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bruma. f.
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III

'
.

• •

A crise actual comparada


·

às do passado .

Será possível encontrar na história exemplos


da civilização dum pafs, dum império ou dum
continente, que tivesse suportado tão violenta

. •
convulsão como a que tortura os nossos tempos?
.

Crise de Civilização é um conceito histórico.


. •

'
.

Pela apreciação histórica, pela comparação do



I


• passado com o presente, êsse conceito pode
1 adquirir um certo grau de objectividade. -Na .

realidade, das crises anteriores não só sabemos



.


f.
as origens e a evolução, nias também o resultado.
O conhecimento que delas temos constitui para
I nós uma dimensão adicional. J-lá casos em que
f
I
tôda uma civilização pereceu, e há outros em
que marchou triunfante a caminho de novas for-
.


mas de existência. Podemos, pois, ver o caso his­

'

tórico como processo acabado. E, embora uma tal


I autópsia histórica a o passado não ofereça a pro­
messa duma cura do presente. nem talvez mesmo
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20 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ .
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dum prognóstico, nenhum .método tmagln4vel,
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que nos possa levar ao conhecimento profundo •


I

l
'

.
da natureza do mal, deverá deixar de ser tentado. '

I
I

I .
. Infelizmente o material de casos comparáveis
é muito mais reduzido do que se poderia supor
I
I
I

i l
j à primeira vista. Por mais significativos que J
d l

sejam os resíduos das múltiplas civilizações que
!
dia a dia se fazem emergir das entranhas do areal
I

desértico, da vegetação tropical ou das ruínas de .


1
'
'

regiões despovoadas, muito pouc� se fica a saber •

da sua história nacional, para podermos descobrir



;
'

l.'
outras causas de decadência e extinção a não ser
iI '
qualquer género de catástrofe. Mesmo a antiga j
,J '
l

Grécia e o Egito mal fornecem material para


>
.
, • �
uma minuciosa comparação. Só os vinte séculos, í
.

I'
I
I desde o império de Augusto e da vida de Cristo
I
'
l
estão suficientemente perto de nós para permi­ '
'

tirem uma comparação proveitosa.


t Poder-se-á preguntar: mas no decorrer dêsses l


'
i vinte séculos a civilização não esteve sempre num
estado de crise? Não é precária em último grau
tôda a história da humanidade? Sem dúvida, mas
isso é sabedoria para declamação filosófica, útil '
'

na ocasião própria. Vistos pelo prisma histórico,


'

1
I
'
contudo, certos complex<;>s de acontecimentos i
'

passados apresentam-se como períodos de intensa I


'
''

transformação cultural delimitados com maior ou


\·'\,K
'

menor clareza. Tais são: a transição da Antigui­ '


'
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l
l

J : dade para a Idade-Média; da Idade-Média para �


I
'

l• .

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I
I os tempos modernos ; e do século XVIII para o
século· XIX •

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A CRISE AC'fUA J. 21

l

r·)( Consideremos primeiramente o perfodo l' 1


volta de 1500. O momento é dêstes que paten-
teiam tremendas alterações ; a terra descoberta [5
r/.
-
em guási tôda a sua extensão, a estrutura do.
sistema planetário revelada, a Igreja em pedaços,
o poder e extensão da paJãvra escrita infinita­
mente ampliados pela imprensa, os meios de com­
I bate consideràvelmente aumen.ta.d.o_§_, o. crédito e
as !inanças em pleno desenvolvimento_, a cultura

grega restaurada, a antiga arquitectura despre-
,.
zada e _as artes expandindo-se em todo o seu •

esplendor.
Vejamos agora os anos entre 1789 e 1815.
Uma vez mais a torrente dos acontecimentos
mundiais · engrossou até se tornar em impetuoso
I caudal. O primeiro Estado da Europa sucumbiu
às ilusões dos "filósofos, e à fúria do popula- ..
I

·\
• cho, para logo ressuscitar com os feitos e a
!
.



fortuna dum génio militar. A Liberdade aela- f ,

mada e as doutrinas da Igreja esquecidas. O con- �

r
reajustado. Ntáquinas a vapor arfando ; ouve-se ,
I


o ritmo estrepitoso dos novos teares. Sucedem-se
as conquistas cientificas ; o mundo do espfrito
enriquecido pela filosofia alemã e o prazer da ·

vida realçado pela música dos alemães. A Amé­


.. rica polftica e economicamente adulta, mas cultu­
ralmente uma criança grande.
Em ambas as épocas o sismógrafo da his_ tória
parece registar um abalo tão violento co�o o
de hoje. A primeira vista os terramotos, os


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22
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NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
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efeitos menos poderosos qu� os da actualidade.
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. . Levando, porém, mais fundo a sondagem,
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.

I
I . depressa se reconhece que nos perfodos crfticos
I f
f ant eriores, o da Renascença e o da Reforma, o .
r

.. .

da Revolução e o de Napoleão, os alicerces da


r
i •

·� l I
I i
sociedade foram menos abalados que na nossa !

�, .

. I época. E o mais im p ortan te , em ambas as épocas


I

l
I a fé e a esperança dominaram muito mais que
.

hoje. Iv1esmo assim, também houve muito quem


I

l

.
visse na agonia da velha e venerada ordem a
J
'

·I ;
;Ilt . J aproximação do fim; nunca até então, a sensação .

\
.

dum colapso iminente de tôda a civilização se



• I expandiu mais, nem foi tão fort emente apoiada t
I
.
{
. '

.• I • '
pela observação exacta. Para a história ambos os
i · l períodos, embora críticos, apresentam em relêvo
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l a marca da ascensão.
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l
I
í Repetindo, à volta de 1500 e depois à volta ••
!.

I •

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I J de 1800, os fundamentos da sociedade foram


r

1 muito menos abalados que em nossos dias.


! I
I Apesar do ódio figadal entre o mundo católico
I
'
I e protestante, e das lutas ferozes após a Reforma,
• \
a base comum da sua fé e das suas Igrejas man- .,

••
I

teve-os em ligação muito mais íntima e tornou a


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�rotura com o {)assado muito menos definida que .


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no nosso tempo, cont o seu abismo entre a .!
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rejeição absoluta da fé religiosa por um lado, e
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a reconstituição da fé _cristã sôbre os velhos •

; alicerces, pelo outro. Aparte alguns excessos


extravagantes, nem o século XVI nem a era revo-

.i
.
;

. lucionária atac a ram ou negaram deliberadamente


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.i: i() sistema moral do Cristianismo. As modificações

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da · estn.atura polftica no perfodo que decorre

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· entre 1789 e 1815, incluindo tôdas as fases pos.: .


.
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teriores da RevoJuçao francesa, são indubitàveJ..
r

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:mente menos fundamentais do que as que ocorre­
'

,.
.
ram a partir de 1914, ao passo que no século xvt
r

a estrutura politica permaneceu virtualm�nt�


..

I
intacta. Nem o século xv1, nem as primeiras
'

décadas do século XIX conheceram a sistemática


sapa da ordem social, realizada por uma doutrina
de luta e antagonismo de classes. A economia
.
das duas épocas, pôsto que patenteie o ferrete da
'.

crise, não revela sinais de completo desconjun ·


.

' ..

i
i tamento. As grandes alterações económicas do

século XVI, a virulência do capitalismo, as maior�


falências e a subida de preços, nunca trouxeram
\ consigo a paralização espasmódica do comércio, •

nem as loucas desordens monetárias do presente.


A confusão originada pelos "assinados, nos fins
do século xvm, não é nada quando comp�rada
aos inúmeros males monetários do nosso tempo.
Mesmo a chamada revolução industrial (a pro-
. p r iedade do têrmo é discutível) não teve as

'

características dutt1;a violenta perturbação, mas

·.

sim as dum desenvolvimento excessivo e unila­


.!

I

teral.
-Se é preciso ainda uma outra prova palpável \ ··
-
,,

..

para revelar o carácter febril da vida cu ltu ral dos
nossos dias, vêde o rumo das artes. Tôdas as
transições por que passaram, desde o Qu�ttro- �
J
l · cento ao Rocócó, foram graduais e conservadoras.

r
:t·
r),
.
.'i .
••


I
·24 NAS SOMBRAS DO AMANHA

Durante todo êste tempo, educação e adextra­


"
mento. permaneceram os prerequisitos aceites e
indiscutíveis da verdadeira arte. Só com o advento
do ·Impressionismo . se iniCiou o repúdio de prin­
cípios que ..abriU�' vcaminho à burlesca parada
dos modernismos elegantes e reclamo-maníacos

- do nosso século. . i.

�1 A comparação do presente com os temP,os




de 1500 e 1800 dá, pois, origem à impressão geral I


.
I
de que o mundo sofre agora as angústias �unia f

ascensão mais fundamental e intensa que em


qualquer dos períodos anteriores.
fica ainda de pé a questão de saber até que
ponto o processo por que estamos a passar se
assemelha ao. da transição da civilização .romana
para a Idade-Média. Aqui vemos, na verdade, o
que muitos julgam estar agora próximo- uma
rica e elevada civilização cedendo, pouco a pouco,

a outra de conteúdo e qualidade irrefutàvelmente •

mais baixos. Mas logo surge uma profunda dife­ •

I
rença entre os dois casos. A civilização de nível .
'
inferior do ano 500 da era de Cristo tinha nas­
cido de outra mais antiga e trouxe consigo o
valioso tesoiro duma forma superior de religião,
na qual naufragara de certo modo a antiga cul­
tura. Com tôdas as suas bárbaras qualidades,


esta idade de Gregório Magno e dos merovín­
gios estava repassada de um intenso elemento
metafísico. O Cristianismo,. a despeito. da sua
renúncia ao mundo, foi a fôrça propulsora do
desenvolvimento da cultura medieval, elevando-a
'
. -
.
,

·I . A ACTUAL
j
'

CRJSE 25
• ... •

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. .

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..

1 =� àquela forma harmoniosa e apurada que os


séculos XII e xm ostentaram. •

Estará esta mesma fôrça da fé crista: a actuar


..
em nossos dias com igual potência para o futuro?
À excepção do triunfo do Cristianismo, as
.
I
transformações culturais do império romano
.

I
aparecem-nos como processo de estagnação e

abastardamento. Assistimos à decadência, ao
.
enfraquecimento e à dissolução de t:levadas
. .

faculdades de organização social, da expressão e


' i
'

da envergadura intelectuaL l-louve um declfnio


na eficiência do govêrno, uma pausa na tecnolo­
gia, diminuição de produtividade e afrouxamento
de curiosidade e criação intelectuais, uma e outra
limitadas à Imitação e conservação. Em todos
êstes aspectos o desenvolvimento d� civilização
romana pouco se assemelha aos processos de
. �
agora. Com efeito, muitas das citadas funções
• parecem estar ainda hoje firmes no seu progresso
\

em intensidade, diversidade e requinte. As condi­


. ções gerais são, além disso, inteiramente diferen­
II
tes. Nesse tempo havia uma multiplicidade de
povos indescriminada, imperfeita e, todavia, ver­
dadeiramente unidos num Estado-universo. Hoje,
.
,
.

.

vivemos numa estrutura, solidamente encadeada,


.

tw;
..

I I

·de Estados definidos e rivais. No nosso mundo
"l '

'

campeia sem freio e sempre mais a aptidão
'écnica ; a capacidade produtiva continua a expan­
dir-se e o poder da investigação cientffica triunfa
num ritmo aparentemente infinito de novas des­
.

cobertas. Uma ·vez ainda o ritmo do processo de


I


I

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. NAS SOMBRAS DO AMANHÃ - .

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transformação é . completamente diferente; os



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.
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.

anos parecem ter substituído o século como uni·


.

dade de medida. Em suma, uma comparação com



.

. a história de 200 a 600 oferece muito poucos
.
,, pontos de c-ontacto para ter um valor imediato
I
na-compreensão da actual crise. •
••
1
.j
E todavia, a· despeito de tôdas as diferenças, (
um ponto importante se destaca- o caminho da

>'·

civilização . romana foi o caminho do barbarismo.



I •

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Dar-se-á o caso de estarmos hoje a trilhar a


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l nos possa fornecer para uma compreensão da


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I
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presente crise, nenhuma garantia nos pode dar r;
'

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l� a respeito das suas conseqüências. A conclusão •


.
I

•II •

l
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•I
., .
segura de que, de qualquer maneira, tudo irá
pelo melhor, não é afiançada por qualquer para­
lelo histórico. Continuamos a correr para o
:
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desconhecido. J
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Também neste aspecto o nosso tempo apre-


I
I
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·

senta uma importante diferença dos outros perío­ •

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dos de violenta agitação cultural. Nestes, os



..

.
I

I homens viram sempre o objectivo por que luta­


.
• •
I I

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..
;: l vam e os meios com que o deviam alcançar i
! •

J
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estavam fixados c positivamente determinados.
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I !Fi
Como já tivemos ocasião de dizer, o seu objec­
••
tivo ·foi quási sempre restaurar--- um regresso
à perfeição e pureza passadas. Era, portanto, um
••

! !
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I ,
I
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ideal retrospectivo. E não só o ideal, mas tam· '-�·''


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A CRISE ACTUA


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.

'
..

. .aquisição e aplicação da antiga sabedoria e da


.antiga virtude. A antiga sabedoria, a antiga
beleza, a antiga virtude, eram a sabedoria, a
beleza e a virtude necessárias para trazer a êste
I
·mundo a ordem e a tranqüilidade que as condi­

l
i

·Ções terrenas permitem. Nos nebulosos tempos
<le decadência, os espíritos mais nobres- olhai


um Boécio- costumavam guardar a ancestral


sabedoria para depois a transmitirem às gerações
vindouras, a quem serviriam de guia e ensina­
mento. Bem podem estar gratos pela herança; , I

-sem um Boécio que teria sido a Epoca do Obs-


·CUrantismo? Em tempos prósperos essa riqueza
foi exumada, não pelo desinteressado desejo de ·

·saber somente, mas para a converter em aplica-


,

ção prática. E recordar o Direito romano e


Aristóteles. foi assim que o Humanismo, nos
-séculos xv e XVI, patenteou ao mundo os tesoi­
·ros redescobertos duma antiguidade purificada,
para modêlo eterno de conhecimento e cultura,
não um modêlo absoluto, mas para base de
o
'
construção. Pràticamente, todo o esfôrço cultu­
' ral consciente dessas épocas recuadas, foi de

o

qualquer modo inspirado pelo princípio dum


passado exemplar.
·' •



.
'

Tal veneração pelo passado já não chegou


até nós. Se o nosso tempo se preocupa, preserva,
ou põe a salvo a beleza, a sabedoria e a gran­
deza antigas, não o faz, pelo menos principal­
mente, com a intenção de encontrar af um guia.

'


o

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NAS SOMBRAS DO AMANHÃ •
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Mesmo que se dê a essas . épocas passadas· um . ', ,.



. '

valor mais alto que ao presente, pela sua fé, pela ·


'


sua arte e pela solidez e sanidade das suas for­


mas sociais, a nossa vida cultural já se não dirige

mais para os ilusórios ideais da reintegração.


Nós, nem somos capazes, nem queremos olhar
para trás. Para nós só há distâncias misteriosas
a percorrer. Há três séculos, desde Bacon e Des­
cartes, que os nossos olhos se voltaram para o •

futuro. A Humanidade terá de encontrar o seu I

caminho. A fôrça que nos impele sempre mais


!
longe, poder-nos-á levar a excessos, quando
.
.
.(1 degenera em inútil c irrequieta ânsia de novidade
.
pela novidade. Todavia, os espíritos mais sãos,
L

I �.

\._........... na sua carreira, não temem o pesado fardo dos


antigos valores.
i
Uma coisa é certa e bem certa: se quere­
!.

I mos preservar a cultura é preciso continuar a


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. criá-la .
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IV


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Condl,aes básicas da Cultura


: •

l I
·t •
Que entendemos nós por CuJtur� (. . f! .pal�v�a
;j veio da �lemanha e há muito que foi incorporada
nas línguas holandesa, escandinavas e eslava5, I

I

enquanto na Espanha, Itália e América conquistou •


'

também plena reputação. Só no francês e no I


'

inglês é que ainda hoje depara com certa resis-


- tência, apesar da sua voga em algumas acepções
i .

tradicionais e bem definidas. Pelo menos nestas I


duas línguas não permuta incondicionalmente .

com civilização. Ora isto não é um acaso. Devido I I


ao grande desenvolvimento do seu vocabulário

·Científico, há muito iniciado, o francês e o inglês
tinham muito menos necessidade de se apro­
I
priar do exemplo alemão para a sua �oderna
·nomenclatura científica, como sucedeu à maior
I

••

parte das outras .lfnguas europeias que, através


J
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. ... ,
d e todo o século XIX, se alimentaram em grau
' cada vez mais elevado da bem fornecida mesa da
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·f r aseologia alemã.
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NAS SOMBRAS DE AMANHA
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Oswald Spengler colocou os têrmos l(ultur �•
I I

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.
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. .

e Zivilisation como polos da sua bem definida,.


.,

mas demasiado dogmática teoria do declfnio.


O mundo leu-o e escutou as suas advertências,
mas não foi capaz de admitir, nem a sua termi­
'
.
I

' I
I nologia, nem o seu jufzo.
No seu uso corrente, a palavra cultura não
o o
; '

I :
se presta a interpretações erradas. Sabe-se mais
!I ou menos o que se pretende dizer com ela.

r
Ir
j

Todavia, dar uma definição exacta do seu signifi­
cado é uma coisa totalmente diferente. O que é
,,

:I

,
e em que consiste a cultura? Uma definição
exaustiva é pràticamente impossível. Tudo quanto
podemos fazer é enumerar algumas condições e
requisitos essenciais, sem os quais não pode
haver cultura.
Cultura requere, em primeiro lugar, um certo
equilíbrio de valores materiais e espirituais. l:ste 1
.

equilíbrio permite o desenvolvimento duma dis­
posição social que se reputa superior, porque
proporciona outros valores mais elevados que a
mera satisfação das necessidades ou da ambição.
Êstes valores habitam o domínio do espiritual,
do intelectual, do moral e do estético . .Por sua
vez êstes diversos domfnios terão de estar em
equilíbrio e harmonia para que a êlcs se possa
aplicar o conceito de cultura. Acentuando equi­
líbrio e não nível ·absoluto, poder-se-ão incluir
numa estimativa cultural formas de civilização
primitivas, simples e tôscas, evitando-se assim o
'
perigo de exagerar o valor das civilizações alta-
I I

j:

I : .
I


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CONôiÇOES BÁSICAS DA CULTURA 31


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I

• •

mente aperfeiçoadas e de apreciar unilateralmente


qualquer ·dos múltiplos factores da cultura, quer
seja a religião, a arte, o direito, a organização
polftica ou qualquer outro. �ste §uilíbrictJpoder­
-se-á considerar como um funcionar harmonioso
e eficaz das várias actividades culturais dentro do

todo. O resultado de tal coordenação das activi-


dades culturais manifesta-se na ordem, · na fôrça
.

estrutural e no ritmo vital da sociedade conside-


rada. É evidente que a estimativa histórica· das
diferentes culturas, do mesmo modo que a apre­
ciação do ambiente da época, não se pode liber­
tar das formas preconcebidas do avaliador. Deve
notar-se que a qualificação duma cultura de
"superior, ou "inferior", parece ser determinada
em última análise, mais pelo seu valor espiritual
e ético intrínseco do que pelo valor intelectual e •

estético. Uma cultura que não possa exibir reali--


zações técnicas ou grandes obras esculturais, I\
pode ser ainda assim �ma cultura superior; mas I
não o será se lhe faltar a caridade.

A segunda característica fundamental de cul­


tura é que tôda ela deverá conter um elemento
de esfôrço orientado para certo objectivo e êste
objectivo é sempre um ideal, não o ideal dum
I
indivíduo, mas o ideal de uma sociedade. A natu­

I reza dêste ideal é muito variável. Pode ser pura-


-

mente espiritual: a felicidade celestial, a proximi-·


I

dade de Deus, a· renúncia aos apêgos terrenos;.


.. j.. • '
32 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
·
' .

,
.
. . .
.
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.

J
, .. ! .
,_,, I ��o
.. . ,. .
.
••
. . .
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; .

'
'

ou então: o conhecimento, místico ou racional, o


•'

conhecimento da natureza, o conhecimento do eu ·


I•
· .

!1'1I

e do esp{rfto, o conhecimento do divino, etc .

Pode ser um ideal soc'ial: honra, respeito, poder,


j I

grandeza, m�s sempre honra, respeito, poder e


'

; 11

grandeza para a comunidade. _Pode ainda ser


.económico ou higiénico: prosperidade e saúde.
Para os esteios da cultura o ideal significa sem­
pre melhoramento ou bem-estar, bem-estar aqui
ou em qualquer outra parte, agora ou mais tarde. •
,.

Quer o objectivo esteja no céu ou na terra,


\
'

no saber ou na riqueza, a condição essencial para


a sua busca e obtenção é sempre ordem e segu­
\

rança. A cultuta deixaria de ser uma aspiração


se, primeiro que tudo, não cumprisse a imperiosa
tarefa de manter a ordem e a segurança. Desta
exigência de ordem provém tudo o que é auto­
ridade; da de segurança, tudo o que é direito.
No fundo de dezenas de diferentes sistemas jurí­
dicos e de govêrno há sempre os agrupamentos
sociais, cuja luta pelo aperfeiçoamento dá origem
. ' à cultura.
i,• I •

,,
I
,I I:I
.,
'
'
I

Mais concreto e mais positivo que os dois


· I ..
.

I ..
·
.,
mencionados fundamentos de cultura, equilfbrio
r
,.
.

'· .

1- J'
e aspiração, é o terceiro, cronologicamente a
..
.

I '
I• •

'.. ·'
••i . I
.,.
:J
'
sua primeira e mais típica feição. Cultura quere
;l.jj .
..

"
I' dizer domínio da natureza. A cultura existe'
·J;i!: li,
j . :
·

desde o momento em que o homem verifica que


.

I '

I •
a mão armada da pederneira é capaz de coisas
,li
..


. .
••
• • 1
.

I• I
'


I
CONDIÇÕES BÁSICAS DA CULTURA 33

.· -.:
.
• •

· -. �ue sem . ela estariam fora do seu alcance.


·Submeteu uma parcela da natureza à sua vontade.
·

· Domina a n.atureza, sua inimiga e sua bemfei�


·tora. Adquiriu meios e instrumentos ; tornou-se
·O homo faber.. faz uso dêsses meios para satis·
fazer uma necessidade, para fabricar um uten-
.sflio, para se proteger a si e aos seus, para der­
.rubar o animal ou o inimigo. D'ora-avante vai
modificar o curso da natureza, porque os resul­
·tados do manejo do instrumento não se teriam
. !:
'

·verificado sem a utilização dessa fôrça. •

{
\

Se êste domfnio da natureza fôsse o único . I

.i pressuposto de cultura, pouca razão haveria i


para negar às formigas, às abelhas, às aves, ou
aos castores o direito à sua posse. Todos êstes
animaizinhos, alterando partes da natureza, apli­
-cam-nas a uso próprio. Se estas actividades
:incluem ou não um esfôrço no sentido de melho­
rar, isso é pregunta cuja resposta fica ao. cuidado
<la psicologia animal. lv\as, mesmo admitindo que
·
(. assim fôsse, a atribuição de cultura ao mundo
''. .animal encontraria ainda a acusação espontânea
I,

\ -de que isso é abusar do têrmo. O espírito na:o


\
\ pode ser eliminado com tanta facilidade como
\
\j .alguns poderiam pensar.
Com efeito, dizer que cultura é domínio da
natureza, no sentido de construir, matar e assar,
·é deixar a história em meio. A palavra ,natureza,,
·rica de sentido, inclui ainda <ííãtureza fiuman>'e
·

·�ssa terá de ser também controlada. Já nas mais


:primitivas e mais ingénuas fases da sociedade o

·S

. . ':
.

·. I'.

.
I
I
I

I

) •

�·
'




• •
NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

r '

I
•,

homem adquire a consciência de ue tem certos


. .

I
I
I
• vere A defesa e o cu1 ado que o animal tern
pelas suas crias não são argumentos suficientes
'

'

••

para garantirem a conclusão de que nêles também


,

existe essa consciência. E somente na consciên- . .


'
• .
'
•· ..

cia humana que a função de cuidar e providen­ '•

t
ciar toma o aspecto de Dever. O reconhecimento
'l
.'
I
I dêste dever é em grau relativamente diminuto I
'

'. :.
l
· I
'
•t
r
'

atribuível a circunstâncias naturais, tais como


!I •t

liI
maternidade e protecção da unidade de família.
'

r
Numa fase juvenil da organização social a obri­
IJI
'•
)'
�I
,

gação expande-se ém convenções, normas de �


Ii
'
ll conduta e de cultos, em forma de tabus. Em t:
.

f
'

círculos extensos a popularização dá palavra I

'I l
I tabu levou a uma desvalorização do elemento :

I'I,
,
I
.
ji
j' ético das chamadas culturas primitivas, para não
,
.
<

I
o

falar daquela doutrina sociológica que, com sim- 1


l!
I • I
,.
.'

plicidade verdadeiramente moderna, dispõe de



i;
t
: lj
I : 1.
J
1:1 tudo quanto seja moralidade, justiça ou piedade,
I· !
. "


' . '

•j como tantos outros tabus.


, I
A consciência de ter certos deveres adquire •

um valor ético, desde o momento em que não



I
'
. •

I
r'

haja absoluta necessidade material de respeitar


·

·
.

I ,

I ;; I
aquilo que sentimos ser uma obrigação perante
I i,

i' . :r. um semelhante, uma instituição ou um poder espi­


't I I
.,
' lo ritual. Etnologistas como 1v1alinowsld demonstra­ ,
.I
. I

i· • I
.:. . ram ser insustentável a noção de que nas primi­
t;
I! '

I
) .
; I tivas civilizações a obediência ao código social 1
'

.,:
t
era mecânicamente determinada e inevitável. Por-
• •

' ;
'
J
.J
.

) l tanto, sempre que numa comunidade as regras


:I !I .4
de conduta social são geralmente observadas, é
'.

I I
I •
.· . •t

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,
. 1

1·1!j
'
.

'
I

l.r · i
.I'
.
' ' I
I.

I

CONDJÇOES BÁSICAS DA CULTURA

'
'
pela acção dum impulso genuinamente ético.
A exigência de _contrôle sôbre a natureza, . em

'

forma de domínio da própria natureza humana,


I
v
'

,,
.
é então satisfeita. Quanto mais os sentimentos
específicos de se estar sujeito à obrigaçâo , �e
'

subordinam a um supremo princípio de depen- fWI'rW -7

�ência humanaJ mais pura e mais fértil será à �-""


percepção do conceito de serviço indispensável ""'-{& Ol ·


I

a tôda a verdadeira cultura ,· desde o serviço de


�.' r
I

• I·
v
� J

Deus até à simples relação social entre patrão e


'
.


.

' '
'

empregado. O desarraigar e o desacreditar dêste


!L
I

'

t conceito de serviço foi a função mais destrutiva


do racionalismo superficial do século xvm.
rl
'

'
,

( .
Se resumíssemos agora o que apresentámos
.\ como características essenciais e requisitos gerais
. ··� ·
de cultura, o conteúdo dêste conceito poderia . :
l talvez formular-se no que se segue, e que apesar r
i. de tudo se não arroga o direito à qualidade de
·· .
definição exacta. Cultura , como condição da
�;"· sociedade, existe quando o domínio sôbre a natu-
;: .reza no campo material, moral e espiritual asse-
:
.�-·:

·,�.},{t .
.
gura um estado superior e melhor do que âquêle
que adviria das condições naturais existentes,
); \
� , .. estado cujas características se resumem num har-
,

�'·' \.....""_,.
.

moninso equilíbrio de valores materiais e espiri-


·c
tuais e num ideal mais ou mends homogéneo,
para cuja consecução convergem as várias acti-
.
'
.. �;_ vidades da comunidade.
't i
·�.·;
·h�-� L � f. -1.- .9 I /} . I IJ-I- A) ,
1
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.
.

36 NAS SOMBRAS DO AMANHA. .;.

Se a descrição atrás feita-da qual a avaliação


•'
(
• superior, e "melhor,, com o seu matiz
r
.
.
·' ·


.

subjectivo, nlo pode ser eliminada- contém



uma certa dose de verdade, surge agora a que�­

tão de saber se em nossos dias existem as con­
dições essenciais de cultura
..

'

/ Cultura pressupõe domínio da natureza. Esta


condição. parece, com efeito, ter atingido u m
.

grau de realização mais elevado que o d e qual­


quer outra civilização anterj�r nossa conhecida.

Fôrças, cuja existência mal se suspeitava há um


\,

I
século e cuja natureza e possibilidades eram
,
· t :

inteiramente desconhecidas, foram aplicadas em l;


'
múltiplas direcções com uma eficiência, em pro­ 1;l .:
J fundeza é extensão, nem sequer sonhadas da
· .

r
·

·
�.

., 'i
,

geração precedente. E o têrmo desta marcha no


.
l

caminho das conquistas nem sequer se enxerga


ainda. Dificilmente decorre um ano sem que se
·

descubram novas fôrças naturais e os meios de


as cpnverter em aplicação prática.
A natureza material. jaz a nossos pés com
milhares de grilhetas. E o domínio da natureza I
'
..•

humana? Não me apontem os triunfos da psi­
• quiatria, da assistência social ou da guerra ao
·:r �

·' crime. Domínio da natureza humana só poderá


.

'

_Mgnificar domínio de todo o indivfduo s_ôbre si


-- mesmo. Conseguiu êle isto? Ou, pelo menos, .
,
,

,
..

estando a perfeição fora do seu alcance, haverá J�!·:


porventura qualquer proporção entre o seu auto­ ••

-domínio e o vastissimo e poderoso domínio da


,

natureza material? E difícil encontrar razões


.�·ti(
. I
. "

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I•
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CONDJ(;OES BASICAS DA CULTURA · 37
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l:· �:·:;�·. ?..para
.

tal suposição. O que muitas vezes ' parece I


.
\ ''

· ·· · · ., é: que o homem, abusando da liberdade obtida I


..

:

' peJo seu cQntrôle da natureza física, se r�cusa •

a dominar-se a si próprio, sempre pronto a repe-


lir todos os valores que o espírito para êle con­
quistara. Os direitos e as pretensões da natureza
humana são invocados em tôda a parte para se
:
oporem à autoridade de leis éticas absolutas . •

A condição omínio da natureza fica assim ape-


nas a meio caminho.
Para o cumprimento da segunda condição
de cultura, perseguição dum ideal amplamente
homogéneo, tudo ·falta. 9 desejo de melhora�,
impelindo tôdas as com Únidades e todos os indi­

víduos, vê por centenas de olhos diferentes.


Cada grupo persegue a sua própria concepção
de bem-estar, sem a integrar num ideal comum,
sobreposto aos vários desejos particulares. So­
mente a expressão dêsse ideal comum, quer
atingível quer ilusório, poderá justificar plena­
mente a noção "cultura moderna,. No passado
encontramos ideais comuns como êstes: glória
de Deus, seja qual fôr a interpretação, justiça, .

virtude, sabedoria. Concepções metaffsicas obso-


letas, objectará o espírito contemporâneo. Mas
. a verdade é que com o abandôno de tais concep­
ções a homogeneidade da cultura corre sério ,

risco. E que na verdade, o que hoje substitui


êstes altos princípios de acção é simplesmente
um amontoado de ânsias contraditórias. Os fac-
tores que encadeiam os objectivos culturais do JI

I •

·�-
.
- .
. .

� �/Y'I);
.

v:.�I.J j�n
���� , • .,.\ ..1 . / I) I .
38
·.
.
NAS SOMBRAS DO AMÀNHÃ. .

nosso·tempo, só podem ser encontrados na série


prosperidade, poder e segurança (segurança, por­

que esta inclui a paz e a ordem), tudo ideais


mais próprios para dividir que para unificar, e
todos êles hrotando directamente de instintos
naturais sem o mais leve toque do espírito. Até
o homem das cavernas os conhecia há milhares
. de anos .
.{

Ora hoje ouve-se falar muito de , culturas


[
.

nacionais " e "culturas de classe" quere dizer, o


· conceito cultura é submetido ao ideal de poder,
de prosperidade ou de segurança dum detertni-
'

nado grupo. Todavia, aquêles que assim proce­ '


'

.
I
1

dem, despem o conceito de todo o seu significado


'
I
'
t

real; esquecem a paradoxal, mas em razão do


fica dito , !nevitável conclusão de que apenas se I
pode falar de cultura se o ideal que a domina
y
assa por cima dos interêsses da [comunidad�-r--")M0
que reclama a sua posse. -� cultura tem de _t�!_C?. �\

<!_fi
_

seu fim último no e afis tcg) ou e ntão deixará


.
üi
de ser c tura.

.I
.

iI Poderá o mundo actual exigir para si êsse


equilíbrio de valores materiais e espirituais que
I

I
.

nós admitimos como sendo um prerequisito de
.I
••

:
'

.
cultura ? Uma vez mais, a resposta terá de ser •

em grande parte negativa. I-lá produção intensa


em ambos os campos, sem dúvida, mas equilí­
brio? 1-larmonia e eqüipolência de poder mate­
rial e espiritual?

·J..' �-��� �..ht ��.tJ. .


-

• � ' ..,.I, . J •
lj' .t_. ' '• t . ' . . . .
'
,-.,' . - . �

'
I

•.

CONDIÇÕES BÁSICAS DA CULTURA 39


.
• j
.
• •
.
.

.

·'
As manifestações contemporâneas que nos
rodeiam parecem excluir tôda a idéia dum autên­
tico equilíbrio. Um sistema económico do mais
puro requinte atira diàriamente cá para fora com
um montão de produtos e põe em movimento
V ��
fôrças de que ninguém precisa, que para ninguém
trazem vantagens, que tôda a gente teme e que
� �- muitos escarnecem por inúteis, absurdas e preJ·u-
;yJ
.
. :.
diciais. O café é queimado para se manter o
r. r preço ; o material de guerra encontrará ávidos
] compradores, mas ninguém quere que êle seja
: utilizado. A desproporção entre a perfeição, por \
·� um lado, e a capacidade dos maquinismos pro- �

j dutores e o seu poder de a tornar vantajosa, pelo .1


outro, é a pobreza no meio da abundância; tudo ,
'

r
j deixa pouco lugar à idéia de equilfbrio. Há tam- i'
I

bém uma super-produção tntelectual, ��--��E .�SS?




'8
. l· vlfv, per"!�.n�nt �-����a�r'! �s.crita e , radio�if�.��ida, ,
lvl �\�
-
��uma divergência de p�nsamento quá�i irre��-
.;� Aiável. A arte foi apanháda no cfrculo vicioso \
. t�· que agrilhoa o artista à p�ubli.ci�ade e por meio
desta à moda, qualquer delas, por sua vez, .
dependente- dos interêsses comerciais. Ao longo
'(�� de tôda a série, désde a vida do Estado à vida da
, ·

]t famt't•ta, parece estar em curso um desconjunta-


�W 1
mento como o mundo jamais conheceu. De ver-

ti dadeiro equilíbrio, de nivelamento, isso nem se


,H discute.
it
J· .
n·.lI�· ') -t\'\(). 4hWI� , 0- /,U)t -t ���
,
-

I
.

tl�ftft
I
l:'
I

I

I
. -

'
.

'

i

. .
..
v
,

'

{;

I.

Natureza problemática do Progresso

Antes de procedermos a investigações mais


pormenorizadas sôbre as várias manifestações
da crise cultural, talvez seja aconselhável uma
,I;

pausa em tecla diferente dessa ·que é o pessi..


'i mismo tocando as raias do desespêro .
••
••

:j
• I O juízo que fazemos dos assuntos e das rela·
:I ções humanas nunca se poderá libertar inteira­
Jj• mente da disposição espiritual do momento. Se

i'
I

essa disposição é negativa, há uma probabilidade



objectiva de que ela venha a colorir o nosso


f:
\I
parecer de tintas demasiado carregadas. Se esta..
I •
(.
mos habituados a ver as épocas passadas, a Hélada
t:
r'
no tempo de Péricles, a idade das catedrais, a
u'

II

l•
I '
• Renascença, à luz da harmonia e do equiUbrio,
I
I.· ao passo que o nosso tempo se apresenta repleto
.I de atritos e perturbações, isso é , sem dúvida, em
I

boa parte devido ao efeito suavizador da distân-


cia. Portanto, antes de considerarmos os sintomas

. t
I

devemos conceder logo uma margem para o êrro


.

i.
I•
l.


.


• ••1
'
. ..I
'



f 42 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
I<I
_,

•.. J.
·•


I '
. '

Não pode haver um balanço perfeito da nossa


-

visão serena do passado longfnquo e do exame


.

excitado dum. presente em que nós mesmos esta­


mos .envolvidos. Talvez que no fim um jufzo
retrospectivo do nosso tempo veja os fenómenos
que agora nos provocam tão grande ansiedade
apenas como coisas de importância passageira e
superficial. Um ligeiro incómodo pode tirar-nos
o sono e o apetite, perturbar-nos o humor ou
impedir-nos de trabalhar, ao passo que o orga­
nismo se mantém em perfeito estado. Não escas­
seiam indícios de que por baixo das aflições
sociais e culturais que nos empestam, o pulso da
sociedade continua a bater com mais vigor e
saúde do que se imagina. Mas que a enfermidade
existe e que o organismo não funciona normal­
mente, isso é inegável.
Cá estamos nós a conduzir a argumentação
em metáforas médicas. Sem a metáfora torna-se
impossível o manejo de conceitos gerais, tais

como cultura e civilização, e a de doença e desar­
ranjo é necessàriamcnte a mais indicada para o
caso presente. Não é o próprio tênno "crise,
um conceito devido a J-lipócrates? No domínio...
,social e cultural não há metáfora mais adequada

que a patológica . Sem dúvida os tempos presen­ .

tes estão profundamente atacados de febre. Per­


turbações do desenvolvimento? Talvez. Há delírio,
fantasmas desenfreados e expressão disparatada.
Ou será mais que um sôbre-estímulo transitório
do cérebro? I-laverá razão par a se falar duma

I•
• ' • ' 1

I
, I J , I , ,, 'I• .
• •• j ' •I� tJ. !, . • 1• !1,o.l , , ., �V\)
.
.' Jh" •'•'·
1•"\It�.t. ,. , : o•
NATUREZA PROBLEMÁTICA DO PROGRESSO 43.
'


'

,
.

t.
1
.,•
'

(
alucinaçlo motivada por grave lesão do centro
·:
. •:
nervoso ? Cada 'Uma destàs metáforas tem o . seu
.
.'
.
pêso de sentido, quando aplicada aos aspectos
do estado actual da nossa cultura .
.

lv\ais visíveis e mais palpáveis são as pertur·


I bações do organismo económico. Não há quem
II\
''

I. as não sinta na sua vida de cada dia. As do orga­



'


nismo político estão um pouco menos pátentes,

embora o indivíduo médio lhes possa notar a
I
'• presença e os efeitos, geralmente só através da
I imprensa. Observando globalmente o desconjun­
j •
tamento político· e económico e o seu progresso •

gradual parece chegar-se a isto : a maquinaria do


·�
I•

mundo foi levada a uma perfeição tal, que as


fôrças sociais, sem govêrno e sem a coordenação
de um princípio que se sobreponha à tendência
particular de cada uma delas (porque o Estado n�o
pode ser considerado como tal), funcionam em
s eparado, com uma excessiva potência, manifes-
• • •

tamente perigosa à harmonia do organismo con-


siderado no seu todo. Maquinaria aqui refere-se
aos�meios de produça� e aos t.neros técnicos em
I geral, meios de comunicação e transporte, de
.I

;.
publicidade e mobilização das massas, incluindo
'r.
l a organização política e educativa.
!
<\ . Quando se atenta no desenvolvimento de

� cada um dêstes meios em si, sem introduzir uma


estimativa, êsse desénvolvimento garante plena­

Íl
õgress� Todos
'

. . mente a aplicação do têrmo


�J
"

êles foram imensament umentados na sua
ot nct Recordemos contudo, que progresso
'

'

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'

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44

.;;;.· ···•'\:�-:..'t i.· ' lJ{\�...J\.� .,•I, '1 ,•


. (
. .. . .

. NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


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I
t •

em si indica simP-lesmente um movimento, sem


• .. .
• • •

i mplicar o lQcal onde conduz o caminho, se à '


.

salvação se à Qerdição. E que nós esquecemos.


, .

com muita facilidade que só o optimismo super­


>
'

ficial dos nossos antepassados dos séculos xvm . J '

e XIX pôde associar a esta noção puramente geo­


métrica do progresso a garantia do bigger and
better, ou seja, dum melhoramento simultânea-·
mente qualitativo e quantitativo. A convicção de
que cada nova descoberta ou melhoramento dos
meios existentes encerra obrigatoriamente a pro­
;
messa de um valor mais elevado ou de uma feli­ •

cidade maior, é uma idéia extremamente ingénua,


••
herança dos formosos dias de optimismo intele­
ctual, moral e sentimental. Não há a mínima ,I

parcela de paradoxo na . afirmação de que uma


• •

cultura pode sossobrar no meio dum progresso .


• ,I
.

real e palpável. "O progresso é uma coisa terrí- ,

vel disse William James. E mais que isso: é


Jt,

também uma noção extremamente ambígua. N a




.
'

verdade, quem nos poderá garantir que no cami­ . '

nho, um pouco mais adiante, não tenha ruído •




'

uma ponte ou não se tenha fendido a terra? .



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I
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I .
,

VI
i
.

à ciência nos limites do pensamento

O campo da ciência é o ponto de partida


·natural para uma descrição das manifestações
externas da desordem cultural. Nêle encontramos
. combinados progresso evidente e constante, sinais
-de crise igualmente evidentes e uma fé inabàlável
em que insistir e continuar ê imperativo e bené­
fico.
Já desde o (sécu
lo xvi!) que o desenvolvi­ •

mento do pensamento filosófico e científico traz


a marca inconfundível do progresso positivo e
continuo. Pràticamente, todos os ramos do conhe­
cimento, sem excluir a filosofia, estão a ser dia
a dia aperfeiçoados e expandidos. Descobertas
assombrosas- ê pensar só na radiação cósmica
ou nos electrões positivos -sucedem-se em cadeia
· ininterrupta. �ste progresso é muito mais visfvel
nas ciências físicas devido, sobretudo, à imediata
aplicação técnica das novas descobertas. Mas
·também as ciências sociais e as humanidades,
. .

46 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


••

bem .-como QS dois ramos do conhecimento; dis--' : · ;


• 1 • I 0

..

tintos de.. todos. os outros, a matemática e a filo-, ; ,:i)


. ..

. ' .

so�a,; estf'o· continuamente a penetr� �ai�. fundo


.
.
..
na mina do saber com meios de ··expressa:o e
observação sempre mais apurados.
;

• •

Tudo isto é tanto Jnais admirável quanto é


1
certo que a geração à volta de 1890 julgava que

• •

a ciência tinha quási atingido o ponto de che­


• gada. A estrutura do conhecimento humano
:.
t
, '1'

fT

parecia estar quási completa. Havia ainda qual­


quer coisa a polir e a retocar e talvez que a

marcha do te�!JpO trouxesse ainda alguns mate­



riais novos, mas aparentemente não se esperavam
• mudançàs fundamentais na constituição e formu­
\ .

lário do nosso conhecimento. Como as coisas se ..

haviam de passar de maneira tão diversa !


. .

Houvesse um Epiménides sábio que se tivesse


retirado em 1879 para a sua caverna e lá dor­
misse oito vezes sete anos para despertar só hoje,.
.
.
.
até a linguagem de quási todos os ramos da
ciência se lhe teria tornado incompreensível.
A terminologià da física, da química, da filosofia,
da psicologia ou da lingüística, para citar ape­
nas algumas, seria para êle uma algaravia sem
significação. Quem quer que atente na nomencla­
tura do campo intelectual que cultiva, vê ime­
diatamente que está sempre a empregar palavras
e noções inexistentes há quarenta anos. Se alguns
' · domfnios do conhecimento, a história por exem­
..

•'
''
.
plo, constituem a êste respeito uma excepçao, .
'· .
. .

é porque af os ·têrmos da vida cotidiana têm de



• •
l • .. "

'· .

- --
'•
A CJtNéiA NOS LIMITES DO PENSAMENTO 41
.•
·

. .
. .

I.
.

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•• •
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.\ .

: �ontinuar a ser, duma maneira· geralí o ú�co


... , ..

1,:�·�

•[meio de expresslo.
••
. . .
·

\ •J · •
Quando agora se compara o estado actual de
· •

· todo o conhecimento com o de há cinqüenta


'
anos, a concluslo na:o pode ser outra senlo a de
:: que o seu progresso tem sido sinónimo de aper ...
feiçoamento. O nosso conhecimento não s6 se
tornou mais vasto, mas também mais profund >� 'r
e mais requintado; em têrmos de valor;h ouve �· �
uma progressão inegável. Isto conduz directa ..
·

mente a uma conclusão surpreende�te: no cami... •

. nho do progresso real e positivo, o espfrito não


pode �em quere jamais voltar atrás. A idéia de
I

que um sábio de bom grado renunciaria a tudó


quanto foi conquistado pelas novas descobertas,
.
é absurda; por outro lado, na Arte, onde não há
.. um desenvolvimento progressivo em série contf...
nua, não é de todo inconcebível ·q ue s.e4quisesse
· ·

esquecer o progresso duma época inteira. Isto já.


aconteceu bastantes vezes.
O exemplo da ciência mostra-nos, pois, um
importantíssimo campo de cultura em que, pelo
menos até hoje, a progressão é bem clara, e,
segundo tôdas as aparências, ininterrupta. É um
· campo em que o espírito encontra o seu cami ... I
·nho exacta e inconfun divelmente balizado. Onde
êle nos conduzirá e qual a promessa que nos
impele, itão nos é dado saber.

Uma coisa é certa. Êste progresso inegável e
positivo, com o qual quero significar penetração
. . mais . funda, aperfeiçoamento, purificação, . em •


48 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


suma, desenvolvimento, levou o pensamento
científico a um estado de crise, cujos efeitos se
. mantêm ·ainda envoltos no véu da incerteza.
-! .1- vr.----Ai O novo conhecimento ainda se não institufu em
�� -1c. J cultura; ainda nao foi integrado numa nova
tJ{-WlC\1, ;
� concepção cósmica de harmonia iluminadora., Em
JJ.wi4J.!
» ""-�-""'' nós o agregado de todo o saber ainda se não ·

��ir

·: transformou em cultura ; pelo contrário, temos


� a impressão de que, com a progressiva análise
t

e perscrutação científica da realidade, os alicer-

· ces do pensamento se tornam cada. vez mais


t precários e instáveis.
Velhas verdades têm de ser
(postas de parte, têrmos gerais de uso diário, que
• } julgávamos serem as chaves de acesso à com·
I
II

I �preensão, já 11âo servirão tnais na fe�hadura.


I
�Evolução, sim, mas muito cuidado com ela, por- I
l

! que o conceito é um tanto ou quanto ferrugento .

�Elementos. . . a sua imutabilidade já não existe. .

·Causalidade. . . no todo pouco se pode fazer com j


'êste conceito; quebra ao menor uso que dêle se
faça. Leis naturais. . . certamente, mas convém
não falar muito de validade absoluta. Objectivi­

dade. . . é ainda o nosso dever e o nosso ideal,
: mas a sua perfeita realização não é possível,
i pelo menos às ciências sociais e às humanidades.
O nosso Epiménides de há pouco bem pode
soltar suspiros de desespêro ao contemplar tudo
· isto. Como êle esfregaria· os ·o lhos de incrédulo


pasmo, quando lhe dissessem que em algumas

ciências (referimo-nos às matemáticas) a análise


. se tornou tão diferenci;tda e burilada que já nem
•• i

i\J . . ;.• :
A CI�NCIA'NOS LIMITES DO PENSAMENTO 49
'
:

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··:i . . �.
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. •.
mesmo os sábios mais especializados na mat�ria
••
. se compreendem bem uns aos outros. Por outro

·

lado, quão grande nlo seria a sua surprêsa ao


ouvir dizer que a homogeneidade de tôda a mat�..
ria está prestes a ser provada, de forma que a
qufmica terá de voltar ao seio da física donde ·
outrora saiu. Mas por outro lado verificamos isto:
os próprios meios de apercepção começam a
falhar-nos. N o domínio da microfísica os fenóme..
nos escapam fatalmente à observação, visto que
os processos em investigação são mais delicados
que os instrumentos de exame, limitadas como
são as suas possibilidades pela velocidade da luz .
.
No caso do infinitamente pequeno, a perturbaçlo
do processo causada pelo facto da própria obser j ..

vaçao é tal, que torna impossível o alcance duma;


., completa objectividade. A causalidade chega assim�
ao extremo limite da sua eficiência, para trás d oi
qual fica um campo de contjngências sem deter.:
mtnar.

Os fenómenos que a física incorpora em fór-


mulas exactas estão tão afastados da nossa órbita
. de vida, as relações estabelecidas pela matemá­
tica ficam tão além da esfera em que se move o
nosso pensar, que ambas as ciências já há muito
se sentiram forçadas a reconhecer a insuficiência
do nosso velho e aparentemente bem provado
. .

••
.. instrumento lógico. Tivemos de nos familiarizar
.
com a idéia de que para uma compreensão da
.

••
'

•'
'
natureza pode ser que se . tenha de trabalhar com
.


·geometria não euclidiana e com mais de três
.

.
• •

.
.

4
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I

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·
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0 ·. NAs· soMBRAS' DO AMANHA'


'· .
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. •

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.

. dimensões. A Razão na sua antiga forma, casada­


'

"

como está com a lógica aristotélica, já não pode


· medir-se com a ciência. A investigação obriga­

. -nos a pensar muito para além dos limites da


imaginação. As fórmulas fornecem o meio para
I exprimir as novas descobertas, mas a imagina­
lça:o é incapaz. de transmitir ao nosso espírito

� a realidade particular. O confiante "é , é redu­


I

! zido ao hesitante parece ser"· Um processo


I

I 11

I Lparece ser a acção das ondas ou das partfculas,


j

I

I conforme o ângulo de que é visto. Dispensai


I
.
.


.1
as fórmulas para exprimir uma generalização
científica e só fica a analog1a Qual de nós,

\ profanos, não tem ansia o por ouvir dizer ao



'

i

tfisico se êle vai tomar como boloiX>


.
u como
I
' imples descrição de realidades presentes as re-
l
'

l
resentações com que tenta explicar o mundo
·Jos átomos?
'

A ciência parece ter-se aproximado dos pró-


I
o

1 prios limites do nosso poder mental. E um facto


,

o
o

I
I
· bem conhecido que mais do que um físico, à
I
.

I
I fôrça duma labuta contínua numa atmosfera men­
o

i
I
!
I
'
tal a que o organismo parece não estar adaptado,
experimenta um pêso que por vezes o oprime
'
J
li
li•
até ao desespêro. Todavia, desistir, não quere

nem pode. O leigo pode contentar-se com o sus­ '

pirar pela realidade tangível e confortável de


'

'
••
'

outrora e lançar mão do seu Buffon para se


I deleitar com aquela simples e tranqüila repre­
1
'

\ n
I

I
sentação do mundo, em que se sente o aroma
o

I
' •

do feno recém-ceifado e se ouve o tri�ado duma


j
·l
'

.
'


I

,I

I


. .
.
••
A CI�CIA NOS LIMITES DO PENSAMENTO 51

'

.: av.e tardia. Mas a ciência de antanho, hoje . é


'
. .

poesia e história.
· Um dia preguntei a De Sitter se está saüdade

das visões de antanho já alguma vez se introme­


,tera com os seus pensamentos de expansão, do
vácuo, ou da forma esférica do universo. A serie•
dade do · Seu , não,, deixou-me ver imediatamente
a estupidez da pregunta.
Será a vertigem do nosso pensar. chegado ao
infinito do conhecimento, semelhante àquela que
®"espírito teve de vencer para se atrever a saltar
duma concepção do urliverso para a outra - da
Ptolomaica para a Copérnica ?
As categorias com que o pensamento se con
tentou até aqui parecem estar em dissolução. Os1
limites estão apagados, as contradições mostram- \
-se compatíveis. lnt�rdependência torna-se o
11 n \
santo e senha de tôda a moderna observação dos \
processos humanos e sociais. Em sociologia, em 11
economia, em psicologia, em história, em tôda a I
parte, a explanação em têrmos de causa e con- I
: ��qüência claramente ortodoxos, teve de ceder !
o lugar à recognição da dependência recíproca
e das múltiplas facetas das relações compostas. 1
)I
O conceito de , condição,, está a suplantar o de
"causa".
Pode-se ir mesmo mais longe. O pensamento, ·

nas ciências não exactas, está-se a tornar pro­


gressivamente antinómico e ambivalente. Antinó-.
mico, isto é, o espfrito encontra-se como que
suspenso entre dois opostos que antes pareciam
. .t
: \.
) · l. . ':. •
·' �\'-. • )''- .J,..t it···
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52 · NAs soMBRAs ·oo· AMANHA:· ....

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.

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excluir-se um ao outro. Ambivalente, quere dizer,
..
; .
'

o nosso juCzo, ciente dos méritos · relativos de


duàs decisões opostas, vacila na escolha, tal como
. o asno de Buridan.
;
I

Na verd�d�, há motivos suficientes para se


falar duma crise do pensamento e do conheci­
mento modernos, tão violenta e tao extensa no
espaço e no tempo, que dificilmente se poderá
encontrar igual em qualquer época do passado
nossa conhecida. '

Tomámos como ponto de partida o lado


intelectual da presente crise cultural porque êste


pode ser fixado e descrito com um grau de
objectividade muito maior que as desordens da
vida social, e porque permite um jufzo livre de
influências, portanto imparcial. Está. fora da
esfera da hostilidade, dos conflitos e da malevo..
· lência, pelo menos em grande parte. f·lá crise,

J
mas, estrictamente falando, não há enfermidade
f
nem desconjuntamento. Desnecessário será dizer
\ qua a expressão ucrise intelectual, não se deve
I

1 tomar em referência às lutas do pensamento


politicamente controlado, mas sim ao próprio
l

progresso do conhecimento, tal como êste se


'
manifesta onde o espfrito goza ainda da liber-
dade que lhe é indispensável para ser espírito.
Exceptuando as exóticas iguarias cozinhadas por
!v1arx e a mística elaborada nos pafses nórdicos,
\ que alguns tnuito seriamente desejariam que
. aceitássemo,s, esta liberdade permaneceu invio­
lável no campo das ciências físicas e no da mate-



. 53
' r

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.

. A CJ�NCJA NOS LIMITES DO PENSAMENTO


' )
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'·.'' :�:·. · . mática, seu guia. _Af na:o há quaisquer precon­


. . .

··

. ·': céitos que perturbem o progresso da investigaçto.


- '

A ffsica é ainda internacional. O emparedamento


das nações, por enquanto, pouco prejudicoq a
comunicação e a colaboraça:o internacional dos
que se dedicam às ciências naturais. O indivfduo
que delas se ocupa é ainda o ser humano, sem
qualquer outra qualificação. O estudo das ciên­
cias sociais tem sido, desde tempos remotos,
'
assinalado por um maior grau de susceptibilidade
à influência do carácter e das fronteiras duma
nação. Devido à natureza do seu objecto,. o
o estudo da sociedade humana tem grande difi­
culdade em atingir o grau de liberdade espiri­
tual que · o eleva à categoria de ciência. Apesar
disso, o panorama até ao horizonte das ciências
t• sociais e das humanidades continua a ser, na
actualidade, relativamente bem visível. O que é
realmente �ovo neste campo- mudança signifi..
cativa de método e da maneira de observar; !
enriquecimento progressi�o e ordenação de mate-
rial, novas sínteses- não é obra dos barulhentos ;·
satélites de qualquer sistema político.
Portanto, se o pensamento científico, em tôda

a escala, se encontra em estado de crise, ..é uma_


crise
. vinda de dentro e na:o uma crise motivada
pela contaminação dos males duma sociedade
desordenada. As suas raízes encontram-se no
próprio progresso do intelecto que conduz a
ciência por alturas quási inacessfveis até aos piná­
culos em que o próprio caminho parece desen-
l


j
r..

5t NAS SOMBRAS DO AMANHX .


.

• •

••

.l""
• •


"
,
.. ..

'

caminhar-se. Na crise do pensamento puro não


. .

.tem gualgueiJlip_e.la loucura humana ou a deca­



,�ência esQiritual. A enfermidade tem as su�s
'
rafzes no aperfeiçoamento dos meios de com­
preensão e na intensificação do próprio desejo
. de saber .

Esta crise é, pois, não só inevitável, mas


i também desejável e benéfica. Neste ponto pelo
t
I
menos, continua ainda visfvel o alvo da nossa

cultura; corre, utilizando todos os recursos dum


I

apetrechamento crescente ; apressa o passo atra­ ••

vés das incertezas e dos insolúveis do presente.


O intelecto descortina claramente o caminho que
tem a seguir. Nada de paragens; nada de recuos.
A certeza do simples facto de que, pelo menos
.J

• num campo da máxima importância, a via está
inalteràveltnente traçada, deve dar confôrto e
.

vigor àquêles que desesperem do futuro da nossa



. I

}
, cultura. A crise do pensamento científico poderá

' •

' levar-nos ao zénite da perplexidade; isso será


\
I
I
I

motivo de desânimo só para aquêles que na:o


• •

têm a coragem de aceitar êste mundo e esta vida, '

tal como nos foram dados.


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. .
.
'


V II .
.

),

. . '


Enfraquecimento da capacidade
de iulgar.

Quando nos voltamos da produção do. pensa­


mento e do conhecimento para a maneira como
êste se difunde e aquêle se adopta e se usa, a

.•

cena modifica-se. O estado daquilo a que pode­
, mos chamar pensamento popular, é nlo . só
'

de crise, mas de uma crise em perigosa deca­


dência.
Que ingénua nos parece hoje a confiante e
doce ilusão de há um século, de que o avanço
j da ciência e o ensino obrigatório garantiam u m
aperfeiçoamento progressivo da sociedade r Quem
poderá ainda acreditar seriamente que a trans�
Jação dos triunfos científicos para realizações
técnicas ainda mais maravilhosas, é o suficiente
para salvar a civilização ? Ou que a extirpação

do analfabetismo significará a morte do barba-


. rismo? A sociedade moderna, com o seu intenso
desenvolvimento e mecanização, está muito longe
••

NAS SOMBRAS DO AMANHÂ .


de.· se. assemelhar à quimera que se fazia dum •

Progresso.
A vida social dos nossos dias patenteia uma


I

• •

multidao de sintomas alarmantes que melhor se


podem agrupar sob a designação de Enfraque­
I
n

cimento da capacidade de julgar,. É realmente


muito desanimador I Vivemos num mundo que
está infinitamente mais bem informado de si
mesmo, da sua natureza e das suas possibilidades
do que em qualquer outra época da história.
Sabemos melhor que os nossos antepassados o
r
que é o universo, como funciona, como opera
o organismo vivo, como se relacionam as coisas
do espfrito e como deve ser entendida a seqüência
dos acontecimentos históricos. O sujeito humano
tem de si e do seu mundo u m conhecimento ·
como jamais teve. O homem tornou-se muitís­
••

: simo mais .capaz de julgar, intensivamente até


onde o intelecto pode penetrar nas profundezas.
da composição e natureza das coisas;. extensiva­
mente até onde o seu conhecimento se estende
por um espaço muito mais vasto, e sobretudo,
até onde um certo grau de conhecimento se
alarga por um número de indivíduos muito
( maior. A sociedade, considerada em abstracto,
conhece-se. "C..Q.f1b�ce.-te � J' '!! � �mo,, eis o que
-
.
.

sempre se considerou como quinta-essência da


sabedoria; a conclusão poderia parecer inevitável:
o mundo progrediu em sageza. Risum teneatis.
felizmente que não somós liOingénliõs

' '

' . •
.. .
-


A loucura nas suas múltiplas facetas, desde o



.
.

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. ..•.,. .
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51
.

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..

. ,;
. ENFRAQUECIMENTO DA CAPACIDADE
. .
f• ,
.. •
.

-
,� J i .
.;'
.

:�··\..:
,

·.r:t·trfvolo e do ridfculo até ao inaldosó e destru..


�.' : t fivo nunca foi tio manifesta através de todo o.

• o

. ; ·.. ·
. ,


.mundo. Já n�9_ é .��m.� ��-��!t:..�t�.ç��-�n.t�l gente
�. . .

e risonha pa��_.um � nobre.. e grave espfrito ae


... -...,...

.. - .. . � ..

humanista, como foi Erasmo�. Temos- ae· ver ita


.._
... .... -
. _,.. ..
·

-;·imensa loü�ui-á ....


do nosso tempo uma doença da .. . . .

r$Ociedade; temos de analizar os seus sintomas e


tentar fria e objectivamente determinar a sua
natureza no intentó de conseguir os meios para
a cura.


'

A fªJáci�t. do silogismo: Conhecimento de


. .

I li

' si mesmo é sàbedoria .:,_o mundo conhece-se


melhor que nunca- ergo o mundo tornou-se
mais sábio, tem origem na ambigüidade dos
têrmos. O mundo", em abstracto, nem tem 11

conhecimento nem poder de acção ; manifesta-se


Unicamente atraVéS do pensamentO e da aCÇãO I
I

dos indivfduos. Além disso, o têrmo ''conheci-


mento, pode ser tudo menos permutável com
sabedoria, ponto êste que mal requere elabo­

ração.
Numa sociedade caracterizada por uma edu­
cação popular universal, uma extensa publicidaqe
imediata do dia-a-dia mundial e uma rigorosa
divisão do trabalho, o indivíduo médio torna-se
çada vez menos depenciéi1te das suâs próprias 1
faculdades de p,ensamento e expressão. Visto de �
relance, isto poderia parecer paradoxal. Efecti­
vamente, é vulgar supor-se que num ambiente
cultural de menor intensidade intelectual e com
I

uma expansão do conhecimento relativamente

.

-.
--- ,•
.
. - · •. .
..
.t'
!58
.

.. ..
.
:.
...
NAS SOMBRAS DO AMANHA
.

mais reduzida, o pensamento individual, restrin­


gido como está a uma estreita faixa de contactos,
deverá ser muito mais limitado do que se se •
• •
. ,
,.

tratasse duma sociedade altamente desenvolvida


4
• .

\
A êste pensamento por demais ·simplista asso.
j ciam-se as qualidades de conformidade com o
J ��
padrão e com a roti na. Isto, porém, não nos

deve impedir de ver que, com a sua bagagem


mais limitada e dentro dum ambiente mais estreito,
êsse pensamento, �entralizado na esfera de vida
do próprio indivíduo, consegue num grau de
independência, iRnorado em períodos mais in­
.

1 tensamente organizados. O camponês, o mari­


\, �
\.
nheiro, ou o operário de outros tempos, tinha na J
. {j
I .
·'

soma total dos seus conhecimentos o modêlo em


'

J,
••
.

que via o mundo e a sua vida. Sabia-se inapto para


. ,

julgar tudo o que eshvesse fora do seu alcance


.

I
.

(a não ser que fôsse um dêsses palradores profis­


sionais comuns a todos os tempos). Compreen­
dendo que o seu discernimento tinha falhas,
ªceitava a autoridade. Nestas limitações, que êle
l conhecia, é que estava a sua_ífa6edori� Era a
. própria limitação da sua capacidade de expressão
' que, apoiando-se nos pilares da Bfblia e dos
provérbios, lhe dava muitas vezes o estilo e a
· eloqüência (').
----- ·--

(•) Na Gue rra Boer, alguns observadores dos Países­


-Baixos surpreendidos · com a facilidade de ex­
ficaram
pressão com que todo o Boer se dirigia aos seus subordi­

nados.
.· ·
.
!

• •

.
ENFRAQUECIMENTO DA CAPACIDADE 59
:•
'
.

,!. A moderna organização da difusão do conhe-


-Cimento é simplesmente a mais destrutiva dos
l
'. benéficos efeitos dessas restrições intelectuais.
\

'

\..._\· ; Hoje, o habitante médio do hemisfério oci-


l

/.·í · dental sabe de tudo um pouco. Ao pequeno


.

,;1 almôço tem o jornal em cima da mesa e a tele-


;
\ ··

fonia ao alcance d� mão ; à noite tem o cinema,


as cartas, ou uma. reünião para completar o dia
passado no escritório ou na fábrica, onde nada
.
e essencial se aprendeu. Com ligeiras variantes,
êste quadro duma média cultural modesta é

..::\ válido para a classe inteira, desde o operário ou


\ do amanuense ao gerente ou ao director. Só o
1 desejo pessoal de cultura, seja e m que campo
�\

fôr e perseguido não importa como, pode erguer


�-. ; o homem moderno · acima dêste nível. Note-se
1, ··� que falamos aqui de cultura só no sentido mais
restrito de posse dum certo tesouro de beleza e
-.
.
· '

· de sabedoria. Não é impossível que a pessoa


média de cultura limitada se erga, apesar disso,
a um nível de vida mais elevado, pela sua activi­
dade e m outros campos, tais como o religioso
ou o social.
.\'-'1 Mas mesmo onde há um desejo genufno de
conhecimento e de beleza, a intrusão ruidosa da
moderna engrenagem cultural torna muito dificil
á êsse homem médio a fuga ao perigo de lhe
serem impostas as suas noções e valores. Um
conhecimento tão variado como superficial, e um
-

. horizonte intelectual demasiado extenso para uma )

vista desprovida de bagagem crítica, têm. de con-


..

I

•• • •• .I
.


' ..

• • •
.. • o
60
I

. .. . NAS SOMBRAS DO AMANH.I.


I
I I

•.(

,.
'

:.l
. ......, , '


'

.. •

•I �
. '

· �uzir inevitàvelmente a um enfraquecimento da


. 'l
\.
'

capacidade de julgar.
·

-��t t: .. J.".ep�stg --�ºr ça� o � . �sta !ç_«:.tta.S�-º- ll)de­ __

fe�� �� .v:a��res � noções não são apenas pecttlia�es


às coisas do intelecto. .. ..
Também na sua apreciação
.
\.
.

da beleza e dos sentimentos, o homem moderno


actua sob a forte pressão de uma . .. produção
. . - ..... � .. · ·--
.. ..
. ..., ..

maciç� de . quali�ade inferior. Um excessivo mos-


..
truário de objectos banais dá-lhe um modêlo
i falso e fingido para os seus gostos e sensibili­
-. �•
,' .dades. I
.

'
Relacionado com êste, outro facto inquietante

. •.

mas inevitável, se interpõe. E)n _formas . . de so.cie- I



,,
.

.. .. '

dade• mais antigas e mais restritas • • ...


era o hom·êm •. •
11


t:
...
_, - .... • ... 4 • ,

quem. Pl:"Oporcionava a si mesmo �s entr�!e�i- •.',


)
mentos. O povo cantava, dansava e divertia-se. • •!
.

. :1
·Na Civilização
.

de hoje, tudo isto desapareceu


•• •
� •• • • ....
em grande parte, para se assistir · às canções,
o 4

.
..
:f. j
··H
(
.

' dansas e divertimentos dos outros. Sem dúvida .•• 1;


' t .� I

que sempre houve actores e espectadores, mas o .1'.i


r
;. .

que é significativo, é que actualmente o ele­ �.


'

mento activo cede constantemente terreno ao -�


·�·

"
elemento passivo, Até mesmo no domfnio dos .

.�
·.

:,

,
desportos, essa importantíssima parte da mo·
derna cultura, há uma tendência crescente entre 1�
\
.( I

I as massas para terem o� o�tros. â. Jog�r.parã �­ • �f

i
I
Êsle afastamento da participação acti va nas I �l
• \'
.:)
··!I
..
i ocupações culturais veio a ser ainda mais com· ' 'tl)

I • pleto com o aparecimento do cinema e do rádio.


.
-�
'<
I

:
· ; A passagem do teatro para o cinema é a passa- •�I
.

I gem da peça para o reflexo da peça. A palavra e


• I

'0

ENFRAQút!CIMENTO DA CAPACIDADE 61

.

. o gesto passam de acção viva a simples repro-


\
l
dução. A voz transmitida átravés do éter nlo é
\. mais que um eco. .Até o espectáculo das lides

\;\· desportivas começa. a ser substituído por trans­


missões e reportagens do jornal. Tudo isto
encerra um elemento de debilidade e desvitali.
-

. za a:o cultural que é particularmente visfvel num


.outro aspecto importante da ci nematografla de
\
I hoje. A acção dramática em si é, pràticamente,
I
iôda expressa no exteriormente visível, enquanto
I
.a palavra falada é relegada para um plano secun·
'

I
I dário. A arte de ver passou a ser mera destreza
I
I

H na compreensão e apercepção rápida de imagens


)

visuais e m contínua mudança. A nova geração
adquiriu esta percepção cinemática em grau
espantoso. E contudo, esta tendência recente
do espfrito só pode significar atrofia de uma

\ �érie completa de funções intelectuais. Para se 1


� compreender isto, basta pensar na diferença
. �' .
.entre assistir a uma comédia de Moliere e a um

filme. Sem mesmo reclamar a superioridade da ·
compreensão intelectual sôbre a visual, somos
· '\ ·forçados a admitir que o cine.ma permite que
\ \

1 · ·· u m certo número de meios de percepção esté-


\. __ ._
'
iicq-intelectuais fiquem sem uso, o que só pode
1evar ao depauperamento da capacidade de julgar .
�) .

./ Além disso, o mecanismo das diversões colec­


.

· tivas, é hostil à concentração. A reprodução


mecânica do espectáculo e do som exclui vir­
-tualmente o elemento de rendição e absorção
.da alma; não há êxtase, não há calma, não há.

·
ii;
• I . •

"'
. . .

.,.·., �.� NAS SOMBRAS DO AMANHÃ · · ·


:
'\:
. ".

62
.....

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I
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comunhão com o eu íntimo� E contudo êsse


I

' ;
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.
. .

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t I t
êxtase e essa comunhão com a ·a lma· é que s�o
.

j \ :

' .
'

as verdadeiras coisas sem as quais rilo pode


haver verdadeira cultura.
A susceptibilidade do homem médio à
sugestão pictórica facilita ao anúncio a explo­
ração do se'U diminuto poder de julgar. Refe­
rimo-nos aqui, tanto ao anúncio comercial como
à propaganda política. Com uma imagem que
prenda a atenção, o anúncio sugere o pensa­
mento de satisfazer um desejo ; o desenho e o
fraseado, cheios de emoção,. servem para des­
pertar um estado que disponha o espírito a uma
I
.
. decisão ao primeiro relance. Não é fácil dizer
1
'

como o anúncio influi no cérebro do indivíduo e


como atinge o seu objectivo. A decisão de comprar
.

·J
l

surgirá directamente da contemplação ou da lei-


1 tura do anúncio? Qu fixará êste na consciência
l . ;·
� da multidão uma simples lembrança à qual ela
l ·
:�
j reage maquinalmente ? I-laverá motivo para se
·l. falar de um determinado efeito intoxicante ?·
I
A acção da propaganda política é ainda mais
.
.,

}

difícil de analizar. liaverá alguém que, a cami­


d

.

j I
nho das urnas, tenha sido movido a favor de
.,
certo candidato, só porque viu várias espadas,
li
'I
I
'

machadinhas , martelos, rodas dentadas, punhos {.


.I .
'
• o

'

\� cerrados, o sol nascente, mãos �angrentas e


\

I
I 1j
�� rostos carrancudos, que as facções politicas exi- ·
I
I
:

• •

i

bem aos seus olhos? Não tentaremos responder


.'

I ,
.

I à interrogação. De qualquer modo, é certo que �


.


l
. o reclamo, em tôdas as suas formas, especula �
.

I j
I
.I
o '

•I'
l

-
• • ' ,1 • • t • f ' IJ ,,���L I\(' I : , ) • •

ENfRAQUECIMENTO DA CAPACIDADE
• I,

63
• •

.

.
.
. ,•
, .

).,
• •

i·••r. F�: com um discernimento �nfraquecido, e


.... . ,

a
.

com
• ·
:\:· ( � su� desmedida expansão contribui para . êste -
�: · enfraquecime!Jto •

O nosso tempo vê-se assim enfrentado por


..

duas realidades desanimadoras : as muito apre­


g_����_!_��l��� ç_ey�� �- do en�ino õbrigat4r�� ·.� · a
• .

da publicidade moderna, em v�z. de. �levarem o


-
nfve i d� cuftura, parece que em últimà 'iliiãlise
. · - -�

provocam . certos sintomas de desvitalização e t'


'
.

dégeneração cultural. As massas são aliméntadas


cóm uma quantidade de conhecimentos de tôda
a espécie e nem sequer sonhada até agora, mas ·
há qualquer coisa que não está bem na sua assi­
milação. Conhecimentos que não são digeridos
entravam o discernimento e barram o caminho
ao saber.
Não terá a sociedade qualquer maneira d e
fugir a êste processo de apoucamento intelectual
e espiritual ? Continuará êle a avançar sempre ?
Ou virá a atingir um ponto de infiltração total
em que êle próprio se esgotará? São preguntas
que terão de aguardar resposta até que formu­
lemos as conclusões dêste estudo e que, mesmo
assim, não alcançarão uma resposta definitiva.
Por agora, · há outros indícios de degeneração
cultural que exigem o primeiro lugar na nossa
atenção .

.

. .

·'

. .

.
. ...

-- -
.
.

.. .


I


.

' •

• •

VIII
.

D.eclínio do esp írito crítico •

Jndependentemente do enfraquecimento geral


da capacidade de julgar que considerámos no
.capítulo anterior, há razão para se falar também
-de uma _debilitação do espírito crítico, de uma
decadência das capacidades críticas, de um res-
·1 ,peito decrescente pela verdade� mas agora, não
.�orno fenómeno revelado na massa dos consu­
midores do conhecimento, mas sim como fra­
-easso orgamco da parte daqueles que o dão à
luz do dia. Relacionado com êste sintoma de
-decadência há ainda um outro a que poderemos
-chamar (p erversão da função aa ciência ou apli-
I
.r 2 -cação errónea da ciência como meio J Vejamos
I ·êste grupo de fenómenos.
\. I No momento em que a ciência começou a
� ·revelar potencialidades nem sequer sonhadas
-outrora, para domínio da natureza, dando ao •

homem um poder muitíssimo mais vasto, graças ·


.à nova profundeza de observação, decaiu a sua
5
.
I
NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
I

I I • ,; '"

.. � ... '
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� •. ., \ \

) capacidade para servir de pedra de toque do


·.
• • •

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.� ' .. .
.
. .
- .. .,
I

1 conhecimento puro e de regra directriz para a


"

,.

I vida. A e a ro orçlo entre as suas vArias


'i

-

.I
I I (
un

l-

Há muito que estas funções eram em número

1
de três : aguisição e extensão dos conhecimentos
'

r
. Jeducação da sociedade com vista a formas de
i .
'

'

civilização mais wu:as e m.ais elevadas, e triação­


:
• •

I:
.

{ _de meios para adaptar e controlar as fOrças­


.

'

,I
'

1 naturais. Durante o desenvolvimento da moderna


•I

.

'I
I·I
,,
·I ciência, nos séculos xvu e xvm, as duas primeiras
funções marcharam, dum modo geral, a par uma
J
!
p da outra, enquanto a terceira se ficou muito para

li t1
I

I
·.

trás. O avanço do conhecimento e o recuo da


I.
I'
ignorância e da superstição entusiasmaram tôda
liI
a gente. Não havia uma única abria que pusesse
ii
em dúvida o alto valor educativo e directivo da
t'
ii
I'
ciência· nesse tempo. Assim ·se construiu sôbre
r
j
ela um edifício, cujo pêso os seus alicerces nunca
'

li

.I
poderiam suportar. À medida que as descobertas
'

.•
'I
l ��
.

• se sucediam, o mundo e os seus processos come­


rJ

I
r;

. . .


çavam a ser compreendidos melhor. Esta cres­
,
t

cente lucidez do espírito investigador implicava


. ..

I'
• •

I

um certo enriquecimento ético. Entretanto, aquilo


I


a que chamamos a terceira função da ciência, a
,I
I
I

i
criação de meios técnicos, fazia progressos rela­
,I
.: tivamerite pequenos. A electricidade era uma
•I


t curiosidade para o público culto. Até aos começos
·

·"Il do século x1x as velhas formas de tracção e trans-


I 1 formação de fôrça permaneceram virtualmente


1 sem rivaL Para o século xvm, a relaça:o entre as

·
'

\
I . .

[
I
'

- "__....·-� - ·-

•· I
.

.� . · · .I .. '. I, �. •I ' .
• . , ...
'
. . '
.
.
. ' . .

.
;
DECLINIO DO ESPIRITO ·c RITICO

. .

.�-1rês funções da ciência, educação, extenslo dos


� conhecimentos e criação de meios téenicps,
·

.... poder-se-ia expressar pela sucessão 8:4:1. ·

� Se se quisesse dar no nosso tempo expresslo


·�-� � numérica à sua relaçlo, poderia ·ser, por exem­
4� plo, 2:16:16. A proporção entre as três funções
� tornou.se inteiramente diferente. Talvez que êste
� g� cômputo mesquinho do valor educativo da ciên­
� cia, em relação aos seus valores de conhecimento
e aplicação, vá promover uma tempestade de
�� protestos. E contudo, haverá alguém que sus- .
._,;;)"
tente q ue as maravilhosas descobertas da ciência
1
_moderna•. apenas acessíveis a meia. dúzia de ini- i
cr- �$
t � ciados como não podia deixar de ser, contribuem
ainda materialmente para o nível geral da cul- �
i
tura? Até mesmo o melhor ensino nas Univer- �
sidades e em instituições de educ�ção secundária � 1·

J
nao poderá negar o facto de qu�, enquanto a (.
aquisição de conhecimentos e sua aplicação r
técnica continuam a progredir em ritmo espan- �
toso, o valor educativo da ciência na o é hoje

maior do que o era há um século.


O ser humano dos nossos dias poucas vezes,
possivelmente nunca, procura na ciência (I) o �n
sentido da vida. E a culpa não· é da ciência. Há
uma �orte tendência para se alhearem dela. As
t
gentes já nao crêem, e com inteira razio, na sua

(1) NOTA-A palavra •ciência• é usada em tôda a

.obra no seu sentido mais lato de perseguição do conh�d­


mento e m geral- Alemão Wlssenschafl.
'

. ....
.. -
·
68 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
i.
Il .
I
.

capa�idade como guia, porque houve um tempo
em que ela exigia para si um quinhão demasiado
'I

� grande no govêrno do mundo. Mas há qualquer


i coisa mais, além desta reacção natural; há uma
:


O
-

atrofia da consciência intelectual.


impulso para
,.
)

realizar um máximo de objectividade e exactidão


ao pensar no racionalmente compreensfvel e para
aplicar o 11test" da crítica a essa reflexão, está a
l' esmorecer. Uma vasta e densa neblina parece
1
••
ter-se espalhado sôbre milhares de espíritos .
.••

;.
� Todos os marcos entre as funções ·lógicas, esté­
ticas e afectivas são propositadamente ignorados.
·.

