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Educação Unisinos

9(2):164-178, maio/ago 2005


© 2005 by Unisinos

Na contramão da cultura individualista:


processos educativos em grupos juvenis e
capital social
Against the grain of individualistic culture:
educational processes in youth groups and
social capital
Rute Baquero
rbaquero@unisinos.br
Lúcio Jorge Hammes
l-h@ig.com.br

Resumo: O artigo tem por objetivo problematizar processos educativos de natureza não-
formal, desenvolvidos em grupos juvenis vinculados a três organizações que têm, na vivência
em grupo, a base da formação da juventude. As organizações às quais os grupos estudados
estão vinculados são: Rede Em Busca da Paz (EBP), Pastoral da Juventude Estudantil (PJE)
e Movimento dos Sem Terra (MST). Postula-se, no estudo, que os grupos juvenis de
convivência, organizados em sistemas horizontais de participação, propiciam aprendizados
que favorecem o desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas, relações de confiança
e de entre-ajuda, com efeitos para além do grupo, constituindo-se em mediações importantes
para a construção de capital social junto à juventude.

Palavras-chave: processos de formação, juventude, capital social.

Abstract: This paper discusses non-formal educational processes developed in youth groups
associated to three organizations in which the group experience constitutes the foundation
of youth formation. The organizations to which these groups are linked are: In Search of
Peace Network (EBP), Pastoral Work with Students (PJE) and Movement of Landless Rural
Workers (MST). It postulates that these groups, which are organized in horizontal systems
of participation, provide learning experiences that foster the development of individual and
collective abilities and skills as well as relationships of trust and mutual help that have effects
beyond the group, generating important mediations for the construction of social capital
among youth.

Key words: formation processes, youth, social capital.

Introdução vos cenários sociais, conforme des- ando, decisivamente, a explosão do


tacadas por Schwartz (1995). Segun- mercado de automóveis, as empresas
Segundo Dina Krauskopf (2000), do ele, a maior parte dos estudiosos de ferramentas de jardinagem, entre
a construção da cidadania juvenil é concordariam que aprendemos sobre outras, e se pergunta: “Uma outra
um tema estratégico nas sociedades o poder das forças motrizes em parte força demográfica será tão poderosa
latino-americanas de nosso tempo. observando o impacto do baby boom durante os próximos anos?” Refere,
Presentemente, um dado que não americano (explosão demográfica então, uma nova explosão
pode ser ignorado em relação à ju- nos Estados Unidos da América). O demográfica global (novo baby boom
ventude é sua presença como cate- autor cita como exemplo de força global) de tal dimensão que a explo-
goria social e cultural e sua força motriz os 40 milhões de jovens que são demográfica americana consti-
motriz no desenvolvimento dos no- nasceram nos anos 40 e 50, influenci- tuiu-se apenas “a prova de roupa no

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contexto de um espetáculo” têm entre 15 a 24 anos e podem ser fessores, administradores e funcioná-
(Schwartz, 1995, p. 63): os jovens no consideradas jovens, segundo rios se comportam democraticamente
mundo hoje são mais de 2 bilhões, parâmetro da Organização das Na- na comunidade educativa [...] no sen-
sendo a maioria deles da Ásia e da ções Unidas (ONU). Mas se ampliar- tido de construir uma cultura de parti-
cipação como um processo de forma-
América Latina. O grupo de estudos mos esta fase, como alguns autores
ção de cidadania: todos têm direito a
coordenado por Schwartz chamou a estão propondo, para até 29 anos, votar, todos participam ativamente
este cenário de “Adolescente Glo- temos 50.492.212, ou seja, 27,8% de das decisões do grupo, etc. No entan-
bal”, não apenas porque esta nova jovens na população brasileira. Os to inexistem práticas destinadas a de-
explosão demográfica é de âmbito dados revelam ainda um número mai- senvolver uma educação para a de-
mundial, mas porque, segundo o au- or de jovens do sexo masculino nas mocracia [...] preparar cidadãos para
tor, seus membros estariam muito mais idades inferiores, diminuindo à medi- que valorizem os sistemas democráti-
interligados. da que aumentam de idade. cos e que internalizem conhecimen-
tos, habilidades e valores necessários
Outrossim, Schwartz (1995) apon- Ainda que as previsões tenham
para defender e promover sistemas e
ta que os resultados deste baby seus limites, ninguém pode ignorar procedimentos democráticos, no âm-
boom não terão o mesmo impacto que este “poder juvenil” ao tratar de polí- bito dos direitos civis, políticos e so-
a cultura jovem dos anos 60 na Amé- ticas em relação à juventude. Ao con- ciais. Uma educação que dê conta de
rica, porque o mundo é um lugar mai- trário, sugere-se reconhecê-los como uma “nova cidadania”, de um projeto
or e mais diversificado e o humor so- capazes de agir protagonicamente. para uma nova sociabilidade [...] uma
cial é diferente daquele tempo. Mas Em relação à educação, deve-se educação política no currículo”
alerta que um novo cenário poderá ficar atento para as mudanças nos (Baquero, 2004, p. 75).
se impor, nos próximos 50 anos ou comportamentos dos jovens que,
mais. O período poderá ser exacerba- segundo Schwartz (1995), vêm com o A educação cívica é destacada
do por uma nova sensação de poder cenário do “Adolescente Global”, como central para a construção da
que os jovens sentem – o poder de com reflexos para os contextos naci- cidadania e indispensável ao pleno
seu número. Segundo Schwartz onal e latino-americano. Dessa for- funcionamento da democracia na
(1995), a pressão de seu número será ma, uma educação política voltada obra de Dahl (2001). Ela é alcançada,
tão intensa que dará nova forma ao para a construção de uma cidadania conforme este autor, através dos
mundo1. juvenil ativa constitui-se em desafio meios formais de educação (escola),
No Brasil, dados do Instituto Bra- central nestas sociedades. da disponibilidade de informação
sileiro de Geografia e Estatística De acordo com Baquero (2004), no através dos meios de comunicação,
(IBGE) sobre a pirâmide etária do Bra- campo da educação há três expres- da atuação dos partidos políticos e
sil, organizada para demonstrar a di- sões que relacionam as palavras edu- das associações organizadas das
nâmica demográfica, com projeção cação e democracia, com significados quais os cidadãos fazem parte ou
por sexo e idade para o período de diferentes: democratização da educa- se aproximam.
1980 a 2050, revelam que os jovens ção, educação democrática e educa- Há que se destacar, no entanto,
são um grupo numérico de destaque ção para a democracia. No Brasil, con- que tais espaços formativos exercem
– a grande maioria –, sendo que o forme a autora: papéis diferenciados no desenvolvi-
maior contingente juvenil se situa na mento de uma educação cívica. Parti-
“Em geral os esforços dos sistemas cularmente os processos formais de
faixa etária de 15 a 19 anos.
educativos têm se orientado em dire- educação têm se ocupado, em geral,
A representação numérica da po- ção a um processo de democratização
pulação de 15 a 29 anos no Brasil em do desenvolvimento de uma cidada-
da educação, isto é, visando garantir
2004 conforme o gênero indica o acesso à demanda por educação a nia institucional que tem por objeti-
quanto esta presença jovem pode contingentes cada vez maiores da po- vo o “enquadramento” dos jovens
influenciar a sociedade como um pulação. Por outro lado, é possível no modus operandi do sistema esta-
todo. De um total estimado de identificar algumas experiências esco- belecido. Os meios de comunicação
181.586.030 pessoas no Brasil em ju- lares de educação democrática, o tipo também têm contribuído para o de-
de educação em que estudantes, pro- senvolvimento de processos de alie-
lho de 2004, 35.130.257, ou seja, 19,3%

1
As atuais reações serão diferentes, porque os tempos são outros. “Há vinte anos, se alguém fizesse uma previsão de uma revolta juvenil na América
Latina, o cenário de quase todos os pesquisadores a colocaria na direção do socialismo, liderada por Che Guevara. Se uma revolta ocorrer agora a partir 165
dessa população adolescente global, mais provavelmente será empresarial ou capitalista [...] No passado, as sociedades com grande número de
adolescentes masculinos iniciavam guerras. Essa opção, improvável em escala global, pode ocorrer em algumas cidades. Já observamos, por exemplo,
no Irã e no Iraque, um buraco demográfico duradouro, criado por milhões de mortes de jovens do sexo masculino na guerra” (Schwartz, 1995, p. 64).

