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Universidade federal do mato grosso

Instituto de ciências humanas e sociais


Departamento de filosofia
Lógica
Prof. Dr. Walter Gomide

LÓGICA, NÚMEROS TRANSFINITOS DE CANTOR E


ALGUMA INFERÊNCIA FILOSÓFICA

INTRODUÇÃO

1.1

Lógica, números transfinitos de Cantor e as inferências filosóficas que se podem extrair


deste é o princípio norteador do trabalho que se segue. Que tão disparatadas questões
possam ser unidas em um paper reduzido como este, é o que se pretende explicar nesta
introdução. Lógica, está como elemento norteador primeiramente pelo fato bastante
óbvio de ser este o curso no qual o presente trabalho teve origem. Claro, dentro do
mesmo as vertentes que se seguiram forneciam uma miríade de possibilidades e o leque
de escolhas para contemplar1 tornariam a escolha bastante difícil, visto a importância do
trabalho. As possibilidades surgiriam naturalmente, sempre dentro do cronograma
tripartido do professor, que partiu primeiramente do tratamento lógico da linguagem –
cujo autor Irving M. Copi foi tutor central, com especial atenção ao estudo das falácias.
Na segunda parte do cronograma, fomos ao cerne matemático da lógica no estudo da
linguagem formal componente do Cálculo Proposicional Clássico (CQC), e cujo ápice
foi a apreensão do método do Tablô como maneira de resolução de cálculos
proposicionais que envolvessem quantificadores universais. Nosso “papa” nesta parte do
curso, sem dúvida foi Cezar Mortari, cujo livro Introdução à Lógica foi, e ainda é, uma
das melhores aquisições que se pode fazer quem pretende dar início ao estudo da Lógica,
e a partir desta obter um novo olhar sobre o estudo da Matemática. Sem dúvida alguma,
esta parte do curso foi o momento mais apreensivo do curso inteiro, cuja mera
contemplação do “iceberg” já aterrorizava todos que estavam a seu encontro. O
confronto propriamente se deu na prova que encerrava este suplício2, numa tarde
chuvosa de outubro. Os suspiros aliviados dados na mesma noite pela sobrevivência ao
iceberg3, talvez justifique, de certa forma, a contrastante vacuidade das cadeiras da sala
na terceira parte do curso que trataria de lógicas não-clássicas. Esta terceira parte, e

1
Dentre temas para contemplar a possibilidade de exploração para o trabalho de conclusão, me
interessavam especialmente O Conjunto Vazio segundo Alain Badiou, o Silêncio e a Humildade como
implicações psicológicas de uma conduta guiada para evitar as Falácias, e A Lógica como Criação
Cultural.
2
“Suplício” que foi bem aliviado pelo inquisidor da prova; prova com consulta e direito a fazer em dupla
concomitantemente. Provavelmente este sujeito que elaborou a prova e as regras para sua execução vai
para o céu.
3
É lamentável admitir, mais a maioria de meus companheiros de sala estavam exasperados meramente
pelo motivo ao qual deveriam, em última instância, se felicitarem; aquilo que lhes foi apresentado nesta
segunda parte do curso de maneira o mais intuitiva possível fora apenas a ponta do iceberg.
última no cronograma, demonstraria que a lógica apresentada até àquela hora, fora
apenas uma parcela, mesmo que a mais representativa, mas não o escopo completo do
que a lógica, até o presente momento, tem a oferecer. Esta parte teve como mestre e guia
- cuja função essencial é a de apresentar as idéias e conceitos dentro de um
encadeamento específico, consciente ou não de que faz um recorte subjetivo do
encaminhamento da matéria apresentada - o próprio professor do curso e seu ponto de
partida foi uma fotocópia de sua tese em desenvolvimento sobre Frege, donde
conhecemos sua busca pela linguagem pura, e as implicações revolucionárias que sua
obra Conceitografia teve para a lógica contemporânea. Em sua apresentação sobre
Frege, sempre de forma bem intuitiva, fica evidente a genialidade com que o mesmo
conseguiu fundamentar a aritmética na lógica, usando para isso uma linguagem formal
criada especialmente para o intento. Mesmo que não completamente angariada – o
paradoxo de Russel, a intenção de Frege nos legou o início de um estudo lógico sobre a
linguagem, e mais importante, a possibilidade de uma linguagem completamente lógica.
Sem Frege, coisas como o cálculo proposicional clássico, ou a teoria da informação e a
linguagem computacional com todos os seus derivados jamais existiriam, posto que foi
Frege o grande mentor de tais idéias4. Condensando de maneira sobre-humana um
montante enorme de informação – provavelmente no intuito de apresentar mais um
panorama do que um estudo “sério” e aprofundado do assunto, foi-nos introduzido nos
dias posteriores, enfim, Georg Cantor, e sua teoria dos números transfinitos. Que Frege
e sua linguagem formal houvesse encontrado eco no estudo da parte anterior do curso,
especificamente na linguagem CQC, assim como outra lógica não-clássica que seria
apresentada mais tarde, a lógica paraconsistente - cuja origem se encontra na tentativa
de evitar a “explosão” que surge de toda contradição, donde se poderia, portanto, inferir
qualquer coisa, leva a um contraste sutil com a apresentação de Cantor e seus Números
Transfinitos nesta terceira e última parte do curso, cuja referência lógica e temporal
com as partes anteriores efetivamente não existia. Isto curiosamente é análogo à
biografia do próprio Cantor, cujo pensamento um tanto quanto outsider, com suas
conclusões desviantes do paradigma matemático do século dezenove, também
permaneceram sem eco correspondente senão na teologia ou na poesia 5. Provavelmente
por este motivo, dentre outros mais pessoais, o tema foi o escolhido para a contemplação
e compleição do presente trabalho. Um último detalhe complementar é que, de Lógica a
Números Transfinitos, resta uma coesão que seja inequívoca o suficiente pra dar uma
forma final ao trabalho pretendido. Esta coesão deve se encontrar como uma perspectiva
que sugira sínteses válidas dentro do que foi apreendido no curso deste semestre. Ora
digo logo que esta coesão é dada pela perspectiva filosófica, entendendo-se esta como
uma visão distanciada e sintetizadora, flexível o suficiente para usar de metáforas e
analogias pertinentes, mas que mantenha a acuidade lógica de suas conclusões. As
inferências que sejam possivelmente extraídas daí serão sempre determinadas por este
ângulo.