·I


� 1
Permite-se à sentimentalidade desempenhar a sua
••
.

parte na formação do juízo, sem atender ao


) objecto a julgar e em directa oposição com as


exigências do espírito crítico. A intuição é cha­
1

mada a justificar uma escolha que na realidade




'
;'

se baseia na predisposição emocional. "I nterêsse"


í
e ,desejo, são confundidos com consciência da
!
verdade. E para justificar tudo isto, aquilo que
em verdade é abandono do próprio princípio
lógico alardeia-se como revolta necessária contra

I
a suprema regência da razão.
•.
Desde há muito que todos nós deixámos de
'\ vi.ver sob a férula dum racionalismo tirânica-
mente consistente. SabQmos que nem tudo pode
( ser avaliado pela raz;lo. O próprio progresso do
i
·
pensamento nos fêz compreender a sua insufi- •

l
,

ciência. Uma intu'iç!.Q_Ulª-is rica e mais profunda



do g_�e ó -�!!.Pl�sm
�!��-!�.�io ���'-·Ç._onced e�!l}
maior sentido ao nosso conhecimento. Mas
··-------- -
. ... . . - . . .. .
-

'

' .. -.
.
.. . . .
.
.

'
. "
. .. �
-

.
'
.

. �
,
'

DECLINIO DO l:SPirirto CRiTICO 6t)

enquanto o sage encontra, graças a uma capaci­


dade mais vasta e mais livre para ajuizar, um
sentido mais profundo nas coisas e na vida, o
néscio julga-se autorizado a dizer tôda a casta de '
disparates. Conseqüência verdadeiramente trágica: ••

'

n o processo de aperceber as limitações da razão,


o espírito moderno tornou-se susceptível a absur-
-

dos de que durante muito tempo estivera imune.


O desdém pelo veto da crítica pode ilustrar-se
melhor com algumas palavras sôbre teor'ias
raciais. A antropologia é um ramo importante
da história natural. E uma ciência. hiol6gica com

fortes elementos históricos, como a geologia e a


�paleontologia. Por uma investigação metódica e
rigorosa baseada nos princípios da hereditarie­
dade, ·essa ciência construiu um sistema de dife­
renciação de raças cuja utilidade tem tanto valor
r

como a de outras construções biológicas, consi­


derando que o critério das medidas cranianas em
que� assentam as suas conclusões, deixa uma
margem relativamente extensa à dúvida. As carac­
terísticas físicas pelas quais a antropologia, com
graus de positividade variáveis, distingue as raças
parecem estar duma maneira geral correlacio­
nadas com certas feições espirituais e intelectuais.
O chinês difere do inglês não só no corpo, mas

também no espfrito. fazer esta afirmação, porém,
significa que na consideração do fenómeno ,raça,,

se inclui inconscientemente o de ucultura". E que


o chinês c o inglês são produtos de uraçan mais
,cultura". Por outras · palavras, a determinação •
.


iLI 70 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
nI
'17��3. -
·.,

...
�-
'• ' . .
"' � . 1
.p
.
•,.

# •
, I' ,

.
de qualidades intelectuais e espirituais de .raça
! I
'
.
� " •

só é possível depois de se juntar ao objecto em


' .

i!a,
. '

, .
:
investigação (raça) O ele mento r4CUltUra", antro­
�I pologicamente imensurável. Pretender uma deter­
r
minação exclusivamente biológica de qualidades
,

t
!I


espirituais de raça é falácia evidente. E incontes-
·'

tável que pelo menos algumas das feições espiri­


> i

I

1• I
L
.
tuais duma raça devem o seu desenvolvimento
.I
'
'
,l

'I

( às condições e a m biente em que ela se desen­
I
(
'
I
l
volveu. Uma separação científica dos dois ele­
r •
..


'

I
. mentos·, o extrínseco e o que se supõe co ngénito ,

não é possível. Nem há ciência capaz de demons­


trar que existem correlações específicas entre as
particularidades ffsicas e intelectuais de uma raça
(s u po ndo que era possível demonstrar que tais
características intelectuais eram comuns a uma
raça inteira). En q u a nto a antropologia sofrer
destas incapacid à des a crença de que o carácter
,

é determinado pela raça tem de continuar sem


o apoio científico. Mesmo quando rodeada das
necessárias restrições, é ainda um conhecimento

incerto e impreciso. Se se aceitar a reserva de


que o conceito de raça não pode ser discutido
sem que lhe juntemos o de cultura, abandona-se

.'

assim, virtualmente, a pretensão a um princípio ·

de raça cientificamente fo rmulado e nesse caso


,

faremos bem em nito tirarmos dêle quaisquer


conclusões. \
Por exemplo, se a pista do génio intelectual
nos levasse até à raça então a recíproca poderia
,

apresentar-se como verdadeira: à semelhança de


DECLINIO DO ESPÍRITO CRiTICO 7l
. .

:.-:.:·raça deveria seguir-se, como con�eqfiência, a (


semelhança de génio. Os judeus e os alemles
têm um génio extraordinário para a filosofia e
para a música. Conclusão: tem de haver uma
f orte· afinidade racial entre alemães e judeus.
A conclusão é absurda, mas não é mais absurda
do que essas que actualmente gozam de popula­
ridade entre numerosíssimas pessoas cultas.
A voga das teorias raciais na sua aplicação
• política e cultural não é devida a qualquer
intrusão especial da ciência antropológica. E sim,

um exemplo da defesa duma doutrina popular



<JUe durante muito tempo e até épocas recentes,


nunca conseguira ser bem sucedida nas provas

necessárias para admissão ao domfnio do conhe­


cimento criticamente verificado. Rejeitada logo
de infcio pela ciência genuina, como insusten­
tável, a doutrina da superioridade rácica conti­
nuou, durante meio século, a sua existência
numa atmosfera de romantismo doentio e de
erudição simulada, até que as circunstâncias polí­
ticas a colocaram subitamente num pedestal de
onde ela agora se atreve a ditar pretensas ver­


.
dades científicas. Esta doutrina da sup�.Q..ridaq�,
baseada .,_____suposta
numa pureza racial, exerceu
-----·--- -- ___.. -

--.. ___ - . -
sempre uma forte - �U:!é ççãQ . "�- -- ···
-· ro�!l�!hd���
,_ -- -
__
. . _
___
__

p�pular, ..llOIQUÚ�_$i. e_1Jºª-LI!l_ e.!l�� -Q�.t ata�_p_qr:qtt�


. .

apela para �m espíritQ_!.Qmântiçq_JiY�. do_ft;�9


��-gítica �L!.P�t)!S P.!�ocup�q_C?. -��m. a_ gJorf�J�.
pessoal. Foram os fumos de um romantismo
..

cediço que nublaram os espíritos de homens



.,1 : .
.. •

'"

.
.'

72 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ



.. . ·
• •
. •

I•
..

• ·
.
••

. .
r.
.
, ··

�·
,.

como H . S. Chamberlain, Schemann e Woltmann ..


• •
I �:'
I

Quanto· ao sucesso das idéias expostas por Ma­


dison Orant e Lothrop Stoddard, que ferrete�ram
l o trabalhador com a marca duma raça inferior,.
foi dum �rt'ma político muito desagradável.

'

O argumento de raça em conflitos culturais­


. tI é sempre panegfrico pessoal. Já houve algum dia
I
um teorista da raça que fizesse a alarmante e
I
I
,
vergonhosa descoberta de que a raça a que êle
� se orgulha de pertencer é inferior? O motivo é
\'

, i
I


sempre ·sublimação de si e dos seus a expensas
I dos outros. A tese racial é sempre hostil, sempre

{ anti, mau sinal para uma doutrina que pretende


\
l

ser científica. A atitude ràcicamente inspirada é


I

anti-asiática, anti-africana, anti-proletária, anti-


-semítica, etc.
I

I. I

!

E preciso ver bem que nãn estatnos a negar
a existência de problemas sérios e de conflitos
'
I •

I




. graves de natureza social, económica ou política
originados pela contigüidade de duas raças den­

l

t
tro de um mesmo Estado ou região. Nem

' •'
.

tI negamos tão pouco que a aversão de certa raça


l,
'
por outra não possa ser de natureza. instintiva.
Todavia, em ambos os casos a discriminação
':i'l
'i • •

o!
t' .
' IJ
específica é irracional e não está no âmbito da
.

�·

ciência elevá-la à categoria de princípio. A exis­


• •

'··..
• .;I


•' I
....• •.
tência destas aversões de raça torna ainda mais ..
· �,·
'!
.

evidente a natureza pseudo-cientffica das teorias


rácicas aplicadas.
I
.
.

Se uma aversão racial instintiva é na verdade -
� �� �
. - - --
bi��g � amente _g�!_c; r � i �lª�ª-· (ç�!1}2 pa�ece s�!- �..
��

.I '



I
'

'
,

...
_.._,
--·-------·· ... . .. . .
'""-' _____________ ______


.

ESPIRJTO


DECLf'NJO DO tHiriCO 73 1

caso dagueles a quem p_çb_�jro ç!Q negro. é deç_i



..

didamente desagradAv�l)J-ª--'��-�º�--çu _ J!a e civiJi ..


z�da deveria considerar co mo obrigação sua o
_
inteirar-se da qualidade animal desta reacçãoJ e
-�--.---...!- -. � .:... . ;. .;
dominá-la tan�o quan�_o_..EQ_s_síveJ L.em _yez de-�
.. ._ -- --·- ···-- --

l
alentâr e de sê orgulhar dela. Uma sociedade 1
ergui da sôbre alicerces cr istãõs nunca teve lugar
·

para uma política arquitectada sôbre "uma base


zoológica", como muito apropriadamente .lhe
chamou o Osservatore Romano. Numa socic..
I
dade que deixa campo livre à hosti lidade racial, !
chegando mesmo a incitá-la , �a condição cuJ.. 11 �
tura é domfnio da natureza•· mantém-se irrea- I
lizada. '-'> �6. �(,
r
' .

•.

Na condenação das teorias rácicas aplic.adas


à política é necessário fazer duas restrições�

'
Primeiro , é preciso não haver confusão com uma . J
política de eugenia prática bem compreendida..
O que esta pode fazer a bem da humanidade nao J
,

será aqui examinado. Segundo, a auto-exaltação i


dum povo relativamente a outro não p recisa
necessàriamente de ser firmada em pretensões
rácicas. O sentimento de superioridade nos povos
latinos baseou-se sempre mais em quali dades
'I
culturais que rácicas. O francês La race nunca
�.

...,
.
.,

adquiriu aquêle timbre puramente antropológico..


. �...
•••

!. ,.
,
.
,
Orgulho e glória duma nobreza cultural própria

Yl�· ..
.. .

pode ser por vezes um pouco mais racional e


mesmo um tanto mais legítimo do que o orgulho
·�1i ' rácico; apesar de tudo, são formas da vaidade · ·
I, i ntelectual.
'





'


.
I

• '



• •

• •
74 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

II .

Vista, seja de que ângulo fôr, a aplicação das



teorias raciais é sempre uma prova evidetlte das
.
aviltadas exigências feitas pela opinia:o pública
I
.

I à pureza do juízo crítico . Os travões da crftica


I

estão a ficar lassas.
'I
ivlas não é só neste aspecto que êles estão a
,

falhar. E inegável que, com o excessivo desejo


'i
1 de síntese em ciências sociais, em si uma reacção

I
benéfica e salutar contra o excesso de análise
I dum período anterior, o 11palpite, veio a desem_- )
l� penhar um papel crescente na produça:o cientffica.
Há uma série interminável de sínteses arrojadas,
I
(

f
•'
muitas vezes construfdas com grande perícia e • •

erudição, e nas quais a uoriginalidade" do autor


conquista maiores triunfos do que aquilo que
• parece ser compatível com a ciência de espfrito

sóbrio. O filósofo social arroga-se por vezes o

\ papel do bel esprit dos tempos idos, mas freqüen-


1

.

temente não se sabe bem se ao proceder assim
.
..
'

·.
!
l êle se toma a sério, embora não haja dúvidas
(
.•
que pretende ser tomado a sério pelos seus Iei-
tor�s. O resultado é alg? que fica entre a filo- ..
F 1' .
sofia cultural e a fantasJa cultural. Uma forte � l ·,.1;
.

tendência para as formas estéticas de expressão ,.. / ·


'


·
I
'

.; aumenta por vezes mais ainda o carácter confuso \


I do produto.

� As ciências naturais não são flageladas com
\ aflições dêste tipo; têm na fórmula matemática ,

� a prova imediata da veracidade, não da validade, \


i dos seus produtos. Nos seus domfnios não há 'l ·.

lugar para o bel esprit, e o charlatão é imediata-


\ ,:
! I
l
' I


\ I
..

·
.. . r • •t
t

'
�.••..:t·
- ·"· -
. �
· ·. -�� • .·-!. •
··· • ,1.
·�, . , .'
. •• • • ,.. ' • '•'
• j.


'
.
J

.
DECLINtO DO ESPIRITO CRITICO
',·\ .
I
75

V ·mente expulso. Para as humanidades é um pri­


1 vilégio e um perigo o terem de recorrer a noções
i
I fora da esfera da razão pura, no domfnio da
o

1
l percepção estética ·. para exprimirem as suas
l
idéias.
'\J Em tôda a série de ciências não exactas o
\
\ juízo tornou-se menos definido, em contraste
com as ciências físicas, sempre aptas a exigirem
uma maior precisão de afirmações. O inteiramente (
racional já não é o invencível instrumento que .f
costumava ser. O juízo é menos temperado que i
antes, pela fórmula e pela tradição. Como se
• •
tornaram populares e indispensáveis palavras
como visão ,. "concepção, ou "introspecção ,
11

para se indicar o processo de formar o conhe- �


cimento I Tudo isto trouxe ao jufzo um elevado
grau. de vacuidade. Esta vacuidade pode ser bené­
fica. Acompanha-a, porém, o perigo da hesita-
�ão in telectual entre a convicção firme e o fácil_ t

brincar com idéias. Dada a qualidade antinómica,


já comentada, do pensamento em geral, a decisão: \
o
.. 11 Isto é o que eu realmente penso" tornou-se \
·)
I • '

I '
muitíssimo mais difícil ao espfrito rigorosamente I

)
auto-crítico. Para o espírito superficial ou pre­ } '

concebido a tarefa foi mais facilitada ainda.


A desvalorização dos padrões do jufzo cri- :
I
tico foi, julgo eu, provocada e m boa parte pela 1;
tendê pensamento a que poderemos cha- 1
·

A psiquiatria freudiana descobriu . 1


l
I
mar reudia
I

o
'
dados significativos, cuja interpretação conduziu J
as suas pesquisas do campo da psicologia para I
I
(
\

I
I o

I
o

:
r
I,
..
!
f •

..



:

- . 76 NAS SO!\-tBRAS DO AMANHÃ

o da s ociolog i a e cultura. Daqui o fenómeno


que não é invulgar: o espírito treinado na obser-
vaça:o exacta e na a náli s e, quando enfrentado
,
pela tarefa do sociológico, isto é, da interpre­
tação inexacta, revela-se totalmente falho de nor­
mas por onde julgar e avaliar a evidência
científica. E assim, neste campo es tranh o, é levado
a saltar de qualquer "P-al1ille " para conclusõe�
,de um alcance extremo que se reduziriam aQ.
nada, no momen to em gue fôssern sujeitas à

prova .do mêtodo l)istó_ric_o-filo.s�ó.fic.o..s Se, depois
,

o sistema assim construfdo é, além disso, pôsto a


circular em meios mais vastos como uma verdade


reconhecida, e os seus têrmos técnicos transmi­ o

tidos como instrumentos prontos do pensamento,


t temos a conseqüência: muita gente de uma
'
o
.

1, média crítica ba·rata vê chegar a tão desejada


oportunidade de hrincar com a ciência a seu


talante. E pensar só nas tristes demonstrações \
,
;

dos autores de dissertações populares que expli­


o

cam tudo quanto diz res eH homem e ao seu


mundo em têrmos de sico-análise construindo
as suas audaciosas teo rias e conclusões sôbre
, símbolos,, "complexos" e "fases da vida
psíquica infa ntil !
"

' .

..
..


I' •
.

. .

.
!'' ..

IX \

A ciência erroneamente aplicada

As teorias racistas deram-nos um exemplo da


pseudo-ciência usurpando o lugar da verdadeira


ciência para servir a Pôrça. N a verdadeira ciência,
n�quela que se dirige à descoberta e construção
de meios do poder, a Pôrça encontra um instru- i1
t

mento ainda mais forte para a prossecução dos i'


seus fins. , Saber é poder,, outrora o pregão i
triunfante da era Vitoriana , começou agora a ter '
um timbre sinistro aos nossos ouvidos. !.

-A ciência, sem a· direcção dum princípio abs- ;

f . 1 tracto superior, entrega livrt>mente os seus segre-


I

I dos a uma tecnologia amplamente desenvolvida e I
comercialmente i nspirada, e por sua vez esta , !
:�.
.
.

• ainda menos refreada por um princípio supremo , ;


• •
que salve a cultura, cria com os meios da ciência ;
todos os instrumentos do poder exigidos pela !

organização da fôrça. A tecnologia produz tudo


o que a sociedade requere para o ,aperf�içoa:.

inento dos meios de comunicação e para a ;
.

,,
.- -
�.---�- . -----
� -----
-
· ....,,_

. .

NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


78
.

.,,
.

.. .. .
I '• ' • '\ '

· " (.
''
. .
�•
L ;
�.

• _,.f

'
·�..
i. �·.

•r.

t: � •
. .

satisfação das necessidades . As suas ·possibilida,.


..�


' . . '

• I
. .
. • • �

des estão ainda longe.do esgotamento. Cada nova


descoberta cientifica abre novas perspectivas,

mas [a sociedade, com a sua estrutura actual, não
{é ainda capaz de assimilar tôdas as inovações e
· melhoramentos que a tecnologia tem para lhe

oferecer no capítulo da acomodação de vida, da


nutrição, dos meios de transporte e da difusão
das idéias ]


A sociedade exige também da ciência apli­


.

I
.
.

I

I cada meios de destruição. Destruição da vida


I
I

nem sempre é guerra ou crime. Combater as


'


pragas com que o mundo vegetal e animal
I

I
.

ameaça a raça humana tem de ser considerado


I
'

admissivel e mesmo obrigatório por tôdas as



..
.
'

)
I comunidades que não subscrevam, como acon- j . '.

tece com algumas religiões da fndia, a opinião' -/JA''IJ


.

.
(
t
extrema de uma passividade absoluta. A manu­
I.
tenção da ordem c da lei pode exigir a fôrça,
mesmo até à destruição da vida humana.
' •

Mais um passo em frente e chegamos ao


cmprêg-o da ciê n c ia na sufocação do germe da
vida. Impedir a concepção por meios artificiais
1
.pode trazer a felicidade e o bem-estar à socie­
dade. A expressão domínio da natureza", que
11

consideramos condição essencial de cultura, não ·.:.

tem aqui qualquer aplicação. É que já se não


trata de domínio da natureza, mas sim de frus­
tração da natureza1 de destruição potencial. O
limite em que o uso da ciência com êste fim •

passa a ser abuso, depende da atitude ética


I


i!
1
'

.
'
.

Clb�CIA ERRONEAMENTE APLICADA


.

A 7fJ
I
.

perante o " contrôle da natalidade que. por sua


.

vez. é em grande parte governada pelo ponto de


.
vista religioso

Completamente àparte da delineaçlo ética


entre uso e mau uso neste aspecto, há a questa:o ·

das conseqüências sociais do "contrôle, prolon­


gado da natalidade. Para muitos é um augúrio
da extinção progressiva da raça com o inevitável
concomitante da destruição cultural. Segundo
cálculos baseados n1 demografia, uma continua­
ção do actual declínio da percentagem de nasci­
mentos na maior parte dos países do ocidente·
europeu, bastaria para garantir o desapareci-­
mento das populações nativas em poucas gera-
. ções. Se isto é verdade, o problema da crise
da civilização perde muito da sua urgência, pois

nesse caso o resultado negativo seria certo desde \


f

o infcio. Para quê tentar salvaguardar uma civi-

lização, se os futuros herdeiros vêm a desa- ,


parecer ?

Seja como fôr, o facto da ciência ter tor- l


nado tecnicamente possfvel e higienicamente ino-
t
.

·
.
I

tensivo o ,contrôle, da natalidade, não lhe ,·


I


pode dar direito incondicional à pretensão de t •

ter cumprido a sua função de fomentar o bem


• •

�:
• !
..
comum e de elevar neste aspecto o nfvel de
cultura.

A questão do uso ou mau uso da ci��cia toma
muito maior acuidade quando se çbserva a pro­
.

E
dução de meios para l destruição·= directa e em
. •'

'larga escala da vida e rpropriedade humanas,; !


·' .
'


80 NAS SOMilRAS DO AMANHo�
r
o
'I
••

O autor destas páginas nem é um pacifista radi­


I
I

!
• cal, nem u m crente na _não-resistência absoluta .
A sua condenação dos que matam não só se
.

..

detém p�rante a legítima defesa do indivíduo e


salvaguarda da lei e da ordem, mas é ainda de
o
• parecer que o cidadão deve servir o seu país,
l
.
j

matar e morrer, quando o dever militar assim


'
o exige. Todavia, em sua opinião, é possfvel


o
o
o
.

conceber determinadas circunstâncias em que a ·


.

extinção deliberada de todo o género humano


• seria preferfvel à conservação de alguns por
I.
'
o culpa de todos.

A guerra mundial por que passamos ampliou


o

I
I I

\ as nossas concepções do politicamente admissfvel


até ao ponto de rotura. Compreendemos e tole­
lo

i
o

1 ramos resignados que, dado o facto da guerra,


a perfeição da tecnologia científica dificilmente
\ poderia permitir que os novos meios de des­
truição de natureza química e balística, no ar e


,
.


sob as águas, ficassem sem aplicação.· É com um
sentimento de impotente revolta que hoje assis­
I

l1

I
timos à maneira como a tecnologia científica
I

continua em todo o mundo a manufacturar e a


I

aperfeiçoar estas armas. Mas há um ponto em


I

I que a nossa complacência pessoal em aceitar


.


.

tudo isto tem de acabar: é a guerra bacteriológica.


Parece estar fora de tôda a dúvida razoável que
as possibilidades de conduzir a guerra pela disse­
I

minação de germes morbíficos, atitude que


alguns defendem abertamente, estão a ser seria­
mente estudadas e estimuladas em mais que um

r
-
- .
)
.
.
,. ,
-
. ... ·-I •t •• l .
• oI .. .. �
'. .o \..
'
; "
. .
.• . ....
•.. .
A CI�NCIA ERRONEAMENTE APLICADA 81

pafs (1). Mas, poder.se-á p�eguntar, que diferença


há entre operar com explosivos, gases ou bacté-


rias? Não é verdade que já os antigos guerreiros
; envenenavam as nascentes? A diferença é , com
efeito, de ordem puramente sentimental. Mas se
havemos de chegar a ponto dos homens, auxi­
liados pela ciência, se degladiarem com aquilo
que as primitivas civilizações, da mais tôsca à mais
requintada, reverenciaram como sendo obra de
Deus, do Dest.i no, do Demónio ou da Natureza,
então será tal a blasfêmia contrà o Principio .
dêste mundo, que mais vale a uma humanidade
culpada perecer no meio da sua pró-pria iniqüi­
dade. ;

Ainda mesmo que a nossa civilização venha


a recuperar a sua· saúde moral e material, só
.
facto da guerra bacteriológica ter sido conside
.

)

I
.
rado a sério, basta para imprimir um eterno e
terrível ferrete numa geração indigna.
l,
-

..

•.

'

f
I

(1) Cf. a contribuição de P. A. O orer, Bacterial War­


'fare, para a colecção de ensaios, Tlze Frustratlon of Sctence.
6
. . .
..
.
.
'
.
' ' .

. . ' .. .
I •

I


J.•.

:1t

• •

.
.
.
..

..

X •

O rep6dio do princípio intelectual


1
.

Declínio do espírito crítico, obscurecimento


da capacidade de julgar, perversão da função da �
ciência, tudo isto indica uma grave desordem �
cultural. Contudo, supor que pelo facto de se �
localizarem êstes sintomas se está a atac�r o mal �
pela raiz é cometer um êrro grave. E que já i!
·
estamos a ouvir o côro crescente de objecções �
dos que a si mesmos se intitulam campeões de I.
uma nova cultura : "Mas nós não queremos uma �
ciência provada e experimentada que nos venha �
reger e decidir dos nossos actos ; o nosso �
I
I
objectivo não é pensar e conhecer, mas sim vivert
� •
e agtr n.
t

I 1
\ Aqui temos o fulcro da actual crise da civili
zação : o conflito entre o conhecer e o ser, entre:
a jnteligênci� e a existência. lv1as isto nad� tem d�� -

novo. A insuficiência essencial dos nossos conbe-'


cimentos já foi compreendida nos alvores da filo-' •

sofia A realidade em que e gela q.ual vivemo� 1


• .


I

:I
I I
a• NAS SOMORAS DO AMANHÃ
I
1

. ,I. .
.

Qermanece na sua essência incognoscível, inaces­


.

i!
'

t

sível aos processos do espírito e absolutamente_


![
.� -�ivorciada do pensamento_. Na primeira metade
] do século XIX, esta verdade antiga, já conhecida


I

f de um Nicolau de Cusa, é novamente tomada


'

iÍ por Kierkegaard, ·Cuja filosofia tem o seu centro


'

I,

lo1:
ii
í na antítese do u existir " e do pensar" e dela se
11

! aproveitou para assentar a sua fé em alicerces


.1

lJ
1
"t
·I mais firmes ainda. Só muito mais tarde é que
outros pensadores forçaram êste pensamento a
..

:I


· .

••

seguir caminhos alheios a Deus para o deixarem


.

1:
.' •

,I

; cair no nihilismo e no .desespêro, ou na_adoraca:o_


,

' ;.
' ,
.


'I
fia vida terrena.. <&ie.tzsch� sinceramente conven-
'

l.
•'

.!

(
1 cido do trágico exílio do homem dos domínios

'

i da verdade, e dando à ânsia de vida a interpre-


1 .
.

! tação de ânsia de poder, repudiou o princípio


·l intelectual com todo o vigor poético do seu génio.


.
'
j
• .

; O ra matismo privou o conceito verdade, do


'!
11

'.
••

.

seu direito validade absoluta, submetendo-o às


)

'
.\ .

I �
l
·

variações do tempo. Para os pragmatistas, a ver-


''
! =,
'

I •

·! dade é aquilo que tem validade essencial para



.

I
'

\
t. aquêles que a professam. Uma coisa será verda-
deira quando e na medida em que fôr válida para
I
.

I
I

. um determinado tempo. Um espfrito inculto pode­




i. ria fàcilmente concluir: uma coisa tem valor, �


r

/ l' •
I
': logo é verdadeira. Um conceito de verdade redu-

.I


'
( ;- ; zido apenas ao valor relativo arrastaria inevità-

l
velmente na sua esteira uma espécie de igualita-
· ,

tarismo ideológico .. uma aboli tôdas as


- -� diferen as de categoria}eCvalor)de idéias. Soció­
! ! logos como Max Weber, Max Scheler, Kârl Man-
t
'i·
....�
'
.

')i
I'


. •


O REPÚDIO DO PRINCfPIO INTEl .ECTUAL 85
.
.
,

nheim e Oswald Spengler introduziram itltima:­


mente a expressão Seinsveróundenkeit des Den­
kens que pode ser. muito imperfeitamente. vertida
por '' subordinaçlo do pensamento ao ambiente
'
e à vida,. O próprio conceito aproxima-os do
materialismo histórico, ex professo anti-intelec­

tual. Assim se fundiram as tendências de tOda


.. .

uma época que, para evitar o vago do têrmo


"anti-intelectual, ousamos chamar ntr-no trc ,
nu-ma corrente poderosa que em breve havia e
ameaçar o que há muito se julgava ser barrei­
ras intransponíveis da cultura intelectual. Foi
Oeorges Sorel quem, nas suas Réjfexions sur la
vlólence, ífir..r:n.ulou. as co.nseqüências práticas._ e i

·
'\ �
f:?OJfti.c�s �e tu o..i�t�, tornando-se por êsse facto
( o pai espiritual de tôdls as ditaduras contempo- .-
râneas.
, .
,_

Mas não são apenas os ditadores e seus



sequazes que querem a sujeição do(desejo d e.
saber) a>J . ulso vita Temos aqui o elemento
J img !J j
mais fundamental da crise_çultural no seu todo. 1i
Esta revulsa:o do espíri_tu é o verdadeiro pro­

cesso que domina a situação cm que nos encon­
tramos presentemente .

Teria sido o pensamento filosófico que abriu


o caminho e a sociedade que o seguiu? Ou
teremos de inverter a ordem e admitir que
é um caso. dQ__ pensamento , dansando ao som
w
da vida? A doutrina que submete o conheci-
-

..

.. me_�to .aÇ>. jugo . da vida parece impbr .-a..:.úlüma


· · · ·-� · · - · · · · ·· · · .
,

I
.
suposição. ... . �-·- ,,

86 NAg SOMRJ�AS DO AMANHÃ

. Terão alguma vez as gerações de outrora


renúnciado destà maneira ao prindpio intelectual? .

Parece-nos im ossível encontrar aralelos histó­


"
I
'

'I


ricos. Um anti-intelectualismo sistemático prático I
,.
...
.

e filosófico, tal como aquêle a que estamos a


'

.
..,
• assistir, afigura-se-nos algo de verdadeiramente
..

novo na história da cultura humana. Não há


� dúvida que o passado conheceu muUas vezes


J
reacções do pensamento, pelas quais a uma pri­
� mazia demasiado exclusivista da compreensão se
.

" seguiu uma reivinqicaça:o da vontade. Foi o que


: sucedeu, por exemplo, quando o pensamento de

.
.
! Duns Escoto alinhou ao lado do de S. Tomás de
: Aquino. Estas reacções espirituais, contudo, não
. '

j
tinham qualquer rclaç�o com a vida prática ou

I
I

I

I
I

l.

com a ordem secular, mas sim com a fé e com
a luta pelo significado último da vida. E mesmo

I

'


esta luta permaneceu sempre um , apreender " ,
ainda que a raza:o ficasse muito atrás. O espírito
moderno confunde freqüentemente intelectua.
lismo com racionalismo. fv\esmo aquelas formas
I\

'
de acesso qi.ie, violando o puramente intelectual ,
se destinavam a alcançar pela intuição e pelo
exame o que era inacessível à compreensão,
continuaram dirigidas ao conhecimento da ver­
dade. A palavra grega e hindu aplicada a êste
caso, gnosis e j11dna, demonstra bem à evidência
que até mesmo o misticismo mais puro é ainda
um "conhecer". E sempre o espfrito que se
• •

move no mundo do ir�teligível. Possuir a ver­


dade foi sempre o ideal. Não há, que eu saiba, I
O REPÚDIO DO PRINCfPIO INTELECTUAL 87

exemplos de culturas que tenham renegado a ·


Verdade ou renunciado à compreensão rio seu
sentido mais lato.
Quando as antigas correntes do pensamento
recusavam vassalagem à Razão, era sempre em
favor do supra�racional. O que se alardeia como
sendo a cultura de hoje, não só nega a Raza:o,
mas ainda o próprio cognoscfvel, e isto em favor
do infra-racional, das paixões e dos instintos.
Opta pela �aêfe:) nâo n o sentido de Duns
Escoto, mas sim pela vontade do poder mun­
dano, pela " existência", pelo " sangue e solo ",
em vez de ,, compreensão , , e "espírito" (1).

--·-.. -� --

"
'

(1) Para a resposta à pregunta de como se deverá enten-


é «llzre Zelt ln

.

' der a opinião de Hegel, de que a filosofia


I
Gedanken erjassh, \·erTh. Litt., Pltilosopllie und Zeitgeist,
onde é claramente demonstrada a absoluta1 ausência de justi­
ficação com que os sectários da Lebensplzilosophie se arro­
gam o di re it o de discípulos de Hegel neste capltulo .


.
'
!

.

J
:l
,l

.I •

·r XI
.l
l

O Culto da Vida
I

,
,•

J

'
.•
O têrmo imediato a juntar à c ol e cção
d
l

t
,
palavras intelectualmente em moda será sem \
'
.

dúvida �x istenciâl� Posso vê-lo a surgir já de "


'
,:
:!

todos os lados. lv\uito em breve há-de fazer for-':


tuna com o grande público. Quando s� que re r
convencer um auditório da profundidade de com· t
..
\

·i

preensão e par-a isso se repetiu dinâ mico u vezes


" I
t

\
. I
I '
I bastantes, isto será "existencial". A palavra
servirá para desertar do espírito mais solene-- i
1

\
'i
I
.I

mente, um esgare a tudo o que é conhecimento


e ver da de
.
;
f,

Em reüniões de eruditos ouvem-se asserções �


que mesmo há pouco tempo ter-se-iam suposto tI
desassizadas demais para serem cómicas. Segundo
, .
informações da imprensa, no Congresso de Filó­
.'

i.
• logos realizado em Treves em Outubro de 1934,
certo orador fêz saber que aquilo :que se devia
I
.
(
'
esperar da ciência era não t an to a verdade como

.r

uespadas afiadas,. Quando um dos presentes mos..


'!
I

'

.'

. 90 NAS SOMBRAS DO AMANH�
·'
L•
'
.
. . ..
.

lrou pouco respeito por certos exemplos de inter­


. I :
•, '
'

•'
' I
••

,pretaçlo nacionalista da história, foi exprobado ,, , ;


I
' '

pelo presidente por falho de subjectividade , . I). ''


'
11

.
.
Notem, tudo isto num congresso de eruditos.
.

A isto chesrou o nosso m un do civilizado.

l.

Não vão pensar que a degeneração do espírito


crftico se limita aos p<1fses em que triunfou o
'
I'


'
� chauvinismo. Qualquer observador pode encon-
1 trar no seu próprio meio inúmeras provas duma
'
'I
•'

certa _indiferença,
. da parte de milhares de pessoas
'

'•
I
l
1.
i'
educadas, .Pelo grau de verdade integrado nas
'
,.

li i'
'

1

11 ' imagens do seu mundo de idéias. As categorias
ficção e história, no s eu significado simples e
I

!� J corrente, já se não distinguem com clareza. Já se


I
,.·
'
f não pre�unta se o conteúdo verdade, em m até
11
•I
­
t,l

ria intelectu al chef!a ao estalão.


'

·I! . _A voga do conceito mythos ,, é o exemplo


,

m ais fla�rante. Aceita-se uma répresentação em


'

1

:' II
J. I que são proposit:Jdamente inclu(dos os elemen­
J
•I
�.
• tos 11 desejo " e , fa ntasia ,, mas que apesar disso
I'
'
••I
I,
.r
i se diz represenbr o upass:tdo" e servir de teor
iI
IÍ. l de vida, confundindo assim irremediàvelmente as
..�
I

esferas do conhecimento e da vontade .


.

:
,
.
'

,;
I, j

I
I � O pensamento ucondicionado pela existência H ,

r{
'

,.
' na sua lu ta pela expressão, deixa que o fanta- l
I
j1 sios o da alegoria , sem o freio do raciocfnio cri­
.

;. I

tico, penetre no argumento lógico. Se a yjda ��


.

; "
I
.'
;

não pode exprirn!r.. �!� �.!!19.S .de J6gica ,_º· Qt!�


'

1
,

,/

.·!í
'

todos têm de a_çLfl.!j�ir.� -�!! ��E- -���_g:a a vez �<? P�-�t �



.

.
I •

", .

I
áe fazer a sua aparição onde falha a aproximação
;I
.

lógica Assim temsíciõ..-desde que· o mündo


. .

�fJ
'

.I;
'

'

'
\


O CULTO DA VIDA C)l

.
.
..
eonheceu a · arte da poesia. N o processo do desen-i
••

'

. .

,I
'

. .
• •
'

''

.
' • ·-

.
yolvimento cultural, porém, pensador e poeta . •

. ' '.I . .
puderam ser bem diferenci�dos e a cada u m foi

..

eoncedido o seu dom(nio próprio. Ultimamente,


a nova ,filosofia da vida, tem revelado certa '

tendência para reincidir numa confusão desnor-


teante de meios de expressão lógicos e poéticos.
Entre os últimos a metáfora usangue, ocupa um
lugar de especial relêvo. Os poetas e sages de
tôdas as épocas e nações tiveram sempre à mão
a imagem ••sangue, para surpreender um prin-

cfpio activo da vida numa pàlavra que ferisse


bem os sentidos. Embora, abstractamente falando ,

outros humores tivessem podido dar da mesma ,

maneira a idéia de hereditariedade e afinidade,



no sangue via-se, sentia-se e ouvia-se o fluxo da
vida ; no derramar do sangue via-se o refluxo
da vida ; sangue significa\ra luta e coragem.

I
Desde tempos remotos que a imagem ,sangue"
foi também um sfmbolo sagrado ; com efeito,
ela tornou-se a expressão do mais prof undo mis-

.
tério divino, ao mesmo tempo que se mantinha
'
um têrmo significativo para o mais prosaico dos
.•
provérbios. Portanto, se por um l ado o fac to
''
t•

.
desta velha imagem gozar ainda de tão vasta
I� pop ularidade não deve ser motivo de admira çã o ,
••
por outro, bem podemos ficar um tanto surprêsos
ao vê-lá elevada à categoria de têrmo oficial na
fraseologia jurídica duma grande nação moderna.
.. A ordem de prioridade de sangue e espfrito
foi completamente i nvertida pelos apóstolos da


92 NA� �OMBHAS DO AMANHÂ
.
.
!t • .

..
'

..
- .,• •

t
" • I

filosofia da vida. Citemos R. Mütler-freienfels :


o

ft. . ' .
•o •

• I

.. .

'

I
'•

.' " A essência do nosso espírito reside, nlo na com­


preensão puramente intelectual, mas sim na sua
função biológica como meio de preservação da
vida , . Que ninguém ouse atribuir esta função ao
, sangue , !

Esta á nsia de vida (para empregar a ter­


minologia dos profetas dêste culto) deve ser
considerada como manifestação duma supera­
� bundância de sangue. Graças à perfeição técnica
� de todos os confôrtos da vida, à sua segurança,

! melhorada em todos os sentidos, à maior possi­


l bilidade de acesso a tôda a espécie de prazeres
I e ao enorme, e todavia tardio, progresso da

� prosperidade material, a sociedade chegou a um


l estado a que na antiga patologia se poderia ter
\ chamado urna ,, pletora " . Temos vivido numa
j

superabundância material e espiritual. Preocupa­


mo-nos com a vida só porque. ela nos é tão
I
1

; facilitada. O poder sempre crescente da obser-


1 vação e a facilidade de intercâmbio intelectual
l deram à vida demasiada importância. Ainda para
além dos meados do .século XIX mesmo o sector
I

abastado da sociedade europeia estava em con-


tacto muito mais directo c constante com as

misérias da vida do que nós hoje estamos, nós
j

que nos julgamos com direito a êste confôrto.


j Os nossos maiores tinham recursos muito mais
limitados para anestesiarem uma dor, para sana-

-- ------ -· -------
'

O CUI.TO DA VIDA 93

rem uma ferida ou uma fract ura, para se protege­


.

rem do frio e da escuridão, para comunicarem com


o seu semelhante directa ou indirectamente, para
evitarem a imundfcie e os maus cheiros. De
todos os · tados o homem se via forçado a sentir
{)S limites naturais da felicidade material. O pro­
( • vimento eficiente de meios técnicos, higiénicos
e sanitários de que o homem actual se fêz rodear,
.