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nação dos sujeitos (Guareschi, 1981), Rede Em Busca da Paz (EBP),2 Pasto- a formação de associações juvenis.
e, em relação aos partidos políticos, ral da Juventude Estudantil (PJE)3 e Na antiga Grécia, a organização
pesquisas realizadas por Baquero Movimento dos Sem Terra (MST).4 dos jovens se dava em torno de di-
(2000) e Schmidt (2001), entre outros, Pretende-se, especificamente, refletir ferentes atividades sociais, cultu-
têm revelado baixos índices de confi- sobre o processo de formação desen- rais e desportivas, articuladas em
ança por parte dos jovens em relação volvido nestes grupos juvenis, dis- torno da polis e da paideia. Con-
aos políticos e às instituições políti- cutindo objetivos perseguidos pelos forme Sandoval (2002), o objetivo
cas, evidenciando um currículo ocul- grupos e ações realizadas, e exami- da paideia era adaptar os cidadãos
to de natureza altamente deseducativa, nar sua relação com a constituição à cidade.
o qual compromete a qualidade do (ou não) de capital social.
“La paideia tenía como objetivo
processo de educação política. O texto está estruturado em quatro
establecer solidariedades entre los
Na perspectiva freireana, tais ações partes. Na primeira parte, apresenta jóvenes, modelándolos como
configuram-se como processos uma delimitação conceitual a respeito ciudadanos de pleno derecho, capaces
educativos de domesticação, os quais, de grupos juvenis. Posteriormente, de emitir juicios sin confundir las cau-
segundo Freire (1985), se constituem descreve-se o processo de formação sas con los efectos, por lo tanto, la
em processos submetidos aos impe- nos grupos, discutindo objetivos per- paideia era ante todo el arte de vivir
rativos políticos e pedagógicos da seguidos e ações desenvolvidas intra en la ciudad” (p. 962).
conformidade social e da dominação. e intergrupos a partir de dados de
Impõe-se, desse modo, a necessi- pesquisa. Na terceira parte, discutem- Em Roma, fomentadas pela autori-
dade do desenvolvimento de uma ci- se resultados da investigação no que dade política, foram criadas associa-
dadania juvenil ativa, em que os sujei- diz respeito ao processo formativo no ções juvenis, cujo principal objetivo
tos sejam conscientes em relação ao grupo e sua contribuição na consti- era militar. Todos os anos, preparado
seu papel na sociedade. Processos tuição (ou não) de capital social, fi- pelas organizações juvenis, ocorria
educativos desenvolvidos em espa- nalizando-se com uma reflexão acer- o “espetáculo dos jovens” em vários
ços não-formais de educação, dentre ca das especificidades do processo lugares da Itália, protagonizando
os quais a formação-ação realizada em educativo realizado nos grupos ju- competências de todos os tipos. Atra-
grupos juvenis, podem contribuir para venis estudados. vés destas organizações, os jovens
o alcance desse objetivo. participavam ativamente da política,
Parte-se da postulação de que gru- Grupos juvenis: uma “como demuestran los manifiestos
pos juvenis de convivência, organi- mirada histórica e os electorales de Ponpeya donde los
zados em sistemas horizontais de atuais espaços de jóvenes hacían propaganda a favor
de algún candidato a la suprema ma-
participação, desenvolvem uma edu- relacionamento da
cação de natureza emancipatória, que gistratura de la ciudad” (Sandoval,
juventude
se constitui em instrumento de inves- 2002, p. 102)
timento em capital social. Na Idade Média, surgem as
Na sociedade moderna, a partici-
Nesta perspectiva, o presente ar- gangues, praticando atos de violên-
pação em grupos aparece como algo
tigo tem por objetivo problematizar cia contra a ordem estabelecida, ou
quase intrínseco aos jovens. Eles
processos educativos de natureza como provocação ao mundo adulto
tendem a se agrupar para partilhar
não-formal, desenvolvidos em gru- (dividido em classes sociais forte-
expectativas e vivências, e com o gru-
pos juvenis vinculados a três orga- mente estruturadas).
po organizam sua vida e moldam sua
nizações que têm, na vivência em gru- identidade. “Cabe señalar que estas acciones de
po, a base da formação da juventu- A história registra, no entanto, violencia no sólo se ejercían en contra
de. As organizações às quais os gru- grupos juvenis desde os tempos áu- de determinados poderes civiles o
pos estudados estão vinculados são: reos da cultura greco-romana, como eclesiales, sino que frecuentemente se

2
A Rede Em Busca da Paz, com sede em Santa Cruz do Sul, constitui-se em uma ONG voltada para a construção de uma cultura de paz, de promoção
dos direitos humanos, e assume a não-violência como estilo de vida e metodologia de ação. O grupo desta organização que pesquisamos foi Jovens
Unidos pela Paz (JUPA), de Santa Cruz do Sul – jovens entre 12 e 28 anos.
3
A Pastoral da Juventude Estudantil é organizada por, com e para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio para que desempenhem a missão
166 de “construir uma sociedade justa e fraterna, buscando transformações a partir da sala de aula”. Os jovens entrevistados são da PJE de Sapucaia do
Sul – jovens entre 13 e 27 anos.
4
O Movimento dos Sem Terra surge em função da reforma agrária. Hoje está presente em praticamente todo o Brasil e organiza mais de 1,5 milhão
de pessoas em acampamentos e assentamentos. Os jovens entrevistados são do assentamento da Fazenda Quinta, de Encruzilhada do Sul. Suas
famílias acompanharam o processo de instalação do assentamento, e eles têm entre 12 e 21 anos.

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ejercían entre ellos mismos, entre argumento se baseia na distribuição processo de constituição da própria
pandillas, entre cofradías, entre gru- de papéis na sociedade moderna, identidade. Conforme Fau (1968, p.
pos de caballeros, desarrollando una ocasionando divisões na vida fami- 44), “é na procura de sua autonomia
verdadera institución italiana que exis- liar e uma nova relação entre pais e interior, independente das circuns-
te hasta el día de hoy: la vendetta” filhos, gerando novos espaços de tâncias, que o adolescente percebe
(Sandoval, 2002, p. 962). relacionamento da juventude: o sis- a necessidade imperiosa de se agre-
tema escolar, os grupos vinculados gar a um grupo”. Mas este grupo é
O inícizo do século XX é marcado a organizações (não-governamen- essencialmente transitório, fragmen-
pela extrema valorização da cultura tais, movimentos sociais, organiza- tário e limitativo, porque responde à
juvenil, provocada, especialmente, ções políticas e religiosas, etc.) e gru- exigência fundamental da adolescên-
pelos movimentos juvenis da Alema- pos espontâneos (grupos de jogos cia: individualização e autonomia.
nha (Wandervogel, depois hitlerista), informais, quadrilhas juvenis, grupos Normalmente se formam a partir de
da Inglaterra (Scouts), Itália (fascis- autônomos de recreação, etc.). objetivos comuns, como jogar fute-
mo) e Rússia (juventudes comunis- bol, vôlei, praticar skate e têm por
tas). Tais grupos tiveram função im- Grupos juvenis informais função assegurar uma relativa inde-
portante na formação da categoria pendência em relação à família e ao
juventude e na expressão da cultura Os grupos informais fora da es- mundo dos adultos, criar condições
juvenil, canalizando esperanças e cola, também conhecidos como gru- para uma “aprovação dos pares”. A
capacitando os jovens para a vida pos espontâneos, foram estudados, precariedade do grupo informal não
em sociedade. já em 1940, pela Escola de Chicago, lhe permite ser referência mais está-
Dick (2003) refere-se aos movi- que realizou uma radiografia compre- vel. Contudo, ao fechar-se em si mes-
mentos juvenis da primeira metade ensiva deste fenômeno juvenil, de- mo, constitui-se como gangue ou
do século XX como protagoni- corrente do crescimento urbano anô- galera.
zadores da visibilização do fenôme- malo, estudando especialmente os Para Eisenstadt (1976, p. 75), os
no juventude, identificando “even- jovens e a formação de agrupamen- grupos juvenis informais geralmen-
tos sociais e policialescos” a partir tos (gangues) nos bairros pobres, te organizam-se dentro da vizinhan-
dos quais os adolescentes, na pro- com certa homogeneidade étnica ça ou próximo a uma escola ou local
dução norte-americana, são estuda- (guetos), contrastado-os com os de trabalho, entre rapazes ou moças
dos e rotulados como um perigo para agrupamentos juvenis que encon- de uma certa faixa etária, e podem de-
eles mesmos e para a sociedade. Es- tram sua referência na vida escolar. senvolver uma forte, embora infor-
sas pesquisas fizeram emergir, nos Segundo Sousa (1999), esta tendên- mal, organização, com ritos secretos
anos 1950, o tema do adolescente cri- cia de analisar o fenômeno grupos e responsabilidades de cada um dos
minoso ou da delinqüência juvenil. juvenis também teve eco no Brasil: membros. Segundo o autor, estas or-
Analisando os grupos etários, ganizações juvenis ampliaram-se com
“Nos anos 80, a expressão “monos-
Eisenstadt (1976) diagnosticou como o desenvolvimento da industrializa-
silábica” de pouco discurso e forte
problemática a transição da infância “visual” de grupos urbanos darks,
ção, de sistemas políticos modernos
à maturidade na sociedade moderna, punks, etc., chamou a atenção de pes- e com a crescente limitação da ação
baseada em critérios universalistas quisadores mostrando que se deveria da família. Além disso, “ficaram mui-
de desempenho e especialização, estar atento para as novas formas de to mais solidárias e conscientes de
dadas as dificuldades que os gru- sociabilidade juvenil que estavam sur- si mesmas; tornaram-se cada vez mais
pos etários juvenis encontram para gindo na década” (Sousa, 1999, p. 19). importantes na vida de seus mem-
construir funções sociais realmente bros e da comunidade como um
integradas para os jovens. Há uma Os grupos juvenis informais as- todo” (Eisenstadt, 1976, p. 154).
mudança radical em relação às soci- sumem papel central na socialização Sandoval (2002, p. 112) refere os
edades primitivas, onde a transição dos jovens, sendo os primeiros es- grupos juvenis informais como es-
de um grau etário a outro se articula- paços em que as pessoas participam paços onde é possível visualizar si-
va em ritos de passagem especiais, como iguais. Segundo Mead (1968, nais da cultura jovem, possibilitan-
tornando-se uma “cerimônia univer- p. 31), antes de atingir a idade de 6 do a formalização das relações soci-
sal ao incluir todos os membros da ou 7 anos, a criança se associa muito ais, sem chegar a construir associa-
sociedade, justapondo as distintas pouco a outras da mesma geração. A ções cidadãs, e sim grupos destina- 167
gerações pelas suas relações mútu- partir dessa idade, começa a formar dos a expressar suas idéias, inquie-
as” (Eisenstadt, 1976, p. 140). Seu grupos, por categoria de sexo, num tudes, interesses, desejos e descren-