4
Bem, isso talvez possa ser posto em dúvida através da tese hegeliana do avanço histórico inexorável,
donde o progresso necessário encontra na contingência da existência humana sua concretização. Isso fica
claro também naquele poemeto do Quintana;

Só na história há destino
Nos homens não, espuma de um segundo
Se Colombo morresse pequenino
O Neves descobriria o Novo Mundo.
5
Para William Blake se as portas da percepção fossem abertas tudo apareceria a nós tal como é: infinito.
1.2

As pretensões que se seguem foram estabelecidas como maneira de desviar dos


empecilhos que uma falta de naturalidade com a linguagem formal-matemática criou, e
que também se coadunasse com a experiência anterior do autor deste paper com a
linguagem imagética. Tal como Frege, que para solucionar seu problema com a
fundamentação lógica da matemática criou antes uma linguagem formal que lhe
permitisse isso, o autor para resolver seu problema com a linguagem matemática-
simbólica se esforçou para metaforizar os conceitos expressos nesta linguagem. Se ele
obteve sucesso ou não, será este seu próprio critério de avaliação do mesmo trabalho. É
preciso tomar cuidado para que a pretensão não se torne “pretenciosismo”. Para
conseguir tranfigurar os conceitos matemáticos exatos expressos em linguagem formal
para uma linguagem corrente, metafórica ou poética, são necessários, minimamente, o
domínio desta mesma linguagem - e o crivo criativo é sua instância final, e a
compreensão do conceito a ser expresso, de tal e aprofundada maneira que esta
compreensão pontual lhe permita reconfigurar, transmutar e fazer o translado de um
plano linguístico para outro sem por a perder suas propriedades principais.

1.3

O presente paper se fundamentou principalmente em duas fontes: as fotocópias


adquiridas ao longo do curso, desde os livros dos autores supracitados às teses do
próprio professor, e na eventual consulta do caderno de anotações, onde as intuições e
relações foram anotadas conforme iam surgindo.