'

estraga-o. Vai perdendo aquela bem humorada


t} resignação que, perante as imperfeições do bem­
-estar humano, constituiu a disciplina das gera-
ções passadas. Ao mesmo tempo , o homem --�-�Jb o
corre ainda o risco de perder a sua natura' apti-
rfo, o{)
t;
dão para aceitar a felicidade humana tal como
ela se lhe oferece. Tornaram a vida demasiado
fácil. A fibra moral da humanidade está a ceder lliM
à pressão amolecedora do luxo.
Nas antigas civilizações , crista:, muçulmana,
budista, ou qualquer outra, verificava-se sempre i
êste contraste : em princípio, o valor da felici- I
dade terrena é nulo quando comparado à glória
celestial ou à união com o Todo. Apesar disso,
como estas religiões reconhecem um certo valor ·

.t aos prazeres mundanos e os consideram dádiva


de Deus, negar o valor da vida era o mesmo que
ser ingrato. _foi precisamente a compreensão da
í� . gualidade precária de cada momento de bem:,
I I
:estar humano que fêz cQmgue a êste fôsse dado I -

1 o seu justo valor. _Uma orientação firme dirigida


_
' para o futuro pode levar à renúncia do mundano,
.
i mas não permitirá nunca o Weltschmerz.

o.
� .IJ.RA\ /Y'1J61tl arv). 11� f'O-J ''rVI/t.witf'

'

l 94 NAS. SOMBRAS DO AMANHA
.
.
. Presentemente há também um contraste, mas
... .
1•
..

' êste de natureza muito diferente. O incremento ..


I


da segurança, do confôrto e das possibilidades •
t;

'

de conquista do necessário, em suma, a maior

Í) 1
facilidade da existência, teve duas conse üências. 2
It
.

l Por um a o preparou o terreno a tôdas as for- 1


mas de renúncia à vida : negação filosófica do
)

!

seu valor, "spleen, puramente emotivo e aversão J}


'.. 40�·

1 à própria vjda ; por outro lado incutiu a crença l


I no direito à felicidade : fêz com que os povos


1
i
I

exigissem da vida um certo número de coisas ..


• ; Relacionado com êste há um outro contraste .
I
! A atitude ambivalente, pairando hesitante entre
'

! a renúncia e o gôzo da vida, é exclusivamente


I
1 peculiar ao individuo isolado. Ao contrário, a •

I
.
I ' colectividade aceita , sem hesitação e mais con-·
.
I
victa do que nunca, a vida terrena como objecto ·
.
I

I
.
; de todo o esfôrço e acção. Não há dúvida que
I I
se trata de um autêntico culto da vida.
I \ ·
'

Surge-nos agora uma pregunta, motivo de·


I
. I
séria reflexão : Poderá uma cultura adiantada
. sobreviver sem que seja, em certa medida, orien­
! •••

.
I
:

tada para a Morte? Tôdas as grandes civilizações


l

do passado o foram. l-lá indfcios de que o pen­


'


t

I samento filosófico de nossos dias segue também


l

essa rota. Parece naturalmente lógico, além do


mais, que uma filosofia que dá maior valor à
existência que ao conhecimento, deva incluir na
sua visão o fim dessa existência.
I'
.
Tempos estranhos êstes ! A Razão, que outrora
:�

combateu a fé e parecia ter triunfado, hoje tem de:


••
'
·

.
'

• •

- · --------·
O CULTO DA VIDA 95

.
,

se acolher a ela para escapar à rufna. E que só no , •

/1 alicerce forte e fi'rme duma concepção metafisica, I


f o conceito de verdade absoluta, com a sua con-
seqüência de validade absoluta das normas éticas,
\\ pode resistir à pressa:o crescente dos instint9s-"
Extraordinária ilusão f O conhecimento e a I
I

compreensao são violentamente atacados de todos


os lados, mas sempre com as armas do semi­
-conhecimento e da incompreensão. Para provar -

a inutilidade do instrumento intelectual não há


outra alternativa senão a de recorrer a outro
conhecimento gue não seja aquêle que se des­
denha. A realidadt! e a própria vida permanecem
mudas e impenetráveis. Tôda a palavra implica { .

• conhecimento. Mesmo a poesia, que tenta apai- ·'


xonadamente penetrar o âmago da vida (estou a
recordar Whitman e certos poemas de Rilke) ,.
fica sempre uma forma espiritual, um conheci- : ,
mento Tomar a sério o principio anti-noético J
.

é negar-se a si próprio a faculdade de expressão �



•.

Uma filosofia que de início declara as suas �


verdades básicas condicionadas por uma certa
forma de vida a que serve, é realmente supérflua
para OS defensores dessa forma e inútil para O· f.i
resto do mundo. Serve apenas para apoiar e .

/
• racionalizar a ordem existente. Como ! Se na:o é :
o conhecimento e a compreensão que i nteressam,

porquê então alistar pensadores para o séquito !


do Estado todo poderoso, só com o fim de pro- l
.

'

var o seu valor ? Dai-lhe uma pá, um leito çon 1


;t

·'
-

jugal e um barrete agaloado .


.
...

. •

I

• "" ·
• •
• I .: . •
·li

. , . •

. :I .
r'

..

.
'

XII

VIda e Luta

'

Viver é lutar. E uma verdade já velha. O Cris-


,

tianismo sempre a conheceu. A sua validade


como princípio essencial de · cultura está já implí­
cita na nossa premissa de que tôda_ a_cultura -> lv
. inclui um elemento de aspiração.fas piração é
sempre luta - luta, isto é, vontade e energia em f�
acção para superar os obstáculos que se opõem
à consecução de· um certo objectivo. Quási tôda
. F
a acção da alma humana é exnressa em têrmos
. "
v de combate. · Uma das características mais essen-
·\ot-<� �1.\ ciais do organismo vivo é que êste está. mais ou

menos apetrechado para uma atitude de combate.


A identificação uvida e luta, quadra bem tanto I

no sentido puramente biológico, como no espiri- ·

tual. Há-de haver poucas verdades que uma


escola de pensamento, na sua tarefa de tudo
subjugar às exigências · da vida, q ueira pregar
com mais ardor. Mas qual será o significado que
ela atribui a isso? A essência e o ideal do .pen-

.,
98 NAS SOMORAS DO AMANHÂ
I

. ��
.,

.ll
t.
.
!! sarnento cristão pressupunha o mal como objecto
r

'
a combater. O mal era a negação de tudo quanto i! .
••
I:
••

:
à revelação proclama e a consciência testemunha
:

p
:I

l

como sendo a manifestação da vontade divina,
da sabedoria e da bondade. Em última instância
I'
-

r

t
1
é êste o campo onde a luta pode e deve ser
l
'I
conduzida pelo homem contra o mal dentro de
i �

si mesmo. Mas, à medida que o conhecimento
I
)

ff

do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, se


organiza na lgrej�. na comunidade e . nas autori­


j
• •

'
dades temporais, a luta contra o mal adquire uma
l
••

..!9.tm!. �xtensiv]i)e um rumo exterior. Tornou-se


.I
li
11
i1 um dever para o cristão mover guerra ao per­
verso. O lado trágico da existência terrena, isto
" i é , o conflito da Civitas Dei e da Civitas Terrena, '
'
t
11

i' entrelaçadas e confundidas, tem feito da história •

li
.

• .

I•
da Cristandade, entendendo-se pelo têrmo a his­
• •

.
I
II

1 tória dos povos cristãos, uma coisa muito dife­


I

• I
li
'I

!
r
rente do triunfo do Cristianismo. A. autoridade
li .

> •

a cujo pedido os maus foram apontados foi a


.
.

li
.

.
.

iI


'

das facções teológicas dominadas pelo fervor


,


'I

I'


I
I
dogmático de impérios bárbaros, de Igrejas
I lutando pela sua existência, de povos fanàtica­

.

li
,, mente crentes e selvàticamente cobiçosos, enfim,
li

'
ii de governos envolvidos em conflitos religiosos
II
com a Igreja. Mas, quer se olhe para os anti­
gos concílios, cruzadas, lutas entre o império e
o papado, quer para as guerras religiosas, con­
tinua sempre intacta a crença de que a i nimizade •

..

'
tinha o seu fundamento no . verdadeiro_ reco!Jhe­

cimento do bem e do mal, da verdade e do êrro .. .


.

.
r
'

.

.
I

'

'

.
·.

.
••
'

'

..

. -- ·

--------------�
.

·- · -- -··--· ·- --
---
'

VIDA E LUTA 99

Esta mesma convicção- ou diremos melhor pre- ·

sunção ? - determinava o grau e os meios de


violência permitidos ao Cristão na sua luta con­
tra os inimig<:>s da verdadeira religião. Dentro
dos limites da doutrina cristã, o ponteiro da .
consciência podia indicar o dever do Crista:o .
sôbre uma escala que ia da passividade absoluta.
à guerra implacável• .

Quando as convicçõe hoje geralmente· defen­


didas, referentes aq bem e ao mal, são subme-·
tidas à prova do principio cristão, ou mesmo •

encaradas sob um ponto de vista platónico , ·


tem-se a imp ressão de que, em teoria, os fun­
damentos do Cristianismo foram abandonados t
I.
·

l
numa frente muito mais extensa do que a da sua
abjuração oficial ou semi-oficial. A questão d e

i
· saber até que ponto a consciência individual ;
confirma esta idéia, será versada mais adiante.
I ) Uma coisa, porém, é certa : no que geralmente f
.
se pensa a propósito dos deveres sociais, a noção J

do bem e do mal absolutos desempenha u m J


papel relativamente insignificante _!>ara muita


• .

· gente a idéia de luta ela vida foi transferida do


campo a consciência individual para o da yida.
pública colectiva. Nesta transferência a idéia
perdeu muito do seu conteúdo ético.
I
A luta pela vida, aceite como um destino e
um dever, é concebida quási exclusivamente
> como luta duma certa comunidade por uma certa
prospelidade geral, isto é, como uma tarefa cul­

• [
,tural�. É uma ' luta contra certos malespúbUc osJ
••
l (&""r'(r o.- .,tffJI� 9\< & ��
�(;

�SWMBRASDOA�NHÃ

100
o

..

o•

i
' .(.t . ..'./

�,� ,

l ��: :
.. •• • .. •

..
.
�I � . .. o •
:.•'
• ,. '

Na condenaç!o
-: � I
- ..

. '•
1' .
de tafs mates pode haver. uni :!1
• .
..
.

'

J,
.

r
•.

ns
t

elem ent o ético sincero como sucede, por exem­


) .
•$•
. .

·..

.
.,
.

plo, com o crime, com a prostituição ou com
o pauperismo. Mas quanto mais o mal ameaça
..

I l

a comunidade, enquanto comunidade, como no

I
\ caso da depressão económica ou de dificuldades
politicas, mais se reduz a noção do mal à noção
I
I


duma fraq�eza interna a vencer ou duma resis­
'

'
t
tência externa a combater.
o

i Verificado, porém, o facto de que o homem


I

I
está, por natureza, predisposto a_indignar-se e a •

exprobar os outros, admitindo mesmo que inte­


o

r
I •

l
I
lectuahnente êle possa ter repudiado tôdas as nor­
mas éticas, esta sensação de perturbadora fraqueza
"


ou de importuna resistência continua sempre

:I
I
r
:I matizada de um certo horror pelo mal ou pela • o
'


'.

perversidade; daqui a fácil confusão onde tôda 'I •

a resistência se sente e se considera como má e


o

·'
I,


perversa . .

, As resistências com que a colectividade se


.

I i julga ameaçada são geralmente exercidas por �


I

I

outros grupos humanos. A luta pela vida, tomada


.
I

l como um dever pt'tblico,


·
torna-se então uma luta
I de homens contra homens. Êstes outros, contra

t
.,

: os quais se dirfge a luta, já não aparecem teori-


'

1.
I

'
.
'


camente sob a forma de , perversos,. Na luta
pelo poder ou pelas riquezas são simplesmente

'

I
rivais, tiranos políticos ou económicos. Conforme
'

o ponto de vista de um dado grupo, assim se


I
.
'

I .

I chamam concorrentes comerciais, detentores dos j


I
'
'i
meios de produçâo, portadores de caracterfsti-

f t I
I
1 \
'
.
I

I
·•
o
. .
'

. .

·
--------· ···· · ----·---�- ·· ..
.
. -............··· - -'--
VIDA E LUTA 101

': : cas biológicas indesejáveis ou simplesmente vizi-


'

nhos mais ou menos aparentados, ou ainda, os


senhores que obstruem o caminJJo a uma expan­
são do poder. Em todos êstes tasos, a vontade de
pelejar, subjugar, expulsar ou extinguir, não im­
plica em si uma condenaçào ética. Mas a natureza
humana permanece fraca, por mais que um - paga- .

·
nismo heróico se negue a reconhecer tal fraqueza.
Dêste modo, em tôda a luta contra os adversá­
rios penetra o Ódio; Ódio que só a requintada

perversidade dos antagonistas justificaria em parte.


'
'
' '
:
Tôda a reacção psicológica a que estão
sujeitas as massas, espalha a sua magia sôbre a
comunidade desejo�a ou receosa da luta. O ter-
;.·
,

ror do desconhecido, sobretudo, assomando ao


'
'
longe na sua forma indistinta, produz uma
impressão fatal. Quanto mais poderoso é o equi­
pamento técnico, mais extenso e imediato o inter­
câmbio humano, maior é o risco de que as· .ten
sões políticas, a despeito do desejo de evitar'
extremos, se rendam à precipitada e, por último
ineficaz forma que é a guerra.
·

Honra ao soldado no campo de batalha t Nas·


dolorosas agonias e misérias da guerra êle retoma
todos os valores da mais sublime askesis. tle ,
pelo menos, não conhece ódios. Sempre cônscio
e pronto ao sacrifício incondicional, cm absoluta
subserviência a um intento em cuja determinação
não teve qualquer interferência, o soldado desem­
penha uma missão que exige o mais elevado
cumprimento das suas funções éticas.
.
'

' '
102 NAS SOMBRAS DO AMANHA
..

jl
l
I

j!
tii'"
Poder-nos-emos servir desta reconhecida incul-

pabilidade do soldado para reivindicar a inculpa-


�· -!I,
.
..
I ,
[

bilidade da hostilidade política em geral ou, por
outras palavras, para reconhecer a um Estado o
direito de mover uma guerra que sirva os seus

próprios interêsses? A pregunta tem a sua res­
posta afirmativa numa teoria politica que hoje,

f•
..
.
• especialmente na Alemanha, tem obtido o favor •

.
"

ntí mero de pensadores, mas


11

.
não só de grande
;
também :de homens de acção. Com uma argu­
I

' '

mentação extremamente ingénua, esta teoria


ii bane das relações inter-Estados todo e qualquer

�I elemento de maldade humana.


Para fazer isto, basta construir um à priori

.

li '

que declare o Estado como objecto absoluta­


>

I·• '

,,
. mente independente e num plano filosófico equi­

.,

" •
valente no domínio espiritual aos conceitos de ver­
dade e de justiça . foi isto que Carl S.çb.mitt, com -.... .
>

11 grande engenho I se propôs fazer no seu tra-


li
. tado I Der Begriff des Politisc/zen ( ) . A obra
' •

11 . i abre com as seguintes palavras: ,. A distinção


J' política essencial é a de Amigo e Inimigo. Esta

li {é que dá às acções e motivos humanos o seu .

!
'

significado político. A pista de tôdas as acções


'
'

I
1!
li
l e motivos políticos leva-nos, em ültima instância,
a esta distinção. Na medida em que a oposição
se não possa deduzir de o utras caracterfsticas,
'
.
.I
,
---- - . -
-

' -

C. Schmitt, Der Bcgriff des Politisc/zen, 3.a edição


(1)
-:
. I

I
. •

Hamburgo, 1933. J-lauseatischc Vcrlagsanstalt. A 1.8 edição



é de 1927 •
I
..
. .

•. .

..
'



• ••

..
_,.
• '6

- ---- --
·
_..,
__·--
·
·- ·-·- ·-·�- ·-- ·-- - ------------,... .. ! -�'1'1"!'1!"'
�!l!"ll"'" � .. •

: VIDA E lUTA 103
.. I

c9mo conceito político corresponde às caracterís­


ticas relativamente essenciais de outros contras­ •

tes: bom ·e perverso no domínio da ética; belo e


feio no.da estética; útil e perigoso no económico;

de qualquer maneira é uma categoria absoluta•.. ,,
Ora, parece-me que nesta construção do
"potrtico, como categoria absoluta, temos um

caso de expressa e implicitamente admitida


''
petitio principli. Além disso, o postulado que
êste princípio desejaria que admitíssemos é da­
.i
,I

queles que não podem ser aceites por pessoa


alguma, cuja filosofia da vida tenha o mais leve
contacto com Platão (apesar da su3; glorificaçlo
.
1 da polltela}, com o Cristianismo, ou com Kant •
.
Se se admitisse que, duma maneira geral, a

oposição amigo-inimigo era da mesma categoria


gue as outras acima citadas, seguir-se-ia, infall- .
velmente, que no campo polftico, onde ela se
considera decisiva, tal oposição esmagaria tôdas
.

• as outras. O final do primeiro parágrafo do


livro de Schmitt diz assim: , A natureza indepen-
dente do , político, revela-se imediatamente no
facto de ser possível separar uma oposição espe­
cifica, tal como a de amigo-illimigo, de tôdas as
,
outras oposições, e concebê-la como entidadet
1
I
inteiramente independente". Não será isto exa-[
gerar a autoridade do argumento lógico em si,{
'

de uma forma que muito nos faz recordar o ·

tempos da Escolástica? Não estará o pensament"l


.
i dêste subtil jurista, logo de início enredado nd.
f

I mais vicioso dos cfrculos viciosos?


'
·,

.
••


NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

·
O autor não tem a menor dificuldade em

esbtilhar a idéia de 11 inimigo, das suas a5soci.a­


ções éticas, identificando-a com noi.ip.to�, hostis
(inimigo público), e não com ézopck, inilnicus
. ..

C).
:.

(inimigo pessoal ou particular) Muito justa­


mente alega êle que S. Iv1ateus, 5, 44, e S. Lucas, 1
11diligite
;
6, 27 não dizem: lzostes vestros", mas li
sim "inimicos". l'v\as é igualmente verdade que,.
:

desde o principio, a prática do Cristianismo


conheceu e admitiu sempre o conceito de hostes,
isto é, inimigos públicos, e que a palavra do
Evangelho inimicos não tem portanto um sentido
politico. Se isto é justificação suficiente para
colocar a relação de inimizade política (eviden­
temente que aqui 11 amigo" não tem, na realidade, �
'

qualquer significado positivo) no mesmo plano


. ..
.

do verdadeiro-falso ou do bom-mau, isso é u m


ponto muito diferente e que, não olhando à
questão de saber se o princípio Cristão é ou I

não aceite, dificilmente se pode conceder.


·
!

Parece que seria mais lógico substituir a antítese


amigo-inimigo pela de fraco-forte, porque amigo
nada significa nesta oposição e i11imigo simples­


mente quere dizer adversário. No fim de contas,. I

porém, não pode haver uma igualdade perma­


nente de fôrças opostas em qualquer con�ito.
I
)

I
Dêste modo, parece que tal tese implica a acei- ·J
'

tação absurda do princípio: Fôrça é Direito.


\
.
-�· ··-·-·- -···-- - - - - - -- -

(I) Págs. 10, 11.

.


�· I .

. VIDA E LUTA I
105'
.., .

••
. .

.
-!I. . .
..
. '\!$;,. .. • .
.
'

.
'

Admitamos, contudo, o ponto de vista do-


,'
. .. '
l

autor e examinemos as suas conseqüências. &te.



·
j

I'
H
-< ,
. ;..
·"
ponto de vista implica a idéia de que a submissão·
dos conflitos políticos à arbitragem dum terceiro·
• •

é rejeitada por desarrazoada, insensata e in útil (1).·


O ·Estado, e portanto, em princípio, todo o
Estado, é juiz único na sentença de como e i
quando combater o inimigo (') e- parece que /1
deveria seguir.se- de quem vai ser considerado
l.
"'
inimigo. finalmente ao Estado! segundo êste
••

:
'
• •

raciocínio, caberia decidir se o sujeito da acção


'

I
l

política tem ou não o carácter dum Estado, Isto


é, se lhe assiste o direito de ter inimigos. É êste
'

um embaraço, cujas conseqüências o autor·


parece não ter previsto em tôda a sua extensão
I
. '

; I

..

..

ou pelo menos .não considerou. U.m grupo


que deseja tornar-se politicamente independente,


.
'

. .

l
� .. estará por êsse facto apto a conduzir.se polltica..
!
f •
mente a si próprio? E que diremos dos membros

I !
f.
duma federação, dum partido ou duma classe

exigindo a chefia do Estado?· Parece inevitável a


conclusão de que em tais casos a determinação
.
. .
.
.

-·---

(1) Pág. 8.

(2J Pág. 28 Que a dou tr ina de Schmitt foi recebidà


com agrado demonstra·o a sua vas t a aplicação il tarefa da
ciência social em ge ral, de acôrdo com os dogmas da «filo­
sofia d a Vida». Um certo \V. Behne proc1ama que c a ciên·
cia social deveni adaptar e interpretar pollti.camente as suas
'. '; . invenções, is to é, de acôrdo com a re1açãd amigo-inimigo
e tendo em atenção a verdadeira existência da nossa nação»,

Vereangenlleit und Gegenwart, 24, 1934, págs. 660-70 •

••
l


.
106 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
.
.

lJi�/, f'l·',,•.
.

.
. .
.
.

I.
<{
.. ·\ -do caráéter político, ou seja, a decisão que per ..
"I
f
• •

li '
.• •

r �

mfte saber se um grupo está habilitado a con­


l
.

!
•J

du�ir-se como um Estado, pertence ao próprio



.

grupo que porfia na luta. Por conseqüência, à



..

••
.

'I
sombra da aceitação da independência absoluta
abriga-se a aceitação do anarquismo.
,

.
'

f
Além disso é evidente que, se se considera o
.

l
'

:I

Estado juiz tínico no desejo de estender a sua ;i


'

.

• •
.

i
I

esfera de poder, e como em todos os casos tal


I

\•

:I
' alargamento se pode proclamar condição de
.,.
••

.

• existência, a subjugaçao dos Estados mais peque •

liI nos pelos maiores é simplesmente uma questão


de desejo e oportunidade.
.,,
·

í Logo junto aos profetas da autonomia poli·



I

I

"•' .
tica estão os advogados da guerra pela guerra.

lt,

Conquistar é a condição fundamental de sobre- •

!• ,I{J
,

4,
vivência do Estado. E esta a opinião do bem
..
I
conhecido sociólogo lians freyer: , Para que se
',

fi sinta como Estado enii·c os outrós (Estados), o


.' ..
..
Estado (necessita) de uma esfera de conquista à sua
li
.

volta. Tem de conquistar para existir('). Recusa


.I mais sucinta ao direito de existência dos peque­
iii nos Estados é qttási impossível de imaginar.

�., freyer é daqueles que glorificam a guerra como


:;1
n,

função essencial do Estado. E conhecida a má-
,

xima já gasta que diz que u a política consiste


em conduzir a guerra por meios diferentes,.



, Durante o armistício, a que nós chamamos
:
� '
'


. '

(1) !·1. frcycr, Der Slaat, pág. 146. Leipzig, 1925.


VIDA E LUTA 107
..

.

'

�i
.

. ; '
paz,, o Estado deve ter sempre presente o re-
·�: ••
.

.

·gresso às condições normais, isto é, � guerra.
.

Há quinze séculos Santo Agostinho consagrou


alguns capítulos da sua De Civitate Dei à demons­
"

tração de que tôda a luta, mesmo a dos animais


·selvagens ou a do mítico e famoso bandoleiro


Caco, tinha por objecto o restabelecimento dum
estado de equilíbrio e harmonia a que êle cha­
f

mou paz. A inversão desta verdade simples - o


'

homem luta pela harmonia e não pela deshar­


.monia- exaltando a guerra como situação nor­
mal, isso ficou reservado aos sages do século xx.
" A história do homem em épocas de civilizaç.ões
adiantadas é � história dos poderes potrticos.
A forma que esta história toma é a guerra, da
qual a paz é uma parte, visto ser uma continuação

'
.
da guerra por meios diferentes . . ·" (I) , O homem
; é um animal que vive da rapina. E quando lhe
.
' chamo animal de rapina, quem insulto eu, o
;�
,

homem ou o animal? E que os grandes ani. mais


" J

d e rapina são criaturas nobres da mais perfeita


espécie, e ignoram a hipocrisia da moralidade




I
humana, que afinal não passa de fraqueza" (1) •

'

Esta última sentença Spengleriana, cujo eco


I
I

t
I
I se escuta em cfrculos muitíssimo mais vastos que

I
J os de Schmitt ou de freyer, não terá um certo

I --- ---·- .,._ •--

'

Oswald Spcngler, jalrre der Entscheidung, pág. 24.


I
(1)

I ('') lbid., pág. 14. Cf. Der Mensch und die Teclznik,
pág. 14 e segs •

.\

I

I ; '
.

• ·]08 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


• • ' J

.


.


.

s�bor a romantismo do século já levemente


'

xrx,

I gasto? Haverá realmente razão para considerar


êsse ardor combativo, que se alega ser funda-
I .
. mental no homem, como traço animal? I-la verá

t
I
animal que procure a luta pela luta? Não lutará
I .

; antes por aquela pax, por aquela tranqüilidade


I� i
: de existência que Santo Agostinho considerou
I
.

: como princípio subjacente a tôda a vida cósmica,


li 1 desde a matéria inorgânica até aos céus lá no alto?

.

I I
Tôdas estas especulações aparentemente pro-
i '
I !

fundas e que passam pQr realistas, porque afas-
: tam convenientemente todos os princípios pertur-
'

iI •

i.
'

. badores, exercem uma grande atracção sôbre o


,
't
' ' espírito adolescente. Ora, uma das marcas carac-
.
·,
I
k tcrísticas do nosso tempo é que uma grande parte.
l da humanidade já não é capaz de exceder a con­
! fusão entre sentimento c compreensão, típica da
: idade adolescente. E etn (>arte é a esta confusão
I

I �
que a 11 filosofia da vidn" deve a sua popularidade.
A glorificação do existir em de do
rt
tJ
·

11 sa er encerra uma outra conseqüência digna de


'( atenção. Repúdio da primazia da compreensão
J significa também repúdio das normas de julga­

i:
li � mento e conseqüentemente abandono de todos
os padrões éticos. É que, em última :tnálise, todo
p'' o juízo ético é um acto de conhecimento. Esta
conseqüência é plenamente admitida pelos autores
atrás mencionados. Nós não julgamos a civili·
zação, dizem êles, apenas registamos factos. Mas
.

·
quando se trata da conduta e relações humanas,
o registar de factos nunca pode ser suficiente e a
I
VIDA E LUTA 109 . ..

avaliaçlo torna-se imperativa e inevitável. Na obra


·de que já fizemos algumas citações, C. Schmitt
<ledica algumas páginas notáveis ao conceito
·do mal. Schmitt parece inclinado a aceitar a .
noção de peCãao originaI, quere dizer, crê , que
tôda a teoria (I) política genuina aceita o prin­
'

I
cipio de que o homem é mau c�). [\.\ás como •ê
I
'

11
I
.

que êle compreende isto?: Por homem , mau,,


diz êle, na:o é forçoso que se entenda ''ente pro- ! .

blemático, mas, ��-�'!1-�er perigo �o � di�â mic�, \i


-portanto, um ��-�. aparentemente com mteira .
,
liberdad�. para_'condescender com a süa' iiãliíral \

�� �-�����é!_de�- Aí ten��s .�ma def inição. ��-'� . ��,


·,


completamente ·descristianizada, e portanto sem
..
r:Sentido, que debaidé se persegue à si proptia .. /
I
I
.dentro do círculo vicioso da tese do autor. ,
Por que razão é que os apóstolos da "filo­
'

I
·sofia da vida, se preocupam com os têrmos
I

·e noções .Cristãs? Se estas tivessem aos seus

-olhos qualquer significado, há muito teriam re­


conhecido que a teoria da natureza absoluta do
I
• politico ,,., enraizada na oposição amigo-inimigo
11

e por ela governada, significa a deserção do


'I

-campo do espfrito para uma esfera muito além


-do puro animalismo, para um Satanismo que
.árvora o mal em farol e guia duma humanidade
·
-extraviada.
----··-···--

(1) Refere-se a Maquiavel e Hobbes.


(B) Loc. cit., págs. 43, 45, 46.
'•

..


.
• •
. .

' .I
. .

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I•
.
� ...
. . •

. ·'"'"
· . '
,,_,,.
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0 I 1 •

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.. .. f � •••
.
'
. ;,

I
.
t

:t'i' . •
I
• '

t
�I

... .. t

XIII

Declínio das normas moreis

Ao considerarmos as conseqüências duma


doutrina que renuncia ao princípi'? intelectual_
em favor das exigências duma existência afinal
incognoscível, somos postos frente a frente com a
a questão das bases morais da sociedade. Além
de admitirmos um declínio do espírito crftico e·
da faculdade crítica, teremos de admitir também
a decadência da moral? E se temos, como se
manifesta esta decadência?
Aqui, e primeiro que tudo, importa distin­
guir bem entre moral e moralidade, entre teoria
e prática dum período social. Os moralistas de ·
todos os tempos sempre se queixaram amarga­
mente de que a moralidade da sua época cami­
nhava para a decadência. Procediam assim, não
porque a evidência estatfstica lho demonstrasse,
visto que as nlo havia ; mas vendo que o pre­
sente era mau agarravam-se à ilusão de que o I
passado tinha sido melhor. Talvez sim, talvez ·

a·nzan e nas sr r I?

!
' ' .

! I' NAS SOMBRAS DO AMANI1�


. I
I
• I

ll2 ,
'

I i1 ·não. A nossa época já dispõe de certo número


I· i
I
, ,

:

.de estatrsticas comparativas, mas infelizmente )� . "

�. • I
.apenas remontam a épocas ainda rece�tes da
·-

''
I' . '
'
' história. O campo de investigação é limitado, •

1• presta-se a mais que urna interpretação e fornece


\
,
poucas bases para conclusões científicas. Pelo
1 .que diz respeito aos factos visíveis da vida
.pública, parece não haver motivos para conde­
nar a nossa época, atribuindo-lhe uma média A
IUJ'tj; ( • . .. I


moral mais baixa que a de qualquer outro período
: precedente. Isto não quere dizer que o nível da �
'

! moralidade individual se tenha elevado, mas uni­


� ,camente que _a ordem pública actual é mais efica?
f .(lo gue costumava ser, na repressão de certas
tt

� formas de mau procedimento popular. Isto é �l
( particularmente verdadeiro naquelas formas de '

!'
(
I

má conduta que provêm directamente de condi-


·
'

''

! . ções sociais pouco satisfatórias, como por exem- .


v •

plo a intemperança e a prostituição.


Uma das muitas questões que a estatística
l''•('

nos não pode esclarecer, é saber se o homem •

I . médio actual é ou não mais , honesto , que o de


,
,

·outrora. E que, . evidentemente, não é o numero


I · de condenações por roubo, perjúrio, fraude, ou
I
I
'

·
:

I I
i . má fé, que é significativo a êste respeito, mas
ff I
·

sim os mil e um matizes de sinceridade e leal­


I'
'I
I
dade que necessàriamente escapam à observaçãO'
; do direito penal e até da opinião pública ' ''

• '
'

''
'
\

'•
'
.
Ainda menos susceptíveis de apreciação ana­
. ' .
'

.
.
' '
I
. lítica são os fenómenos n o campo da ética �exual.
I

'
I . Condenar (quer por motivos religosos quer
.
I

I• '

F. . '' .
'


'
: 'I· I

1
l I
·, ;

• j
• •

_... - . . .
.:.. -
' -� �-..:...
- ...:L.
� .- ---
......
--
.-- -....
......____ __
DEClfNIO DAS NORMAS MORAIS 113

• · �ociais) o número crescente de divórcios e a


·maior promiscuidade sexual entre jovens de
. .

o
'
. ambos os sexos, é tocar o problema muito pela
·rama. A moral sexual, rompendo com a religião,
·foi muito mais além que os preceitos .de veraci­
·dade e honestidade. Todavia, e tanto como êstes
últimos, a 'ética do sexo exige a recognição dum
-critério que jaz muito fundo na consciência indi­
·vidual. Se o indivíduo não tem pessoalmente a
-conviCção íntima de que é preciso resistir a um
vfcio radical chamado " luxúria , , a sociedade
o

-cai vítima irremediável da degeneração sexual, e


..como resultado inevitável, da destruição.
No seu conjunto, a comparação com períodos
.anteriores da civilização ocidental parece não per­
. mitir dados suficientes para se falar de uma dete­
rioração da moralidade média. O que se tem
deteriorado, e muito seriamente, são as normas
. - a ética em geral, a doutrina da própria moral.
Aqui, sim, há tôda a razão para se falar de um
· sintoma de crise, e daqueles que teremos de
-considerar talvez ainda mais ominoso que o do
enfraquecimento intelectual. Se bem que, segundo
· tôdas as aparências , o homem médio de hoje se ·
não conduza melhor nem pior que os seus ante­
·passados, todavia a base da convicção, sôbre que
. assentam as crenças e os sentimentos morais,
tornou-se extremamente instável para todos os
q ue se não sentem obrigados por um código ético
'
-

:revelado e imposto pela Fé. Para um extensíssimo


múmero de pessoas o código moral cristã.o. per- .

'.
;I
114 NAS SOMBRAS DO AMANHÂ

deu a sua validade absoluta c .obrigante. Esta


npostasia dos fundamentos teóricos da moran.
dade terá acarretado como conseqüência, na alma
I
do individuo, o desaparecimento de tôda a idéia . ,
.
� '

'.

� de obrigação? Parece que não. A ética do Cris-


I: � tianismo, na forma despotencializada em que a
l
t

I
.
i sociedade sempre a reconheceu, continua a reger
J as normas públicas e privadas da conduta moraL
'

,
t As leis, as relações sociais, o comércio, ainda
I


,.
n

I,
admitem que tudo o que se considera maioria •
. . .

u normal, observa a lei moral. O indivíduo sen-


.
�� te-se por ela obrigado sem preguntar a si ·mesmo
lo
. .
li se esta submissão pessoal se baseia na fé, na filo-



sofia, nos interêsses sociais, ou em qualquer


outro motivo. faz por se conduzir "decente­
.I

11
� mente"• tanto a seus olhos como aos olhos dos
lt 1 ·outros. Não lhe ocorre raciocinar J?.Orguê, a não
" '; ser, evidentemente , que a curiosidade intelectual
11
11 1 lhe levante no espírito esta questão. E se assim
I

i
li

fôr, se êle se ro irir sôbre ue se baseia


l
'

o seu código moral, corre sério risco de se ver


I· ' _
de todos os lados aconselhado a abandonar o seu
I
I

;

.
I
.


.
'

-----.... . - -�- --------1-


I:>ECLINIO DAS NORMAS MORAIS 115.


. relativamente pequena. Contudo, a sua Influência


Indirecta é grande. Dóceis como são as massas,
basta-lhes saber que hã pensadores que negam à
ordem· moral qualquer raison d'être filosófica,
para concluírem logo que , não pode baver
grande valor nessa coisa da ·moralidad�,.
· De efeitos muito mais perniciosos que o imo­
c(éfa
ralismo filosófico é a �
tivação da mo implf­
cita em sistemas científicos como o�materiaJismo
histórico e a psicologia freudiana ._
Na doutrina marxista, o domínio das con­
vicções e obrigações morais não é mais que uma
parte da superestrutura espiritual que se ergue I

sôbre a organização económica dum determinado


período e que, cqndicionada como é por esta,
está destinada a transformar-se e a ruir junta:..
mente com ela. O ideal ético, aqui, está subm�-
.
�tido ao ideal sociaL Tem apenas um valor relativo; ·
relativo no sentido mais literal da palavra. Mesmo
os altos princípios de camaradagem e lealdade à
causa do proletariado, que a doutrina marxista
inculca aos seus discípulos, são em última análise
motivados por um interêsse, mas um interêsse de
classe. Qualquer abecedário de moral para uso
. ' do jovem operário soviético lhe ensina o valor
da lealdade -sempre dentro da esfera do inte­
rêsse de classe - no mesmo pé que a conve­
niência e utilidade de ter as unhas limpas. Um
princípio moral, tal como o compreenderia o çris:-
119. o muçul�a� , o budista, o �einozisJa ou o
kantista, falh a aqui por completo. Além disso,
'
.


116 . NAS SOMARAS DO AMANHÃ

[
.. .


é eviden.te e sem necessidade de provas, que


� no seu efeito prático sôbre as massas, uma dou­
� triita dêste tipo tem de operar necessàriamente

1: duma forma adulterada e semi-compreendida.


Entre as_g_c;r�_ç_��-�--q1f.�-ª"Jingi n�JP.. �t. m�t.u�!­
dade desde o comêço dêste século, o Freudismo,
-
�J�
ti_õ-sedÜtor p ���-ã���i� _ �itq!����q!!_�-j��
··

depressa dá a ilus.�.9 �. !�gQ�-�pJ!ç!.r:,_ ��t�inou


'

.
..

.j
.

- ·- . . .. . .

indubitàvelmente enor�es q�ª�!t_�ç!�-� 9. � senso


-- .
- ·-

"'" - · · · . . .,
.

moral com a sua noção tão fàcilmente com-


·--· - .
.. ,.___

preensíve!__qo .i.�.·. ·�j�-· �ti��-a sublimãÇio ; �


I

u ,

Apesar de na:o excluir, em absõíütõ�·- ümà. certa


independência do espírito, por aquilo que implica, ,


'

o freudismo é na sua essência ainda mais anti­


I
I
'
.

-cristão que a teoria ética do marxismo. Com '•

efeito, estabelecendo os instintos infantis como


.

'
I
'

I

base de tôda a vida da alma e do espírito, subor- J•



.

dina a virtude-para usar a terminologia cristã



'
·. '
I

(
: -ao pecado e fixa na carne a origem úlHma do •

l
�onhecimento das mais altas verdades.·



I
Repita-se, o autor não se permite aqui julgar
os méritos da psico-análise enquanto hipótese
prática ou princípio terapêutico. Mas, da mesma
maneira que o freudismo concorreu muito para
debilitar a norma crítica no campo intelectual,
, como já foi dito, assim agora parece também ter
contribuído consideràvelmente para que a moral . .

se desarraigasse do solo da consciência e da con ­


i vicção fundada em dados positivos. ••
' .

'
'


.

)

''
·--- --- - - �------------
-
__:� ··
OECLINIO DAS NOR�tAS MORAIS 117

Estrictamente falando, o factor estético, ·o



·· último dos três factores citados que têm minado


· o sistema moral do Cristianismo, deveria prece­
der os outros dois. A sua influência já se pode
notar no século xvm. Simultâneamente com a
debilitação das bases das convicções morais pelo
afrouxamento da crença religiosa, inicia-se um
processo de dissolução, devido a reacções esté­
ticas e sentiment:tis. A literatura verificou a faltá
de verdade nas descrições convencionais da vir­
tude e do herofsmo. Com o novo culto da. virtude,


baseada em alicerces naturais e burgueses julga­
<


.
'
dos suficientemente sólidos, sentiu-se a necessi­
dade de sujeitar a sua qualidade a tests mais
,

rigorosos. E então que começa a fazer-se sentir


\• •
••


uma certa compreensão da co-responsabilidade;
'

das condições sociais no vício e no crime. A lite-.