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ças com o mundo institucional. As ções políticas, religiosas...) e a par- berta da necessidade de se lutar pela
ações destes grupos se dão por um ticipação em uma estrutura mais transformação das estruturas sociais,
interesse situacional e, algumas ve- ampla levam à identificação de gru- o uso – pelos grupos – de espaços de
zes, contra a ética estabelecida. Se- pos juvenis de convivência, com revisão de vida e de prática, a compre-
gundo o autor: encontros regulares, objetivos, pla- ensão da fé vivida no engajamento so-
no de formação, estrutura de apoio cial, a descoberta e a opção pedagógica
“Son los grupos de amigos que se pelos pequenos grupos e o despertar
e intercâmbios.
juntan en las esquinas, beben alcohol, para o protagonismo juvenil” (Dick,
Os grupos juvenis de convivên-
fuman marihuana o pasta-base, se 2003, p. 280).
cia são grupos que têm na convi-
emborrachan, “se expresan”. Son los
amigos que van juntos al Estadio y
vência a base para desenvolver Processo da formação no
ritualizan su expresión en las Barras aprendizados, com objetivos co- grupo: objetivos e ações
Bravas. Es la expresión que adopta muns e uma metodologia que valori-
su forma perversa en las pandillas za o processo histórico, a situação Os grupos juvenis organizados
juveniles y en las sectas satánicas” de cada um dos participantes e o de- pelas organizações aqui estudadas
(Sandoval, 2002, p. 287). senvolvimento pessoal e comunitá- têm por objetivos acolher a juventu-
rio. Nesses grupos, os jovens parti- de, oferecer espaços de formação
Agrupamentos no sistema lham idéias, estudam e assumem jun- humana e qualificação técnica para
escolar tos conflitos, vitórias e derrotas, re- que possa ser agente de uma nova
conhecem sua individualidade, co- proposta a ser gestada constante-
A industrialização provocou a locando o grupo como referência e mente. Esta formação encontra sus-
“crise de aprendizagem” e o desen- apoio para a afirmação pessoal e a tentação nos objetivos que pro-
volvimento do sistema de construção da utopia possível.5 põem? Nas ações que desenvolvem?
escolarização, especialmente por A experiência de convivência nos
causa das mudanças tecnológicas e grupos juvenis possivelmente tem Objetivos dos grupos juvenis
o surgimento de ofícios diversos. como referencial mais visível a ori-
Segundo Eisenstadt (1976), nas entação adotada no trabalho desen- Diferentes são as respostas dos
sociedades modernas, a especializa- volvido pela Ação Católica Especi- jovens à questão “Qual o objetivo
ção econômica e profissional baseia- alizada com os grupos de base, as do seu grupo?” Tais respostas fo-
se na acumulação de conhecimento equipes de articuladores e assisten- ram agrupadas por freqüência, con-
técnico, “cuja transmissão está fora tes nomeados6. Esta estruturação forme o grupo ao qual os entrevista-
das possibilidades da família e exige favoreceu o desenvolvimento de dos estão vinculados.
a passagem por um período de apren- uma metodologia participativa e de Conforme revela a Tabela 1, a ação
dizagem e preparação” (p. 146), dan- um processo histórico que desen- dos grupos está direcionada para a
do a origem ao sistema escolar. cadeou o protagonismo juvenil nes- consecução de objetivos inerentes
No sistema escolar, em geral o agru- sa organização, tendo participação à especificidade das organizações
pamento é feito de forma homogênea, ativa na Igreja, no movimento estu- (26,4% das respostas) às quais os
observando critérios de idade e de- dantil, nos sindicatos e na política. grupos se vinculam, bem como para
sempenho acadêmico dos alunos. Dick (2003) cita um leque de heran- o desenvolvimento da formação hu-
ças deixadas pela Ação Católica: mana (38,5% das respostas) e da
Grupos juvenis vinculados a ação social e comunitária (35,2%
organizações “As heranças que a Ação Católica Es-
das respostas).
pecializada deixou são a utilização do
método Ver-Julgar-Agir, a busca de No que diz respeito aos objetivos
A convivência em grupos de cada uma das organizações às
uma prática a partir da realidade con-
filiados a uma organização não-for- quais os grupos de jovens estão vin-
creta, considerando questões sociais e
mal (organizações não-governamen- políticas, a formação na ação, a desco- culados, os entrevistados da EBP
tais, movimentos sociais, organiza- salientaram que o grupo tem por ob-

5
Uma “sociedade nova” é tema corrente nos grupos juvenis de convivência. Fala-se da utopia possível, de modo semelhante como a defendeu
168 Bourdieu (1998, p. 39): “utopismo que fosse realista”.
6
“Assistentes nomeados” eram adultos nomeados pelos bispos para acompanhar os diversos grupos nas universidades e nas dioceses ou cada uma das
específicas (Juventude Operária, Juventude Universitária, Juventude Estudantil, Juventude Agrária). Na PJ, a “figura” do assistente passa a
denominar-se assessor. Além de ser nomeado, sugere-se que o assessor seja indicado pela base, por quem deve ser bem aceito, pois sua tarefa é
assessorar todo o processo, que, muitas vezes, tem a ver com acompanhamento, proposições, reflexões e defesa da causa junto às instituições.