1.4

A respeito das limitações do trabalho, provavelmente o calcanhar-de-aquiles é onde


residiria sua maior virtude, ou seja, a sua pretensão de tratar intuitivamente conceitos de
difíceis representações, como já foi dito a dois parágrafos atrás, e cuja execução exige
uma compreensão abarcante de ambas as faces da questão. O artigo tem uma
característica que, dado o caráter matemático do assunto não pode deixar de ser notado
também como limitante; não consta de caracteres especiais para a demonstração de
determinadas fórmulas matemáticas. Isso se deve a duas razões primordiais: o autor do
paper tem a pretensão de que, uma vez apreendido o conceito, transfigurá-lo em
palavras vertidas de tal maneira que possam intuitivamente dar a imagem matemática
preterida. A outra razão, menos pretensiosa, é de que o autor do paper, não sabia como
inserir os símbolos necessários para a demonstração matemáticas das fórmulas. Outra
limitação é a extensão do trabalho, muito grande para alunos inexperientes, acostumados
– mal acostumados, que seja, a trabalhos menores, e que talvez não saibam administrar
com sapiência as possibilidades conseguidas com a aquisição de maior espaço textual.
No entanto a mesma extensão é curta para um trabalho que envolva inferências
filosóficas no escopo da lógica e da teoria dos números transfinitos. Na verdade é difícil
imaginar que tal assunto ganhe tratamento adequado sem uma obrigação maior e
majoritária, tal como uma monografia de conclusão de curso, e a impressão que se tem,
afinal é que a pretensão fica maior que a realização, e a realização ideal poderia vir-a-
ser, mas que por falta de algo, fica a desejar.

1.5
O artigo esta organizado em três partes simples e indecomponíveis: Introdução, que se
faz imediatamente, Desenvolvimento e Conclusão. O texto se corporifica a partir da
exposição do conceito de lógica, suas aplicações, limitações e finalmente, suas
transposições para a lógica não-clássica. Conceitos norteadores como o princípio do
terceiro excluído, não-contradição e identidade serão explicados a partir de uma
perspectiva cética que se faz a pergunta; a lógica ocidental tem de ser assim como é
necessariamente? Adiante, nos números transfinitos, pretende-se compreender, após uma
explanação do mesmo, até que ponto pensamentos rigoristas e exativistas, tais como o
pensamento lógico e matemático, podem angariar status de superiores às demais linhas
de pensamento? Há um direcionamento comum a estes pensamentos? Qual o
direcionamento para as quais estas especulações não podem se desviar? Há tal limite?
Parte de onde e de quem? Quais os paralelos que se pode fazer seguramente entre
diferentes esquemas conceituais, seja na literatura ou, em última instância, na ontologia
dada por estes mesmos esquemas? A Conclusão, enfim, como última parte, pretende
expor uma resposta satisfatória às questões do Desenvolvimento. Que estas respostas
tragam mais dúvidas é um mérito que na qualidade de discente de filosofia, o autor
muito gostaria de conseguir.

DESENVOLVIMENTO

2.1

Como Irving Copi deixa claro já na primeira parte de seu livro “Introdução à lógica”:
lógica não é a ciência que rege os pensamentos, posto que pensamento seja assunto para
a psicologia, mas não da lógica. Tampouco a lógica se debruça sobre o estudo dos
raciocínios. Isto pode ser uma tarefa para uma filosofia da lógica, mas não para a lógica
em si. É bem mais modesta a pretensão verdadeira que seria a de avaliar e corrigir os
raciocínios uma vez que estes já estejam formados. Sua pergunta central é: a conclusão
deriva das premissas? As técnicas que se desenvolveram a partir desta questão
primordial, e os conceitos que sustentam a estrutura da investigação lógica talvez sejam,
à primeira instância, todo o escopo do estudo da lógica. Assim sendo, é na corretude e
nos métodos de determinação do mesmo que encontramos o leitmotiv da análise lógica, e
isso fica explícito já na Grécia antiga, em suas primeiras explanações passadas à
posteridade através do Organon, texto de Aristóteles que procura demonstrar como
através de um instrumento – significado de organon, se podem confrontar argumentos
sofísticos – chamados de elenco. Desde então, a lógica têm se sofisticado bastante, mas
sempre sem ignorar – exceto no caso da lógicas não-clássicas, seus princípios
estruturais. Os princípios que norteariam o raciocínio correto, e que seriam a base
estrutural para todo o desenvolvimento da lógica posterior formam na verdade um tripé;
princípio de identidade, de não-contradição e o princípio do terceiro excluído. Com isto
se quer dizer que um argumento lógico tem de jamais ser e não ser ao mesmo tempo, ou
bem é ou bem não é sem meio-termo, de ter um nome inequívoco e intransferível, assim
como deve evitar a disparidade da contradição, cuja capacidade de desenfrear as
conclusões deve ser evitada a todo custo. Que todos os três princípios pareçam ser
facetas de um único princípio6, não é algo que se custa inferir, mas qual é este princípio,
senão a essência mesma do pensamento lógico, e isto parece um tanto quanto circular, é
uma questão que poderia desvelar para a nossa maneira própria de compreensão da

