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Base Nacional Comum: dez críticas ao Documento Preliminar

A constituição de uma Base Curricular Nacional promete avançar em uma oferta mais
igualitária das oportunidades de ensino no país. Mas pode terminar em mais um
desmonte da escola pública. Abaixo, uma síntese de 10 críticas elaboradas pelo Grupo
Materialismo Histórico e Dialético e Prática Pedagógica ao documento preliminar.

1. Não há tempo para um debate curricular sério e democrático.


O documento preliminar da Base Comum foi elaborada por uma equipe técnica do MEC e
apresentado em setembro. As instituições de pesquisas e as redes de ensino de todo o
país devem apresentar suas contribuições até fevereiro de 2016. Pouquíssimo tempo. Só
para comparar: as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná foram discutidas de 2003
a 2007. E quem vai decidir sobre a relevância das contribuições? O mesmo grupo
técnico? Podemos apresentar milhares de ideias e sugestões, servindo apenas para
legitimar um suposto processo “democrático”.

2. Falta ênfase na importância da escolarização no documento preliminar da Base


Comum.
A Base está alicerçada na concepção pedagógica do Aprender a Aprender, promovida
pela UNESCO, com princípios orientadores (direitos educativos) muito amplos e vagos, e
entendendo a escola como mais uma das instituições responsáveis pela formação do
jovem. Mas o documento esquece de enfatizar aquilo que é fundamental na escola: ela é
a única instituição responsável pela transmissão metódica do conhecimento
historicamente acumulado.
3. A Base Comum nos é apresentada com um discurso progressista, mas pode
significar a implatação do atraso.
Em um contexto de crise econômica, uma reforma curricular baseada nas “inovadoras”
áreas do conhecimento (Matemática, Linguagens, Ciências Naturais e Humanas) pode
ser um prato cheio para administrações estaduais e municipais promoverem cortes de
gastos, “reorganizações” no tempo escolar, “otimizações” na organização das disciplinas e
esvaziamento dos conteúdos. Quem perde é a educação pública.
4. Há uma ambiguidade na organização dos conteúdos por “áreas do
conhecimento”.
Essa áreas, ao adotarem uma abordagem interdisciplinar, prometem ventilar a formação
muito estreita das disciplinas, cheias de particularismos e abstrações. Ou seja, uma
abordagem mais ampla e contextualizadora do conhecimento. No entanto, essas áreas
são apresentadas ora como recortes mais elementares do real, mais básicos do que as
disciplinas tradicionais; ora como momentos de síntese, de integração dos conteúdos
oferecidos por essas mesmas disciplinas. Daí uma contradição: se as áreas do
conhecimento são síntese, então não são recortes mais elementares. São níveis ainda
mais abstratos e complexos do saber.
5. Na nossa prática social o conhecimento é produzido na forma de disciplinas bem
especializadas, e não por amplas “áreas” do conhecimento.
Nos formamos em biologia, não em Ciências Naturais. Como então fazer uma síntese,
“reconstruir o real” em unidades mais amplas (o que exige um grau ainda maior de
abstração) se mesmo os espaços de produção de saber e de formação de
educadores(as), que são as universidades, não o fazem? A educação BÁSICA vai
solucionar o problema mais geral da fragmentação do conhecimento? Não é confundir os
objetivos e as especificidades de cada nível de ensino? Além disso, não pode haver
síntese de um objeto (áreas do conhecimento) sem análise da realidade (conteúdos por
disciplinas). Só que essas disciplinas exigem tempo adequado para serem apreendidas.
O conceito de “componente curricular”, um neologismo presente na Base Comum, tende a
relativizar a importância da produção de conhecimento dessas disciplinas.
6. Se as áreas do conhecimento são recortes mais elementares, corremos o risco
de uma educação mais superficial.
Ao esvaziar os conteúdos disciplinares em nome de uma nova “área do conhecimento”,
podemos trocar uma visão fragmentada por uma visão mais superficial do real. Sem
tempo para incorporar significativamente os conceitos e métodos de cada disciplina
(análise), a educação escolar pode terminar partindo do senso comum para chegar a um
senso comum reificado. A percepção de que tudo está em tudo não é própria do saber
sintético, científico, mas do saber sincrético, de senso comum. Alguns entusiastas
chamarem isso de Visão Holística não resolve o problema, só doura a pílula. Pode ter
sido a intenção dos formuladores da Base Comum a superação de um currículo disciplinar
conteudista, sem vínculos com a vida dos estudantes. Mas não melhora em nada um
currículo superficial.
7. A Base Comum não implanta a promessa das Diretrizes Nacionais para o Ensino
Médio, em especial em considerar o Trabalho (no sentido ontológico) como
princípio educativo.
Imagina uma proposta curricular que promovesse a formação integral do estudante, tendo
o trabalho como princípio educativo, a pesquisa como fundamento pedagógico e a
integração entre educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da
cultura? Era essa a proposta das Diretrizes Nacionais para o Ensino Médio. Mas a
proposta preliminar da Base Nacional Comum Currricular se empenhou em frustar essas
expectativas. Em especial, com a categoria Trabalho no sentido ontológico – como uma
atividade constituinte de nossa própria humanidade.