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jetivo promover a cultura da paz. Nas A paz e a convivência humana cam o objetivo relativo à organiza-
palavras dos jovens deste grupo: aparecem como objetivos importan- ção dos jovens com vistas ao desen-
tes a serem buscados. Muito mais volvimento de ações conjuntas na
“O objetivo geral é a paz. Para que do que uma paz individual, os jovens sociedade. De acordo com os entre-
isso aconteça, a gente trabalha com a se envolvem em ações coletivas pela vistados, o grupo tem o propósito de:
conscientização das crianças.
paz e contra a violência, afirmando a
Conscientizá-las de que têm valor e
tem o lado bom em cada uma delas.
importância de buscar a paz onde “Organizar melhor para conseguir
vivem e em outros espaços sociais. mais” (Iniciante do MST).
Que despertem (seja música, espor-
Para eles, a paz se constrói com ações “Reunir os jovens para discutir idéi-
te...) e não sejam discriminadas pela
as e preparar saídas em conjunto”
sociedade. Nós não ficamos só no gru- na superação das estruturas injus-
(Militante do MST).
po (isso não teria sentido). Vamos co- tas, como sugere Paulo Freire: “A paz
meçar um trabalho com os pais e famí- se cria, se constrói, na e pela supera-
lias da comunidade e sociedade, en- ção das realidades sociais perversas. Conforme evidenciam os relatos
fim. Sempre temos em vista a paz. Que
A paz se cria, se constrói, na cons- dos jovens, a vivência em grupo é
as pessoas amem umas as outras. Fa- apresentada como experiência bási-
zer com que o ódio seja esquecido,
trução incessante da justiça social”
(in Gadotti, 1996, p. 52). ca para sua formação nas três orga-
que a vingança seja superada. Pensar nizações estudadas, tendo em vista
num só objetivo, que é a paz. O que tu Já os jovens da PJE referem que o
objetivo da ação do grupo é promo- o alcance de determinados objetivos.
não quer para ti, tu não deve querer
para o outro, não quer em troca” ver uma educação com base nos A EBP, na Carta de Princípios da
(Iniciante da EBP). princípios cristãos. Segundo os jo- Rede Em Busca da Paz, aprovada pela
“Educar as crianças e mostrar que a vens da PJE: 1ª Assembléia Geral, no dia 17 de
paz é importante. Também ajudar as outubro de 1999, apresenta claramen-
pessoas (especialmente as crianças) a “Acho que a finalidade do grupo é dar te que o grupo é o “lugar para a
crescer como pessoas solidárias. Con- uma educação diferente, com base em convivência afetiva, uma escola e
tribuir para que estudem, não sejam princípios cristãos” (Iniciante da PJE). oficina da paz onde se educa para a
revoltadas. O grande objetivo é a bus- “O grupo tem seu objetivo relaciona- não violência e onde são organiza-
ca da paz. Por isso vamos aos con- do com a mística, uma proposta de
gressos, encontrões de jovens” (Mili- das e experienciadas ações em prol
transformação, do respeito às dife- da paz no mundo”.
tante da EBP). renças [...] Isto a gente aprende no
“O objetivo do grupo é formar uma Já a PJE, no seu Marco Referencial,
grupo” (Militante da PJE).
sociedade mais pacífica” (Egresso da afirma que “um grupo da PJE é forma-
EBP). Os entrevistados do grupo vin- do por jovens estudantes cristãos
culado ao MST, por sua vez, desta- que, possuindo objetivos comuns, se

Tabela 1 – Objetivos dos grupos (em percentual).

Fonte: Entrevistas em profundidade, 2004.


Nota: As diferenças entre soma de parcelas e respectivos totais são provenientes do critério de arredondamento.
169
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
n=27 (enquadramento múltiplo nas categorias da variável aprendizados)

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encontram e partilham sua vida e sua E 9,9 % dessas respostas in- “A gente ajuda as crianças carentes.
ação na transformação do meio es- dicam o desenvolvimento de Buscar a paz onde vivemos, com cam-
tudantil [...], onde o estudante é o aprendizagens de convivência panhas, como esta de ajudar as crian-
protagonista” (Pastoral da Juventu- como meta buscada pelo traba- ças. E têm muitas crianças aqui no
de Estudantil, 1994, p. 77). lho nos grupos. Na fala dos en- bairro que são agressivas. Então a gen-
Também o MST estabelece o gru- trevistados: te ajuda elas, conversa com elas, por-
que não pode ser assim” (Iniciante da
po como espaço importante para a
EBP).
formação da juventude, em direção a “Nossa idéia, ao organizar o grupo, é “Também atuamos no social, como a
uma ação coletiva organizada. Se- unir os jovens... Estamos agora sa- atuação no comitê contra a fome e
gundo Bogo (1999, p. 90): indo para encontrar outros jovens. miséria. Nos mobilizamos pela cam-
Queremos conviver com outros jo- panha do agasalho. Conseguimos
“[...] todas as atividades a serem de- vens também. Aprender uns com os atuar na educação. Ajudamos a criar
senvolvidas pela juventude devem ser outros” (Militante do MST). um curso para preparação para sele-
coletivas; para isto devemos estabele- “O grupo ajuda o jovem a se desco- ção no ensino técnico” (Egresso da
cer formas orgânicas para que os jo- brir na partilha como ser humano, PJE).
vens tenham condições de atuar em seu sentido amplo também: polí-
organizadamente e também terem suas tico, espiritual, ideológico” (Egresso E contribui para que a comuni-
referências organizativas constituídas”. da PJE). dade seja melhor para todos (20,9%
“Acho que foi um aprendizado ge-
das respostas):
ral. Era uma maneira de ligar as idéi-
No que diz respeito ao objetivo as de cada um em grupo. A gente
da formação humana, as seguintes “A gente faz dois trabalhos: de
debatia muito para ter uma idéia
dimensões foram mencionadas pe- evangelização (espiritualidade) e o
mais abrangente sobre o assunto. Se
trabalho voluntário de ajudar as ou-
los jovens: a formação integral do não, a gente fica só na idéia da gente.
tras pessoas com projetos de ação
ser humano, no âmbito pessoal e co- Aprendemos a confiar uns nos ou-
social. Um dos projetos que nos ocu-
munitário, a formação de lideranças, tros, apendemos a cooperar uns com
pa muito é o sopão da solidariedade
a formação de cidadãos e as apren- os outros” (Egressos da EBP).
porque não só damos comida, mas
dizagens de convivência. também trabalhamos com as crianças
Por sua vez, somente 4,4% dos e jovens que vêm buscar alimentos.
Um percentual de 11% das res-
depoimentos emitidos pelos entre- Temos também o projeto casa para
postas dos jovens refere a formação
vistados salientam a contribuição os índios, uma casa de passagem para
integral da pessoa como um aspec-
do grupo na formação de cidadãos: os índios que estão às margens da es-
to fundamental no processo de for-
“O grande objetivo é formar cida- trada na entrada de Santa Cruz do Sul”
mação humana oportunizado pelo (Militante da EBP).
dãos capazes de elaborar um pro-
grupo: “Acho que o principal objeti-
jeto de vida fincado na experiência.”
vo era a formação pessoal. Traba-
(Militante da PJE). Dessa forma, para um grande con-
lhamos temas como drogas, gravi-
A questão da formação humana tingente dos entrevistados, os gru-
dez na adolescência.” (Egresso da
tem sido problematizada por Arroyo pos dos quais participam (ou partici-
PJE), enquanto que 13,2% das res-
(1991) ao se referir à impossibilida- param) se abrem para as necessida-
postas destacam a formação de líde-
de da teoria e da prática educativas des dos outros, e os jovens podem
res como dimensão importante do
ficarem alheias aos processos fazer experiências de solidariedade.
objetivo de formação humana:
educativos que passam pela produ- Uma análise comparativa das res-
ção material da existência humana. postas emitidas pelos jovens parti-
“Eu sempre fui envolvido com a co- Trata-se, na perspectiva do autor, cipantes dos três grupos estudados
ordenação. Cada um tem seu papel. indica que a dimensão da formação
de entender a prática social como
Cada um é líder. Pode ser que eu seja
educativa, vinculando-a com os pro- humana é destacada, preferencial-
líder numa situação e o outro em ou-
tra. Por isso somos um grupo” (Mili- cessos de materialização da ação mente (42,8% das respostas), pelos
tante da PJE). humana. participantes da PJE, enquanto a di-
“Um dos objetivos do grupo é for- No que diz respeito ao objetivo mensão da ação social e comunitá-
mar líderes. Quando temos um rumo, da ação social e comunitária, os ria é salientada pelos participantes
as coisas ficam bem melhor. Neste entrevistados afirmaram que o do MST (42,4% das respostas).
170 sentido, o grupo ajuda a orientar” grupo: A análise comparativa entre os
(Iniciante do MST). três grupos no que diz respeito à di-
Ajuda os que precisam (14,3%
das respostas): mensão da formação humana revela