I
1'
'

'
ratura começa assim a ilibar de culpas as Oret­
. .

chens e as l\1anon Lescauts. À medida que o


I

instinto romântico ganha terreno, a veneração


da virtude romântica mistura-se com uma depr�­
ciação romântica da mesma virtude. Virtude e
respeitabilidade, durante tanto tempo objectos de
louvor, passaram de moda; sentem-se, mas s6
como fontes dum pejo embaraçoso. Com a lógica
peculiar ao desenvolvimento dum género lite·
rário, o interêsse desvia-se mais e mais da vir­
tude recompensada para as más acções i mpunes.
,

Quando posteriormente, nos fins do século XIX,


outras fôrças anti-morais começam a exercer
uma influência crescente, a literatura afasta-se
118 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
' •

·.) .
.

cada vez mais do ponto de vista étic�. A aboli·


çlo da censura dá-lhe a liberdade de se permitir
( I

-�
.

(


seja o que fôr. Para manter o seu público, um
género literário tem de continuar a suplantar-se
a si mesmo até se exting ui r O realismo literário
.

procurou a sua tarefa, em grau sempre crescente,


primeiro no desnudar do humano e do natural,
mais tarde também no do perverso. Não se pode •

dizer que ao proceder assim assumisse a função


daquela literatura obscena que, desde tempos
imemoriais, tivera uma existência mais ou menos I

: secreta. Mas, entretanto, um grande público de j


I

certo modo simples, ia-se acostumando cada vez


·

f

mais aos excessos da liberdade literária, pronto l


l l
' I
.

t a to e rá os porque �ôra ensinado a associar- lhes


-
. I

,

a idéia de arte.
tI
i

l't É uma questão pendente a de saber se, e até


que ponto, o abandono das normas mo rais em


\ literatura exerce uma i n fl uência di recta e cor- [
\ ruptora no públ ico. Se é verdade que sentimos :l
� por vezes certo pasmo ao ver as leituras actuais da t

� juventude dos dois sexos, não é me nos verdade t


•i
·�·
-
. que o observador imparcial ver se á obrigado a
'
- -

� confessar que Jo repúdio premeditado de todos os '


'

\ .
.
1
; princípios morais e o coquetismo com o crime, que .

••
I freqüentemente serve à literatura para reg al a r o !

i seu público, parecem não despertar na nova gera- )' .
ção grande desejo de se moldar pelo padrão lite- \) •'

.�

r ári o 1 Mesmo aquelas mostras de imoralidade 1


·\
'

a fectada, cuja orige m se poderia buscar nas influên- 1


• .i
cias literárias, parecem estar hoje fora de moda/ ,,
'

r.
'

.
I
DECLfNJO DAS !'-!OI�MAS MOI�AIS 119

Digamos aqui alguma coisa acêrca do filme.·


Acusam-no de muitos crimes. Dizem que esti·
mula instintos mórbidos, promove a criminali­
dade, corrompe o gôsto popular· e inspira o
temerário cultivo dos impulsos sensuais. Em
oposição a isto, poder-se-á argumentar que o
filme, muito mais que a ficção literária, conserva
na arte as antigas normas populares do juf.z
·ético. O filme deve ser considerado factor moral 1
mente conservativo. Se nem sempre exige um1
recompensa para a virtude, quere pelo meno
que se lastime a dor da virtude sem recompensa
Quando o filme justifica o malfeitor) afasta o
efeito corruptor de tal justificação, focando .q
elemento cómico. oti introduzindo o elemento
sentiptental do sacrifício por amor. Para os seu $
heróis exige uma afeição compassiva e dá-lhes a
recompensa dum desfecho feliz, efeito indispen t
sável e culminante de todo o verdadeiro roman }

tismo. Em suma, o filme incita à ordem moral


r
solene e popular, livre das perturbações das
dúvidas filosóficas ou de quaisquer outras. \
Dir-se-á, talvez, que tudo isto é verdade, ma
por meras considerações de bilheteira. Estas con­
siderações, porém, são doterl!linadas mais pelas
exigências do público que pela tesoura ameaça­
dora do censor. Pode, pois, concluir.:se que o
.código moral do filme corresponde ainda aos
req�isitos da consciência popular. i E isto na:� é
de somenos importância, pois prova, em parte,·
que a subversão multiforme da teoria morat

••

'
I; '
�I
.. .. ..
. .• .. ·120 NAS. SOMRRAS DO AMANHA
. .

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J..,.,!

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.


.
..

ainda pouco fêz para afectar . os sentimentos­


.
., I
. .,
o

1!
• • .
• ,•J
"

essencialmente morais do grande , público. J i


I o ..

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'
•. ' '·

vamos ver até onde vai essa prova. ·�



.

:J

l

I
••
.,
I

:I
' A nova tendência para exaltar o ser e o viv.JJ.r1
. -
•I
dando-lhes a primazia sôbre o compreender e o·
!
.I
I
I
1
avaliar, aparece, portanto, delineada no pano de

i fundo da desordem ética. Esta tendência, que


.

1I escarninhamente se nega a ser guiada pelo inte- j'


!
lecto, não pode encontrar direcção em qualquer
I
j espécie de ética conscienciosa dos seus alicerces
A
I
I

••

no "conhecimento,. Mas que fica então para a



. i..
guiar e dirigir, se já se não procura a directriz i'·
'

numa crença metafísica visando uma felicidade


I
incorpórea e extra-mundana, nem no pensamento
ansioso de verdade, nem numa ordem moral
ampla e geralmente reconhecida, que contenha
valores, tais como justiça e caridade? Como sem- t
J
l
. pre, a resposta terá de ser: Só a própria vida; •

'í. .
vida cega e impenetrável. O repúdio de todos os
.

fundamentos espirituais, como conseqüência da


nova atitude, poderá ter gravíssimos efeitos e
disso estão certos os seus próprios adeptos.

O deterioramento geral do principio moral


manifesta-se mais ainda na tendência da moderna
sociedade para tolerar,perdoar e(áctamat)lo quê
numa alteração das normas da conduta individual..

Se a violência, o lôgro e a crueldade, mais em


:.
I
'

.

- -· --- - --------';_
DECLlNIO DAS NORMAS MORA IS 121

'..
••
'

..
' •
.
• voga que antes, encontram expressão na acç!o
individual, isso deve-se mais das vezes ao resíduo
,
de desmoralização e exaspêro deixado pela Grande
Guerra com o seu funesto cortejo de ódios e misé..
,

rias. E por isso que a deterioração geral do sen-


tido moral dos valores pode observar-se melhor
nos países menos afectados por êsse cataclismo.
� ste deterioramento aparece bem nítido na apre­
ciação da conduta política quando contrastada
com a conduta económica. Se se trata, por
exemplo, de transgressões morais em negócio, de
agravos à boa fé comercial, de atentados contra
a propriedade, etc., a atitude popular é quási a

••
mesma: condenação sincera, algumas vezes subli­
\ nhada por um sorriso tolerante. A tolerância
'
• '

aumenta e atinge um certo grau de admiração


'

proporcional ao escopo do delito. O escroque •

,.
.
internacional encontra mais simpatia que um
'
I
simpl�s empregado de escritório. Na atitude
. .
perante os grandes escândalos financeiros penetra

I
uma certa admiração pelo talento com que a
técnica da burla entra nas finanças internacionais.
Não obstante, no conjunto, o julgamento moral
do delito económico parece ter ficado imutável.
A •

na sua essenc1a.
A situação muda radicalmente quando a parte
que constit6i o objecto a julgar pertence ao
Oovêrno ou age em seu nome. Na sua atitude
perante a conduta política, isto é, perante actos
praticados pelo Estado ou por qualquer dos seus
órgãos, o grande público revela-se cada vez mais


122 NAS SOMBR"S DO AMANHA


. .
• •• •
.

•• t •


...

.
'

. .
incompreensivo no seu juízo moral. Excepto, .

evidentemente, quando a parte agente é um


Estado estrangeiro ou um elemento de oposição
dentro do Estado e que desde o princípio foi '

estigmatizado de "inimigo". Mais ainda, a ten-


� dência do público para aclamar e admirar as
grandes acções políticas não se limita apenas
aos actos do Estado a que deve obediência.
A adoração do sucesso que, como vimos atrás,
exerce uma influência atenuante na apreciação
r do mau procedimento económico, é capaz de
eliminar pràticamente do juízo poUtico tôda e
qualquer indignação moral. E essa adoração vai
a tais extremos, que muitos parecem estar pron­
tos a ajuizar de uma organização política, cujas
doutrinas fundamentais detestam, pelo grau de
sucesso com que ela leva a têrmo o seu objectivo
prefixo. Incapaz de ajuizar da natureza dêste objec­ ,

tivo, dos meios com que é perseguido, e do


ponto até ·que êl� na realidade é executado, o
espectador contenta-se com os sinais exteriores
de realização, os únicos que o leitor do jornal
ou o turista pode observar. Dêste modo, um
sistema político que primeiro o cumulou de '

desgostos e a seguir de mêdo e de pavor, poderá


ainda, a pouco e pouco, obter o seu bom acolhi­
mento e até mesmo a sua admiração. Injustiça,
crueldade, coerção da consciência, opressão, fal­
sidade,· perfídia, dolo, violação do direito?­

Mas vêde como êles embelezaram as cidades e
que maravilhosas estradas construíram I
DECLINIO DAS NORMAS MORAIS 123

Não é casualmente que muitos julgam ver no


··progresso da ordem e da eficiência exteriores a
I
justificação óbvia da violência e da injustiça.

Ordem e eficiência sempre foram os indícios


mais visfveis duma organização política que
funciona devidamente. Mas dormir a sono solto
apenas, não é prova bastante duma consciência
tranqüila!



••
'

XIV

Regna regnis lu pi?

" O Estado não pode causar danos,. São as


palavras duma teoria política disfrutando presen­
temente de uma popularidade que se estende muito
para além da esfera do lv\oderno Despotismo.
Segundo esta opinião, o Estado não se pode
considerar obrigado às normas morais da socie­
dade humana. Qualquer tentativa para o subme­ •

ter ao veredicto do juízo ético terá de se inutili­


zar de encontro à independência absoluta do
polftico como tal. O Estado está . fora de . tôq� a
--

ética. Poder-se-ia preguntar: e_ ta��ém. �.cim.� q�


·· tôdà · á · etica? Talvez que o teórico do Estado
amorái evife afirmá-lo. Recorrerá à construção 1
que já vimos anteriormente, a construção do J'
político como categoria absoluta, governada itni- t
camente pela oposição amigo-inimig'!, quere di- \
zer, por uma oposição que apenas expressa •
·

perigo e obstrução, e o esfôrço para os eliminar. •

I

·.
NAS SOMJH�AS DO AMANHA
I

, .

.
••
"
Com efeito, como já mostrámos atrás, nesta. ..
:.;
(\
..
.I
;

oposição 11 amigo ,, nada mais significa que 11 não


,.,
. '
.,
.
I

perigoso,. Portanto, o Estado tem de ser jul­



gado somente pelas suas realizações no exercício­ \

do Poder.
'li
�I
III
Embora esta interpretação em si seja nova,
III I

a teoria do Estado amoral pode ser tudo menos .


I

nova. Iv\ais ou menos justificadamente, pode •

dizer-se que deriva de pensadores como Maquia­


vel, Hobbes, fichte e 1-legel. Na própria histó­
ria a teoria encontra, aparentemente, valioso
,

apoio. E que, em verdade, a história pouco mais


patenteia que avidez, ambição de poder, inte­
rêsse pessoal e temor, como motivos dirigentes
das acções redprocas, concordantes ou opostas,.
..
.
dos estados entre si. A época do absolutismo
:n sistematizado reünia todos êsses niõtivõs sob a
... . . ..
. -....

••I � . ... . . .

.. designaça:o�de uraison d'état " .


�I .
Em séculos .... passados; o contraste entre a
=I
... ) prática poHtica e a teoria cristã ainda podia ser
�I
.
� fàcilmente apagado e absorvido pela ilusão de
. que os actos do Estado, por mais cobiçosos e
violentos, tinham em última instância o o_bjec-·
tivo de defender a fé , a autoridade da lgrejar
o direito divino dos reis ou a justiça cristã •.

O pensamento político dêsses velhos tempos,


f com as suas noções bem simples e imper­
, feitas, aceitava prontamente estas altfssonas re-·
. ..

presentações. Os incapazes de se erguerem ao­


I•
i,.: .

J
••
· grau de optimismo requerido, procuravam refú­
:l
' .
,I
.I . gio numa idéia que lhes permitisse mànter a.
.�
. ·. ·

.I. '
I'
..
•'

� ---··--- . -· --- - ---· - . - - ·-- -----


--- -· ·· ·- -··-
1?7

.
•. .

sua crença no carácter moral do Estado como


: instituição poUtica. Consideravam a perene tra­
gédia da violência e da injustiça como obra
pecaminosa dum Estado que não conseguira
·

santificar-se. Ainda em virtude desta concep-


'"'
ção, o princípio de que Estados e Governos
tinham obrigação de viver segundo os pre­
ceitos da fé e da justiça, permaneceu intacto.
O Estado não podia ser autorizado a dissociar-se·

da moral.
À medida que o pensamento político desviava
a atenção dos princípios gerais para a obser­
vação da realidade e perdia a sua susceptibili­
dade a ilusões mais fortes, desenvolvia-se uma
concepção de ordem internacional baseada nos.
alicerces da antiga filosofia política, da ét �ca
crista:, do código da cavalaria e da teoria jurí­
dica. tste ponto de vista era um dos que, desli-·
gado da fé como tal, concebia as nações como
membros duma comunidade, obrigados a res­
'

peitarem-se mutuamente e a observarem as mes­


mas regras de conduta que a lei exi e das·
pessoas que vivem em sociédade. Gróci Cleü
a êste sistema a forma clássica que hoje serve
de exemplo cintilante àquêles que se esforçam·
. por assentar os alicerces duma ordem interna- ·

cional sã.
Quer os motivos cristãos e jurídicos para uma.
lei moral, quer um código de deveres para o
Estado são enfàticamente negados pelos teoristas
da amoralidade polftica. Não são apenas os intér-
128 NAS S(',\tBRAS DO AMANii,\
o

'
I

t pret�s·d as teorias fascistas que tomam tal atitude.


f
I
I
Encontram-se muitas vezes .outros, sobretudo
entre os historiadores. A propósito, seja-me per­
mitido citar aqui atguns passos de Oerhard Ritter,
'·�

I I cujo significado é ainda maior pelo fãclõ dé sal-


,I

I
rem da bôca dêste eminente e desapaixonado his­
I
_ ad.Qr. " Na época. dá Ref õrmá", diz Ritter, a
!_od
I Alemanha " estava ainda muito longe de fazer uma
I
I
l idéia nítida da autonomia absolutamente neces­
I l •

sária (natur11otwendig) da sua vida política com

\
I
respeito à Igreja e à sua doutrina moral tradi­
I ciOnal " . faltava ainda aos principados alemães
I j
t ''a consciência da autonomia moral do Estado
....

secular,. finalmente, no fim do artigo, alega-se


que as idéias , de que tôda a luta política pelo
poder tem de se justi ficar perante a ordem divina
I que rege o mundo, de que tal luta encontra o seu
limite absoluto na noção duma lei eterna estabe­
I
lecida por Deus, e de que a comunidade europeia,

I
I abstraindo de todos os interêsses nacionais opos­
I tos, deve constituir uma comu nidade baseada na
moral cristã, são tudo pensamentos cristãos auten­
ticamente medievais. Se até agora estas tradições
ainda não desapareceram por completo da polí­
tica inglesa, se ainda aí continuam a fazer-se sentir
sob uma forma secularizada, enquanto as gran­

des nações continentais admitem, duma maneira


geral e sem grandes escrúpulos de consciência, o
\t
,:
carácter puramente biológico (natarkaft) de tôda
, a luta pelo poder terreno, .isso deve-se. às guer•
ras confessionais que tanto fizeram para mode..

I

'REONA REONIS LUPI? · 129


l

, lar as atitudes espirituais dos povos europeus e :

para os diferençar uns dos outros (�).


:
. .
· Para o · sociólogo. J(ari .. .NIª-Q.nh�i� _pQ Utica� . •
,....,._ -- - ___.

mente esquerdista, o carácter �moral do Estado


támbém é-· éõisã· na tÜral. Referindo-se à obrà de .._

fri;ciriêii
.

Meinecke, Die ldee der Staatsraison,


. .

..
iãiã da ;, tensão moral, que se produziu na mente I

de muitos pensadores, "quando verificaram que,


pelo que tocava às relações externas dos Estados,
a ética cristã e social não se aplicava" (1). Segundo
lv\annheim, o processo pelo qual se chegou a esta
descoberta foi que tôdas aquelas camadas que .
11

de algum modo estavam ligadas .. ao Govêrno


tiveram de se persuadir a pouco e pouco de que
qualquer meio, por mais imoral, pode ser legiti·
, mamente empregado na aquisição e preservação
da autoridade ·soberana'' C). Como já fizemos
--
·
•.
.. _ ·-· ----

'(1) «Die Ausprãgung deutsc/zer und westeuropiiischer


Geistesart im Konjessionellen Zeitalter», lfisforische Zei·
tsclzrijl,149 {1934), pág. 240. (Comunicação ao Congresso
Internacional de História em Varsóvia, Agôsto d e 1933).
Esta citação deu origem a uma interessante troca.de corres·
e_��dência com o profcssõr'Rilter· i1a qttãl éte · me ·expliêou
quea· deslgnaç!lo 'de-iautoiiõiiiiã" ijtOral" não devia ser inter·
pretada como implicando uma aceitação incondicional� da
persistência
sua parte, do Estado amoral, e que além disso, a
das concepções medievais de «direito eterno • no pensa ..

mento politico inglês, em sua opini�o, é mais uma superio·


ridade sôbre as idéias continentais do que um sinal de atraso.
'
\ (Z) o itálico é meu. Note-se como a normâ.ética é aqui
eliminada d priori.
. . . .

- . .

.
·. :': (S) : Loc. cit., pág. 38. · · · .
. .
.

. . .. �

'

""""""'..,....._ _•• •
.. •J
-..N �:i
·n ....
<,.i11*'.6'' +..';•

t
'
I

.
J
' J30 NAS SOMBRAS DO AMANHA

;.lIi

.
• j·
••

-


notar a crescente , democratização , da socie­


I'
.l
•.

; '

·I
c b
dade a a ará r familiarizar tôdas as classes
jl
corit esta "moral do .Estado n. 11 Até aqut a taca
oI

da pilhagem foi conscienciosamente admissível


11

apenas em casos extremos e limitara-se aos gru­


li
pos dirigentes. Mas êste elemento de violência e
ii

a ética em que repousa, longe de afrouxar com


11
'

a democratização da sociedade, torna-se a filo­


li
"
sofia publicamente reconhecida de uma sociedade
11 inteira,. Mannheim reconhece o enorme perigo ·
l.i desta ��apropriação duma atitude política por
. tôdas as camadas da sociedade
'

:1 "

.Quando às
11

11
massas se dá a entender, com clareza, que a
11
rapina é a base e o princípio dirigente da for­
!I mação de todos os Estados e de tôdas as relações
externas inter-Estados, e que pelas espoliações
1 no b1terior, grupos inteiros podem tam�ém ser
li
privados das suas funções sociais e do fruto d o
I
seu trabalh o , , então é o fim do elemento ético
I
no trabalho com a sua sólida influência na socie­
dade. Mannheim revela aqui uma alarmante con­
seqüência da teoria da amoralidade política, ou.
seja. que esta teoria não pode ser monopólio do
Estado, e que grupos mais restrictos, digamos,
'

quási públicos, também se servirão dela, ada­


ptando-a aos seus fins.
Se aqui o juizo sincero e clentífico atinge tão
funestas conclusões, não nos espanta que os par­
tidários activos desta polftica falem uma lingua­
gem ainda mais ominosa. Por ocasilo da inau­
I
·�

guração solene de uma nova cadeira de direito



....
...... ..
- . �
· - ·-
- --
--- -----
- ---
- .-
-�--
- ··
· - �s�ar
-i · � ----•Jl•.
�*�"�'•'" �e:e�l4
' ���. �,
+ --'
REONA REONIS LUPI ? ·191
.

.. : �emlo, segundo informações da imprensa, o


Comissário da Justiça do Reich declarava •nlo
ser verdade poder fazer-se polftica recorrendo a
uma determinada justiça idealista. Urgia acabar
com essa ridfcula teoria ; só a dura necéssidade de
p1antera.seguraoça_do Es.tado. P-Oderia d�terminar
o que é e o que não é justiça. A terra pertence
aos heróicos, na:o aos decadentes I · fora, todos
,

vós, decadentes, que desde Platão tendes satu­


rado o mundo com as vossas fúteis tagarelices!

O Estado, pois, segundo estas idéias, pode 1

fazer o que lhe aprouver. Nem falsidades, nem \


dolos, nem abusos de confiança, nem cr.ueldades, ·
'

quer para com estrangeiros, quer para com \


nativos, nada disso se lhe pode censurar ou


levar à conta de dano , quando serve os seus
·
próprios fins. O Estado pode combater o inimigo
por qualquer meio julgado útil ao seu objectivo
e recorrer a todos os extremos, sem excluir a
diabólica guerra bacteriológica. A propósito, nos
meus primeiros anos da escola os compêndios
de geografia diziam que só certos povos, os
mais primitivos, faziam uso de setas envene­

nadas, e que êste costume desaparece quando a
.
'
.
sociedade atinge um nfvel um pouco mais ele­
vado. Gostaria de saber se isto ainda se encontra
nos livros escolares actuais. Caso afirmativo,
· parece chegada a hora de os revermos ou de
nos revermos a nós próprios.

- . . .. ..., -
. . ._.....
.
...... - . -� ..
.. .
-- ..
.
o

�1
NAS SOMBRAS ·oo' AM.ÁNHA
i
I

'

'
o

o•

I · � · Para o Estado não pode haver delitos polfticos


l
tienl' crimes que êle possa.,cometer. Em tepria
istt>· também se deve aplicar ao · Estado iidmigo.
Êst'e também deve estar imune da condenação
e· do juízo moral. Mas aqui revela-se imediata­
mente à lastimosa debilidade destas idéias sôbre
'· o Estado, plenas como estão dos odores cor­

t
'
\
ruptos da avidez e da loucura humanas. Na
I
r .Prática,· esta pomposa teoria do Estado fora
•!
.
:de tôda a moralidade é válida unicamente para ,

,\

r.·l
o próprio Estado. E que, quando a hostilidade
'
..
atinge o ponto crítico, a voz serena e sublime
ttb · argumento transforma-se em guincho histé­
'•
\

.
o


iico, buscando àvidamente a insinuação e a difa­
f,


I
·rilação do inimigo no velho arsenal da virtude
''


o
·� do pecado : a mendacidade do inimigo, a sua

i duplicidade, a sua crueldade, as suas artes dia-


'I

o
· bólicas! Mas então o inimigo também não é um I

Estado?
o

J -Não pode haver; pois, obrigações políticas


o

·

·párk · com o estrangeiro. Nem existe coisa


I nénhuma chamada honra política, na medida em
l

'
que tJor honra se entende lealdade aos ideais de

o
alguém. E onde ·a obrigação e a honra faltam, a

o • confiança e o crédito têm de estar também
ausentes. R.eglla regrris lupi, o Estado lôbo do

Estado. Nâo é uma lamentação pessimista· seme-


J lhante ao. velho homo.Jzomüz(,lupus, mas um
.
, ..

dôgnia e um ideal polftico. Ora, infelizmente



• para esta teoria, tôda a comunidade, até inesmo
••

a dos animais, se baseia; na confiança mútua de

" . ..... . -·· . .. .... -


--- ------
REONA: REGNIS LUPJ?

1�
. 3!
.\
·
· ·

seres que ·.se podiam exte�minar. uns .aos . outros.


Sem confiança mútua é. ·impossí-vel
' . uma ·comuni-:
dade
. de seres
. hu.manos ou de ·Estados. Um Estado
que brasona o seu escudo com o "Não me creiam,,
e é isto que os te óricos do Estado amoral dese\'" .

jariam que êle na. verdade fizesse , só poderia:



it
existir � um mundo de sentimentos idênticos,: s.�.·
mantivesse uma superioridade absoluta de fôrqas.
sôbre todos os outros Estados coligados. E assim, �

a lógica da autonomia nacional absoluta condu�
à quimera dum universalismo político. : . . ·
.r
I
..

f
'

De todos os _ perigos que ameaçam a civili­


zação ocidental, esta doutrina da autonomia
. moral, ou antes amoral, do Estado é sem dúvida.
o maior, visto que diz respeito ao mais poderoso
I
factor da sociedade humana, que pode fazer ou
despedaçar o mundo a seu belprazer. Tal dou­
trina acarreta como conseqüência inevitável ·a
destruição recíproca, o depauperamento geral e
a degeneração das unidades em que assenta a civi­
lização- os Estados-nações. Além disso, ameaça '•

estas unidades com a desintegração interna, em


virtude da certeza de que qualquer grupo, jul­
gando-se suficientemente forte para conquistar
·
pela violência, arrogar-se-á aquêle mesmo carác-
ter do Estado, chave da isenção de tôdas as
.
I obrigações para com os outros. Por conseguinte,·
na esteira da supremacia amoral do Estàdo.
seguem a anarquia é a revolução.
I
'
I
I .

' I
NAS SOMBRAS DO AMANHA
I. i '
I

...

t• I

: I

1' A declslo arbitrária do que é o interêsse do


1: I.
Estado e como deve ser perseguido, terá de ser
sempre tomada pelos chamados chefes. Contudo,

o juramento pelo qual os seus sequazes lhes ficam


�I

l obrigados nunca irá além dos limites da confiança


��
'

na sua sabedoria polftica. Sempre que haja diver-



l! 1 gência de opiniões dentro do grupp mandatário


e que a divisão assuma proporções tais, que cada

uma das facções se veja constrangida a impor o

I
seu ponto de vista, o mais forte ou o mais deci-
• '
...
dido terá de submeter ou exterminar o outro .
t
.

11
11
Desta forma, também a prática dos coups d'étát
l
I
,

t f
e das revoluções de palácio é conseqüência inevi-
tável da lógica do Estado absoluto.
(

'
Visto que a teoria do Estado amoral encerra
I

a negação de todos os princípios de verdade,
honra e justiça, principias humanos universais, a
coerência há-de exigir dos conversos a e�ta teoria
a sua franca renúncia ao Cristianismo. Todavia,
!
t. não. o fazern; pelo menos unânime e incondicio-
.,

nalmente. Dizem com Tartufo : Il est avec le clel I


,,


des acconzmodeme1zts , . Com efeito, a êste céu

I' querem êles por vezes- de maneira pouco cava-


..

lheiresca - impor os seus arranjos. Temos aqui


'i

! um exemplo frisante daquilo a que chamámos


i ambivatência do pensamento mo_dernQ. Oll
.

! dizermos Q m.esmo em têrmos mais c_p_m�inh.os, o

\
uma esforçada tentativa de agradar a Deus e ao
tDiabo. Proclama-se uma teoria polftica em con-
\
. .

flito directo com o Cristianismo e com tôda a


< ética filosófica q ue preserve a noção de uma lei
)

:

.
Jl -...
. ,- ' ' '
• '·
• • • •'I I ' • • - •
'
RI!ONA REONIS LUPI ? 135

· moral Jmut4vel fundada na consciência. Stmul·


tâneamente professa.se a intençlo de manter a
Igreja e a sua doutrina, pôsto que comprimida
pelo colête de fôrças do Estado totalitário.
Esta atitude difere muito da dos séculos pas­
sados. Desde o século xvr até para além dos prin­
cípios do século xrx, os Estados nacionais, duma
maneira geral, não se conduziram com maior
grau de moralidade quê hoje, nas suas relações
mútuas. Contudo, recusavam.se a aceitar quais·
quer difamações do seu carácter cristão ; de facto,
proclamavam-no ainda como senhor das suas
acções. Não há dúvida quê tudo isto encerrava
uma boa parcela de hipocrisia, uma hipocrisia
nada menos censurável, porque falava �ais pela I
bôca da comunidade politica do que pela da g1
consciência pessoal. Todavia, a conduta politica I
continuava a ser regida por .um preceito univer-
"-
i
. sal· e sempre que a prática estivesse em flagrante
contraste com o ideal, a opinião pública não
, se coibia de censurar por injustos os actos do
Estado.
A posição que o Estado de carácter declara­
damente amoral se · arroga hoje, é muito dife­
rente. Como Estado reclama autonomia absoluta
e independência de tôdas as normas morais. Na
medida em que êle permite à Igreja e à religião,
com o seu código moral explícito. e obrigante,
levar uma existência própria, a p
osição desta
deixa de estar no mesmo pé de igualdade para
ficar numa posiçlo de submissão e vassalagem

'•
ct� r·\1.. "vw JlL "'�Wr'\ �W}' -u �

JSO NAS •SOMBRAS DO AMANHÃ

coerciva à ·doutrina do próprio Estado. Eviden­


temente que só os desprovidos de tôda a religião�
poderão. abraçar um sistema ético de tão notória
.

ambigüidade.
� lv\as, preguntará o pensador realista, que
<

j

propondes vós para norma moral universal-
..
: mente válida para uma conduta politica e que
·:
i
ofereça qualquer pqssibilidade de observância?
I Acreditais realmente que, enquanto houver com-
j plicações internacionais, os Estados nacionais se
: comportarão como bons meninos entre si ? Não,
j
I

em boa verdade, a história, a sociologia e o


l conhecimento da natureza humana impedem:-nos
j de acreditar em tal. Os Estados continuarão a \
r traçar a sua linha de acção, dominados pelos
i i nterêsses ou pelo que êles julgam ser os seus
! interêsses ; as considerações de moralidade inter':'
j nacional apenas os farão desviar do seu curso,
j quando muito uma fracção d� polegada . Mas
i esta fracção representa a diferença entre honra
I e lealdade e a lei da selva, e sendo assim vai
mais longe que centenas de milhas de ambição
!

e violência.
Os profetas . do Estado amoral esquecem,
julgo eu - e isto é a resposta à pregunta feita
atrás - aquela característica do pensamento mo­
derno que nos permite ver as coisas na sua
determinação " antinómica , , que nos obriga a
temperar tôda a conclusão final com um ,e con­
tudo. ." . O Estado é uma entidade que, dada
.

. a imperfeição de tudo quanto é humano, se há-de

I
REONA REONJS LUPJ? J37

conduzir, com uma inevitabilidade aparente, se­


gundo outras normas que não sejam as de unia
moralidade social baseada na confiança mútua,
para rião mencionar as da religião crista:. E con­ I
I

tudo, êle não será capaz de abjurar, por com- t


I

pletõ , de todos os princípios da ética crista: ou 1 (

social, sem incorrer na pena última de perecer :


·
I

�a conseqüência de tal acto. . / • •

Já a profetisa da ,, Edda, cantava : ·"""'


.....

'

Tempo de ventos, tempo de l&bos,


- antes que o mundo cesse,
Não haverá na terra u m homem
- q ue poupe o seu semelhante.

Cl;ias nós não queremos perecer.� :


'
'

XV

Heroismo

O famoso sinal de Nelson antes da batalha


de Trafalgar não foi : •A Inglaterra espera que
cada um seja um herói , , mas sim a Inglaterra
11

espera que cada um cumpra o seu dever , . · ·;


Em 1805 era o suficiente. Devia sê-lo ainda '
hoje. Foi também o suficiente para os mortos / {
das Termópilas, cujo epitáfio, o mais belo jamais
concebido, nada mais continha que estas pala-
vras imortais: "Viandante, vai dizer a Esparta · ,

que aqui jazemos em obediência ao dever ,.


As organizações políticas dos nossos dias'

apelam para tôdas as idéias vigorosas e nobres


sentimentos de que Trafalgar e as Termópilas
sa:o testemunho : disciplina, serviço, lealdade,
obediência, sacrifício. l\1as a · palavra , dever ,
não lhes basta para o seu ápêlo e por isso
içam a bandeira do heroísmo. O princípio do
,

fascismo é o heroísmo ; o da burguesia, o


egoísmo". Assim rezavam os cartazes eleitorais
.

140 NAS SOMBRAS DO A MANH.�- •



,
._:1

,�!{J.
·
-

que na Primavera de 1934 ornamentavam as ruas .. .


· .;•
da Itália. Simples e flagrante como uma equação � '

t;: "'

algébrica. Uma verdade estabelecida e u m credo.


A humanidade sempre precisou da visão


duma faculdade mais elevada no homem, de
fôrça e coragem humanas e m alto grau, para
apoio e alívio na dura luta pela vida e como
interpretação de grandeza na acção. O pensa­ •'

mento mitológico colocou a realização destas


visões na esfera do super-humano. Os heróis
eram semi-deuses como I-lércules e Teseus.
Num período glorioso da J-Iélada, o têrmo foi .

'

também aplicado a ser�s humanos vulgares ; tais


.. .
eram os que . tivessem. tombado pela pátria e •

>
'

os tiranicidas. Mas eram sem pJ:.e_os mo.d.os� .


.l � •

A essência da idéia do heróico era o culto dos


..

mortos. O conceito de herói não estava muito ' l,.


. .
longe do de bem-aventurado no além-túmulo.
.

.
. t.
Só muito mais tarde é que êle começa a ser J
'

, usado em referência aos vivos, e mesmo então


só no sentido retórico.
No pensamento cristão a idéia de heroísmo,.( '

como é natural, foi ofuscada pela de santidade.


A concepção cavalheiresca da vida na época ·


I
'

feudal revestiu o conceito de cavalaria de tôdas


/

as funções do heróico: serviço nobre aliado ao


� gi§tã:_o_. .
'
Com a Renascença, o pensamento europeu
, .
. .• . •

I I

começa a imaginar o homem superior sob uma


. .

\ nova forma. A ênfase é desviada para as quali-·


I
dades do espírito e �omportamentonasociedade� - . ..
· .
'

••

.
••

------ · -
· .
·. .
.
HEROfSMd

• ' .

.


;N·� virtuoso ou UOinO singolare a cor'àgem é 56
�ma .virtude entre muitas, o sacrifício pessoal já
nio é caracte rística dominante, ó sucesso é o que
'1mporta. Só no século xvu é que o esp anhol
·Baltasar Gracián dá a velha designação de lzéroe
a uma concepção desta espécie. No mesmo século
o francês héros · adquire um novo sigliificado .
.

· A tragédia francesa personifica as qualidades do


.

heróico no herói trágico ; ao mesmo tempo as


guerr�s de Lufs XIV fazem nascer uma adoração

I'
pelo herói nacional, adoração de carácter militar
que se exprime ao som de trombetas e tambores
• • e se espoja em pomposas decorações e bombás-
••


'
• ticas palavras. ,


No século xvm esta imagem do ,; grande
homem" modifica-se .uma vez mais e pe rde a
sua homogeneidade. Os heróis de Racine deram
·tugar aos de Voltaire, pouco mais que títeres.
A idéia democrática em desenvolvimento encon­
tra a ilustração do seu ideal nas velhas figuras da
· virtude cívica romana. O espírito do racionalismo,
. da ciência e do humanitarismo , expressa o ideal
no conceito de , génio , , das Oenie, cujas quali­
'

I •
dades são por sua vez diferentes das do virtuoso
da Renascença. Na idéia de " génio , , a acção vio­
·tenta e intrépida já não alinha na frente. Depois
I•
:
· O romantismo nascente descobre ainda um outro
·tipo de. herói que em breve havia · de exceder as
..

j.

.:1:
�formas gregas �o mo imagem sugestiva : o herói
'

:.céltico e o herói germânico. Para o espírito apa­


r:tthado itas· m·ath as da · rascinaça:o do ptimevo, ás

.
. .
.
-·-- ·-.. ·- -------
I

142 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ I

.
·'

t.!
;.

qualidades arcaicas , vagas, truculentas e sombrias r •

destas fantasias exerciam uma atracç�o irresisti­


I
.

vel. É curioso notar que o tom do conceito de


herói dos tempos modernos tenha sido dado
pela poesia de Ossian, 45 por cento falsa e
todavia tão importante.
I
Durante todo o século xtx, a representação
I do heróico foi, em reduzida escala, um modêlo
r i e um ideal a seguir. O "sê como êstes , que tão

'

claramente traduzira o ideal da cavàlaria, for


enfraquecendo à medida que a visão heróica se
t
'i'
I .
1 '
tornava o produto crescente da ânsia de imagens.

! do passado por parte do . historiador. Os heróis


.
.

germânicos emergiram dos estudos dos eruditos


que propagaram a história e a poesia antigasr .
.

l
.{ mas sem que êles mesmos tomassem Siegfried ou. .
'
I

L Hagen para seu modêlo de perfeição.


•'

'

O espfrito do século XIX, tal como se mani­ ' 1


.

/
I .
festa no utilitarismo, na liberdade civica e econó-· •

mica, na democracia e no liberalismo, era pouco


'

inclinado à formulação de normas super-humanas ..


Apesar disso, a idéia de heroísmo continua ainda
I
a desenvolver-se, desta vez numa forma anglo­
-saxónica.
A tempestade Byrónica surgir� e passara,
'ogo q ue Emerson pegou na pena. A sua con­
cepção do heróico não passa de uma fraca reacção
,

contra o espírito do tempo. E um ideal culto,.


optimista e pulido, perfeitamente compatível com

as idéias de progresso e humanidade. Coin Car-·


lyle, o elemento de protesto é mais declarado,. •

. ...... ------*-····-- ·,··· --- _.t.;_


--- -- . .
..._ ..
--------
- - --...
- ....
...... .-

.

· ·
·HEROISMO 143

I

embora também nêle a ênfase acentuada dos valo­


res éticos e culturais dispa a concepção do heróico
das características da veemência impetuosa e da
luta implacável. Afinal o seu Hero Worshlp ma1
se poderia chamar uma prédica ardente ou o .
��

alicerce dum culto. As limitações sociais da arte 1


de viver anglo-saxónica deixavam amplo espaço.
a um ideal heróico cultivado sob uma forma
literária na pista de Ruskin e Rossetti.
,

E interessante notar que Jacob Burkhardt,


observador mais profundo e censor mais duro·
que qualquer· outro das insuficiências do seu ��
século, nlo fêz uso dos têrmos , heróico• e '·
"heroísmo, na sua concepção do homem da
'
·

Renascença. A sua visa:o foi uma nova visão ·


de grandeza humana, acrescentando traços mais .:
apaixonados à idéia de génio do século xvm. �
A sua admiração pela acção arrojada e pela deter- }
minaçlo confiante do indivíduo dos seus objec- ;

/
tivos de vida, é uma oposição nítida a todos os J
ideais democráticos e liberalistas. Nunca tentou, !
porém, apresentar a sua visão do heróico como· �
programa politico ou moral. A sua atitude para i
com o público foi manter a d�stância desdenhosa j
do individualista solitário. Com tôda a sua vene- •I ·}
ração do enérgico, Burkhardt tinha demasiado �
�l
• ·


de pensador estético para criar um ideal moderno
de heroismo prático. Além disso, tinha muito de
crítico para aceitar e encorajar o elemento mftico- �
-cultural, parte integrante de qualquer noçlo de ·. 1 I

heroismo. Ao tratar de " Die historische Orõsse ,. )


•'


NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

\
;.