6
Ficou evidente na terceira parte do curso que as lógicas não-clássicas são aquelas que justamente dão o
contorno em alguns destes princípios, demonstrando que não há uma prerrogativa absoluta dos três
princípios como necessário para a existência da lógica.
realidade. Provavelmente, se questionando o sentido da acepção lógica, poder-se-ia
tentar compreender se a ontologia humana e seu consequente esquema conceitual de
realidade obedecem, e se só são assim porquê o fazem, a esta mesma acepção. Isto
poderia ser confundido como outra leitura das categorias do entendimento kantiano, a
menos que haja o pressuposto da Lógica como uma criação cultural. Este pressuposto
parte da idéia que países orientais detêm uma lógica diferente da nossa, e,
consequentemente, linguagens assim também díspares. É famosa a gramática dos índios
Hopi7, cuja noção de sujeito não existe senão no sentido de evento; a realidade se cria a
cada descrição que se faz da mesma. Neste sentido estaríamos fazendo uma análise
lógica da linguagem, e é nisso que reside afinal o equívoco de atribuir à lógica a criação
de conceitos e esquemas conceituais, como foi dito no começo do parágrafo, uma vez
que a lógica é apenas ferramenta. A maneira como ela é usada é que pode nos dar
alguma pista sobre a direção do pensamento ocidental e suas diferenças em relação às
demais culturas. Ainda resta a dúvida a respeito da essência lógica e sua respectiva
ontologia: será ela inerente ao mundo ou paralela a este? Se ela for uma leitura da
realidade, talvez entes matemáticos e entes lógicos possam, sim, existir e expressar
parcelas da realidade objetiva do mundo. Noutro extremo está a opinião de que esta
linguagem, como toda linguagem, afinal, apenas faz uma máscara da realidade, mas que
não necessariamente o faz objetivamente. Talvez nem mesmo uma ciência tão exata
como a matemática possa demonstrar algo além de suas próprias limitações e as
limitações de nossa própria razão8.

2.2

Embora Frege possa ter pretendido fundamentar a Matemática por leis Lógicas, seu
sucesso se estende somente ao campo da Aritmética. Isto se deveu principalmente ao
fato de que a Matemática envolve muitos conceitos que a Lógica não pode alcançar, e a
partir disto pode-se inferir que talvez a Matemática esteja tão próxima da Arte quanto se
pode supor. Com isso pretende-se dizer não apenas que a Matemática como ciência é
bem mais complexa e ampla do que o escopo da Lógica pode prever, mas mais do que
isso, que suas proposições podem e têm a liberdade de inferir de maneira alheia ao
método lógico. Com isto não se pode dizer que o método matemático não seja rigoroso,
e é exatamente neste quesito que estão os méritos tanto da matemática quanto da lógica
como instrumentos de razoamento de premissas em conclusões necessárias. Ao contrário
do que pode acontecer nas ciências humanas, cujas proposições são muitas vezes
relativas ao sujeito, as ciências exatas, e a Matemática, que junto da Física coroam esta
categoria, mantém uma aura de objetividade incondicional. É famosa a querela de
Popper e Adorno em torno do mérito de uma ciência ou de outra, mas a verdade é que
entre o cinza e o branco o que se vê são inúmeros tons de cinza. A Física, como ciência
empírica, foi a melhor ontologia que tínhamos até se deparar com o comportamento das
partículas subatômicas. Mesmo as outras ciências que detinham então “verdade” tiveram
de ser reavaliadas em seu alcance desta mesma verdade em vista dos trabalhos de Kuhn
que demonstrou que as ditas “verdades científicas” são guiadas em última instância por
7
Davidson nos fala deles em seu artigo About the very idea of conceptual schemes.
8
Os conceitos cantorianos de Intrasubjetivo e Transsubjetivo são alegóricos a respeito desta dicotomia
subjetivo x objetivo. Para Cantor, os números no caso, poderiam ser encarados como entes da razão, ou
seja, seriam – intrasubjetivos - introjetados à razão subjetiva do indivíduo com a capacidade imanente de
alterar o conteúdo da razão humana, e portanto de influenciar os instrumentos racionais de análise. No
outro extremo haveria o aspecto transsubjetivos donde se encarariam os números além do escopo da razão
humana, mas sim como expressões do que realmente é no mundo exterior. Eles transcenderiam, por
assim dizer, a subjetividade do ente racional.
um paradigma dominante que rege entre outros, fatores como as iniciativas de pesquisa
até o orçamento destinado às mesmas. Neste sentido fica difícil saber até que ponto
aquilo que esta sendo pesquisado é inédito e/ou progressista. Mais do que isso, surge a
dúvida se tal paradigma não seria coercitivo a ponto de deixar no limbo do esquecimento
projetos promissores e geniais mas que não teriam se adequado às suas exigências. Neste
sentido mesmo uma ciência tão ampla como a matemática poderia contar com algumas
“vítimas de genialidade” entre seus precursores.