Educação Unisinos

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Na contramão da cultura individualista: processos educativos em grupos juvenis e capital social

também que os jovens da EBP refe- extracurriculares e mais inclinados a Ações desenvolvidas pelos
rem a formação integral das pesso- se envolver em atividades voluntári- grupos juvenis
as como o objetivo mais relevante as ou comunitárias.
nesta dimensão (13,3% das respos- A motivação para a ação coletiva Ao perguntarmos: “Como se de-
tas). E este mesmo grupo (EBP) está presente também entre os jovens senvolve o processo de formação no
enfatiza a formação de lideranças participantes dos três grupos, os grupo?”, os entrevistados destaca-
(20% das respostas), enquanto a PJE quais referem a ação social comuni- ram que no grupo desenvolve-se um
destaca a formação de cidadãos tária como um dos objetivos centrais processo de relações que sedimenta
(10,7% das respostas). Outrossim, os de sua formação. vínculos entre as pessoas, com “reu-
jovens do MST salientam o objetivo Sander (2001), por sua vez, desta- niões”, “estudos”, “debates” e “di-
relativo ao desenvolvimento de ca a influência positiva da ação grupal nâmicas de integração”, e forma para
aprendizagens de convivência (vinculada a uma organização religi- agir conjuntamente e de forma or-
(18,2% das respostas) na dimensão osa – Pastoral da Juventude) na for- ganizada, buscando apoio em ou-
de formação humana. mação de um habitus, que, segundo tros grupos e organismos, através
No que diz respeito à dimensão a autora, favorece a formação de li- de “encontros entre os grupos”, “as-
de ação social e comunitária, a aná- deranças democráticas: sembléias”, “cursos”, “torneios”. As
lise comparativa aponta que os jo- respostas dos entrevistados a essa
vens da EBP citam, preferencialmen- “Tudo isso desperta no jovem, atra- questão foram organizadas confor-
te, o objetivo ajudar os que preci- vés dos momentos de estudo e refle- me o acento que dão ao processo de
xão, da participação de grupo em in- formação que se desenvolve no in-
sam (26,7% das respostas), ao pas-
tercâmbios esportivos, de integração, terior do grupo – processos
so que os jovens do MST destacam da participação em atos públicos or-
o objetivo contribuir para que a intragrupos (bonding) – ou, a partir
ganizados pela PJ, sindicatos, movi-
comunidade seja melhor (33,3% das mentos sociais, a importância da par- deste, na relação com outros grupos
respostas). ticipação metodológica, ou seja, ele – processos intergrupos (bridging).
Os resultados desta investigação aprende a coordenar uma reunião, a O Gráfico 1 apresenta resultados da
são congruentes com evidências respeitar o aprender com os outros, análise das ações desenvolvidas nos
apresentadas por outras pesquisas a elaborar uma pauta, uma ata, a di- grupos, segundo os jovens.
vidir tarefas, a confiar no outro, en- Uma análise da Figura 1 mostra
que revelam o caráter positivo do
fim, vai desenvolvendo um habitus que os entrevistados vinculados
grupo junto ao segmento juvenil. que fortalece o perfil de uma lideran-
Nele os jovens partilham idéias, es- às três organizações destacam,
ça democrático-participativa”
tudam e assumem juntos conflitos, (Sander, 2001, p. 111). preferencialmente, o processo de-
vitórias e derrotas, pois “o grupo é, senvolvido intragrupos, ou seja,
tradicionalmente, o cadinho de uma A partir desta experiência, o jo- uma formação que se dá nos pró-
sociabilidade juvenil intensa” (Perrot, vem se sente, segundo Sander prios grupos, realizada com os par-
1996, p. 116). (2001), motivado a participar ativa- ticipantes do grupo: 70,8% das res-
Analisando um grupo de jovens mente em outros espaços da comu- postas dos jovens da PJE, 72,4%
junto a um assentamento rural, nidade, como a coordenação de das respostas dos jovens da EBP
Velásquez (2002) constata que a for- liturgia, catequese, a representação e 57,1% dos depoimentos dos jo-
mação nos grupos e sua dimensão sindical, a participação no movimen- vens do MST.
associativa estão intimamente liga- to estudantil, partidos políticos, mo- No que diz respeito às ações
dos a um desejo de ação coletiva, vimentos ecológicos e outros. intergrupos, foram os jovens do
seja ela voltada a uma ação continu- Pesquisa sobre a juventude dos MST os que mais destacaram este
ada específica, com duração defini- anos 90 desenvolvida por Sousa tipo de ação (42,9% das respostas).
da no tempo e no espaço, seja uma (1999) corrobora resultados sobre
ação pontual. É nesta direção que se os efeitos do trabalho junto a gru- Ações intragrupos
situa a conclusão do estudo realiza- pos de jovens na periferia no que
do por Smith (1999) a respeito de gru- Os entrevistados referem ações
diz respeito à formação de lideran-
intragrupos (bonding) como modo de
pos vinculados a organizações reli- ças, destacando que as mesmas vi-
giosas, o qual defende a hipótese de formação, desenvolvidas a partir da
eram a ter, posteriormente, uma par-
que os indivíduos que participam ticipação ativa em movimentos po-
experiência de grupo. Afirmam que este 171
dessas organizações são mais incli- processo se dá com relações internas
pulares ou em partidos políticos
nados a participar das atividades que sedimentam vínculos entre as pes-
(Sousa, 1999).

volume 9, número 2, maio • agosto 2005

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Rute Baquero, Lúcio Jorge Hammes

A formação dos jovens é conti-


nuamente testada pelas práticas que
assumem, como grupo ou individu-
almente. As reuniões ordinárias (de
15 em 15 dias ou de mês em mês) são
oportunidades de avaliação das prá-
ticas desenvolvidas, através de di-
nâmicas como a “Revisão da Práti-
ca” (RdP) e a “Revisão de Vida”
(RdV), que têm suas raízes na Ação
Católica Especializada, com o mode-
lo Ver-Julgar-Agir.7
Os depoimentos sobre o proces-
so de formação no grupo de jovens,
com práticas que valorizam ações
Figura 1. Processo de formação no grupos por organização. internas, revelam a importância das
Fonte: Entrevistas em profundidade, 2004.
relações intragrupos, desenvolvidas
n=27 (enquadramento múltiplo nas categorias da variável processo de
formação no grupo). como formação pessoal e grupal e
com ações que se realizam individu-
soas nos próprios grupos juvenis, des- Como ações importantes para o al e coletivamente. Tal processo se
tacando a realização de estudos, ora- desenvolvimento de sua formação abre para experiências com outros
ções, dinâmicas de integração, entre no grupo, os entrevistados mencio- jovens e grupos, descritas como
outros, favorecendo a interação grupal nam a realização de estudos e deba- ações intergrupos.
e a formação pessoal. tes com a participação de todos:
As reuniões ou encontros ordiná- Ações intergrupos
rios constituem-se referência básica “Realizam debates, estudos, reuni-
ões. No início vinham muitas pesso-
para os grupos juvenis, onde se estu- Também foi destacado pelos entre-
as que davam orientação de como aten-
da e se organiza a vida do grupo. É der bem as crianças da rua que foram vistados o processo de formação que
uma oportunidade para que os jovens acolhidas” (Egressos da EBP). se desenvolve com ações que se esta-
possam se conhecer e aprofundar te- “Era muito espontâneo. Mas também belecem intergrupos, ou seja, relações
mas de interesse da juventude. tinha cursos intensos como o curso com outros grupos, organizações e
Normalmente elas são acompa- de formação de lideranças” (Egresso espaços de formação. Em relação a
nhadas por um assessor e coorde- da PJE). isso, os jovens referem contatos e ex-
nadas pelos próprios jovens. Os periências externas com outros grupos
entrevistados referem: O processo de formação se dá e organizações, favorecendo ações em
também através de campanhas de conjunto na comunidade.
“A gente se reúne a cada 15 dias. De- arrecadação e distribuição de ali- As ações intergrupos através de
cidimos o que é melhor para a gente. mentos e vestuário, numa relação assembléias e encontros regionais
Buscamos, por exemplo, uma pessoa entre teoria e prática, valorizando a são citadas como atividades impor-
especializada que pode nos ajudar amizade e as dinâmicas próprias da
num certo campo em que estamos tantes para a formação da juventude
juventude, como respondem os en- em expressões como esta:
deficientes” (Egressos do MST).
trevistados:
“Cada jovem expõe suas idéias e o
jovem assume. O próprio jovem faz “Fizemos muito estudo sobre a atua-
“Fazemos mobilizações para conseguir lidade e a juventude. A gente desen-
a reunião. A assessora não coman-
ajudar as pessoas” (Militante da PJE) volve este processo no grupo, na co-
da. Tem que fazer assim ou desta ma-
“Realizamos campanhas de agasa- munidade e fora, com os encontros
neira. Não, o jovem descobre a ma-
lho, ajudamos as crianças” (Iniciante regionais de jovens, assembléias
neira de como fazer a reunião”
da EBP). diocesanas” (Militante da EBP).
(Iniciante da EBP).

172
7
O método Ver-Julgar-Agir foi sistematizado e difundido pela Ação Católica Especializada, com grande presença da JUC (Juventude Universitária
Católica), JOC (Juventude Operária Católica), JAC (Juventude Agrária Católica) e JEC (Juventude Estudantil Católica). O método consiste em fazer
uma análise da realidade (Ver), iluminar esta realidade com a Palavra de Deus (Julgar) e organizar uma prática para atuar nesta realidade (Agir).