•� :Q'; . .
·I

! .. .. . .i
-.t. : .,
·"
I

.{ ••
l• .
.
,.�
� • •

,;
. em Weltgeschicktlicke Betraéktungen, usa. sem•
.

pre a designação de " das grosse Individuuiri ", e


s�· hiutca a" terminologia heroísmo. ·.
·

� ;
Há, pórém, um ponto em que· Burkhardt aju_.
� doú a preparar a moderna . idéia. de . herofsmo.
J
.
Com . efeito , êle dispensa pràticamente da lei

/ � 'inoral o grande homem que faz parte da sua ..


.
1: :
• r

q vis·ão da ·Renascença, sem contu do interpretar


� filosoficamente esta isenção. ·
l

· As idéias de Nietzsche sôbre as supremas


� potencialidades humanas tiveram origem numa ·
'

agitação intelectual jamais conhecida do espírito


traflqüilo e contemplativo do seu mestre Bur­
·

khardt. Graças ao completo desespêro do valor


da vida · é que Nietzsche vem a proclamar o seu
ide.al do heróico. Era o ideal concebido por um •

espírito que se separava completamente das


realidades práticas da organização polftica e da
,

.
.

sociedade humana, o ideal dum visionário para .


I
sages e poetas, na:o para estadistas e ministros.
·I

\
I
Há algo- de trágico no facto da degeneração
i do ideal heróico ter a sua origem na popula­
�,. ridade superficial que a filosofia de Nietzsche
I
. .

'f

••

conseguiu nos anos de noventa. A conéepçlo do


poeta-filósofo, nascida do desespêro, foi colhida
peló grande público antes· . de ter passado pelas
. provas do pensamento puro. o vulgo dos anos
de noventa falava do , super-homem, como se
. se tratasse de - um irmão gigante. Esta vulgarização
1 prematura do ideal de Nietzsche foi. sem dúvida�
·· \_ o · coinêço da tendência do pensamento, tie em
..

· -··
-- ----
--�--
.
. .. -- ....
- .:::.-.. ,;;.._

HEROISMO 145
.

nossos dias fêz· do heroismo o seu mote e o :seu


,Programa. _

No processo de popularização o ideal do


heróico· sofreu assim uma pasmosa alteração que
) o priva de todo o seu significado mais profundo. '
/
o utulo honorífico de " herói , , embora por 1
vezes retõricamente aplicado aos vivos, ficara
I.
sempre reservado aos mortos, precisamente :
como o atributo santo". Era o prémio de gra-1
I

\
• 11
·.

· tida: o que os vivos concediam aos mortos. Ni n-


guém se .orgulhava de ser um herói, mas sim de\
é umprir o seu dever.
1
l
••

.l
Depois do aparecimento das várias formas !
do despotismo popular, " heroísmo " lornou-se 1
o santo e senha. Heroísmo é uma doutrina poli- i
tica, é mesmo representado como uma nova �
..

ética destronando a velha, que muitos julgam i


já desnecessária e inútil. �eria tolice desprezar f
o valor dêste sentimento. A sua veracidade e a J
sua significação devem ser postas à prova.
O entusiasmo pelo heróico é a prova mais .
·--·

significativa da grande revulsão do saber e com·


, preender para o imediato praticar e viver, facto
� ue constitui por assim dizer o foco da crise
·cultural. Glorificação da acção por si mesma,
...___... narcotização da faculdade crítica pelo sôbre:estf­

.
• mulo da vontade, obscurecimento da idéia pela
beleza �a ilusão, sa:o tudo qualificações que, para

o crente na atitude anti-noética perante a vida, l

10

146 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
.
correspondem a tantas outras justificações do
· heroísmo.

Na:o se pode negar o valor positivo desta


atitude heróica, sistemàticamente alentada pelas
1 fôrca� da �.utoridade no interêsse do Estado.
.. .
..
.
� Tanto quanto heroísmo significa uma forte cons-
.

l
ciência pessoal do dever de se entregar de alma
� e coração ao conseguimento dum objectivo

l comum, heroísmo é um crédito para qualquer


§época. O elemento poético inerente ao conceito
i
de herói é indubitàvelmente de grande valor · a

Í
r êste respeito. Comunica ao indivíduo em acção
aquela tensão e exaltação peculiares que o levam
· a praticar grandes feitos.

I Está fora de tôda a dúvida que a ciência


j
moderna, tornando a vida muito mais · segura
. J que outrora, fêz subir ao mesmo tempo, . e mui-
\; 1 tíssimo, o nfvel gera.l do desprêzo pelos perigos
:•
••

' (
·1 · . de cada dia. Horácio, que cantou a viagem em •

·t
..

·
! navio como o mais destemido desafio à vin-
. j gança dos deuses, como ficaria arripiado se visse


.•'

� o avião ou o submarino 1 O desejo ousado que


'

.

1 uma pessoa tem de se expor ao perigo intenso


;
. aumentou em alto grau. É indiscutível que há
,
i

\ J certa relação entre o desenvolvimento da avia-


· : çào e a difusão do ideal heróico. Saber onde
.

•)
i êsse ideal se realiza com mais veracidade, não

J. oferece dúvidas ; é onde · ntenos se fala dêle, é no


'

. trabalho quotidiano do aviador.


J

----------·
HEROISMO 147 .

··
· Por heroísmo entende-se sair fora dos limites
habituais. Neste mundo é por vezes necessário
que as coisas saiam fora dos limites. Mais uma
. .
vez se chega ao ponto do pensamento em que
-

o jufzo tem de ficar inconcludente. Ninguém


..


pode desejar que o mundo continui, em todos

os seus aspectos, a seguir a confusa viela para


onde o impeliram leis imperfeitas e uma conduta

ainda mais imperfeita. Sem uma intervenção ·


heróica, nem concflio de Niceia, nem destrona­


mento dos merovfngios, nem Constituição inglesa,
nem Reforma, nem revolta dos Países-Baixos,
nem América livre. O que conta é quem inter- J
vém, como e em �orne de quê. Exprimindo-nos
em têrmos médicos, pode dizer-se sem receio que:
o nosso tempo está precisado dum tratamento 5

heróico, contanto que êste seja feito pelo médico ��


devido e da devida maneira. .
Esta linguagem metafórica conduz imediata­
mente a um outro aspecto do moderno heroísmo.
·'

.
A nossa época precisa dêste tónico porque está
·.:

fraca. A exaltação do heróicoé em si um fenQ- ·
-

meno de crise. Demonstra que as idéias de ser- ·

viço, tarefa e cumprimento do dever, já não


exercem no grande público a necessária fôrça
propulsora. Têm de ser ampliadas como que
por um alto-falante. Têm de ser atiçadas como�

fogo que se extingue •

. ·· Por quem, para quê e como ? O valor do


herofsmo político é determinado pela pureza
dos seus fins e pela prática da sua conduta. Se
14B NAS SOMBRAS DO AMANHÃ •'

•• •
.

I' '

. :; e com os Nibelungos· tem de ser diametralmente i:


r

� oposto a tudo quanto seja excitação histérica,


r: jactância, orgulho bárbaro, paradas militares,
e vaidade ; a tudo o que seja embuste a si
mesmo, exagêro manifesto, fingimento e artifí-
1 í g es r
· ! �:·li���:� ;�: �:7os :e����s:�!i: ;�:�:�::�
.' a fôrça da mais perfeita fórmula que o heroismo
'

\ jamais revestiu -a da cavalaria medieval.


O actual heroismo de camisa e braço levan�

..

tado muitas vezes na prática pouco mais signi­


l .

fica que uma tôsca reafirmação do conscien­


ciosismo do nós". Uma determinada entidade


J , nós e os nossos " com o nome de partido,,


11

tem o monopólio do heroísmo e reparte-o pelos


11
!
\
..

seus servos. Tais asserções do conscienciosismo


.

'

I
'

'
, do
....

nós, , ,

sociologicamente são da mais alta


. I. importância. Encontram-se em todos os períodos
. 11

I: '·

e em tôdas as raças sob a forma de ritos,' dan­


-
... ..,
.


j ças, gritos, cantos, emblemas, etc. Se a nossa


-

'•

'
'

época perdeu realmente o desejo de compreen­


'
• •

JI der e determinar racionalmente o seu procedi­


I

,J

mento, seria muito natural que ela voltasse aos


primitivos métodos de instilar o sentido da uni­
dade e da fôrça.
Um perigo ficará sempre inalienàvelmente
ligado à doutrina anti-noética da vida. A prima­
zia dada ao viver em detrimento do compreender
! arrasta necessà.riamente, com o abandono dos
:
\

critérios da compreensão, o ab1ndono das nor-


l

-------..:-..- --··
HEROISMO 149
.
. .

••
>
.

..

.,
'

'

'


'
.
• '

'

.
'

.. ... --·-- -------�-


.
• '
.

,
. •
• • •
- tl : •
.

XVI

Puerilismo
• •

Com uma palavra, cuja profundeza ultrapassa


tôda a compreensão lógica, Platão chamou uma
vez. aos homens brinquedos dos deuses. Hoje .
poder-se-ia dizer que o homem, em tôda a parte, i.

faz do mundo o seu brinquedo. Embora esta


última afirmação seja muito menos profunda, é
todavia mais que uma lamentaçlo superficial.
Puerilismo chamaremos nós à atitude duma
comunidade cujo comportamento é mais imaturo
do que o 'estado das suas faculdades criticas e

intelectuais poderiam deixar supor, que, em vez


de fazer , do jovem um homem, adapta a sua \
própria conduta à do adolescente. O têrmo nada
tem que ver com infantilismo em psico-análise.
Baseia-se unicamente na observação de factos
culturais e sociológicos evidentes. Não lhe atri-
buiremos qualquer significado psicológico. l
Abundam os exemplos de factos correntes �
que exigem a qualificaçlo de puerilismo. O Nor- •

·- -- ------
I

1�2 NAS SOMBRAS DO AMANHÂ


.
.
mandle faz a viagem de estreia e volta da sua jor ...

L

� nada triunfal com uma certa fita azul do Atlân­


:
tico. Nobre rivalidade a das nações! Espantosa


.,

i realização da ciência I Construtores navais, com­


panhias de navegação, especialistas em coisas do.
'
'

mar, todos concordam que os transatlânticos


I

t

gigantes são a todos os títulos impraticáveis. \

I
No inverno o Normalldie é desaparelhado e

!
recolhe à doca ; . não valia a pena trazê-lo
'

.
I
. na

carreira. Assim se volta à prática medieval em


'

.
I

1
,

marinha mercante. O coração do marinheiro r.


-�·: �.

'I

< entristece ao ver que êste palácio ftutuante se


\ há-de chamar um navio. Que o poder de criação
'

personificado nesta obra é impressivo, sim,


I
i mesino inspirador; ninguém com certa luz da
\ moderna cultura será capaz de o negar. Nas

l gigantescas dimensões há uma beleza semelhante


1 à das Pirâmides ; há beleza ainda na refinada
j eficiência interna. Mas o espfrito que superin­
J tendeu em tudo isto não se empenhou em . .
1
\ exprimir majestade ou eternidade. Tudo o que
'

ó o homem aqui realizou, numa transformação



calculada da natureza, vai servir meramente um
\ intento ôco, jogar um jôgo que nada tem de .

comum com a cultura, ou com a sabedoria e .


'

..
...

r

que carece dos altos valores do próprio jôgo '

porque êste se recusa a ser tomado como tal. �. '.


Ou considerai aquêle outro jôgo disfarçado


.)

em negócio, o boavling, que consaste em fazer .- ;


tombar os sucessivos ministérios no meio de


• •

·\•
I
'

1) ''
intrigas de partidos e conflitos de antemão arqui-

\
'

'

••

,,
•t
-: f
.
I

--------� ----- ·----- -------�- ---�


.. 1
r'h �
f1,
PUERJLJSMO !53

. . .r �·.
. ,,
'

'
� � ..· .
I

. teclados, obrigando assim grandes pafses,· ema.. ·

• ranbados nas regras dum parlamentarismo cuja

.fi verdadeira natureza nunca compreenderam, a


'
.
:

' privarem-se da oportunidade duma autêntica puri..


ficação e fortalecimento do seu sistema de go..

. ''
vêrno. Ou pensai ainda nos novos nomes dados
.
às antigas cidades, nomes dos corifeus nacionais
�a época, como Gorki e Staline.
. .
, façamos apenas uma leve alusão àquêle espf
rito de marcha e parada militar que inundou o
..

J
mundo. As multidões formam uma massa com

pacta, não há praça suficientemente espaços ·
que as possa conter, uma nação inteira fica a p
firme, rfgida e atenta como milhares de soldadi
nhos de chumbo. Até o espectador estrangeiro
incapaz de se furtar · à fascinação dêste espectá1 l
culo. Isto dá a impressão de grandeza, de poded
É puerilidade. forma vasia que dá a ilusão du �
desígnio sério e meritório. Os que ainda saq
capazes de reflectir sabem que nada disto. te�
valor. Simplesmente revela quão intimamente s1
\ relaciona o heroismo popular de camisa e braço;
( erguido com um certo puerilismo geral. \
{ O pafs onde o puerilismo nacional poderia \
\ ser mais completamente estudado em todos os 1
\ seus aspectos, desde o inocente . e mesmo atrac..
· tivo· até ao criminal, é a América do Norte. Mas
é preciso ter o cuidado de nos aproximarmos
dêle, livres de quais uer reconceitos. E que a
••
-
Aménca mais nova e mais , gai�ta que a .
n

'
!
Europa. Muitas coisas que aqui erecem ser

. .... . .
..
154 NAS SOMARAS DO AMANHÂ

quaUficadas de pueris, lá são apenás ingénuas, e


=>o· verdadeiramente ingénuo afasta qualquer cen­
�ura de puerilismo. Além de que o americano j{ .
',,
. .

� I'
.

não é cego aos excessos da sua ·mocidade. Não


'

'

criou êle a figura de Babbitt?


. '

O moderno puerilismo manifesta-se de duas


.

maneiras. Por um lado, actividades de natureza


confessadamenté séria e universalmente tidas por
.

'

!
. 5érias, como as citadas atrás� são penetradas pelo

espírito do divertimento e chegam a comportar
tôdas as caracterfsticas dêste; por outro lado,
\
actividades aceites como tendo um ca-rácter de

"'· ) ' ' jôgo perdem a verdadeira qualidade de diverti­


·,..

'

mento pela maneira como são executadas. A esta


1
• •

r··
\
.· última categoria pertencem os divertimentos que
assumem as proporções de interêsses nacionais

h

J
'\..
.

com congressos, colunas especiais na imprensa, '



peritos no assunto, manuais e teorias. Evidente­ '<

mente que se nlo dev�m considerar no mesmo


nfvel daquele sintoma de puerilismo geral parti­
cularmente semelhante, mas superficial, às cha­
madas manias com a sua rápida divulgação
pelo mundo, como por exemplo, as palavras
"

l cruzadas de há alguns anos.


Não será preciso dizer que ao falarmos de •

divertimentos e passatempos não nos queremos


referir ao desporto. E verdade que os exercícios
,

. físicos, caça e competições de atletismo são,


�,'I acima de tudo, manifestações de juventude da •

sociedade humana. Mas êste tipo de juvenilidade


.

'

...

.' '',,\'J
é uma coisa diferente do puerilismo. Sem com- ..
•• <4
.•

'
•,
'
;•·�•
. ,;
'.l
•••

••
••
.
PUERILISMO 155
.
. .do
.
1

. petiçlo não pode haver cultura.· O facto


' nosso tempo ter encontrado no desporto e nos
acontecimentos desportivos uma nova forma
internacional de satisfazer o antigo impulso ago­
. ..
nfstico é talvez um dos factores que mais tem
• •

contribufdo para a preservação da nossa culturá.


O desporto moderno é em grande parte um pre..
sente da Inglaterra ao mundo, um presente de
que o mundo aprendeu a fazer melhor uso do l
que no caso de muitas outras coisas que ela !

••
ofereceu, tais como ·o regime parlamentar e a I

instituição do júri. O novo culto da fôrça física,


da destreza e da coragem, para ambos os sexos,
,:;
é em si um factor cultural positivo dó mais alto
valor. O desporto promove a vitalidade, o gôsto

pela vida, o equilíbrio e a harmonia, tudo predi­


,v

.�


..f '
. /"1
cados de inestimável valor para a cultura .
Isto. não nos deve tapar os olhos ao facto do
( moderno puerilismo ter encontrado também ter­
tf.

reno no desporto. Está presente, onde quer que I

'l
• •

a rivalidade atlética assuma proporções tendentes


•• •

••
\
·.

/ a impelir para um plano secundário os interêsses


I
'
intelectuais, como é o caso de algumas universi­
I

dades americanas. A sua infiltração aí é U!Jla


conseqüência da desmesurada importância con­
cedida à organização da vida desportiva e ao
"
desproporcionado lugar que as páginas e os
magazines desportivos começam a ocupar na
••

'

dieta mental de inúmeras pessoas. Revela-se de


,

. }
;
.
. .
'
forma particularmente flagrante onde as paixões

'

nacionais impedem a observância do jôgo. leal


,.

..
I ;. I

; 'o(

'
..
'

.


.

--.1-.. ·-·· ----·- ------


156
.
NAS SOMBRAS DO· AMANHÃ
• .

.
. .. ·..

., .

i
. '

. I
. em competições internacionais. Duma ma�eira '
�·

,
ll'
.
,,

:� .
.
�·

geral, o desporto é capaz de faze r desaparecer

·i Todavia é bem sabido que êste desejo de ultra­


temporàriamente os antagonismos internacionais.
I

l
passar a glória nacional nem sempre é o que
\

devia ser, como por exemplo nos casos em que


I
· o receio dum motim público domina a indepen-
dência de julgamento do árbitro. Com a exacer-
.

bação do sentimento nacional as oportunidades


I
I

.


de tal degeneração são cada vez mais numerosas .
'
Não saber perder, sempre se disse, e muito bem,

.

;
é ser infantil. Uma nação inteira que não sabe
f
r. perder não merece outro qualificativo.

1.._.,
'
·

t
Se teQtos de admitir que na verdade a socie-
: dade moderna manifesta um acentuado grau de
puerilismo, surge a questão de saber se ela par­
tilha desta caracterfstica com os perfodos civili­
l
·l
zados anteriores, e se assim é, se uma compara­
1
I
ção com êstes lhe é desfavorável neste aspecto.
i

l
(
J
Poder-se-ia fàcilmente demonstrar que outrora a
sociedade se conduziu muitas vezes duma maneira
f I que só poderia ser qualificada de infantil. Parece
haver, contudo, uap� �if��ença . entre. as ��.�� ntili- )\
t

l

.
I
dade�.. .dQ _pas$ado_ e a puerilidade do presente.
-- N as fases mais primitivas dâ civilizà(; à:o , grànde
parte da vida social é levada em forma de jôgo, ... ... _.. . �....�.

isto é, ·dentro duma esfera mental artificial go-


.
.



vernada pelas suas própnas regras e abrangendo ••
'•

temporAriamente tôda a conduta num sistema de


')
acção voluntàriamente aceite� Um procedimento
convencional toma o lugar da perseguiça:o di-
..
. ...PUERILISMO 157

.
,:�. .
.
•' I
-

recta da utilidade ou do prazer. Se Q iOitQ é' 1


'

.. l .
. .. . :

'.
'\

religioso esta actividade torna-se um culto ou
. ' ,

um rito. Mesmo que os ritos ou as competições


envolvam derramamento de sangue a acção
.

continua a ser um jôgo. Tal espécie de j2�


exige uma limitação local, a criação dllm campo
vedado ao mundo exterior. A vida corrente é
excluída do recinto enquanto dura o l�go: O an­
tigo temenos grego, as liças do torneio, o palco
dum teatro, o "ring", são dêsses círculos consa­
grados ao jôgo. A realidade fora do campo.
é esquecida ; há uma capitulação geral à ilusão ...

comum e _o juízo independente é pôs to de parte. I


Todo o verdadeiro jôgo ainda encerra estas
. .. .. _.. - ------

)
clraclerfsticãS:" 1
1· �: ·· � êãi-ãéterrsli�� fi (
_. _.
.

��i.� fund�n:te� t�� - �� .. �!!�ên-


.'
�º- - l���q�êF se
..

trate �e_ �� �
de uma · ·;. ,
,

,j
representaç�o� de uma �ompeliÇl<?) ou de uma : � 1
__

.
estivt a �é que em determinaCIÕmomento êste
'· ·

f���f!:._Ps espeéiãêiõres retiram: os actõrêS tii-ãiil i


as máscaras, a exibição acabou. E .aquL�_q_t�.e_se
revela o mal do nosso tempo. E que hoje, em
,

m�ifos"cãsôS,o'jôg�'hti�ca áêâb(e � - �<i�t��o


s��· ·_YC:���de�ro jQgo. Houve uma contatrtinaça:o
de efeitos remotos entre jôgo e aêtividâdê'"séria.
As duas . . .
esferis
. .
� �omeÇàm . a_ mlsturir-se�:;r:.Nas
.
... ..

actividades de natureza exteriormente séria es-


... ...

'
. .
conde-se um elemento de jôgo. Por outro lado,
o ·{fue é realmente jôgo já" iiiõ é cap�z d�. �ar-­
-
-

féj�Q. seü 'càrlcfer. dé.,_ver�àdeitq jôgQ. �. � Y.tr!�� . ..

. de ser tomado muito a sério e de ser tecnicamente


·
· ·

. .
.
--

......._ ..
--
·
·- ·.-. -·--
-

..
.

. .
!ii
158 NAS SOMBRAS DO AMANHA
,

i;.
..,;
..

.1
. ,.

muito complicado. Assim se perdem as indis­ -

•·
'S.
pensáveis qualidades de desprendimento, natura­ ·'·

lidade e alegria. Y
.
.

'
•,
..

•...
.

�·,

Até certo ponto, algo de semelhante a esta . .

:

contaminação se manifestou e m tôdas as culturas,.


tanto quanto podemos ver no passado. Mas é
I
privilégio dúbio da moderna civilização ocidental
I
.


ter dado a maior intensidade a esta difusão das

duas esferas de vida. Um grande número de


\
'

cultos e de ignorantes tem perante a vida a mesma


atitude de criança perante o jôgo. Já anterior­

\ mente aludimos à prevalência dum estado de es­


pírito a que poderíamos chamar de adolescência
permanent�. Caracteriza-se por uma falta de se n
tido do decôro, uma falta �e dignidade pessoal,.
-

\ de respeito p elos outros e p_elàs s..uas Qp,i niõ es ,.

I e por uma excessiva concentração sôbre a sua


i própria personalidade. A deb ilitaç ão geral da
\ capacidade de julga r e do impulso crít ic o pre-
)

l paro u o terreno à ex p an s ão desta· atitude. Ora,


I se é interes sa nte não d eix a de ser inquietante,.
,

not:\r que a emergência dêste estado de espfrito


foi facilitada não só pe lo m inguad o desejo de
julgamento individual, pelo ef e it o standardi-· 11

zador, da organização de grupos que fornecem· I

uma lista de opiniões já feitas, c pelas sempre·


acessíveis oport un idades de diversão banal, ma�
a i n da pelo maravilhoso desenvolvimento das.
facilidades técnicas. Perante o seu mundo pleno
de maravilhas o homem é como a criança diante
dum conto de fadas. Pode viajar pelo espaço,.
I

.
I

.P.,.&
.
• •

' . ; )O� O • �, , v.-\o. kb'i.. ;_ .,;;f,w.J..,ji!. �:&ma Jl"-'Jl�Ji, �.,;;t-


-
---·-·----··· ob- �
�--
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,
..
..
..

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.
la) ,'. .l�· ). r :
'r \�
'

� j:. PUERILISMO
.

f
:
I •
. 150
• •

. .

••
.
.
.

falar para outro hemisfério ou ter em sua casa


' I.

'
I
.,
.
. .
.
um continente, graças ao rádio. Carrega num
botão e a vida desfila na sua frente. Tal vida

.,

poder-lhe-á dar maturidade ? Pelo contrário


• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

Ao mencionarmos a contaminação do jôgo e


da seriedade na vida moderna, tocamos um pro:
blema fundamental da cultura que não pode ser
tratado neste livro C). J
o(€ n6meno:tnanifesta se parte numa atitude � - ,

semi séria perante o trabalho, o dever, o destino •


e a vida, parte na atribuição duma grande impor- �
l
-

tância àquilo que um juízo desemp o eirado elas- ;


sificaria de trivial, ao passo que as coisas real- �


I

mente importantes se t ratam com instintos e f


gestos de jôgo. Não são raros na . bôca dos che­
fes os discursos políticos que com p ropriedade f
s e deveriam chamar partidinhas maldosas. f1
Valeria a pena in v estigar como nas diferen � -

tes línguas o vocabulário próprio do jt)go inunda ··


conti nua me nte a esfera do sério. O inglês da
América sobretudo, havia de oferecer um campo
fértil para um est udo desta espécie. O rep órter u ,

. '
americano fala da sua profissão como sendo o
unewspaper game,. O p olítico que, embora

honesto por natureza se vê forçado a uivar com ,

os lôbos da corrupção, justif ica se dizendo: "I had -

.
.
.
. •

(1)
Num futuro não muito distante, espero tratar &te­
problema em outro�'trabalho� '- ,

H oM o Lu I) f IJ �
/

-l- _ .
Wj .. •

I
• I

- ------------------------------------- ----�..


160 NAS SOMBRAS DO AMANHA
.. . • •

• -to play the game,. Implora-se ao guarda adua­


neiro que feche os olhos a determinada infracção
à lei,. usando as palavras 11be a good . sport,.
,


E evidente que isto envolve muito mais que uma
,

I mera questão de linguagem popular. E . uma


f -transformação fundamental de natureza ético­
:, -psicológi,ca.
; Esta atitude semi-séria perante a vida carac-
� teriza-se pelo uso de slogans coino meio de per-
.

suasão. Num passado comparativamente recent�


os americanos deram o significado de fórmula
-. poUtica ou de divisa eleitoral à velha palavra
·� gaélica que traduzia o grito de reünia:o e de
I

; combate das tribos. Um , slogan", poder-se-ia


.-dizer, é a divisa dum partido, e ao empregá-la,
: os seus membros sabem perfeitamente que ela
encerra apenas uma parcela mínima de verdade
_1

: e que o seu objectivo é ajudar êsse mesmo par­


:· tido a .subir as escadas do poder. Pertence ao
: reino o jô o.
l s povos anglo-saxónicos com o seu instinto
; desportivo altamente desenvolvido, gozam do
! privilégio de poderem distinguir nas suas acções
Í o elemento , fun e , game". Nem tôdas as
\
11

raças foram igualmente dotadas. Os latinos, os


t eslavos e os povos germânicos continentais, _na
l maior parte dos casos parecem estar muito menos
t equipados neste aspecto. O que é , por exemplo,
Blut und Boden
• 11 (sangue e solo) senão um
slogan,, uma divisa que, com uma imagem

sugestiva, encobre a falta da sua base lógica e


l
_ ....-

....... P�ILISMO
"

161

·()s perigos da sua aplicaçto prática? Ora o slo-


.

gan• que nlo é reconhecido como tal, mas que


apesar disso faz parte até mesmo da linguagem


<C
�ficial e cientifica duma nação, torna-se por êste
o
motivo duplamente perigoso nos seus efeitos
potenciais.
O ,, slogan., pertence ao campo da publici-
dade, quer comercial, quer poUtica. Ora,· um·
-dos traços fundamentais de tôda a publicidade
moderna, êsse produto hipertrófico do nosso
tempo, é que ela se baseia nesta atitude de :
.-semi-seriedade, característica das civilizações mais f.
sintoma de velhice. Puerilismo, contudo, é a
palavra que melhor quadra neste caso.
Esta atitude de semi-seriedade largamente � ,}
prevalente, explica logo a relação fntima entrej

her�f�mo e puerilism�. No mo�ento em que� � �

a dtvtsa se torna "Se]amos her6ts", começa o·. ' .-:


grande jôgo. Poderia ser um jôgo nobre se , 1
. 1 •

fôsse inteiramente realizado dentro da esfera�


.

das disputas espartanas entre jov�ns, ou dos }


jogos olfmpicos. Mas e�quanto fôr jogado sob i
a forma de acça:o· politica, com paradas e exer-
e artigos de jornais oficialmente inspirados",
julgando-se além disso sério e querendo que

o to�em como tal, não passa de autêntico


puerilismo. .
c
(j::.:.:::.;
:
A on fus o entre. -:-
: =-
-: a: -- 7 --
- b
.ri
.._
. , __ .--.- d� .
-n-ca_de_i__ ra_e-se_n_,...�eda
subjacente a tudo quanto aqui foi classificado '

lt

...._,.
.. -· ..
__ _ __ .. -
-�
• •. -
. ,_ ,
_
__ _ +_... ---·---····--
162 NAS SOMBRAS DO AMANHA •• • •

de puerilismo, é indubitàvelme-:tte um dos as­ . .


'.t'
;
. ..
pectos mais importantes da enfermidade da "

nossa época. Resta-nos uma questão, a de saber


até que ponto o puerilismo se relaciona com
aquela outra característica da vida moderna :.

t
,

a glorificação da juventude. E preciso distinguir


claramente. O puerilismo não conhece idades, .


, \ atacá. igualmente velhos e novos. A adoração


I .

;\ da juventude, à primeira vista sinal de · energia


1 ·fresca, também se pode considerar sintoma de·

velhice, uma espécie de abdicação em favor de


1 sucessores ainda menores. Pôsto que muitas
/ '

I.�
. e vigorosas culturas tenham amado e venerado.

•}
a juventude, nunca a bajularam nem exaltaram ;
exigiram-lhe sempre o respeito e a obediência

f devidos aos mais velhos. Tipicamente decadentes


e pueris foram aquêles movimentos que ta:o de-


pressa se evaporaram, aquêles que a si próprios ­
se enfeitavam com o têrmo Futurismo. Nâo se
pode, porém, dizer que a juventude seja culpada
disso (1).

(1) Podem recomendar-se como ilustração interessante·


do que aqui fica dito sôbre puerilismo, dois panfletos recen­
temente publicados pelo bem conhecido functador do Futu­
rismo, F. T. Marinetti. Encontram-se em tradução nos dois
números de Tlle World (Londres), Outubro e Novembro
de 1935, bem como em llanrburger Monatsltejte jl1r aus ...
wiirtige Politilr, Novembro de 1935, pág. 7.

- ··---------l
. . . ;·,
.

. . .
. ..

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..

.
.

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,•

• •

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I
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..


. .

XVII

Supersti�ão

O rec�udescime�!g_��-- s�
_ _p-�r_�tição não é sur­
prêsanüina época que se inclina a sacrificar os
(
ideais "conhecer, e "julgar,, ao culto da v. ida.
Sempre fascinadora e sugestiva, a superstição
Y�· �

tem geralmente a sua voga em tempos de per­


turbação espiritual. Temporàriamente adquire
uma certa distinção. Estimula a imaginaçlo e
auxilia-nos a esquecer os estreitos limites da j
nossa compreensão. .
Não é êste o lugar próprio para uma ex- I
posição das múltiplas e variadas formas que J
reveste a moderna superstição. Apenas duas
serão ·apontadas. A primeira fica no reino das
idéias superstiCiosas, das quais só poucas pes­
s·oas·se podem libertar por completo, por exem­
plo, a relutância e o receio de �ntar o des­
·
tino. · �ste sentimento tem rafzes extremamente
profundas na consciência humana. Poder-se-
__...
__

164 NA:S SOMBRAS DO AMANHÃ


'
.
.

-lhe-ia chamar fé disfarçada . Quantas pessoas


nlo batem na madeira para afugentar um infor-

túnio, quando é certo que estão sinceramente



J,
'•
convencidas de que o seu gesto não tem qual­
:I• •


quer valor? Aqui está a explicação do motivo


.

:I por que todo o perigo novo é acompanhado


(

da sua forma própria de superstição. No tempo


em que o automóvel se considerava ainda peri­
I

goso, a mascote balouçava-se na retaguarda.
Hoje já é raro ver-se. Por outro lado, diz-se

com foros de verdade que uma companhia


de navegação aérea, das mais conhecidas do


mundo, exige aos seus pilotos, além dos exa­



\

:,
••

mes e provas habituais, a apresentação dum


.�
' ,
.
horóscopo. E perfeitamente natural que a avia-

I
"
'

·�
..
.
ção, dados os seus enormíssimos perigos, tenha
!
especial desejo duma garantia psíquica. Toda­

via, o que nos causa certa apreensão é ver

'

.

que um grande organismo oficial glorifica desta


,

maneira o renascimento da astrologia. Uma


superstição que passa por ser científica dá ori­
gem a uma confusão de idéias muito maior
do que aquela que se contenta com as sim­
ples práticas populares. Julga-se que o horós­
copo dá uma informação exacta, quando a

verdade é que, supondo mesmo que êle
tem qualquer significado, dificilmente pode
••

\
ser mais exacto que a descrição num passa­
porte.
A forma mais espalhada e mais perniciosa
da moderna superstição não reside numa pronta . .

(ll
- ·· ---· --···-·

� -- - --·
-- f4. 5l
4f •., .,.. _.....__
.

-...� ,.._.
P41., �
·-··

' tl
SUPERSTIÇÃO 165

:
:

aceitação de afinidades misteriosas (1), nem num


,..

apêlo à pseudó-ciência, mas sim dentro da esfera


do pensamento puramente racional e da con­

.
.
.

fiança na verdadeira ciência e na verdadeira


tecnologia. Tal é, por exemplo, a crença na

eficácia da guerra moderna e nos instrumentos


com que ela se empreende. .
Houve, sem dúvida , um longo perfodo da ·

história em que a guerra como método podia


exigir para si um grau de eficiência relativamente
elevado. Um império oriental de outros tempos
podia destruir os seus inimigos sem se preocupar
com o facto de no fim o sistema vir a fazer do
Próximo Oriente um árido deserto. Também na
história da Europa podemos encontrar u m certo
número de guerras defensivas e uma ou duas
ofensivas de eficácia evidente. Contudo; a grande
maioria das guerras dificilmente podem ser clas­
sificadas de realmente eficazes. É pensar na
Guerra dos Cem Anos, ·nas guerras de Lufs xrv, ·

e nas guerras napoleónicas, cujo efeito foi neu­


tralizado e m Leipzig e Waterloo. Em quási todos
êstes exemplos há somente a eficiência do resul­
tado imediato. O fim último, paz e segurança,
é quási sempre atingido, não por meio da
guerra, mas por meio do esgotamento.

P) O autor abstem-se aqui de qualquer j u fzo sôbre


o valor da investigação séria relativa a fenómenos psfquiébs
ainda sem explicação. ·

.. �
i
i66 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
:!

À

. ••
medida que .os enge nhos de guerra se tor­
:�· ·� I

. '

nam mais poderosos e que os palses capazes de


a empreender têm a sua existência cada vez mais
dependente de um entendimento por meios pacf-
k ficos, a guerra vai perdendo o seu sentido.
) A transição dos exércitos permanentes de merce­
\ nários para o recenseamento e serviço militar
� obrigatório significa um enorme passo para a

J inutilidade da guerra como método. É que o

] sacrifício imposto aos recursos e energias nacio­


·: nais aumenta extraordinàriamente. Com a arma
.

I de fogo as coisas passam-se ainda de maneira


l diferente. Pode dizer-se que, desde a sua inven­
: ça:o até aos fins do século xax, as armas de fogo
l aumentaram a eficácia da guerra. Mas, com o
I

i poder rápido e crescente dos explosivos, a curva


! da sua utilidade sofre uma descida brusca. Efec-


l tivamente, o total de destruição de ambos os
! lados não só toma proporções tais, que excedem
J em muito as vantagens finais dos vencedores,
·

,
· mas ainda temos a considerar o caso duma igual­

. dade de fôrças, em que os resultados imediatos
. conseguidos estão muito longe de compensar a
destruição e os sacrifícios exigidos pela própria
luta. Tôda a arma tem uma certa utilidade
enquanto o inimigo a não possui também. E o

que se diz dos explosivos é igualmente válido
para tôdas as perfeições aparentes da arte
da guerra : canhões, carros de assalto, aviões,
submarinos, rádio, etc. Qualquer sucesso obtido
por êstes meios é um sucesso ilusór�o de valor

I
I



SUPERST IÇÃO 167

'
.

r
. apenas imediato, na maior parte dos casos', de

valor nulo. o que· foram os grandes cruzadores
na Grande Guerra senlo amuletos ao pescoço da
Inglaterra ? O que conseguiram tantos valentes,
-tantos jovens, e tanta violação do di�eito e tanta
crueldade da guerra submarina senão um pro­
longamento da luta?
O mundo não pode suportar por mais tempo
a gilerra moderna. Só pode ser mutilado por

ela� Paz não a pode trazer. É que_o espfrito dos


_povos está tão co_m_ple_tamente perturbado e ao
mesmo tempo tão envenenado.gue tôda a guerra_ f
deixa fatalmente um resíduo de ódio ainda maior.
O resultado final da Grande Guerra podia ser
prAticamente ditado pelos vencedores. As sumi­
dades da sabedoria polftica- reüniram-se em Ver­
salhes. E que conseguiram? Amputações brutais
e novas complicações mais insolúveis ainda que �

as anteriores, uma mistura de miséria e desmo - j


ralização para o futuro. É bem fácil censurar I
a estupidez de Versalhes. Como se a vitória dos �
I
'

outros nos tivesse dado legisladores mais pru-


dente e soluções mais perfeitas I �

Entretanto continuamos a semear dentes de


dragão. Com os mais estrénuos . .
esforços da •

ciência, da tecnologia e do contribuinte, vamos


.

formando exércitos, constrüindo armadas e fôr­


ças aéreas, sempre na fervorosa esperança (pelo
menos a maior parte) de que nada disto venha
a ser preciso. Expresso em têrmos . de. pura
utilidade, é o que se . chama fabricar ferro-velho.-
. JP.B NA§ �O.MflRAS. DO AMANHÃ I
I

\
r I<
A fé persistente na eficácia da guerra é uma.
' •
superstiçlo no sentido mais literal, um vestfgi()
das primitivas fases da civilização. Como é possf­

vel que um hom��PI


. . . da_categQria de �wald
,. ..
... -...,.....
... .. -·,--

Sp�ngler, na sua obra jakre der Entscheidung�


. . ' � .. - ..

·tenha deixado embriagar a imaginação com esta


superstição ? De que profundezas de romântica
ilusão lhe vem a idéia dos modernos Césares
com as heróicas falanges de soldados profis­
·

sionais ? Como se o mundo de hoje ainda fôsse


capaz de se controlar e limitar no uso dos meios.
e das fôrças r
Jvlais uma vez contemplo aquela aldeola chi­
nesa com as entradas cobertas de tiras de papel
vermelho nas quais se liam fórmulas sagradas
para esconjurar o perigo e as calamidades. Com
certeza que davam aos habitantes uma sensação
de segurança. E o que é a segurança senl.o uma

=

sensação? Como era pr4tico e económico ! Como


...

eram muito mais eficazes que as nossas fabulo-


sas despesas numa defesa que não consegu�
criar uma atmosfera de segurança l Por que
será que a uma chamam superstição e a outra
(. politica atilada?

'

I


•.

\ O que fica dito não deve ser tomado como

t· . argume nto a favor de um desarmamento unila­


t 1 . E stamos todos no mesmo barco e quem
era
H�t dêle sair fá-to-á só por sua conta e risco. O que
se pretende focar aqui é simplesmente isto: llma
'

• •

J
• •

____
• ••

._ _ _ ·- _________..,...
_.....
SUPERSTJÇÂO 169

: fê em meios e métodos, cuja ineficácia é clara


..