2.3

Georg Cantor recebeu em catorze de dezembro de mil oitocentos e sessenta e seis9 seu
diploma garantindo que havia acabado seu período de estudos na Universidade de
Berlim. Dali, contando então vinte e quatro, ele entra na Schellbach Seminar para
professores de matemática. Um ano antes Cantor como professor na Universidade de
Halle, conheceu Edward Heine que trabalhava na problemática e análise das séries
trigonométricas e apresentou á Cantor uma questão particularmente interessante e que
colocaria Georg Cantor na senda dos números transfinitos. A famosa questão da
unicidade remonta à tese de Fourier sobre a propagação do calor em meios metálicos e à
afirmação para qualquer função sempre haverá uma representação por meio de
somatório de funções trigonométricas. A grande questão é, se uma função pode se
representar através de uma série Fourier, esta representação será a única? Quer dizer, se
poderíamos ter nomes diferentes para uma mesma coisa, tal como na enarmonia musical
do violão por exemplo, onde uma mesma nota sustenida tem um nome diferente
bemolizada. Heine, em mil oitocentos e setenta, dá um passo importante em direção à
resposta usando de um conceito que Karl Weirstrass, um dos profesores da Universidade
de Berlim, apresentou a Cantor em suas leituras da análise funcional chamado
Convergência Uniforme. Este conceito prevê que dado um intervalo de tempo, os pontos
de um determinado material possam convergir de maneira uniforme em um determinado
tempo. Isso se faz representar claramente ao aquecer uma barra de metal em uma ponta
segurando-se na outra. É a convergência uniforme que garante que a vibração destas
moléculas irão se mover constantemente em um tempo determinado e suficiente até o
momento em que queimar sua a parte interna da mão por completo e não apenas uma
falange do dedo aqui ou de outro dedo ali. Heine, no início destes anos setenta afirma
que uma função contínua, mas não necessariamente finita pode ser representada de uma
única maneira por uma série trigonométrica se esta mesma série for sujeita à condição da
convergência uniforme. Cantor começa a estudar o intervalo dos números reais nesta
empreita de manutenção das representações trigonométricas, tanto que em seu “Notiz”
ou adendo ao teorema de setenta e um, ele procura analisar entre outras coisas as
relações entre as grandezas numéricas reais entre si. Nestas análises Cantor chega a
importantes avanços técnicos em relação aos mesmos números reais, como, por
exemplo, a enumeração de determinadas sequências, a princípio com números racionais,
por números inteiros naturais. E é este o início da famosa enumerabilidade dos números
que ele legará ao mundo. Outro conceito importante é o de ponto-limite que Cantor
entenderá através de uma intuição geométrica dos pontos de um determinado local. Quer
dizer, ponto-limite é um ponto em um dado segmento de reta que se encontra entre
intervalos continentes de pontos vizinhos, e estes vizinhos são infinitos. Se houver
vizinhos dos vizinhos, estes também terão infinitos pontos tais como o intervalo inicial,
este é o conceito de Conjunto Derivado, que diz que se um determinado conjunto P é
9
As datas e outros numerais se escreverão por extenso no intuito de completar o número mínimo de
páginas mais facilmente.
limite. Imagine um foco de lanterna no breu do pântano. Este foco está ajustado de
maneira que só possa abarcar um pequeno objeto do tamanho de, digamos, seu pulso.
Você liga a lanterna e acena um sapo. Este sapo seria o sapo-limite. Você ajusta o foco
para abarcar mais objetos e percebe que existem mais sapos, um monte, ao lado do
primeiro, de tal maneira próxima que não se pode discernir onde está a lama do pântano
sob eles. Você se aproxima para focar o mesmo e percebe que quanto mais se aproxima
mais sapos existem entre um e outro. Por mais contra-intuitivo que possa parecer, é
exatamente isso que acontece com os pontos de uma reta. É como se houvessem
infinitos ao lado de infinitos, de tal maneira que o infinito pudesse conviver
paralelamente com outro infinito, e pudessem se somar de maneira que sempre houvesse
um infinito a mais para entrar na coleção, um derivando do outro. Foi durante estes anos
em que Cantor desenvolveu a análise dos conjuntos contínuos e vendo a
enumerabilidade dos mesmos que Cantor deu um importante passo em direção aos
números transfinitos. Cantor é famoso entre outras coisas, por ter demonstrado que há
uma correspondência biunívoca entre os números naturais e os inteiros, a despeito da
demonstração de uma mesma correspondência entre números naturais com os números
pares, feita por Galileu séculos atrás. Essa cardinalidade, correspondência biunívoca, ou
par-perfeito se preferir uma analogia romântica, é exatamente isso, o mesmo número de
elementos de dois conjuntos comparados. A maneira como Cantor fez a comparação
entre os números naturais e os números inteiros é uma demonstração da naturalidade
quase lúdica com que Cantor tratava a matemática e era capaz de criar soluções
surpreendentes. O conjunto dos números inteiros é aquele que contém os negativos, ou
seja, cresce tanto infinitamente para frente quanto para trás. Para contá-los com os
números naturais Cantor sem nenhum pejo pela ortodoxia reestrutura os números
inteiros de tal maneira que cada número positivo ficasse ao lado de seu correspondente
negativo na escala, assim tornando-se explicitamente enumerável. Cantor faz uma
demonstração semelhante com os números racionais, mas antes que possamos inferir que
todos os números são enumeráveis e tem cardinalidade com os números naturais, Cantor,