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Na contramão da cultura individualista: processos educativos em grupos juvenis e capital social

Também as campanhas, celebra- mas está contribuindo para um me- tende que cada um aprenda a com-
ções e visitas às escolas, com outros lhor viver de toda a sociedade, inclu- preender o mundo que o rodeia [...]
grupos da comunidade, organização sive o seu. No momento em que você Finalidade, porque seu fundamento é
ou região, são destacadas pelos en- agride o outro, você também se abre o prazer de compreender, de conhe-
trevistados: para que o outro lhe agrida. No mo- cer, de descobrir (Delors, 1999, p. 90-
mento em que você cria uma relação 91).
“Fazemos o sopão da solidariedade, diferente, você sai ganhando, o outro
com a contribuição da diretoria da ganha e todos saem ganhando” (Res- No grupo, os jovens aprendem a
comunidade, oficinas de brinquedos ponsável da EBP). conhecer exercitando processos de
e de cantos. Campanhas contra os construção do conhecimento. Se-
brinquedos de guerra nas escolas. Aprendizados de gundo seus depoimentos:
Também visitamos escolas e damos
convivência e capital
testemunho” (Militante da EBP). “Fica difícil dizer uma aprendizagem.
“Um exemplo são as Missões-Jovem social
Diria que é um conjunto, um todo. Por
que este ano foram feitas na escola, exemplo, como descobrir o caminho
durante a semana do estudante. Op- O processo formativo desenvol- a seguir” (Militante do MST).
tou-se por trabalhar com estudantes vido nos grupos estudados “A gente foi aprendendo a assessorar
de uma faixa etária, sempre de tarde, oportunizou aos jovens a constru- assessorando; a coordenar o grupo
durante toda a semana, culminando coordenando” (Militante da PJE).
ção de aprendizados de e na convi-
com o EJESE – Encontro de Jovens
Estudantes de Sapucaia e Esteio” vência, conforme revelou a análise A habilidade aprender a fazer está
(Militante da PJE). dos objetivos perseguidos e de fundamentalmente ligada à formação
ações realizadas intra e intergrupos. profissional, que não se reduz à pre-
Os depoimentos dos jovens indi- Com os colegas de grupo, numa re- paração para a execução de uma ta-
cam a importância do grupo na for- lação social, o jovem aprende a con- refa. Desse modo, as aprendizagens
mação de pessoas comprometidas viver e valorizar o trabalho em equi- não são tratadas como transmissão
com a coletividade, cuja ação pode pe. Nessa perspectiva, é possível de práticas rotineiras. De acordo com
contribuir para melhorar a vida das afirmar que os grupos juvenis pro- Delors (1999), o processo técnico
pessoas envolvidas. Ou seja, indi- movem a convivência democrática, modifica, inevitavelmente, as quali-
cam ativos para as pessoas direta- possibilitando aos seus participan- ficações exigidas pelos novos pro-
mente envolvidas – integrantes dos tes aprender a conhecer, aprender cessos de produção. As tarefas pu-
grupos juvenis –, e também para as a fazer, aprender a ser e aprender a ramente físicas, à medida que o tra-
pessoas que estão indiretamente viver juntos, pela prática da partici- balho se desmaterializa, são substi-
envolvidas – familiares, vizinhos, pação e da ação coletiva. Trata-se tuídas por tarefas de produção mais
amigos, outros grupos, etc. Essa de diferentes tipos de aprendizagem intelectuais, como o comando de
constatação é confirmada por um desenvolvidos na convivência, que máquinas, a sua manutenção e vigi-
adulto envolvido com um dos gru- interagem, constantemente, numa lância, ou por tarefas de concepção
pos das organizações estudadas: ação dialética, classificados como de estudo e de organização.
princípios-pilares pela comissão da Os jovens referem aprendizagens
“Existe um trabalho muito intenso dos UNESCO presidida por Delors relacionadas à habilidade de apren-
grupos de jovens, seja como alunos (Delors, 1999).
que militam no meio estudantil, seja der a fazer, ao destacar o desenvol-
A habilidade aprender a conhe- vimento, no grupo, de capacidades
com os professores e adultos. E o tra-
cer pressupõe que o sujeito tenha a profissionais e o discernimento de
balho neste ambiente é muito propí-
cio porque é um espaço de constru-
capacidade de aprender a apren- sua vocação. Os jovens afirmam:
ção do conhecimento, é um ambiente der, para poder exercitar a atenção, a
de relações. Existe todo um trabalho memória e o pensamento, com o ob-
“Uma boa parte dos que eram do gru-
para criar novas formas de relaciona- jetivo de assimilar conhecimentos po estão envolvidos com as Huma-
mento, não tão agressivas e competi- estabelecidos e construir novos co- nas, com Pastoral e ensino religioso.
tivas (no sentido capitalista de pro- nhecimentos. Segundo Delors: Há os que optaram por outras áreas –
moção pessoal), mas sim uma relação por exemplo, informática, hoje um
de maior harmonia, que é uma contri- “Este tipo de aprendizagem pode ser dos responsáveis pelo software livre
buição não só para o outro, pois no
momento em que você é solidário você
considerado simultaneamente como no Brasil” (Egresso da PJE). 173
um meio e como uma finalidade da “Eu acho que o grupo favorece op-
não está sendo caridoso, bonzinho, vida humana. Meio, porque se pre- ções de vida. Ele favorece até a esco-

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Rute Baquero, Lúcio Jorge Hammes

lha da profissão: a maioria do grupo maiores desafios da educação. De der as conseqüências da participa-
quer ser professor, trabalhar com edu- acordo com Delors: ção nos grupos de convivência. O
cação e lidar com as pessoas. Para conceito desta categoria remonta ao
isso, tu tens que ter um jeito próprio “A educação tem por missão, por um clássico estudo de Edward Banfield
de perceber as coisas, perceber o ou- lado, transmitir conhecimentos sobre de 1958 e se popularizou no fim dos
tro. É isso que ele te deixa como mar- a diversidade da espécie humana e,
anos 80 com os trabalhos de James
ca” (Militante da PJE). por outro, levar as pessoas a tomar
consciência das semelhanças e da
Coleman (2000) e Robert Putnam
A habilidade aprender a ser con- interdependência entre todos os se- (1996). Ela contribuiu para compre-
sidera a educação responsável pelo res humanos do planeta [...] passan- ender o desenvolvimento econô-
desenvolvimento integral do sujei- do a descoberta do outro, necessaria- mico de regiões e países, podendo
mente, pela descoberta de si mesmo; ter um sentido mais amplo, reve-
to, tanto no que diz respeito ao espí-
a educação seja ela dada pela família, lando também a qualidade de vida,
rito quanto no que concerne ao cor- pela comunidade ou pela escola deve,
po, tanto do intelecto quanto da sen- o cuidado com o meio ambiente e a
antes de mais nada, ajudá-las a desco-
sibilidade. Além disso, é necessário vivência comunitária de grupos
brir-se a si mesmas [...] só então po-
que contribua para o desenvolvi- derão, verdadeiramente, pôr-se no lu-
sociais.
mento da autonomia e do pensamen- gar dos outros e compreender as suas A perspectiva do capital social
to crítico, de modo que o sujeito pos- reações. Desenvolver esta atitude de pode contribuir para a superação
sa formular os seus próprios juízos empatia [...] é útil para os compor- do princípio “cada um para si e
tamentos sociais ao longo da vida [...] Deus por todos”. Robert D.
de valor e decidir, por si mesmo, como
os métodos de ensino não devem ir Putnam, professor da Universida-
agir nas diferentes circunstâncias da contra este reconhecimento do outro
vida. de de Harvard, ilustra seu estudo
[...] O confronto através do diálogo e
Os participantes dos grupos afir- Comunidade e democracia com a
da troca de argumentos é um dos
mam ter desenvolvido as seguintes instrumentos indispensáveis à edu-
citação de David Hume:
habilidades relacionadas a aprender cação do século XXI” (Delors, 1999,
p. 97-98). “Teu milho está maduro hoje; o meu
a ser: estará amanhã. É vantajoso para nós
dois que eu te ajude a colhê-lo hoje e
Aprender a viver juntos, respei-
“No grupo a gente aprende a ser mui- que me ajudes amanhã. Não tenho
to humano, a cativar pessoas, a ser tando e valorizando os outros, foi amizade por ti e sei que também não
cativado, a gente se abre para o outro. também salientado pelos jovens tens por mim. Portanto não farei ne-
A gente aprende a partilhar. A gente como um importante aprendizado nhum esforço em teu favor; e sei que
aprende a cuidar do outro. A gente realizado nos grupos: se eu te ajudar, esperando alguma re-
começa a ser crítico. Aprende a escu- tribuição, certamente me decepciona-
tar o próximo, respeitar as opiniões “O grupo me ensina a conviver com rei, pois não poderei contar com tua
diferentes. Aprende a respeitar o di- as pessoas. Mostra para a gente que gratidão. Então, deixo de ajudar-te; e
ferente” (Militante da PJE). nem tudo é maravilha, sabe. Tem pes- tu me pagas na mesma moeda. As es-
“São vários os aprendizados. Se olho soas com quem até não gostaria de tações mudam; e nós dois perdemos
para mim do jeito como era ao entrar conviver, mas tem que conviver. Sabe, nossas colheitas por falta de confian-
no grupo e agora... Eu era muito tími- no futuro você é obrigado a conviver ça mútua” (Putnam,1996, p. 171).
do e retraído em mim mesmo. Agora com certas pessoas. E o grupo é bom
sou mais expansivo, comunicativo, por isso” (Iniciante da PJE). A incapacidade para o trabalho em
maduro e mais preparado para a “No grupo aprendi a conviver com conjunto faz com que todos percam.
vida. Até para assumir emprego, es- as pessoas. Descobri mesmo como A solução de Hobbes para o referido
tudo e assumir minha vida profissio- são as pessoas. E consegui ter gran- problema, conforme Putnam, é a co-
nal” (Egresso da EBP). des amigos. Descobrir o melhor nes-
“A gente aprende muitos valores,
erção de um terceiro: “o Estado pos-
tas pessoas” (Militante da PJE). sibilita aos seus cidadãos fazerem
como o respeito, a fé, a convivência,
o coleguismo, a cooperação. A gente aquilo que não podem fazer por con-
aprende valores que levem a trans- Dessa forma, por meio da apren- ta própria – confiarem uns nos ou-
formar. Acho que o grupo favorece dizagem pela convivência, na experi- tros”. O capital social contribui para
bastante isso... valores positivos” ência grupal o jovem adquire capaci- a solução dos dilemas de ação cole-
(Iniciante da PJE). dades que contribuem para o desen- tiva e facilita a cooperação espontâ-
174 volvimento pessoal e comunitário. nea. Putnam chama a atenção para o
A habilidade aprender a convi- Neste contexto, a categoria capital fato de que existem instituições de
ver pode ser considerada um dos social pode ser útil para compreen- poupança informal, chamadas de as-

