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A TECNOLOGIA DO GENERO* Teresa de Lauretis conceito de género como diferenca sexual tem servido de base sustentagao para as intervengGes feministas na arena do conhecimento formal e abs- trato, nas epistemologias e campos cognitivos definidos pelas cién- cias fisicas e sociais e pelas ciéncias humanas ou humanidades. Em colaboracdo ¢ interdependéncia com tais intervencdes, elaboraram- cas e discursos especificos e criaram-se espa- 08 sociais ”** ou seja, marcados por espe- Cificidades de genero, como o “quarto de mulheres”, os grupos de conscientizacao, os micleos de mulheres dentro das discipli nas, 0s estudos sobre a mulher, as organizacdes coletivas de pe- riddicos ou de midia feministas, e outros) nos quais a prépria diferenca sexual pudesse ser afirmada, tratada, analisa cificada ou verificada! E> "The technology of gender" foi publicado em Technologies of gender, Indiana Uni- versity Press, 1987, pp. 30. Teresa de Lauretis ¢profesora do Departamento de Hist ria da Conscignsia da Universidade da California, Santa Cruz, e autora de lice doesn't Feminism, semioties, enema, The einematle apparatus, Fens studies ~ rial stud: ‘ese Technology of gender. ** Usiizo terme "gendrado” para designar “"marcado por espeificidades de géner” Assim, penso poder conservar 0 jogo que a autora faz ene 0s termos ‘gendrado" € encgendrado" (N. da) A TECNOLOGIA DO GENERO 207 Com a “diferenca sexual’” & antes de mais nada , © feminino e o masculino; e mesmo os conceitos mais abstratos de ‘“‘diferen- gas sexuais”” derivados nao da biologia ou da socializaco, mas da significagao e de efeitos discursivos (¢ a énfase aqui é menos no sexual e mais nas diferengas como “différance’”) acabam sendo mem ox sell NER ORSMERD Se Conia mem — ou se} Se continuar- mos a colocar a questo do género em qualquer destas duas for- mas, a partir de um esboco completo da critica do patriarcado, ” inscrita Frederic Jameson chamaria de “o inconsciente politico” dos dis- cursos culturais dominantes e das “‘narrativas fundadoras” que Ihes so subjacentes — sejam elas biolégicas, médicas, legais, fi- loséficas_ou_literarias ‘A primeira limitagdo do conceito de “diferenca(s) se- xual(ais)”, portanto, é que ele confina 0 pensamento critico fe- minista a0 arcabouco conceitual de uma oposi¢ao universal do sexo (a mulher como a diferenca do homem, com ambos univer- salizados: ou a mulher como diferenea pura e simples e, portan- to, igualmente universalizada), o que torna muito dificil, se ndo impel, aig a ees eae mlhereye Mls. 0 é, as diferencas entre as mulheres ou, talvez mais exatamente, as diferencas nas mulheres. Por exemplo, as diferencas entre mulheres que usam véu, mulheres que “usam méscara”” (nas palavras de Paul Laurence Dunbar, freqiientemente citadas por escritoras ne- gras americanas) e mulheres que se “‘fantasiam” (a palavra ¢ de Joan Riviere) ndo podem ser entendidas como diferencas se- xuais.' A partir dessa perspectiva, nao haveria absolutamente ‘qualquer diferenca e tod: heres seriam ou diferentes per- Sonne ese ch rg der 0 por sonificagdes mais ou menos sofisticadas de uma feminilidade metafisico-discursiva. ‘Uma segunda limitacdo do conceito de diferenca(s) sexual(ais) 208 ‘TENDENCIAS E IMPASSES lugar da “‘prisdo domiciliar da linguagem”” de Nietzsche, por razdes que ogo se tornarao dbvias. Por potencial epistemol6gico radical que- 10 dizer a possibilidade, j4 emergente nos escritos feministas dos anos 80, de conceber 0 sujeito social e as relacdes da subjetivida- de com a socialidade de uma outra forma: um sujeito constitui ‘um sujeito, portanto, mt tiplo em vez de tinico, e contraditério em vez de simplesmente dividido. Para poder comecar a especificar este outro tipo de sujeito e articular suas relagdes com um campo social heterogéneo, ne- cessitamos de um conceito de género que nao esteja tao preso 4 diferenca sexual a ponto de virtualmente se confundir com ela, fazendo com que, por um lado, o género seja considerado uma derivacdo direta da diferenca sexual ¢, por outro, o género possa ser incluido na diferenca sexual como ef de ngage, nao relacionado ao real. Tal difi- vé a sexualidade como um: propor-se-ia que também o genero, como representacio e como. duo represent, «ed iene enelogaioca, como'e came, por Gamble, ee ncuron cpisemolopar¢ praticas criticas institucionalizadas, bem como das praticas da a ce Poderiamos dizer que, assim como a sexualidade, 0 género nao é uma propriedade de corpos nem algo existente a priori nos seres humanos, mas, nas palavras de Foucault, “‘o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relacdes sociais””, por meio do desdobramento de “uma complexa tecnologia poli- tica’’.* Mas devemos dizer desde o inicio, ¢ dai o titulo deste ar tigo, que, ao pensar o género como produto e processo de um certo nuimero de tecnologias sociais ou aparatos biomédicos, jé esta indo além de Foucault, cuja compreensio critica da tecno- logia sexual nao levou em consideragdo os apelos diferenciados de sujeitos masculinos e femininos, e cuja teoria, ao ignorar os

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