através de uma redução ao absurdo chega à conclusão que os números reais não tem
cardinalidade com os números naturais. Ele supõe, a princípio que entre o número zero e
o número um se possa construir uma lista com os números reais de tal maneira que possa
ser contada à maneira feita com os outros conjuntos, mas ele chega à conclusão que quão
mais próximo do sapo, mais sapos surgem entre um e outro. Quer dizer, a
correspondência não é unívoca, uma vez que sempre restam números ocultos na
listagem, não importa de que maneira se faça tal lista. Logo se chega à conclusão que o
infinito dos números naturais é menor que o infinito dos números reais, é mil oitocentos
e setenta e quatro e Cantor começa deixar de lado suas buscas por soluções que eram
conhecidas pelas tradições matemáticas do médio-século dezenove de seu tempo e
começava a dar uma reviravolta sobre estrito contexto trigonométrico de seu próprio tem
e de antemão se distancia do uso de ferramentas teóricas extraídas de matemáticos de
seu tempo como Schwarz e Riemann. Uma nova era na matemática começava a emergir
quando Richard Dedekind lê, em cinco de janeiro de setenta e quatro uma carta de
Cantor fazendo uma pergunta simples e revolucionária: os pontos de uma superfície
podem encontrar correspondência biunívoca com os de um segmento de reta? Teriam o
mesmo número de pontos qualquer que fosse o número de dimensões deste espaço seja
em um segmento de reta, seja um cubo. Cantor demonstrou em setenta e oito que a
quantidade de pontos de um espaço independe de suas dimensões. Ele o fez através de
um processo de abstração; onde a estrutura interna foi ignorada focando-se apenas nas
coordenadas que representa este mesmo ponto. A partir disto bastou-lhe fazer uma
comparação com as mesmas coordenadas do outro espaço. Mas antes que se cresse que
as transferências topológicas de um determinado espaço dimensional para outro de
dimensões distintas sem perdas estruturais significativas, Dedekind por carta lhe avisa
que, mesmo legitimamente, o que Cantor estava a fazer não era matemática, posto que a
correspondência biunívoca – ou bijetiva, encontrada era descontínua, isto é, não era
contínua e sim discreta no sentido mesmo de que não diz respeito à topologia dos
espaços e portanto não pode ser mapeada de uma dimensão para a outra. Apesar do
veredicto de Dedekind, Cantor, que sabia admitir um equívoco10, passou a trabalhar nesta
nova perspectiva, o que lhe levou ao conceito de potência. Suponha que você pegue os
pontos de uma reta com uma pinça e os colocasse em uma estufa de ar quente onde eles
ficariam flutuando a esmo. Não importa que estes pontos tenham sido retirados de um
meio geométrico multi ou unidimensional, dentro da ordem ou fora dela, uma vez
jogados na estufa eles se tornam outra coisa. Uma vez abstraído de sua propriedade
ordinal, os pontos encontrariam sua propriedade essencial, original, potencial. No
entanto Cantor já sabia que a potência do contínuo era distinta da potência do
enumerável, no mesmo sentido em que podemos “contar” com números naturais os
números inteiros e os racionais, mas não podemos fazer o mesmo com os números reais
que são maiores que os naturais. Surgiam os números transfinitos. Resumindo as
conclusões então; quando comparamos dois conjuntos finitos, dizemos que sua
equivalência se dá quando ambos têm o mesmo número de elementos. Não se pode dizer
o mesmo de conjuntos infinitos, e quando falamos de conjunto de números infinitos
referimo-nos à sua correspondência biunívoca, ou que pode nos transmitir uma idéia de
justa proporção entre estes conjuntos. Mas com a descoberta de Cantor de que os
números reais são “mais infinitos” que os números naturais, nos percebemos em três
níveis de enumerabilidade, ou seja: os conjuntos finitos propriamente, enumeráveis pelos
seus próprios termos, os números infinitos enumeráveis, que podem ser justapostos com
os números naturais, e finalmente o conjunto dos números que extrapolam esta
correspondência, que seriam os enfim os números transfinitos. É interessante esta
maneira cantoriana de desvendar o infinito, e é talvez nesta perspectiva que se esconde
grande parte do valor da teoria de Cantor dos números transfinitos. Ele nos mostra que o
conjunto infinito, tal como o conjunto finito segue uma mesma regra, e que, ao contrário
do que pensam alguns restricionistas, nos é passível de compreensão. A intuição que se
esconde por trás disso é o que o infinito enumerável é um infinito que se atualiza aos
nossos olhos, isto é, não importa em que ponto de seu desenrolar estejamos, ele sempre
seguirá as mesmas regras. Não se intimidando com o tamanho do infinito, Cantor
postula uma tese de geração do infinito, tomando cada infinito como uma unidade e
somando a este mais para obter um segundo infinito. À mesma maneira com que
somamos um número ao outro, Cantor nos demonstra que é possível se fazer com o
infinito enumerável em uma sucessão algorítmica inesgotável. Por isso e apesar disso,
Cantor postula uma terceira lei de geração – em complemento às duas anteriores que
ficam subentendidas na geração do infinito enumerável e na sucessão enumerável do
mesmo. Este último princípio diz somente que um número inteiro que seja a soma de
todas as totalidades do infinito enumerável completo e atual, de todos os limites, de
todas as sequências, de todo todo. Isto é um infinito muito posterior ao infinito comum,
baseado na potencialidade dos elementos cardinais que o constituem, e que por sua vez
encontra lugar em um infinito maior ainda, cuja potencialidade forma outro infinito