Educação Unisinos

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Na contramão da cultura individualista: processos educativos em grupos juvenis e capital social

sociação de crédito rotativo, em di- socioeconômicos e político-ideoló-


pelos outros ou por eles mesmos),
ferentes países, que ajudam a supe- gicos, como no “velho paradigma”.
mas também são unidos por ligações
rar problemas comuns como a falta permanentes e úteis” (Bourdieu, No que diz respeito à orientação
de crédito, acesso a bens necessári- 1998). em relação à mudança social, há
os, impossíveis de adquirir individu- uma forte ênfase, nos dois grupos,
almente. Assim como o capital con- Putnam (1996), por sua vez, afirma na mudança pessoal como estraté-
vencional, os que dispõem de capi- que “capital social diz respeito a ca- gia para influenciar, posteriormen-
tal social tendem a adquirir mais. racterísticas da organização social, te, mudanças nas condições de
No entanto, o capital social per- como confiança, normas e sistemas, vida coletiva. Esta, no entanto, não
tence muito mais ao público do que que contribuam para a eficiência da parece ser a orientação assumida
ao indivíduo. É um bem social. Ele sociedade, facilitando ações coorde- no grupo vinculado ao MST, que
pode ser adquirido ou perdido. Por nadas”. Na mesma direção, Coleman tem parâmetros de natureza
isso, necessita ser cultivado, como (2000) refere que a confiabilidade dos socioeconômica e político-ideoló-
sugere Robert D. Putnam (1995) no membros de um grupo e a confiança gica como bases para a construção
artigo Bowling Alone: America’s mútua entre eles são fatores funda- de identidades coletivas.
Declining Social Capital, onde o mentais no desempenho do grupo, Conseqüentes com sua posição,
autor alerta a sociedade norte-ameri- destacando que a presença ou a au- os participantes dos grupos vincu-
cana, que se volta sempre mais ao sência desses fatores, respectivamen- lados à EBP e PJE enfatizam a impor-
individualismo, de que é fundamen- te, aumenta ou diminui a capacidade tância de lutar localmente, buscan-
tal investir em organizações comuni- de realização do grupo. do o alcance de metas a curto e mé-
tárias para o desenvolvimento de vir- Um outro componente fundamen- dio prazo. Isto contrasta com a ori-
tudes cívicas. tal para a promoção de capital social entação do “velho paradigma”, as-
A participação dos jovens no co- que também foi identificado na expe- sumido pelo grupo vinculado ao
letivo dos grupos estudados possi- riência juvenil dos grupos analisa- MST, que parte do pressuposto de
bilitou, segundo os depoimentos dos é a participação de todos no tra- que a modificação estrutural produz
dos entrevistados, o desenvolvi- balho coletivo. modificações no indivíduo, com a
mento de relações de confiança mú- Dina Krauskopf (2000), analisan- ênfase em lutas globais e no
tua, a participação em ações de coo- do a questão da participação social desencadeamento de ações para o
peração espontânea e a construção da juventude, afirma a existência de alcance de metas a longo prazo. Em
de redes, entre outros, condições uma mudança paradigmática neste relação à dimensão organizacional,
importantes para a constituição de campo, provocada pelos processos os entrevistados revelaram, por sua
capital social. de globalização e de modernização. vez, a existência, nos três grupos, de
Autores que problematizam a Segundo a autora, a mudança uma estrutura organizacional hori-
questão do capital social vão desta- paradigmática se revela em diferen- zontal, com uma liderança comparti-
car justamente essas dimensões tes dimensões relacionadas com a lhada entre o coordenador e os par-
como elementos essenciais para a sua participação juvenil: na constituição ticipantes, assumindo o coordenador
produção. Bourdieu (1998), ao das identidades coletivas, na orien- o papel de facilitador da discussão
conceituar capital social, destaca a tação em relação à mudança social e grupal e incentivador das ações dos
constituição de uma “rede durável na dimensão organizacional dos gru- participantes.
de relações”, vinculada a um grupo. pos juvenis. Em síntese, o estudo, ao examinar
Segundo Bourdieu: Uma análise de ação formativa a contribuição do grupo na formação
nos grupos juvenis que são objeto dos jovens, identificou que a convi-
“Capital social é um conjunto de re- de análise deste estudo revela que vência no grupo desenvolve o espíri-
cursos atuais ou potenciais que estão os grupos vinculados à EBP e à PJE to de equipe e forma para o interesse
ligados à posse de uma rede durável
estão orientados para o que a au- social, revelando a especificidade de
de relações mais ou menos
tora denomina “novo paradigma” um processo educativo diferenciado
institucionalizadas de interco-
nhecimento e de inter-reconhecimen- de participação juvenil. Neste sen- ali desenvolvido.
to ou, em outros termos, à vinculação tido, os dois grupos constituem Neste sentido, cabe questionar:
a um grupo, como conjunto de agen- suas identidades coletivas com que processo educativo é este, reali-
tes que não somente são dotados de base em parâmetros ético-existen- zado nestes grupos, com condições 175
propriedades comuns (passíveis de ciais – paz e justiça, respectivamen- de contribuir para a constituição de
serem percebidas pelo observador, te –, e não em parâmetros capital social junto à juventude?

volume 9, número 2, maio • agosto 2005

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Rute Baquero, Lúcio Jorge Hammes