.
. ..

�como o dia e est! fora de tôda a dúvida, nlo


.
.,

'

merece . outro nome que nio seja o de supersti­


ção. Um mundo que vive em tais crenças é um

\
mundo estúpido. A imagem do barco adapta-se
i perfeitamente à situação : um barco em que os

\\,�
·

povos se apinham para viverem ou mergulharem


'
todos no abismo.

.
. ) '.

.
• •
,

f
. .
"

XV I I I

 Ârte e a Lileratura afastadas .


. da Razio e da Natureza

. Como primeiro da longa série de sintomas


de crise considerámos a evolução do pensamento
cientifico para além da esfera da razão e da ·
faculdade de representação , deixando como
único meio de expressão as fórmulas matemá� ·
ticas. Para concluir, vejamos agora a Arte. Há
meio século que a art� se tem estado a afastar t
cada vez mais da razão. Será um processo aná- \
r
logo ao da ciência ?
A arte poética de todos os tempos, mesmo
quando o poeta se transporta aos maiores êxta-
. ses, mantém sempre um elo que a liga à expres­

são racional. Embora na imaginação a beleza



seja a sua essência, essa beleza é expressa em
palavras, quere dizer, é expressa como se fôsse
um pensamento, porque mesmo a visão sugerida
por uma simples palavra é um pensamento. Os
instrumentos do poeta slo as alfaias lógiças da

. . -- · -"'�"'�"'!!�'�,_..-.�----�-�

'

1?� NA5 �OMBRAS 00 AMANHA

linguagem. Por mais altos que sejam os vôos da


imaginação, a estrutura do poema há-de perma­
necer um pensamento logicamente expresso. Aos
! hinos dos Vedas, a Píndaro, a Dante, à poesia
[ mais profundamente mística e à mais Hrica das
' canções de amor, a nenhuma falta o esquema
jlógico e gramaticalmente consistente. Até mesmo
�o indefinido da poesia chinesa parece nlo inva­
l lidar esta afirmação.
J Tempos houve em que o conteúdo " raza:o ,
!da poesia foi excepcionalmente elevado. O sé­
;culo xvu em França é um exemplo que culminou
!com Racine. Tomando os clássicos franceses ,
j como ponto de partida para seguir a relação
; poesia-razio, verifica-se que esta relação sofre,
!I comparativamente, pequenas alterações até ao
'
l século xvm bem entrado, momento em que
\começam a surgir grandes variações, devido à
\ ' i aparição do Romantismo e à sua poderosa ins-
J piração. O quinhão do não-racional e do anti-
'

,
·.

f1 �
:

-racional cada vez maior. Apesar disso, durante


(
\ . uma boa parte do século xrx a forma de expres­
. '

'-.. são poética continuou, acima de tudo, racional.


Por outras palavras, pelo conhecimento da lln­
gua e do sistema de idéias, mesmo o individuo
falho de receptividade poética podia ainda com­
preender a construção formal da poesia do seu
tempo. Não é senão nos últimos anos do século
que vemos a poesia a seguir propositadamente
uma derrota diferente da da razão. Os poetas
principais começaram a negar-se ao reconheci-

----·- -
------ ----....,..--...,..,.,.. ..
..
....,
, ,
.,...
,- ·
·
· . .
. ·-
A ARTE E A LITERATURA 173 ·

�ento do critério da inteligibilidade lógica. Não


é aqui o lug�r indicado para averiguar se êste
rumo, diferente do da razão, é ou não um passo
em frente e um enobrecimento da arte poética,
se habilitou a poesia a realizar a sua função
fundamental de penetrar a essência das coisas,
melhor do que o fazia antes. Tudo quanto se
expõe aqui é o facto da poesia andar alheada da
razão. Para o individuo falho de receptividade
poética, Rilke ou Paul Valéry devem ser muito
mais inacessfveis do que eram Goethe ou Byron
para os seus contemporâneos com a mesma
falta de predicados espirituais.
Í:ste divórcio da razão e da arte poética tem
o seu correspondente nas artes plásticas com o
alheamento das formas visíveis da realidade.
Ars imitatur naturam fôra durante muitos sé­
culos, desde a sua formulação por Aristóteles, um [
artigo de fé bem firme. O tratamento estilfstico, f ·

ornamental ou monumental do assunto nunca o t .. �

S�prÍrnÍU, embora deSSe pOr VezeS a impreSsãO E "\ r�


,_. ·
de perturbar o cumprimento dêste prindpio.
O significado da sentença de Aristóteles nunca l �
.�1
. ..

foi o de que a arte simplesmente copia o que vê


na natureza. Tem um sentido muito mais pro- r:-·
.
fundo : a arte imita a natureza, isto é , tal como 1\
ela, cria formas. Contudo, a reprodução per· !
feita da realidade visfvel ficou s�mpre o ideal j\
universalmente acarinhado. Para ' a expressa:o •
plástica, respeito pela natureza significava de \
certo modo respeito pela razão, visto que esta é �

.... '5
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5 3 7Ff!
---
t •
174 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

. o : órgão com qtie o homem interpreta e com­


·

..

.

...
preende o seu ambiente. Não é , pois, por acaso .'

que a arte do mesmo século, revelando u m certo·


má xi mo de razão em poesia atinge também um
,

:� elevado grau de conformidade com a natureza,


('Omo se vê d:!ramente pelas obras dos grandes­
·, mestres holandeses da época.
! Através de todo o século xvm, a linha rea-·
t lista nas artes plásticas corre mais ou menos
l paralela à da razão em poesia. A transformação
!. causada pelo Romantismo neste aspecto é mais.
; aparente que real. Com efeito, o des locamento
·� das realidades da esfera do dia a dia para a do
J fantástico não significa de modo algum o aban­
i dono da realidade visível, fonte de formas donde
I

se bebiam os elementos de expressão. Delacroix
l e os pre-rafaelitas continuam a e xpri m ir as suas
: fa ntasias na linguagem do realismo plástico, isto
, é , representa.ndo as coisas tal qual a vista as per-
cebe. No Impressionismo também não há ainda
qualquer repúdio das formas percebidas pela
· vista e conhecidas do espírito. É simplesmente
um outro método de conseguir o mesmo efeito,
muito embora o I mpressionismo represente um
: parentesco poucó lisonjeiro para o inventário da
realidade. Nem a nova tendência do trata mento

·
.

estilístico com os seus explendores significa tão


{ pouco uma ruptu ra com �
�radição.
l

A ruptura s6 se ven fi ca quando o art•tsta


•••
tenta criar formas fora da realidade, tal como
'

e sta se apresenta ao observador comum. Se por ..


.
.


'

· ·
- . -- -
·
---
· - ·------· --- --
- --·-··-- .. .. · -
I

A ARTE E A LITERATURA 17!t


o o

lJ vezes na composiÇio artística as figuras isola�as


podem ser ainda tiradas da natureza, o. seu agru·

• • •

,, ·.'
o

pamento é tal, que o todo já não corresponde a
uma percepção da realidade passada pelo crivo
da lógica. Odilon Redon pode ser considerado,
suponho eu, o principal iniciador desta fase
da arte, pôsto que na obra de Goya haja já

sinais indicativos da mesma orientação. Por·
agora podemos chamar aos elementos de for·
mas expressas desta maneira, valores de sonho.
Mas o génio de Goya era capaz de. exprimir e m
formas naturais o que era refractário a .tôda a.
visibilidade. Os seus sucessores já na:o pos·
suíam essa habilidade ou então recusaram:.se a
exercê-Ia.
A linha que liga Goya a Odilon Redon pro..
longa.se na obra de homens como Kandinsky.
e Mondriaan. Com a sua completa renúncia
'

ao concreto da imagem natural como esqueleto


da expressão pictórica, a arte da pintura rejeita l
todos os meios vulgares da faculdade perceptiva, '(;
I

A falta de conhecimentos técnicos impede-me de . J

saber se no campo da música a evolução, desde


Wagner até à música atonai, representa um outro
aspecto do desenvolvimento cultural, semelhante . \
ao que se manifestou nas tendências da poesia e
da pintura.
·

o '

.. �
o

Uma certa analogia entre a situação da


�� arte e a da ciência é inegável. Como vimos · já� I

o

I

I

:
• 110 NAS SOMBRAS DO AMANHA •

I.
.
.. .
r .
. . .

.
. ,.

o pensamento cientifico. pairava nas fronteiras . .•

do cognosc{vel. A poesia e a arte, como fun- '


'

ções do espírito e métodos de compreender a


vida, parecem igualmente ultrapassar a esfera
do cognoscível. Parece ser aceitável a conjectura
J de que êste desenvolvimento da expressão esté-
1I

tica se caracteriza pela mesma inevitabilidade


que vimos ser inerente à evoluçlo do pensa-
mento cientifico.
Olhando porém mais de perto, descobre-se
uma diferença fundamental entre os dois fenó-
menos. A arte e a ciência aproximam-se da terra
virgem PC?r caminhos inteiramente diversos.
Na ciência o espírito, em obediência e sub-
(

missão incondicional aos ditames das faculdades


\
..

'
críticas e perspectivas do intelecto, e a pedido
da mais rigorosa exactidão, é levado a alturas
.. -

I
••
e profundezas donde não poderá voltar. Neces-
. '
. .
••
sàriamente tem de avançar sempre. O caminho
está-lhe claramente determinado. Segui-lo é acei-
tar voluntàriamente um serviço a uma ama cha-
mada Verdade

Na arte não há essa coacção exterior. Não há


r

o rigor da exactidão. A arte (ou melhor, muitos


dos seus servidores) chegou por sua livre von-


tade ao completo abandono dos princfpios da
observação e do pensamento. O artista rende-se
a sensações e reacções impuras que hlo-de ser •

o material da sua expresslo estética. A com- ..

preensão do belo (pois é assim que· ela perma-


nece em última análise), na sua progresstva




- ----
i
'

-

A ARTE ! A LITERATURA

. ·••

177
,•

j
apostasia do lógico, tornou.se cada vez m�is
vaga. O poeta, desejoso de comunicar o que lhe
vai na alma, espalha p�lo espaço fragmentos d e ·


I

• •
frases que na sua juxtaposição não têm qualquer
-
sentido.
Para a arte não há um imperativo absolu�o ;

não há uma disciplina do espírito que a cons­


tranja. o seu impulso' criador centraliza-se na
vontade. E aqui é que se manifesta um facto de
grande importância ; a arte aproxima-se, muito
mais que a ciênéia, da moderna filosofia da vida
.

que sacrifica a compreensão à existência. A npva


arte julga poder representar e interpretar verda­


..
deira e sinceramente a vida sem fazer uso da
função intelectual, esquecendo que, apesar de

••
.

tudo, tal interpretação com a sua expressão


continua a ser um acto do intelecto.
Tôda a arte é u m esfôrço e a nossa época,
consciente em extremo, exige que tal esfôrço<

tenha um nome. Os recentes movimentos arlís- ·


ticos atribufram-se a si próprios os nomes de ·
Expressionismo e " Surréalisme " , para não falar
de designações insensatas como " Dadaísmo , .
'
Qualquer dos têrmos significa que o artista se r '·

não satisfa; com a simpies versão do que na p


r y, -
realidade vê ou imagina ver. Expressão é o que
tôda a arte sempre foi. Porquê, então, falar de
Expressionismo ? A na:o ser que a palavra seja I

simplesmente tomada como protesto contra o


l
l
, • •
Impressionismo, �eve indicar, com certeza, que
. o artista deseja interpretar o objecto da sua
''

• •

12

' .
178 NAS SOMBRAS DO .AMANHA
,J

..

criação artística (porque tem de haver sempre


I

r
..

um objecto e uma interpretação) na sua essência .;�.


'


'

mais pura, despido de tudo quanto seja impró- \

t 1
prio à sua natureza ou perturbe a sua percepção
Se o objecto é, por exemplo, uma costureira,
..

uma mesa de jantar, ou u m vale, o expres­


sionista desdenha a versão natural da aparência
exterior dêstes objectos, que afinal seria o mé­
todo mais adequado para transmitir a concepção
1 como talo Quere apresentar alguma coisa mais,
i alguma coisa que fica para além da realidade
� visível - a essência do objecto. A isto chama êle
t a idéia ou a vida da coisa, dando-nos a entender

i
'

que a sua maneira ·de interpretar expressa qua-


l lidades inacessíveis ao pensamento. finge saltar

·,
por cima do domfnio noético para o âmago da
' própria coisa.
l·; É evidente que ao proceder assim o artista
toma uma atitude muito aparentada com a
da filosofia da vida, anteriormente tratada. De



t1: facto, a terminologia da crftica da arte moderna
: corresponde qu ási por completo à fraseologia
! da anti-noética Weltatzsclzauung. O que se se-
gue é tirado de uma análise à obra do artista •

Chaga li :
" Eu sei-o : para muitos a arte de Chagall é
um problema. Contudo, na sua essência ela nada
tem de problemático ; é uma arte que brota
I
.

directamente do assombro e da rendição ao


..
.
mito da vida, sem reflectir, sem � intervenção .
do intelecto. Tem um fundo de sentimento reli- j • I
I

:I
I
•• I

j

.
.

.
• A ARTE E A UTERATURA 179
:j
•l

"

,
.

·t
: gioso. Nêle está o veio, no coração, se quiserem, i .
�.\• '

·j�
'"
no sangue, oti no mistério da própria vida. É pro-
••

••

.. � •.
. blémática só para aquêles q�e na:o podem . ciis- ·
pensar o problema estético ou para aquêles que :
' '

.
"

querem pensàr alguma c�isa àcêrca do que vêem. ·


. .

quando é certo que esta arte elimina todo o pen­


samento. Poder-se-á p�eguntar por que motivo .
se fêz isto e aquilo de tal e tal maneira. A res­
posta _será o silêncio, porque não . há resposta.
No fim de contas, há sempre um mistério .e um l
misticismo nà arte, há ainda uma arte dotada de
'

uma virtude mágica que fala, não· ao intelecto,


mas a tudo aquilo de que nós temos apenas
leves· noções. Da absoluta e sincera rendição à
1
-

vida na:o pode haver dúvidas. Só há duas possi­


bilidades : render-se ou não se render. ,
.

'

'
'
'

I
'

\
.
'
Uma vez que se aceite êste ponto de vista e
se não olhe à insuficiência dos argumentos,
podemos considerá-lo como declaração· de fé J
perfeitamente consistente. 1
Esta harmonia com uma crença de vida, hoje .1
largamente aceite, será na verdade uma fonte de r

fôrças para a arte? Parece haver boas razões ·f
para duvidar. É precisamente esta defesa · da t
vontade e do seu justo direito à liberdade abso­
luta que ameaça subverter a arte no excesso e
. .
'

na degeneração. Por outro. ·lado, a ânsia perpé­
,I
tua de originalidad e, outra enlennidade do no.sso

'
. .

/

...

tempo, torna a arte muito mais susceptfvel que ·

' '

'
' '
'
. ·�'
'

'.

' " "


-

' ' ' • ' ',,�ii


• .)

180 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ




I

..


.

a ciênCia a tôdas as influências corruptivas exte.


,


..

riores. A arte falta na:o só a disciplina da ciência, •


-

.I
..

mas tambêm o indispensável isolamento de que


\

·

carece. Na arte, as possibilidades de lucro do


'
t
espírito desempenham um papel muito maior do
: que r.a ciênci:l. O impulso para a competição no
l uso de meios técnico�, quer devido à publicidade,
\ quer simplesmente por vaidade, arrasta a arte
; até aos lamentáveis extremos da insensàtez que

i há uma década se anunciavam como expressão


i
! duma idéia ; tais são os poemas compostos ape-
� nas de sons naturais ou sinais matemáticos e
1 outros absurdos da mesma espécie. Não �erá

! preciso demonstrar como é fácil à arte resvalar


! no puerilismo, perigo de que, diga-se a verdade,

Í a ciência também não está imune. Épater le


l bourgeois, não ficou s6, infelizmente, o jocoso
t " slogan" duma boémia verdadeiramente juvenil.
! A arte é muito mais susceptível que a ciência à
I

t mecanização e à moda. Assim, em dado momento


os pintores de todo o mundo começam inespe- •

radamente a colocar as suas naturezas mortas


: sob um ângulo de trinta graus e a apresentar


,
os seus Trabalhadores " , atacados de elefan-
11

i tíase, enfiados em canos de fogão à guisa de

I calças.
O carácter mais caprichoso da arte quando
''
comparada com a ciência mani festa-se nas várias

·posições que os têrmos em " is mo,, ocupam nes­


tas duas funções culturais. No pensamento cien­
tífico os , ismo s " limitam-se quási ao domfnio da

• I'
.._
' .• •.
.... .'...,. ....
; ' '
'
. 1 ,- � '. 1 a.
. ,
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• . •

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----
----
----
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----
--- .......

. .

. A ARTE E A LITERATURA 181


·.

�y�.'
..

.
>
..

,.
. filosofia. Monismo, vitalismo, idealismo, são têr- i
.: .
,,

r
-


. .. ,� ·'

mos qu� designam um ponto de vista geral, uma


. .,

.J
./



·-
..·
;

concepção filosófica, ponto de partida do traba­


\
.
.
..

lho da ciência. Nos métodos de investigação e nos


resultados obUdos, êstes pontos de vista pouca
ou nenhuma influência têm. � p�odu_ç�Q c��nlf.fjç.a
continua a avançar com firmeza, sem . ser diri­
.
gida; ora por êste , ora por aquêle , ismo ,. Só
"q úando chega à redução filosófica ao conheci­
mento a um princípio universal é que os " ismos ,
desempenham o seu papel .
-....___... .

.:Na_ arte a situação é muito diferente. Na his­


tória da arte · é"(ià i iterat ú ra um grande número
de sucessivas tendências na produção artfstica
têm nomes como maneirismo, marinismo, gon-
gorismo, etc. O -���i��a de . .��� ras. � P9�ª� .rJ.ã.º­ . - .

designava o seu esfôrço artístico por qualquer


nome particular ; não conhecia
'
_.. ,..
. . ..
�� ismos , O fenó-
"'
.
.. .....
.. ...
.
.... .

meno é caracteristicamente moderno: a arte começa


por. proclamar um movimento e baptiza-o com
um " ism�' ; só depois é que vai tentar fazer o
trabaUio dê arte correspondente ao nome. Esta
obstinada aderência ao " ismo" . exerce, como é
-· . -
.
...

óbvio, uma forte influência nos métodos de tra-


balho. lv\ uito mais acentuadamente que no domí­
nio da ciência, o produto traz a marca mais ou
menos vincada do�· �§!llQ !'.· Dês te modo poder-se·á
dizer que o rumo da arte, ao contrário do que

sucede na ciência, é até · certo ponto determinado
'• pela vontade, a vontade de pintar. ou escrever

n desta, ou 11 daquela, maneira •

..

� � . .
.. ..'•"1'
'--1 ,"" ... '1 ...·1... ..
'' ,
..,,\!
,
....
I '
• \ . i ' '1 '•'
·
�- ,.

I
I

<

NAS SOMBRAS DO AMANHA


182

.
•••

• •

A produção estética, contudo, tem uma outra {


:.

faceta que a aproxima mais da ciência do que


,

essa barafunda dos , ismos ". E que por baixo


d a superficialidade das orientações dos movi­


mentos e das modas artísticas o grosso caudal
do trabalho verdadeiramente inspirado corre
firme e sereno, sem excêntricos desvios para
leitos superficiais.

• • '
.• .

'
' :


r
.

'

-!,..

• • •

' • • , •
• .

. . .

'

XIX

Decadência do estilo e tendênclai


"

para a lrracionallzaçio

A nossa geraçâ:o, com a sua sensibilidade


estética, poderá ver melhor no desenvolvimento
da arte e da literatura os sinais das tendências
que levaram a cultura a um estado de crise.
O desenvolvimento estético reflecte, por assim
dizer, a fisionomia do processo cultural ; revela­
-lhe a unidade e aponta a evolução da actual
crise, que abrange dois séculos de cultura euro-
pe1a.

No ponto de vista estético o processo traduz


uma perda de es�ilo. A magnífica história do
Ocidente apresenta-se-nos numa sucessão de esti­
I
los a que chamamos romano, gótico, renascença,
barroco, etc. Em princípio todos êstes nomes
denotam formas especiais da criação arquitec­
tónica e escultural ; as palavras, porém, alarga­
.

L
. ram muito a esfera do seu significado e estão a
ser cada vez mais usadas para rotular a nossa
{ •

184 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ • •

- .
·
.
' ' .
• •


.

J.·
• •

visa:o da vida intelectual, e até mesmo de tôda •• •

· a estrutura dos respectivos perfodos. E assim,


.

>

cada época veio a ter a sua qualificação estética .l


'� privativa. O século xvm é a última destas épocas






l
que traz a marca duma realização homogénea e
: harmoniosa dum estilo próprio em todos os domf-
: nios e que apresenta a imagem duma expressão

.

única e perfeita da vida, apesar de tôda a sua


� profusão e variantes.
/;.
1
Se o século xrx nos aparece sob um prisma •
,

• muito diferente não é porque estejamos ainda


..
'

muito perto dêle. Sabem�s muito bem que o


.
século XIX nunc� teve um estilo próprio. Quando 1·

� muito, havia uns fumos da primitiva fogueira.


; Caracteriza-o a falta de estilo, a mistura de esti­
·.

l
los, a imitação dos velhos estilos. O início dêste
:. processo de decadência remonta ao século XVIII,
·�

que no seu jôgo com o · exótico e com o histó-



,

rico faz já prever a tendência para imitar ; por


sua vez esta tendência encontra a sua expres-
'

;,

·. são clara· num estilo, que pela mesma razão I


:

se não pode já chamar verdadeiro estilo - o


.
>

ll
I
f, , emp1re

11 ,

I
l.
l
Esta desaparição de estilo assinalando uma
1 época, tem as suas raizes no fundo do problema
r
cultural. É que a revulsão na arte e na literatura I

f 1
é simplesmente o aspecto mais visfvel da revulsão
da cultura na sua totalidade.
I
I
\�
Contudo, seria absurdo identificar esta falta
.

· de estilo apenas com uma decadência geral da


cultura. Num mesmo e único processo a cultura

••

I
I

..f
I

DECAD�NCIA DO ESTILO 185

-.�!:..-.' ·. .

atinge o s�u nfvel mais elevado e desenvolve os

'
\

.

. germes dum possfvel declfnio •

Af pelos -me-ados do século xvm inicià-se a


�r
. \ .
I grande ·reacção que desviou o espfrito do homem
-,, . I •
I
daquilo que era friamente racional para as pro­
fundezas misteriosas da própria vida. O inte·
f.: (\ \
-,
• I !
\ rêsse vai para tudo o que é imediato, pessoal,
original, intrínseco, genuíno, espontâneo ; para
. .... :
.

.l

.
'· ·
\


' } tudo quanto é inconsciente, instintivo e selva­

gem. Sentimento e fantasia, êxtase e sonho
'

retomam o seu lugar na vida e na expressão.


A esta penetração mais profunda na vida, que
se poderá etiquetar com a palavra Romantismo,
devemos nós um Goethe , um Beethoven, e a
floração de ciências culturais como a história,
a lingüística, a demografia e outras. �\as nesta
..' mesma fuga para junto da vida estavam os ger­
'
I

mes daquela tendência do pensamento que um


i dia havia de culminar no repúdio do conheci­
. II mento em favor da existência.
,• '

Porém, só muito mais tarde isso se havia de \.,

dar. É que, com o predomfnio da atitude român­


'

tica, no sentido que acima lhe demos, o espírito


'

de investigação exacta e analítica, o espírito de


observação e experiência, não foi de modo algum
I
obliterado ou desviado do seu rumo. Pelo con­ •

I
I
' trário, associando-se ao Romantismo conquistou
I
I

I novas perspectivas e possibilidades. Através de


I todo o século xrx os ideais do conhecimento I

continuaram intactos o seu. reinado, baseados


.
numa critica e conduta rigorosas, cujo objectivo

�•.'• ·r�
'

I
' - --- . --
. - -- "•-. . . - .-- --·- .
----
-- . -
-

NAS SOMBRAS DO AMANHA


166


unidade e a concórdia já proclamadas pela


.era à ·

Idade da Razão.
·

••
Passando em revista, no seu todo, o desen·

volvimento do processo espiritual . desde os
\.
i

meados do século xvm tem. se a impressão de


que no decurso dêste processo a percepção
!estética e sentimental foi penetrando cada vez
;i mais no domfnio do pensamento. Esta apre­


.dação estética e sensível introduziu.se na com· I

,l preensão lógica. Por outro lado, em trabalhos

inerente às suas formas de expressão, tornou-se


progressivamente mais débil. �ste pr ocesso geral
atinge o seu ponto extremo e culminante no
·i momento em que se nega ao conhecimento a
� primazia como meio de compreensão do mundo.
1
O perigo desta irracionalização reside, sobre-
tudo, no facto de ela ser acompanhada pelo
maior desenvolvimento das fôrças técnicas. E evi·
,

\ dente que a adoração da vida, originada pela irra­


� cionalização da cultura não pode senão promo­
!
r

ver o culto do eu. lv\as o culto do eu significa


exasperação da ânsia de bem�estar terre no. Ora
J se esta ânsia tem ao seu dispor as ilimitadas
{ possibilidades duma faculdade técnica altamente
desenvolvida, o perigo inerente a todo o culto
do eu será muitíssimo maior para a sociedade,
visto que a realização dêsse desejo ardente de
bem-estar conduz necessàriamente à destruição
do bem-estar dos outros. Pouco importa que a
organização social da ambição de bem-estar

. ' ' '


-

: . . . . .
. .
� --

·
___ ___ -
-- ··- -
__...
.--... �-
......
__
·-· --- .. � ��� ----.--.. w -. �� - -

DECAD�NCIA DO ESTILO 187


.
,, ,

material tome uma forma capitalista, bolchevista


'
., -

�ou fascista. Efectivamente, supor que o . colecti­


vismo exclui o egotismo é pensar muito super-
, ficialmente. -

Por conseguinte, encontramo-nos no meio �


}
daquilo ,que, segundo tôdas as aparências, é a �
mais grave combinação de perigos que pode
.

ameaçar a civilização. Um regresso à razão e ao ,


racionalismo não é suficiente para nos arrancar �·
ao abismo. O · pêso para equilibrar esta coopera­
·.

ção de factores destrutivos só o poderemos


encontrar nos mais altos valores éticos e meta-
ffsicos.

ts;
1.
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

·
Se é, pois, uma restauração dos valores éti- · ·
cos e metaffsicos aquilo de que se precisa, difi- t
cilmente se poderá dizer que, presentemente , i
estamos no bom caminho. O sentido da respon- �
sabilidade humana, aparentemente fortalecido \
pelas exortações do heroísmo, foi arran:cadó cio
solo da consciência individual e mobilizado a �
l
favor de qualquer colectividade que deseja impor t.

I
a sua vontade e promover as suas estreitas vistas
a cânone de prosperidade. Com a crescente falta
..
de mérito da palavra falada ou escrita, moti- f
i
.

( vada pelo progresso da civilização ao dar-lhe


tão vastas possibilidades de expansão, aumenta
'
.

) proporcionalmente a indiferença pela verdade.


' A margem do êrro vai-se alargando firmem�nte
em todos os campos à medida que a atitude •

irracionalista se expande. A publicidade ime-


i.·� . ' ·4'·''·�-;


'•
- ...-·-�-�-�

188 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


• •

• diata, engendrada pelos interêsses comerciais e


pela ânsia de sensação, intumesce pequenas diver­
gências de opinião a ponto de as transformar em
( alucinações nacionais. As idéias do dia requer�m
, resultados imediatos, ao passo que as grandes
:· idéias sempre penetraram muito lentamente. Tal
como os vapores da fumarada e da gasolina
. .. .
I \ sôbre as cidades, assim paira sôbre ·o mundo
uma névoa de palavras ôcas .
I


I

.
'

••

\ ..
.

.

'

I
l

. . . ' .
' .
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.

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I • -.fi •
.

' o
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, •
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• �I
.

. . - •
o o

> 1 ;

• '

XX

Perspectivas

Permitimo-nos chamar diagnóstico a êste


exame dos sintomas de crise. Para as conclusões
.


que se lhe seguem, prognóstico seria palavra
demasiadamente forte. O panorama continua
envolvido no véu da incerteza. Tudo quanto
podemos fazer é avaliar certas possibilidades,
supor certas eventualidades.
Haverá ainda motivo para uma tonclusão
prometedora, depois da enumeração de tantas e
tão graves manifestações de desconjuntamento e
evisceração? Motivo para esperança há sempre,
confiança é que é dificil.
Sem dúvida que, aquêles que professam
o credo da glorificação da vida em desfavor do
conhecimento, podem alegar que o seu povo
não vive num estado de declínio, antes pelo
contrário, segue o caminho duma gloriosa os·
tentação de tôda a sua pujança. Para êsses,
todos os fenómenos que nos causam apreenslo

.
' �
' ' • ' ' ... ,o I I
. . . .
-
-
� � � - -.
-----

-
---

- --
-

190 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


.


I .
.

1

• • .'
.

1
• ,
• '

Ii representam o triunfo do credo que servem.


I
I
Mas a nós surge-nos a questa:o: Se a prosperi­
I•
I

dade, a ordem, a saúde, mesmo a concórdia,
t
1

fôssem restauradas, contanto que o espírito
dêste credo continuasse a prevalecer, salvar-se-ia
a civilização por êsse 'facto?
Sabemos que o mundo de hoje não pode·
I
'•

voltar atrás. Comp�eendemo-Io logo que olha­


I
mos para a ciência, para a filosofia e para a
l
,I arte. O pensamento e o poder criador têm de
1j continuar intrépidos na via que o intelecto os
obriga a seguir. E o mesmo sucede com a tecno­
.

.
logia e a sua gigantesca aparelhagem, ou com
tôda a máquina económica, social e política

. •
'

I Seria inconcebfvel que por meio de qualquer


intervenção forçada se pudesse conter o meca­
·'
.
'
nismo, sempre mais eficaz, da expansão do
'I
l1
• •
conhecimento, isto é, da educação popular, da


.

publicidade, da produção de livros, etc.; ou que
alguém pudesse obstruir as . novas possibilidades
de comunicaça:o , a ciência aplicada e a utilização
das fôrças da natureza.
E todavia, esta perspectiva duma civilização

'·.
à mercê do seu próprio dinamismo intrinseco,.
II dum domínio sempre crescente da natu�eza,.
·,

.'

11
I
duma publicidade ainda mais completa e ime­ '

!
'·!I
I diata, longe de encerrar a promessa duma cul­ •

..

tura purificada e melhorada, assemelha-se mais


\I a um pesadelo. Só nos traz à mente represen­
tações de fardos insuportáveis e de escravidão
do espírito. Por espaço de algum tempo esta

..

I
•:

I,


. .

I
..
. • , , ' , •·· ..
'
------ --- -- -- --- -�------ ---- - ·


PERSPECTIVAS 191
.l

'

opressiva anteCipação dum incremento constante·


.. " do maquinismo da civilização obrigou-nos a pôr

diante de nós esta ansiosa interrogação : O pro""
cesso cultural por que passamos será u m pro-­
cesso de barbarização? •

Barbarização pode definir-se como sendo um


processo cultural pelo qual uma condição de
alto valor, já obtida, vai sendo espezinhada e
substituída por elementos de qualidade inferior.. .

E matéria de controvérsia saber se êstes elemen-·


,

tos opostos, superior e inferior, correspondem


à antítese élite-massa. Em qualquer dos casos·
a aceitação desta polaridade exige que os têrmos
élite e massa sejam despidos da sua significação·
social e considerados simplesmente como tipos
de intelecto ou atitudes espirituais. Foi neste

sentido certamente que Ortega y Gasset USOU-


r r

os têrmos na sua Revolta das Massas.


O nosso conhecimento duma completa barba-·

rização no passado limita-se apenas a u m exem­
plo : a decadência da civilização antiga no impé-·
rio romano. Todavia, como ·já mostrámos num
capítulo anterior, a comparação com o presente é·
,
dificultada por uma grande diferença de circuns­
tâncias. Em primeiro lugar o processo cultural
anterior ocupou um período de quási cinco séculos..
Além disso, foi embaraçado por certos factos
..
que parecem na:o existir no nosso tempo. A bar··
barizaça:o interna do mundo antigo foi condicio-·
nada. entre outros, pelos três factores seguintes .. •

O primeiro foi o malôgro da função do orga--

.

&. , . · · ··· 1 ''� 1·· · • ·


..•

' • ·. ! • • .
'· . . • . .
-
-
- ---- --..-.
-
�- ..- --�--··-

192 NAS Se>MBRAS DO AMANHA

nismo político, e como conseqüência o enfraque·


cimento das fronteiras e finalmente uma invasão
de povos estrangeiros. O segundo foi a descida
da vitalidade económica até um nivel de baixa
intensidade. O terceiro foi o aparecimento duma
forma de religião superior que se alheou da cul­
tura antiga e que, graças à solidez da sua orga..
nização, pôde assenhorear-se da direcção de tôda
a vida cultural. Ora no processo cultural dos
nossos dias há poucas, talvez nenhumas, indica­
ções de tal decadência técnica ou de alvorada
de nova religião.
O baluarte da sua perfeição técnica e do seu (
poderoso equipamento político e económico de
maneira alguma protegem da barbarização a
actual civilização. E que o próprio barbarismo
,

t
.

pode aproveitar-se de tôdas estas perfeições


técnicas. E dispondo de tais perfeições, torna-se
ainda mais poderoso e despótico.
Um exemplo duma grande realização técnica
é a telegrafia sem fios. Apesar disso, com tôdas
J as suas utilíssimas e benéficas possibilidades,
f ameaça indirectamente prejudicar a cultura.
J Ninguém duvidará por um momento do extra­
� ordinário valor dêste novo instrumento de co-
1 municação. Os S. O . S. , a música e as notícias
' para pessoas isoladas nos mais remotos lugares,
, são apenas alguns dos seus múltiplos dons.
\E todavia, como órgão de informação, o rádio,
lna sua função de todos os dias, traduz em mui-
'

tos aspectos um regresso a uma forma menos

.
-
-
'

u.·t-'lltl

. · •• ••. • -


- - --- - -- ··- -�

Pf!RSPECTIVAS 193

. .
eficaz de transmissão do pensamento. Não nos
estamos a referir aos conhecidos males da prá­
tica popular : escutar sem atenção, passar ràpi- ·
damente de uma a outra estação, apanhando
assim uma mistura incoerente de sons e pensa­
mentos, etc. •

I Além de todos êstes defeitos que não são I ��


inevitáveis, o rádio constitui uma forma de assi-
( milaça:o do conhecimento mais vagarosa e mais
l'·\
.
restrita. Para o passo a que avança a nossa
\ época, a linguagem falada tem muito de enfado-
nho. Ler é a função cultural mais eficaz. Pela
.....
- .... . .. .

f
leiturã�· · ·a êspírito abson·e muito mais ràpida-
......_ .... _ - .. . ..

. mente ; está continuamente a seleccionar, forti­


"\ fica-se a si próprio, salta, detém-se a pensar;
(" .. exerce mil actividades mentais interditas àquêle
que só escuta. Num artigo intitulado Tke Decline . I

of the Writte1z l�õrd, uni defensor c:io fiíme ê do .


ráêlio ao serviço do ensino profetizava sãtisfeito , 1

e · seguro, u� fut�ro próximo em que a criança


.. ... . �
. .

seria educàda por imágens e p�lestrás:� se]�l �. .

profecia se v_iesse a realizar, teríamos dad�.,._u�n \


eito_rme passo para o barbarismo. Qifici�!_tlente se '�
poderia ter imaginado melhor método de_ e��i��r ·�
a jUventude a não çeflectir, de a manter no pue- �
rilismo e muito possivelmente de a aborrécer-· âo i
in�ximo. i
·· · ·

Da mesma maneira que o bar.barismo pode


triunfar numa sociedade com elevado grau de
perfeição técnica, pode igualmente coincidir com
aquela outra característica positiva da moderna .

13

. -.
. . ....
-. .
. . .
- . - - . -.
...
..

. .


. '

194 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ




o

: sociedade -a educaça:o universal. Determinar o



.
·•
nível de cultura pelo grau de analfabetismo é .
·

iludirmo-nos com uma crença já gasta. Uma


.; :

certa bagagem de conhecimentos adquiridos na


escola não é de modo algum garantia de cultura.
o

Não é pessimismo injusto quando, olhando para


o estado geral do espfrito do nosso tempo, nos
vemos obrigad�s a falar nestes têrmos : O êrro e
a falsa noção florescem por tôda a parte. Mais
do que nunca, os homens parecem ser escravos
duma palavra, dum lema, para se matarem, para
mutuamente se reduzirem ao silêncio no sentido
mais literal. O · mundo está cheio de ódio e
incompreensão. Não há possibilidades de calcu­
lar a enorme percentagem de tolos e de saber se
é maior que outrora; mas a ilusão e a estultfcia
têm mais poder de fazer mal e de falar com
maior autoridade. Para o individuo superficial e
semi-educado, as benéficas restrições do respeito
pela tradição, pelo modêlo e pelo ideal va:o des­
falecendo a pouco e pouco. Pior que tudo é o
predom(nio do desprêzo pela verdade, que atinge
o seu auge na declarada advocacia da mentira
política.
A barbarização tem o seu . iní�io quando,
numa veiliáo êúitura que outrora. no decurso d e
muitos séculos, se guindara à pureza e clareza do
pensamento e da compreensão, os vapores do
mágico e do fantástico se ergueno t novamente do
fermento fervente das paixões para irem nub.ar a
compreensão; q�and� .o omy�f!��-�ªP1�n.ta.Qj(Jg�s .

- --· -
- -· . -· -- --
.

·PERSPECTIVAS
•• •

105
• •

·� · - � (·.:i
• ' •

1 •

A todo 'O instante se vê como o novo credo �

r ·.� . da herói�a vóntade do poder' com a sua exalta-


.
.. � � ·...

·:: : -

ção da vida e detrimento da compreensão, é a.



• •

expressão exacta das tendências que fascinam


e arrastam ao parbarismo o crente no espírito.
1'!.� Y.�!:.<!��.!L! � �!<?�q fi � 4.� yi 9�!' f�z..exaclament«:
. .
�.

isto: põe o mythos acima do logos. Para os


profetas da filosofia da vida" barbarismo nada.
". • • • ... • .. • .... • • -1 ....

��

implica de pejorativo. ,
O próprio têrmo perde o I
seu significado. E isto o que quererp os.. _t�test.re�. i
<l.ª hora presente:- '
.. .

·

As divindades actuais, mecanização e organi-


zação, foram portadoras da vida e da morte.
Cobriram todo o mundo de fios condutores, •

estabeleceram o contacto mundial, por tôda a


parte tornaram possível a cooperação, a concen­
tração de fôrças e a compreensão mútua. Simul­
tâneamente armaram a cilada ao espírito, puse-
ram-no a ferros e sufocaram-no. Conduziram o J
{
í

homem do individualismo ao colectivismo ; mas


sem guia para o seu discernimento, o homem r
apenas conseguiu compreender o mal inerente a :
J
.

todo o colectivismo, a negação dos mais profun-


dos valorés pessoais e a escravidão do espírito. �
Teremos um futuro de mecanização da sociedade '· • •

sempre crescente, e somente governado pelas ·


exigências da utilidade e do poder?
foi assim que Oswald Spengler o considerou, .... _____ �-
1
quando definiu o perfodo da Zivilisation como a '
última fase duma cultura decrépita, um período
em que os valores antecedentes, vivos e organi-

- ---- - - - - · · .. . ...-· -
Nt\S S6MSRAS 00 AMANHÃ
.