10
Embora nem sempre admitisse quem lhe demonstrara que estava errado. Neste mesmo artigo de setenta
e oito, Cantor assume que não se trata de correspondências biunívocas contínuas entre os espaços de
dimensões distintas, no entanto não assume neste mesmo artigo que a correção partiu de um crivo crítico
de Richard Dedekind. Nada incomum no meio acadêmico, seja daquela época, seja na atual.
maior ainda. Um infinito absoluto não pode ser provado matematicamente11, porém os
demais, e quaisquer infinitos de diferente potência podem, sem restrição alguma, ser
bem ordenado – entendendo bem ordenado no sentido de que: seus elementos estejam
relacionados entre si por uma sucessão; há um primeiro elemento no conjunto, todo
elemento, exceto o último, tem um antecessor, e finalmente, para cada elemento do dado
conjunto bem ordenado, infinito ou não, há um determinado elemento que é o sucessor
imediato de todos os elementos que compõem o conjunto.

CONCLUSÃO

3.1

É importante frisar que as conclusões de Cantor não surgiram do nada, como algum
insight místico ou epifania lisérgica. Os números transfinitos estavam contidos
embrionariamente no conceito de potência, mas este teve de ser criado para dar
continuidade a uma análise do fenômeno da bijeção discreta entre espaços de diferentes
dimensões. Esta própria bijeção não teria lhe ocorrido não fossem os estudos dos
números reais, do contínuo, das representações trigonométricas e finalmente na questão
da unicidade. Foi através de muito trabalho e alguma correspondência com os melhores
matemáticos de seu tempo que um conhecimento inteiramente novo surgiu. Talvez seja
um equívoco se perguntar em que ponto exatamente Cantor percebeu que estava se
desviando do caminho usual dos matemáticos de seu tempo ou se é que ele percebeu. Ou
de que maneira se constrói uma revolução conceitual. Cantor, como prerrogativa
criativa, era alguém que estava ligado às questões de seu tempo12 e isto significa toda
questão existencial trazida pelo romantismo alemão, com nomes como Goethe e Schiller
dando corpo ao movimento Sturm und Drang. Significa também não apenas um tratado
matemático sobre um infinito, mas uma expressão artística de um homem quer era ele
próprio muito sensível à Beleza13. As conclusões de Cantor, se lidas ingenuamente
poderiam levar, por exemplo, a uma cosmogonia mística, que, dando nome ao inefável e
espalhando aos quatro ventos a boa nova matemática do infinito e do infinito que
contemos todos nós imanentemente. Isso seria uma leitura de péssimo gosto, e
provavelmente desgostaria o autor dos Grunlagen. A teoria dos números transfinitos não
é uma doutrina, e não tem o intuito de dar sentido a uma instanciação física ou
psicológica. Provavelmente Cantor preferiria ver sua teoria dando suporte a alguma
11
A lembrança do dia em que o professor demonstrou a contradição inerente à pretensão de matematizar
o absoluto foi um dos momentos intelectuais mais excitantes do semestre. Segundo esta demonstração um
infinito absoluto sempre encontrará lugar em outro infinito maior, e tentar chegar ao infinito final e
inefável resulta em um paradoxo.
12
É conhecida aquela metáfora “pessoas são antenas”, e é mais interessante ainda que tal mito possa ser