O processo de educação proposta é o protagonismo juvenil e À guisa de conclusão


nos grupos juvenis a formação de lideranças.
Dick (2003) chama a atenção para o Valdivieso (2003) afirma que,
Questionados a respeito de sua protagonismo juvenil oportunizado contemporaneamente, as organiza-
experiência formativa no grupo, os por ações em grupo, vinculado a orga- ções da sociedade civil têm demons-
entrevistados referem especi- nizações. Em relação a isso, destaca a trado capacidade de desempenhar
ficidades. O grupo é, segundo os jo- ação da Pastoral da Juventude, que um papel relevante em relação ao
vens, “um ambiente informal, volta- desenvolve uma multiplicidade de ati- tema da participação social e cidada-
do para os problemas da vida”. Pe- vidades anuais planejadas, capazes de nia ativa. Segundo o autor: “Por lo
las suas características, preenche “as aglutinar a juventude em ocasiões es- tanto, reconocer que ellas tienen un
lacunas da educação formal”: é es- peciais como Dia Nacional da Juven- papel en la educación ciudadana, y,
paço de participação e discussão, de tude, reunindo em torno de 20 mil jo- asimismo, preguntar por sus
relação entre vida e aprendizado. No vens em 74 lugares para um dia de es- condiciones actuales y las perspec-
grupo há “outros valores e outros tudos, reflexões e celebrações. tivas futuras de intervención, resul-
conteúdos, mais ligados com o coti- Os grupos passam a ser espaço ta ser pertinente y necesario”
diano: cada um traz sua experiência e de pertença e representação de ser (Valdivieso, 2003, p. 27).
partilha com o outro, construindo um jovem. Em muitas situações, são al- Resultados da pesquisa realizada
saber em conjunto”. Conforme os ternativas de ação ou canal de parti- indicam que os grupos de convivên-
depoimentos dos jovens, não é só o cipação na sociedade. Nesse senti- cia estudados podem ser espaços
formal que é necessário para a vida do, também os grupos se adaptam alternativos de resistência utópica,
(a matemática, a química, a física...), para acolher as aspirações dos jo- por uma sociedade solidária e res-
mas também a formação do caráter e vens, pois os motivos por que os ponsável, na contramão de mudan-
da personalidade. Segundo os jo- jovens participam são os mais varia- ças radicais na cultura contemporâ-
vens, o grupo desenvolve uma edu- dos. Undiks (1989) sugere relacionar nea, identificadas por Sandoval
cação voltada para a pessoa e pos- as motivações individuais com a or- (2002), que estaria passando de um
sibilita encontros com o novo e ex- ganização juvenil e o sistema social modelo cultural baseado na razão
periências significativas de vida. em que o jovem está inserido, pois social (é legítimo aquilo que é útil à
A formação que se desenvolve nos “es evidente que la intención de coletividade, ou seja, contribui ao
grupos juvenis, segundo indicam os organizarse refleja la iniciativa juve- seu progresso e obedece à sua ra-
jovens, tem a ver com sua vida, com nil en la solución de sus problemas y zão) a outro fundado na auto-reali-
envolvimento afetivo e com respon- satisfacción de necesidades” zação autônoma (é legítimo aquilo
sabilidade social. Tais aprendizados (Undiks, 1989, p. 190). que o indivíduo julga bom para o seu
têm repercussões, de acordo com os Há, pois, uma aproximação entre desenvolvimento pessoal).
entrevistados, em outras esferas de os objetivos das organizações (e Os jovens dos grupos analisados
sua vida, como a familiar, a do traba- grupos) e os dos indivíduos: reafirmam a hipótese de que os es-
lho, a escolar, constituindo-se o gru- paços não formais de educação, for-
po em uma referência positiva para “El motivo de la participación y el mação e modos de socialização, além
outras ações fora dele. deseo de pertenencia a instancias no- dos ambientes oficiais e formais, co-
Uma análise do processo for- cotidianas reflejan inquietudes nhecidos e reconhecidos como im-
mativo realizado nos grupos estuda- personales hacia el protagonismo portantes para a educação da juven-
dos revela a existência de uma edu- colectivo. Aunque generalmente el tude, necessitam ser valorizados en-
cação de natureza emancipatória, enlace con una organización juvenil
quanto investimentos de desenvol-
no es el resultado de una reflexión
fundada numa prática dialógica vimento de uma cidadania ativa.
profunda, sino más bien el conjunto
(Freire, 1985) que se desenvolve entre amistades, causalidades, Fica o alerta do assessor da PJE
numa estrutura horizontalizada de posibilidades que se ofrecen y el deseo como reflexão e desafio:
relações entre seus participantes. de cambio (sea personal, social o
Uma prática educativa relacional políticamente motivado), la “Especialmente diante da realidade
direcionada para ações coletivas jun- integración a una organización juvenil que estamos vivendo, o trabalho em
to aos jovens, que se realiza num pro- es una expresión del proceso de la grupo está sendo desacreditado e é
176 cesso de ação-reflexão. Ainda que formación de identidad del joven” difícil fazer isso. A tendência é fazer
(Undiks, 1989, p. 212). coisas isoladas. E o grupo de jovens
cada grupo tenha seus objetivos, o
exige processo, porque as mesmas
princípio pedagógico que orienta sua

Educação Unisinos

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Na contramão da cultura individualista: processos educativos em grupos juvenis e capital social

Isso significa o reconhecimento de Social Theory. Cambrige, MA, Harvard


pessoas devem participar muitas University Press, 993 p.
que a educação é, concomitan-
vezes. É difícil, mas eu acredito ser DAHL, Robert. 2001. Poliarchy:
possível”. temente, a principal causa do diferen-
Participation and Opposition. New
cial de riqueza entre nações e a mais
Haven and London, Yale University
Os grupos juvenis de convivên- poderosa alavanca de inconformismo Press.
cia constituem espaços importantes perante a “fatalidade” social. Nestas DELORS, J. (org.). 1999. Educação: um
de socialização, partilha e aquisição circunstâncias, o efeito conjugado de tesouro a descobrir. 2. ed. São Paulo,
de conhecimentos que podem ser capitalização humana e social Cortez, 288 p.
viabilizaria a emergência de verdadei- DICK, H. 2003. Gritos silenciados, mas evi-
úteis para o desenvolvimento da co-
ras culturas de resistência orientadas dentes: jovens construindo juventude na
letividade. O processo de formação
história. São Paulo, Loyola, 307 p.
em grupos de convivência que têm para a mobilização das pessoas e das
EISENSTADT, S. N. 1976. De geração a
presente a participação protagônica vontades. geração. São Paulo, Perspectiva, 308
da juventude contribui para formar A concepção problematizadora de p. (Coleção Estudos, 41).
lideranças capazes de atuar na reali- superação da contradição educador- FAU, R. 1968. Características gerais do
dade social de forma organizada e educando de Paulo Freire – “ninguém grupo durante a adolescência. In: S.
coletiva. Com uma organização de educa ninguém – ninguém se educa BRITO (org.), Sociologia da juventu-
a si mesmo – os homens se educam de. Rio de Janeiro, Zahar, vol. III, p.
relações horizontais, baseadas no
43-46.
diálogo, favorecem aprendizados de entre si, mediatizados pelo mundo”
FREIRE, P. 1985. Pedagogia do oprimi-
convivência que contribuem para o – é um apelo para reconhecer os no- do. 15. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
desenvolvimento de relações de con- vos espaços de socialização juvenil 245 p.
fiança e de entre-ajuda, constituin- – dentre os quais se destacam os GADOTTI, M. 1996. Paulo Freire: uma
do-se em mediações importantes para grupos de convivência – como luga- biobibliografia. São Paulo, Cortez, 165 p.
a construção de capital social, útil res privilegiados de aprendizado e GADOTTI, M.; FREIRE, P. e GUIMARÃES,
formação da cidadania. S. 1995. Pedagogia: diálogo e conflito.
para a comunidade.
4. ed. São Paulo, Cortez, 127 p.
O processo educativo dos gru-
GUARESCHI, P. A. 1981. Comunicação
pos juvenis de convivência estu- Referências
e poder: a presença e o papel dos
dados nesta pesquisa se assenta meios de comunicação de massa es-
numa concepção radicalmente inte- ARROYO, M. 1991. Revendo os vínculos trangeiros na América Latina. 2. ed.
grada da função educativa, a qual entre trabalho e educação: elementos Petrópolis, Vozes, 88 p.
articula o desenvolvimento do ca- materiais da formação humana. In: T. KRAUSKOPF, D. 2000. Dimensiones crí-
da SILVA (org.), Trabalho, educação e ticas en la participación social de las
pital humano com a formação de
prática social: por uma teoria da for- juventudes. In: S. BALARNDINI
capital social. mação humana. Porto Alegre, Artes (coord.), La participación social y po-
A formação pessoal e comunitá- Médicas, 274 p. lítica de los jovenens en el horizonte
ria desenvolvida nos grupos juve- BAQUERO, M. 2000. A vulnerabilidade del nuevo siglo. Buenos Aires,
nis de convivência produz, no nos- dos partidos políticos e a crise da de- CLASCO, p. 119-134.
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pode contribuir para superar a pas- Alegre, Editora Universitária/UFRGS. vas: a intersubjetividade na pedago-
BAQUERO, R. 2004. (Des)construindo a gia de Paulo Freire. Porto Alegre,
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convém à mera reprodução das estru-
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177
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COLEMAN, J. S. 2000. Foundations of DANTIL. 1994. Quem somos? A que

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Rute Baquero, Lúcio Jorge Hammes

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PUCRS, 191 p. utopia: a militância política de jovens lo – USP, 145 p.

Rute Baquero
Doutora em Educação pela Florida
State University – EUA, professora
do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UNISINOS.

Lúcio Jorge Hammes


Doutorando do Programa de Pós
178 Graduação em Educação da
UNISINOS, integrante da ONG
Educadores para a Paz.

Educação Unisinos

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