1�6.
.

.

. zados, são substituídos pelo contrôl� exacto dos


meios do poder e pelo cálculo do efeito desejado.
'
·

Que a aplicação dêst�s meios leve a sociedade à


ruína, isso deixa-o indiferente, graças ao seu •

pessimismo filosófico. Para êle a ruína é o des-


tino inexorável de tôda e qualquer cultura .


Penetrando mais fundo na sombria visão de

Spengler deparamos com ce �t os ··etemêritos· de·


' ' -

inéonsistência que parecem enfraquecer a sua


validade. Em primeiro lugar, os critérios por
que êle julga a acção humana estão estreita­
mente ligados a um certo sentimento romântico.
As suas idéias de grandeza,, do "desejo do 11

mais forte", de "instintos sãos", de alegria 11

saüdável e belicosa", de , heroísmo nórdico, e


de Cesarismo do mundo fau stiano ,, têm as
11

suas raízes no solo dum Romantismo ingénuo.


Além disso, está fora de discussão, julgo eu ,
que o curso da civilização ocidental, durante os
setenta anos que começam com o aparecimento
do livro de Spengler Untergang des Abendlan­
des, não seguiu exactamente a marcha ascen­
dente do tipo da Zivilisation tal como êle a
concebeu. Porque , embora seja verdade que a
sociedade vai tomando êsse rumo, isto é, a
direcção do maior contrôle técnico no exercício
do poder e do cálculo prudente dos efeitos dese­
jados, o tipo humano tornou-se ao mesmo tempo
, mais e mais indisciplinado, mais pueril, mais
susceptível a reacções do sentimento, e os nossos

governantes não são os homens de aço, tal como •

..

--- - --- .__... ... ---· -. . . .. . .. . . --·..-· -- .._ - · · - ·- - .._ ···- --· -- ..._....
-·. ·- ---
_ ·-·-
PERSPECTIVAS 107
'.. • ·

·!
. .
os _pinta Spengler. Talvez se pudesse pôr a
'

" questão. nestes têrmos : o mundo assemelha-se à


Zivilisation de Spengler mãts üõi;i- tertâ mewaa·
-
_

de··· insâmã;--emoilste-· e crueldade; associada à


sentimentalidade; e !.��P... é. .que .êle.. nã�Lpreviu.
. .

Mesmo o seu nobre animal 11, assim . considera


.
u

êle o homem, deveria estar isento de todos êstes


defeitos. •

Nunca pude compreender bem a razão por


que Spengler quere dar ao homem superior do
nosso tempo o nome, dramàticamente pouco
impressivo, da figura da grande dilogia de Goe-

-
• .
i ª_,_F.�.ç_�s,.t���-- é Fay_�!�!l}lO
the. Cultut:_� tfo�.!l.c
eiQ_ -�p_eng�er M!� poçler�se-á -� i�� - �-. q!!_ct . f!�!!,o /
foi um animal de rapina? Certamente não era·
is�� que ·aoéthe q�eriã <i�e êfe fc$sse:- SO.iiiiia
·

visão roníânticà pode justificar em pãfte'ã� ãpli­


c�o-·aà ·-coricépçâõ . Fãitstiariã-- ào müiiãõ �mo-
��rno. Eis por._ que no conjunto pàreê�-·nãver
muitas e boas razões para chamar .de :P.r�f�fêitcia
,; Barbarização à Ziviüsation de Spengler, asso­
11

Ciada como está à ferocidade e à deshumanidade.


l)evemos p�riiihar por êssé motivo · dõ.fãlãlismo
de Spengler? Não haverá uma tábua de salvação?
Em busca de confôrto, voltamo-nos involun­
tàriamente para o passado. Quando analisamos
os últimos dois mil anos e nêles distinguimos
as unidades históricas chamadas civilizações, os
períodos de florescimento parecem ter sido
sempre relativamente curtos. Tartto quanto pare­
cem indicar os _nossos imperfeitos meios de me-

'�
I
. , '


. - - - -- - --- "

--- -
--

19S NAS SOMBRAS DO AMANHÂ

dida, raras vezes vão além de dois séculos. Para


a civilização helénica são os séculos v e rv antes
de Cristo; para a civilização romana o primeiro
'

1
século antes e o primeiro depois de Cristo
) (embora aqui haja motivo _ s para divergência de
J

l

.
. opiniões): para o medievalismo ocidental os sé­
I culos xn e xm ; para a Renascença e Barroco os
l
JI

t
séculos xvt e xvn. Por mais vagas e mesmo arbi­
trárias que tais delimitações tenham de ser, as
!

.

I

fases específiCas de maior desenvolvimento não


'

são longas. Se tomássemos os séculos xvm e XIX


'

I
'

.
I'

l
para época da civilização moderna, o nosso
l tempo marcaria o fim da civilização que conhe:..
'
l
I.
I
cemos, possivelmente também o início de uma

••
.,

'
que não conhecemos, uma, cuja revelação está
,
. -

ainda muito distante. E que a respeito de civili-




!

l zações não há o "Le roi est mort, vive le roi,.


l•
Mas tudo isso são vãs especulações a que a

\
I
I
contemplação da história nos levou. Contra tudo
o que parece pressagiar declínio e ruína, a huma­
nidade contemporânea, à excepção de alguns
fatalistas, opõe unânime e firmemente esta enér-
\ gica declaração: mas não queremos perecer. Este
..

' nosso mundo, apesar de tôdas as suas misérias,



1
é por demais belo para permitir que a humani-
: dade mergulhe nas trevas da degradação humana
; e da cegueira do espírito. Nós já não esp�ramos
i o fim do mundo. Esta herança secular chamada
civilização ocidental foi-nos confiada para a trans­
mitirmos às futuras gerações, preservada, prote­
J!ida, se possfvel fôr, en�iquecida e melhorada ;

!
••
-
- -�
---- --

PERSJ>ECT IVAS 199

. .
.

empobrecida se assim tiver de ser; em qualquer


dos casos tão pura quanto nos é possfvel con­
I

servá-la. A fé no trabalho, a crença na possibili­


dade de salvação e a coragem para a conseguir­
mos, ninguém nos poderá privar de tudo isso.
'

Pouco importa saber quem irá colher os frutos


dos nossos suores. O rei Necho, conta-nos Heró•
doto, tentou abrir o istmo que separa o Nilo do
Mar Vermelho. Informaram-no de que a obra já /
havia custado a vida a 120:000 homens e apesar r
..
-disso não progredia. O monarca consultou um f
oráculo e obteve esta resposta: ,, Trabalhas para �
o Estrangeiro". Ao ouvir isto o soberano pôs de l
parte o projecto. lv\as hoje, ainda que mil orá­ •

(:Ulos fizessem tal aviso, a nossa decisão seria


'

sempre a mesma : tant pis, a obra continua.

Onde estão as razões para haver esperança?


Donde virá a salvação? E que é necessário para 1
a conseguir?

Os motivos para esperança sâo de natureza


muito geral, banal se quiserem. Em qualquer
organismo são sempre os sintomas de pertur­
bação, anomalia, e deterioramento que mais
prendem a nossa atenção. Os sintomas mórbidos
da nossa civilização são evidentes e dolorosos.
Contudo é possível que no grande corpo da
humanidade o fluxo da vida continue mais forte
do que poderia parecer. A enfermidade pode
acabar por si própria .

I

••

••

•I íl'



. -
tU �
.,,

'I . 200 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


'I

f
.I
\ Nos grandes processos naturais e sociais,. os
estertores da morte parecem ser acomP._anhados
das dores de parto. O novo brota sempre do
'
'

velho. lv\as os vivos não sabem nem podem


• '

\

',
saber o que é verdadeiramente novo e que está
destinado a triunfar:
Tôda a grande acção é seguida duma reacção ..
Se a reacção se mostra lenta na sua chegada;
tenhamo's paciência e aguarder1;1os a história.
Talvez nos dispunhamos demais a acreditar que
na nossa sociedade, perfeitamente organizada e
equipada, com a sua articulação e condutividade,.
acção e reacção se devetn suceder mais ràpida­
mente que outrora. Ora o inverso é que pode
muito bem ser verdadeiro. Precisamente por­
que os meios de manter uma dada situação sãÇ)·
muito mais numerosos, é que a reacção leva
mais tempo a materializar-se. E muito possível

que futuras épocas venham a considerar a •

nossa simplesmente como segunda colheita da


. Guerra.
A história é por vezes profeta. E assim diz-nos
que as grandes mudanças nas condições humanas
nunca se efectuarão sob a forma e m que haviam·
.

t
,

sido sonhadas. Sabemos também que o molde


das coisas futuras há-de ser diferente de qualquer
outro que se possa imaginar. Na resultante de
qualquer época há sempre um componente que
é depois considerado como a novidade,· o ines­ .

perado, o imprevisfvel. Esta incógnita pode ser �

sinónimo de ruína, mas en q uanto a espectativa I


I


II
I'
••

I


,

• •• ,, ' • ' > l o •, , •I J, ,o ,· ,, 1 1\" I'J. , , ..


, , ' ' I I


'

..
.
.
..
PERSPECTIVAS 201

. .
• pode hesitar entre rufna e salvação é nosso

dever ter esperança.


E , com efeito, podemos distinguir certos
sinais sugestivos de que o factor desconhecido
'

será de natureza construtiva. Há numerosas ten­


-
!"dências que, a despeito de tôdas as fôrças des-
trutivas, continuam a agir com os olhos postos
numa reforma e reconstituição da civilização.
Quem poderia deixar de notar como em todos
,./''" os dominios não directamente afectados pelos
,
. males do nosso tempo e até mesmo sob a pressão
dêles, os homens se dedicam de t�das as maneiras

'
I \"-, e com meios sempre mais aperfeiçoados ao bem
.

i
) da humanidade? Arquitectando e fazendo, pen­

.
I
.

/_:
'

sando e escrevendo, guiando e servindo, cuidando


I
•,

I
' e protegendo, tudo concorre para a salvação
I

.

.\

.
Ou até vivendo como vivem os humildes, incons·

'r cientes da luta pela civilização. Livres de tôda a


loucura e de tôda a violência, milhares de homens
!

de boa vontade continuam vivendo, construindo


cada um o futuro à sua maneira e conforme os
seus meios. lntrincheiram-se, digamos assim,
numa zona espiritual a que a malevolência do
••
• tempo não tem acesso e onde a falsidade nlo
tem crédito. Não desanimam, não cedem ao
I

desespêro por mais tenebroso que seja o seu


\ (
refúgio de Emmaus. Por todo o mundo está
\ I espalhada uma comunidade pronta a aceitar o
'

: I
I
novo, se é bom, sem sacrificar o que é velho
r
!
e provado. N.ao estio unidos por bandeiras e

I

slogans; a sua confraternidade é a do espfrito�
l
.f ,

· �
: '
· ,
··' , , ·.:,; ·
,, , ,I I I r ,
---=--
- ___,

'
I
I

202 NAS SOMBRAS DO AMANHA


t1 I
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,
• •

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"\
.


,.. .

•• •• >'
'
•j •

'• .

Um sinal bem flagrante desta ânsia de salva-


.

ção é êste: As nações, agora mais do que nunca,
retiram-se para o interior da concha da sobera­
nia nacional ; algumas proclamam alto e bom
som que nada mais reconhecem além da sua cul­
tura. Em mais do que um país o internacio-:
nalismo foi oficialmente proscrito. Ao mesmo
tempo, e precisamente devido a êste rápido iso­
lamento dos Estado�, verifica-se que a acção
.

mútua das suas relações se está a realizar, em·
grau sempre crescente, sob a forma de polí-
• •

I
' ,

tica mundial. E uma política mundial com


os meios. mais defeituosos, com as mais ter­
• ríficas evoluções-- a catástrofe pode chegar a
todo o momento- mas, apesar disso, uma
política mundial, uma forma embrionária de
colectivismo internacional que já se não pode
evitar, que é forçada a existir a despeito de
J

tudo, como se a necessidade de concórdia anu­
I

lasse tôda a divisão e reprimisse tôda a vio­


lência.

Se há, pois, razão para esperanças, donde


há-de vir a salvação? Não do "progresso••, com
certeza. já progredimos o bastante na arte de
envenenar o nosso mundo e a nossa sociedade.
O progresso do conhecimento e da ciência apli­

cada, pôs to que indispensável e inspirador, não


salvará a nossa cultura. A ciência e a tecnologia
não bastarão a alicerçar a vida cultural. As raí-


I

I
--�----
- - ---
-- -

PERSPECTIVAS 203

.
.


' zes da decadência espiritual esta:o demasiado
fundas para que o pensamento crítico e o poder
de criação técnica sejam capazes de, por si, cura­
rem o mal.
E eis-nos chegados a uma questão a que até
agora temos fugido : a relação entre a crise cul- ·
tural e as condições económico-sociais. Muitos

pensadores contemporâneos consideram a solu­
ção do problema cultural em directa dependên­
cia da questão económico-social. Não são ape­
nas os visionários do marxismo que sustentam
esta opinião. A influência exe�cida pelas doutri­
nas económicas actuais tem sido tão forte, que
muitos, sem aceitarem necessàriamente as dou­ •

trinas fundamentais do marxismo, estão plena­


mente convencidos de que a enfermidade espiri­
tual tem a sua causa última nas imperfeições I
económico-sociais. Esta convicção parte geral­
mente da idéia de que as perturbações de natu­
reza económica a que assistimos, provam que
I vivemos num período de transformação total da
I
.

sociedade, uum período de reconstituição" (ttein


! Zeitalter des Umbaus,), como lhe chama, sem \
hesitações, Karl Mannheim. Os sinais anunciado­
res desta metamorfose são com efeito impressio­
nantes. Após séculos de uma relativa e perseve­
rante estabilidade, um processo de ruptura parece
ter atacado agora tudo o que outrora se julgava
firme e sólido no campo da produção, do câm­
bio, dos valores, do trabalho e do govêrno. Os
I
I
.
princfpios da propriedade privada e da iniciativa


'

·'

'

204 NAS SOMBRAS DO· AMANHA


. .

,.

. . particular parecem vacilar nos seus alicerces.


Tudo isto, diz-se, indica que nos encaminhamos •

para uma reconstrução da sociedade.


I

Evidentemente que esta idéia da transforma­


ção estrutural se baseia em grande parte no
conhecimento de paralelos históricos. já por
duas vezes que o Ocidente conheceu um pro­
cesso dêste género = a transjção da sociedade
.
antiga para a sociedade feudal, e desta à socie­
dade capitalista. Contudo, para fins de compa­ (
.

I ração, nenhum dos dois exemplos tem a utilidade I


I•

que a sua simplificação e condensação quási I


I I
inevitáveis poderiam fazer supor. O proces·so de
feudalizaça:o durou oito ou nove séculos; come­
çou com os imperadores romanos e não se com­
pletou senão no século XI. A· transição da socie­
dade feudal para a da burguesia capitalista
esten �e-se por um período que vai aproximada­
\ I
i
,

mente de . 11 00 a. 1 900, e esta transformação é


,

menos intensa do que o vulgo a costuma repre­


sentar.
A história não nos dá exemplos duma altera­

ção rápida, semelhante à que se está a dar no
nosso tempo. As duas transformações estruturais
anteriores foram, além do mais, menos comple­
tas do que aquela que actualmente se espera.
Ambas se efectuaram na base dum prindpio
indiscutível de propriedade privada e de devolu­
ção hereditária. Tôdas as grandes civilizações de
que temos conhecimento (o comunismo político
do antigo Peru não dá provas suficientes para se

.
, , ' o -•

• >I f
•! ••
;, (•
·• , •l•l<· i11 .�;
'
t' 1 ·,, '•. � ,j t LI'.'.J,l. . - . •
;
.

J..

PERSPECTIVAS 205

,. concluir o contrário) se basearam de facto neS­


tes dois fundamentos. Portanto, consider�da do

ponto de vista histórico, a suposição duma
mudança estrutural rápida da nossa sociedade
deve considerar-se hipótese ousada.
Poder-se·á alegar que esta transformação
estrutural, positivamente afirmada, há-de dar-se
· automàticamente e há-de trazer consigo uma ,

forma própria de cultura. E esta a opinião do


velho materialismo histórico. Todavia, a maior
• •

parte dos sociólogos e economistas são de opi­


nião que a nossa época não é equiparável aos
períodos anteriores de desenvolvimento cultural •

mais espontâneo, visto que hoje a observação


profunda dos problemas, a vontade cônscia e os

t
I
meios de os resolver são incomparàvelmente
maiores. Q__�?.���e P._�etende cu�ar�s�-�-� . ���JJl.Q.
I
I

'
/

Poderá uma sociedade, pelo domfnio das suas


fôrças sociais, levar a cabo a sua vontade de
reconstituição, balisar o caminho a essa recons­
tituição, intentar e aplicar os meios necessários
à sua execução? Muitos julgam isto possfvel.
"E!!i_l!��r·�J�J�_o santo e sel_l}).�-�Q. J!!!. julga-se I
possfvel mecanizar o funcionamento da produção,
---� ··- . ·-··� ,-··

da permuta, do consumo, de tal modo que tôdas


as fontes de acção humana serão eliminadas. Os
povos concebem uma sociedade em que a com­
petição e a audácia serão suprimidas, em que o
egoísmo colectivo -
substituirá o egoísmo indivi­
dual. Uma- sociedade em tais condições será
-
favorável ao ·
· soerguer da cultura?
·
-
..
- . ,

..

-
· ·-- ..
· ·-- ---

·
-------- ---­- ·

-
·
·
·

T-----·
206 �
.

NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


•I
.



. '
..

• •

1
••

Mas a ciência polftica .... ... - espera


..·� dêsse , planear,
-·- - ·-- · ......... ....- -·
....
.

·�
,.... �

mais do que o restabelecimento económaco. Em


...

-
· · ·· ·

-
"--· - ·

..
"- .__...... ... • t-�.

c:frculos-iiiais vastos considera:se···possfvel um


..

""' ., .. . -

reajustamento das próprias formas orgânicas da


sÕCiedáde, segúndo os nioldes sàbiaifientê deli­ ..

neados pela inteligência. Sempre que a política


procura o rejuvenescimento, a velha imagem do
Estado como organismo volta a aparecer. Ora
uma concepção viva de um verdadeiro organismo
de Estado implica as melhores noções de que já
falamos ao tentar definir o conceito de cultura,
isto é, equilíbrio, harmo1,1ia, esfôrço comum,
I serviço, honra � lealdade E inegável que há um .

desejo ardente de cultura, notadamente na Ale-


manha, nesta ânsia nostálgica de reorganização
do orga n ismo politico em unidades vivas natu­
ralmente hierarqui?.adas, em "estados" (no sen­
tido feudal), em que cada homem se sentisse no
seu justo lugar dentro da sociedade. Um Estado
assim consolidaria pelo menos as bases da cul­
tura.
�ias êste conceito · de serviço teria de abranger
. mais do que uma cega obediência a um poder
que apenas procura manter-se e fortificar-se para '
'

proteger a vida e a segurança da comunidade


I que dirige. Para a verdadeira cultura esta espécie
1 de esfôrço rJãO basta. E necessário
,

antes de tudo

. . .

I
uma renovação do espfrito.
.

I

'
Se éssã··rendvãÇão não nos pode vir da trans­
formaÇão da estrutura, não pode vir dos planos,
'

i donde nos virá, pois? Poderá a Igreja. J��ê7la?


I '
.'
l ••

• • . - - . . . .
-
-

- PERSPECTIVAS 11)7
. •

' \
.

Sem dúvida que a Igreja há-de sair purificadá e


fortalecida das perseguições a que hoje é sujeita (\,
em mais que um pais. É possfvel que um futuro '�
próximo veja os povos Iailiíõs� geriiiâiiicõsi'ânglõ.:­
-sãiõêS··· e-··eslã\tos. reünidos num mesmo sen .. ti

\I
.
.
, ., __ . . .. . -
. . -.. .

mento religioso sôbre os graníticos alicerces do '

C risti ãnisino, num mundo que saberá coiiipreen-


"---· .. o


Q.

der_ que há de justo no lslam e de profuhdo


.
no Oriente.
. .. .. ... --: .

. Mas as Igrejas, enquanto . organiza-


ções, só poderio. triunfar. na .. medida .. em..--que
---·-· ... . .

con. 'imseguirem purificar os corações dos seus fiéis .

.Ã posição de vontades ou de precêitos; só-


·-p<?f si, será impotente para deter. a. corrente
• -

do
..:..-
mal. - .._._____

_ .

.
.

.
.

. .

• • • . . . .. .. . . o·-· - - .. .....
•.


XXI

Katharsis •

Não é da intervenção das organizações


sociais que devemo$ esperar a salvação. Tôdas
as colectividades humanas, povos, igrejas, escolas
ou partidos, por mais bem organizadas que sejam,
não podem oferecer as bases para uma boa e sã
�. '
cultura. O que é preciso, é uma regeneração
interior do indivíduo, uma modificação do habitas
.. .

espiritual do homem.
O mundo actual já avançou bastante no
caminho que conduz à renúncia absoluta das
l normas éticas. Dificilmente consegue já distinguir
o bem do mal. Tem a tendência para considerar
tôda a crise da civilização contemporânea como
l uma simples luta entre fôrças opostas, um duelo
entre adversários que se disputam a supremacia.
I
��
'
E todavia, a ún�ca esperança está na recognição
de que nesta luta as acções humanas devem ser
governadas pelo princípio absoluto do bem e do
mal. Daqui se segue que a salvação não pode


210 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
J

••

depender do triunfo de um Estado , de um povo,..;;,��� ·. a

· de uma raça, ou -de uma classe. Subordinar a ..­ ..


i:
urit fim egoísta os critérios que determi�am a < f
.
..
..
'

aprovação Ç>U rejeição de_ uma co_is�, é perv��ter· ' )


todo o sentimento da responsabilidade humana .. c

O dilema que enfrenta os nossos dias toma s


cada vez maior acuidade. Olhai o mundo mais. a
.
uma vez aturdido na . actual balbúrdia política . • .

Por tôda a parte complicações cuja solução já. ,P


dificilmente se pode adiar ; e c�ntudo, qualquer­ a
observador imparcial terá de aêlmitir que uma. d
'

solução satisfatória de tôdas as exigências e inte- fl


.

rêsses legítimos é quási impossível. Tal é, por· n


exemplo, o problema das minorias nacionais, de· te ..

,.
fronteiras traçadas contra todo o bom-senso, de·
proibição d e un-iões nat�rais, d e condições
r
. .
d
a·.
l'

económicas intoleráveis, etc. Tôdas estas situa-­ I n


ções criam uma atmosfera de exaspera�o que·
as transforma em outros tantos paiois capazes. \j o
p

de explodirem a todo o momento. Em cada um .:


d
dos �asos, são direitos iguàlmente justos que se­ St
l
defrontam e parece não haver senão duas solu- · I. .... p
ções. Uma é a fôrça armada, a outra é o arranjo­ •

sôbre as bases duma verdadeira boa vontade·


internacional, comportando a renúncia recíproca t�
de reivindicações, ainda que legítimas, e o res­ ti
peito pelos direitos e interêsses dos outros ; I q
numa palavra, uma reorganização fundada no· . fi
desinterêsse e na imparcialidade. Sl'

Ora o mundo actua' parece mais afastado que· q


nu rica destas virtudes. Muitos renunciaram mesmo- a
..
� •


i
I

\ •


211
I

�.,. . : KATHARSJS
•� ••
,

"'•

·vl
.

r�� �o principio ess�ncial da justiça e da harmonia


fj� inter a lonai A teoria do poder ábsoluto do
n c $
t:·:. Estado
.

priorl tôda a u�iirpaçao. à


I

justifica
�- · A ameaça da guerra total continua a pafràr sObre •

o mundo impotente ; é uma loucura que traz n a


·

sua esteira uma nova barbárie mais selvagem


ainda. .

As fôrças públicas trabalham qua�to podem


, para afastarem a catástrofe, para conseguirem
\
acordos e cooperação. O mC!!�_êxitó da SoEJe-
dade das Nações - embora acolhido com o sor­
ri;o· sarcásiiéó.. duin deus Ares - tem hoje muito · ·
J
I
m.�.i� . va�or q��--� _1_11ai or parada · â�J��i�:!��_íii
.

___

t�rra . ou llQ ll)ª!"�. Apesar de tudo, os esforços


_ _

dum internacionalismo bem compreendido serão


ainda assim insuficientes se não houver uma ,
modificação do espfrito. Nem o evitar a guerra
pela acção internacional, nem a restauração da
ordem e da propriedade são em si uma garantia · l
de purificação da cultura. Uma nova cultura só
se poder� ���envolver no solÕ dumâ liumâiiidã(t{{"'
/{i
.... purificada.
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
• •

Katharsis, assim chamavam os _gregos ao es­


tado de espfrito produzido pelo espectáculo duma
tragédia ; uma espécie de silêncio do coraçlo em
que a piedade e o mêdo se fundiram, uma puri­
ficação da alma n ascida da compreensão dum
significado mais profundo das coisas ; um estado
que dispõe ao cu_mprimento sério do �ever e à
aceitação do �estino ; que rompe o · hJbrls tal

• -
-
·-·
- . '. .. . . . )�Iii.·.: .

- �- - -- --

,
: 212 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ ? � cf.e
Jwv�
como se faz na tragédia ; que n iberta � das t �)
paixões violentas da vida e nos dá a paz à alm�.
Para conseguir a purificaçã ecessária à hora J.f
presente, impõe-se !!_o_y� .(��[t�sis� Aquêles que se
dispõem a criar essa cultura p'ürificada terão de
se assemelhar aos qu-e despertam ao romper da
aurora. Terão de afugentar os maus sonhos da J
noite - sonhos de almas saídas do lôdo e que
para lá querem voltar ; sonhos dum cérebro cujas
circunvoluções são fios de aço : sonhos de cora­
ções frágeis como o vidro; sonhos de mãos
transformadas em garras e de dentes feitos lâmi­
nas. Deverão recordar, enfim, que o homem pode •
o o "

querer não ser uin anim�!./


o

Estâ ' iiovã. . askêsis não será uma renún... cia.ao


.
- -· -
. . .

mundo para coilquistar o céu ; será o domínio


..... . - -

· próprio e uma justa apreciaç�o . d� fõfÇ� ê ·��


prazer. A exãltaÇão da vida terá de baixar um
·p ouco o seu tom. Será preciso recordar o que já
Platão dissera das ocupações do sage : que eram
\
'I uma .Pr�p�ração para a n1orte. Só uma orientãÇão
firme da vidã pâra a morte pode enobrecer o
uso das próprias fôrças vitais.
A nova asllesis deverá comportar uma ren-
· -·
dição, rendição a tudo quanto se possa conceber
como ideal. Nem uni povo, nem uma classe� nem
a existência individual própria poderão ser
(
I objecto dêste pensamento. felizes aquêles para
quem êste . principio só pode ter o nome de
\

Quem disse: Eu sou o Caminho, a Verdade, a


u

Vida"·

. · ,
. . ., '
. .

, ...
. "'.•�·: -
· 1 , . '

.

KATHARSIS 213

Os revivescimentos de hoj� apreenderam algo


da atitude espirituál necessária à restauração da


cultura, mas êsse algo está ainda turvo, envol­
vido num excessivo puerilismo, abafado pelos
urros da fera engaiolada e manchado pela falsi­
dade e pelo dolo. A juventude, que de qualquer
maneira há-de levar esta cultura à sua nova
fase, está disposta a dedicar-se , a servir, a sofrer,
a praticar grandes feitos e a sacrificar-se. Mas o
enfraquecimento geral da capacidade de julgar e
a subversão das normas morais impedem-na de
conhecer o verdadeiro valor do princípio que
é chamada a servir.
É difícil saber .onde terá de começar a indis­
pensável purificação do espírito. Teremos de
mergulhar ainda mais fundo antes de compreen­
dermos? Ou já começou a coesão de todos os
•• homens da boa. vontade, a despeito da inextrin­
cável confusão- do mundo actual? Porque, repito,
o cultivo do. internacionaHsmo não é tudo. Mas é
da"íijâts alta importâncià QUC COÍ1titiue êsfe pâCieUte
trabalho de preparação . da humanidade pàrã· üie� ·· ..
lbpres temp,o �. Não vemos nós já esta·o 6ra a reab-
' . .. -- .. . . . ....- ,.. . �
. . .. . .
' . _

zar-se em várias partes:do globo, graças ao esfôrço


de pequenos grupos de indivíduos unidos pela
mesma idéia, e de organizações oficiais interna­
cionais que se inspiram em motivos religiosos,
políticos ou simplesmente culturais? 1Donde quer ,.a-. . .... .... -· ---� --

Ç)!le surja o botão, ainda o mais frágil, do ver-



dadeiro iiitêrnacfóriatismo (nieihor diriáriiõs 1íiter:­
riicior1atidàde)� . cüié:iai dêle, regai-o com a água
•4 • • • •


214 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ
,



/ criadora da consciência nacional. _contanto que


{ -�!ã� ��l���P..���
Ássim ..��-:de _florir . �o��El �is vigor.
.
.

' O sentido internacional - estã palavra já'implicã •

a preservação das nâdonalidades, mas SÓ dâquelãs� . . . .. . . " . . .

que se compreendem ·e resolvem padficãmente


.

� .

os conflitos - pode tornar-se modêio éià nova


l ! ética dá qual . deverá desaparecer. a oposfçio
l colectivismo-indivi�ualismo. Será sonho pensar
\, q.ue um dia o ..�undo possa �O!lh���r .._l�! · ·�.i tua-
ção? Mesmo que fôsse, nunca deveríamos aban-
\
l\ donar êsse i.deal.
\

Mas a expressão dêstes desejos e espectativas


de purificação do espírito , duma Katharsis que
seria uma conversão, um renascimento, uma
regeneração, não nos irá env<;>lver numa contradi­
ção com aquilo que estabelecemos no início dêste
livro? Dizíamos nós aí que os períodos anterio­
res, na sua aspiração de uma sociedade tnelhor,
haviam fixado as suas esperanças numa reversão,
numa tnelhor compreensão das coisas, numa
reconquista do senso e da virtude. O nosso
tempo, pelo contrário, sabe muito bem que as
grandes transformações espirituais e sociais só
se efectuam gradualmente, quando muito, ace­
leradas temporàriamente por qualquer aconte­
cimento extraordinário e inesperado. E não
obstante, o que nós queremos e esperamos
é uma revulsão, até certo ponto, mesmo um
regresso.

. .


- ' , •I ' • • j ' ': '

• • ' • •
- -
-
---
- -
- --

215 .I
'

KATHARSIS
,


I •

'
' I

, Eis-nos mais uma vez enfrentados pela deter- '



·

minação antinómica, pela inconcludência dos


nossos jufzos. Somos forçados a reconhecer uma

certa dose cte verdade n a nossa primeira con·
-cepção. Mas na· marcha da civilização tem de . .

-existir uma possibilidade de conversão e de


·

reversão. A conversão será possfvel quando se



tiver encontrado e reconhecido como tais as ver- : •

dades eternas, verdades que estão acima da cor- �.


rente da evolução e da transformação. É destas '- ·

·

verdades que se trata.


O pêso duma pressão · mental como aquela
em que vivemos é mais fácil de suportar aos
velhos do que aos novos. Os velhos sabem que
só têm de ajudar a levar o fardo um pouco mais
adiante. Resignados, recordam como era o mundo. e

ou como parecia ser, quando começaram a par-


tilhar do pêso do fardo, e o que êle será amanhã. ·
I
'

Para êles o ontem e o amanhã quási se confun-



dem. Os seus temores e cuidados vão morrendo
.à medida que se aproximam do túmulo ; a sua
esperança e confiança, a sua vontade e coragem
para agir, depõem-nas êles nas mãos dos que têm
.a vida à sua frente. A êstes compete aceitar o

austero dever de julgar, de escolher, de traba-


lhar, de agir; a êstes fica reservada a dura res­
ponsabilidade ; a êstes cabe saber o que o futuro

lhes destina .
O autor destas páginas pertence ao número
'
.
.

daqueles que possuem o privilégio de, pelas


suas funções e vida pes�oal, permanecer e m con-

-
�.
.... - , . . r'
'' .' � . . - .( �"'
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.
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• I •

• •

216 NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

tacto íntimo e constante com a juventude. Est4


convencido de que a geraÇão actual em nada cede
à precedente no que respeita a aptidões que lhe
permitam sair triunfante das dificuldades da vida.
O rel.ax:tmento de todos os laços, a .desordem
\ do pensamento, o desvio da atenção motivado·
pelos divertimentos, e a dissipação da energia,
em que esta geração se desenvolve, não a debi­
litou, não a tornou apática nem indiferente.
E franca, generosa, espontânea, pronta para os
,
.,

.
,.

prazeres , mas também para as duras provações ;


é decidida, corajosa e capaz de grandes ideais.
Sente-se mais livre do que as s�as antecessoras.
Reserve-se à nova geração a tarefa de dirigir
o �undo tal como êle deveria ser dirigido, de o
salvar do abismo da loucura e do orgulho. de
lhe insuflar enfim, uma vez mais, um espírito .

novo.
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Pi,;.

l - Ambiente de decadência . • • • • • 7
11 -·Receios de Antes e de Agora • • • • 13
III - A cdse actual comparada às do passado. • 10
IV - Condições básicas da Cultura . • . • . 29
V - Natureza prob,emática do.Progresso . 41

• •

A ci ência nos limites d.Q.J?.�!!.S.!.m.S.!!!R� 45


V:Jl -
• •

�!!fr��l��Ü��e� t,9,. d.� .capa,cidaclc de julg�t • 55


.
V!JJ pc�!(r!Ltt..Ê.2-�Pi!itgsrltlc.o
- . • . . • 65
�- A ciência errõnea.m�B��-�pJj�qa. . 77
(59-
• •

Q,tÇR..lW J.P ds;uJrincipio.intçteç_tual


·
.
. • • • 83
. � -'"o Culto da Vida . �
• • ' • • • • • 89
<Xft- Vida c Luta
.
� o"f""'·- . . .... .. ;.c-,.-..-•� �
,
. • • • • • • . • • 97
�llt'- Declhuo das normas _!!l.Q.t!i� 111
.
t""'" .. ...-....·
... � .. .-.......

• • • • •

>a\7 - R�gn_a regni.s,..,tugi]. . . . • . • . 125


� - ��.roísmo. • . . . . • . . . · 139
XV} Puerilismo . . . . . 151
;00! - �uper'Stk!
. • . . .
-

o 163
(!yJJP -
• o • o o • • • o •

�-.� .J�.a..literalura. afastadas da Razão. e


..

da Natly.eza ; o 171

���d����. �.:42.��J!!�
• • o • o o •

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�.� ��- ��-êf!Cias 1 . P.�.rª..f
J

1!!'!9.Qm� .
....

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183
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. . .. o o o

P�r.s,eeç�ivas.. . 189
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JCtl
.-- Katharsis • o • • • • o • • • • 209

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l

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.
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COLECÇÃO STVDIVM

VOLUMES PUBLICADOS :

1 - Henri Robert, O Advogado. Tradução e prefácio do


Dr. J. Pinto loureiro (2.a edição).
2 - Pierre Bouclzardon, O Magistrado. Tradução e pre­
fácio do Dr. j. Pinto loureiro (esgotado).
3 - G. Boux, Organização d o Estado Novo Italiano
(esgotado).
4 - M. de Fleury, O Médico. Tradução e prefácio do
Prof. Rocha Brito (esgotado).
5 - Carlos Richet, O Homem de Ciência. Tradução de
D. Maria Dan tas d e Campos Tavares - revisão e pre­
fácio do Prof. Agostinho de Campos. .
6 - Mgr. E. juUen, O Padre. Tradução e prefácio· do
P.e Dr. Luís de Melo.
7 - Heinz Heimsoetlr, A Filosofia no Sécul o XX. Tra­

dução do Prof. L. Cabral d e Moncada (2.a ediçãO)•


8 - Hans Kelsen, Teoria Geral do Estado. Tradução
do Dr. Fernando de Mira•tda (Quási esgotado).
9 - H. Donnedieu de Vabres, A justiça Penal de Hoje.
-
do Dr. Fernando de Miranda(Qu:isi esgotado).
10 Henry T. - F. Rhodes O Génio e o Crime. O homem
e g mo e o cnmmoso, na sue revolte contra e socie­
dade. Tradução do Dr. Fernando de Miranda (esgotado).
l i - Ans Kelsen, Teoria Pura do Direito. Prefácio do
Dr. Fernando Pinto loureiro. - Tradução do Dr. Fer­
nando de Miranda.
1 2 - F. Aclzille - Delmas e Marcel Boll, A Personalidade
Humana. Tradução dos Drs. David Augusto Júlio e
Fernando de Miranda (esgotado).
1 3 - Henrique Ferri, Discursos Forenses (Defesas Pe­
. na is).Tradução do Dr. Fernando de Miranda (Em reim�
·pressão). •
l
:

' .

14 Henrique Ferrl, A o Lado das VItimas (Discursos de l


;
I

I

• -
••
'
'; Acuseçio). Tradução do Dr. Fernando de Miranda.
r
.
15 - Edmond Locard, A Jnvestigaçlo Criminal e os !
Métodos Cientfficos. Tradução do Dr. Fernando i
de Miranda.
1 6 - Bertrand Russel, Os Problemas da Filo sofi a. Tra·
dução e prefácio do Dr. António Sérgio (2.• edição).
17 - Luiz de Launay, O fim dum rnu.ndo e o mundo
novo. Tradução de Jorge Barbosa.

18 -AllJerto Borciani, A s ofensas à honra (Os crime$


de iniúrie e difemeçio). Tradução do Dr. Fernando
de Miranda.
19 - Abel Salazar, O que é a Arte ? (esgotado).

20 - A. · D. Sertil/anges, � Vida Intelectual (üpfrito ­
Condições - Mêtodos). Tradução e prefácio do Prof.
A. Pinto de Carvalho (2.3 edição no prelo).
21 - Alberto Rivaud, A s grandes correntes do pensa ·

mento antigo. Trad. do Prof. A. Pinto de Carvalho.


22- A. Cuvillier, Introdução à Sociol ogi a . Traduçâ()
• do Dr. Fernando de Miranda (esgotado).
23 - L. Cabral de Moncada, Um «Iluminista)) portu­
guês do século XVIII: Luiz António Verney. :
24 - Paulo Vignaux, O pensar da Idade Média Tra- . \ ·
·

dução do Prof. A. Pinto de Carvalho.


25 - Henri Bateman, O Regime Matrimonial no DI- ·
reito Internacional Privado. Tradução do Dr. Fer­ •

nando de Miranda (esgotado).


26 - ]. Arthur Thomson, lntroduçio à Ciência. Tra-,
dução do Dr. António Sérgio. �•
. 27 - Luis A. Duarte Santos, Biotipologia Humana i
I
(esgotado). !
I

28 - Mauricio Halbwachs, Morfologia Social. Tradução 1 j


.I
l do Dr. Fernando de Miranda.
1
I 29- William Mac Dougal, A Psicologia (Estudo do
comportamento). Tradução do Dr. Enio Ram.alho :
'
'

.

30- Enrico Contieri, O estado de necessidade. Tra


'
J
l

dução do Dr. Fernando de Miranda.


3 1 - Vieira de Almeida, Filosofia da Arte. :
32 - ]. Spenlê, O Pensamento Alemlo. Tradução d 1
-

Dr. Mário Ramos.


I

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