8. A Base Curricular não se preocupa com uma formação para o “mundo do


trabalho”, mas para adaptar o estudante ao “mercado de trabalho”.
Atender ao mercado de trabalho restringe a educação à ideia de qualificação profissional
– a preparação e o treinamento do estudante como simples força de trabalho. Para
combater essa perspectiva estreita, que vai na contramão da formação integral,
pedagogos e intelectuais progressistas defenderam a adoção do conceito “mundo do
trabalho” - em uma concepção mais ampla da ação educativa, em concordância com o
sentido ontológico do Trabalho. Desavergonhadamente, os formuladores da BNCC
rechearam o documento com a expressão “mundo do trabalho”. Mas acredite: o corpo é
um e o espírito é outro. Na falta do sentido ontológico, predomina a noção de adaptação
ao mercado de trabalho, pura e simplesmente. Não há muita possibilidade de crítica ou de
problematização do “mundo do trabalho”, muito menos espaço para um projeto coletivo de
transformação de suas relações. Vigora o mais raso senso comum: as mudanças
tecnológicas são inevitáveis, não há lugar para todos e a inserção no mercado é resultado
de uma capacitação individual. Fora uma perspectiva pragmática das atividades
profissionais, que chega à desqualificação da importância do trabalho braçal em algumas
passagens do texto.
9. Sem a concepção ontológica do Trabalho, a Base Comum desenvolve uma
perspectiva naturalizadora e alienante das relações de trabalho contemporâneas
Nos componentes curriculares não falta a expressão “relações de trabalho”. Mas são
raríssimos os momentos de articulação dessa dimensão com os outros aspectos da vida
em sociedade. Essa temática, isolado dos quadros sociais que lhe dão sentido e
significado, pode terminar em uma perpspectiva evolucionista e simplória: antes, o
trabalho era compulsório e não-remunerado; hoje é livre e remunerado. Antes, não havia
direitos trabalhistas. Hoje, já foram conquistados. Nesse esquema, a exploração do
trabalho não é característica de uma determinada formação social, mas um desvio moral,
um aspecto marginal que pode ser superado no campo do Direito, com a “promoção de
condições dignas de trabalho para todos”, como afirma um dos princípios orientadores da
BNCC. O que se promove, na verdade, é uma naturalização das relações de trabalho,
alienando-as de outros aspectos da vida em sociedade. Para isso, é fundamental apagar
qualquer vestígio de crítica sistêmica. Apesar de vivermos a duzentos anos sob relações
capitalistas de produção – cuja compreensão é fundamental para o entendimento de
nossa sociedade – precisamos percorrer as mais de trezentas páginas da base curricular,
para encontrar uma única referência a essa formação social.

10. Os temas integradores (ou transversais) da Base Comum são um retrocesso em


relação às Diretrizes Curriculares Nacionais de 1998
Lendo a Base Comum Curricular, dá para sentir saudades dos Parâmetros Curriculares
do governo FHC. Vejam só: os temas transversais são substituídos por temas
integradores. Sai Trabalho e Consumo, entra Consumo e Educação Financeira! Sai Meio
Ambiente (de conotação mais "preservacionista" e crítica) e entra Sustentabilidade (mais
Katia Abreu mesmo)! Sai Pluralidade Cultural (mais amplo) e entra Cultura Afro e Indígena
(para cumprir tabela)! Sai Orientação Sexual e Saúde... E só sai! Os conteúdos de
sexualidade são tratados, quase exclusivamente, nas áreas de ciências naturais (leia-se,
biologia). O que entra é não reclamar do Capital. E não é para sentir saudades mesmo?

Observação: o Grupo de Estudos Materialismo Histórico e Dialético não é contrário, de


forma alguma, ao estabelecimento de referenciais curriculares nacionais. Mas quer
levantar algumas questões, formadas a partir da dupla posição de seus integrantes:
primeiro, como educadoras(es) da rede pública; segundo, como leitoras(es) da pedagogia
histórico-crítica. A intenção é contribuir com o debate e fazer avançar as nossas práticas
pedagógicas.

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