provado empiricamente. Segundo certo diálogo de waking life, Ethan Hawke em uma conversa com Julie
Delphi diz que alguns cientistas fizeram um teste onde algumas pessoas tinham de resolver,
completamente isoladas do mundo externo, uma série de palavras cruzadas ou coisa do tipo, e as pessoas
testadas foram divididas em dois grupos, nos quais uma usava desafios completamente novos, e no outro
alguns desafios já publicados em anos anteriores ao nascimento dos mesmos. Uma significativa
porcentagem maior de pessoas do segundo grupo acertou as palavras cruzadas em relação ao primeiro,
donde se inferiu um tanto forçosamente que poderia haver uma atmosfera incognoscível de conhecimento
e informação que pairando sobre as pessoas, em especial as mais propensas à criatividade, que as fazem
ter idéias que a seu ver, são originais, e na realidade se coadunam com o paradigma coletivo. Palavras de
Richard Linklater.
13
Georg Cantor foi também um pintor de bom gosto, com algumas telas até mesmo bem conceituadas
entre os críticos. Além de um conspiracionista, que cria ser Francis Bacon a identidade verdadeira de
Shakespeare. Essas facetas nos mostram um pouco do que Cantor poderia ser além do matemático pai dos
números transfinitos e da teoria dos conjuntos.
pesquisa científica no campo das partículas, onde, ao que parece, a cada partícula que se
decompõe uma nova muito menor surge. Seria então interessante observar que o infinito
atual da teoria encontra respaldo também no espaço do cosmos que neste caso, se amplia
indefinidamente. Talvez até mesmo esta aplicação não seja respeitosa com a idéia
original da teoria cantoriana. Talvez por isso mesmo ainda não tenhamos encontrado esta
aplicação exata destes exatos resultados de Cantor sobre o infinito atual e potencial; não
estamos preparados, e nem temos a necessidade de tal conhecimento por ora. Este é o
desenrolar natural das teorias científicas que se aplicam conforme as necessidades
criadas pelo paradigma instaurado e que espera até que surja a crise, onde conceitos e
conhecimentos novos precisam ser “criados” e antigos precisam ser revisitada no intuito
da resolução da crise.

3.2

Outra grande lição a se frisar no estudo de Cantor – não digo teoria dos números
transfinitos de Cantor, mas sim de Cantor, Georg, o matemático – é opinião que ele
mantinha no que dizia respeito à dicotomia Intrasubjetivo X Transsubjetivo; pare ele não
era interessante o aspecto transsubjetivos da matemática e na sua natureza última ela é
livre de qualquer amarra com o mundo objetivo. Só precisando se resguardar do
paradoxo, e no resto, o céu é o limite. E dentro do contexto cantoriano, nem mesmo isso.

Walker de B. Dantas

Quinze de Dezembro de 2008

Referência bibliográficas14

1. Introdução à lógica, Irving m. copi


2. Organon – elencos sofísticos, Aristóteles
3. Introdução à lógica, Cezar Mortari
4. Georg Cantor – His matemathical and philosophy of the infinite,
Joseph W. Dauben
5. Os “Grundlagen” de Cantor – sua origem histórica e
conceitos fundamentais, Walter Gomide Jr.

14
Em negrito aqueles que foram especialmente úteis na elaboração do trabalho.

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