You are on page 1of 10
Praticas da Memoria Feminina* RESUMO. Como tornar posstvel uma histéria das mulheres se a nds foi negado até muito recentemente 0 acesso ao espaco piiblico, lugar por exceléncia da historia? A dificit tarefa de chegar ds fontes, e mesmo a de produsi-las a partir de pistas ténues, avaliada pela autora no intuito de trazer para 0 campo do conhecimento historiogrdfico os recénditos da meméria feminina. Michelle Perrot™* ABSTRACT How is a history of women to become possible, if we were until very recently denied access 10 the public sphere, the place of history par excellence? The author evaluates the difficult task of arriving at the sources, and even of producing them from tenuous clues, so as to bring the hidden places of women's memory into the range of historical Anowledge No teatro da mem6ria, as mulheres so sombras ténues. A narrativa hist6rica tradicional reserva-Ihes pouco espago, justamente na medida em que privilegia a cena piblica — a politica, a guerra - onde elas pouco aparecem. A iconografia comemorativa Ihes € mais aberta. A estatudria, mania cara a Terceira Repiiblica!, semeou a cidade com silhuetas femininas. Porém, como alegorias ou simbolos, clas coroam os grandes homens, ou se prostram a seus pés, relegando um pouco mais ao esquecimento as mulheres reais que os ampararam ou amaram, ¢ as mulheres criadoras cujas efigies Ihes lancariam sombra.? Mas existem aspectos ainda mais graves. Essa auséncia no nivel da narrativa se amplia pela caréncia de pistas no dominio das “fontes” com as quais se nutre o historiador, devido a deficiéncia dos registros primarios. No século XIX, por exemplo, os escriturdrios da histéria — administradores, ™ Antigo originalmente publicado na revista TRAVERSES n? 40 (“Théatres de la Mémoire”), . 18-27. * Universidade Paris 7. Tradugio: Prof. Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha ¢ Prof* Dra. Miriam Pillar Grossi. 11871-1940 (N.T.). 2 anne Marie Fraisse-Faure estudou as figuras femininas em uma tese, La statuaire commémorative & Paris sous la Troisi¢me République, U. P. d Architecture de la Villete. 0. 89/se4.89 Ppoliciais, juizes ou padres, contadores da ordem publica — deixam bem poucos registros que digam respeito as mulheres, categoria indistinta, destinada ao siléncio. Quando eles 0 fazem nas ocasides em que notam a presenga de mulheres em uma manifestag4o ou reunido, recorrem aos esteredtipos mais batidos: mulheres vociferantes, megeras a partir do momento em que abrem a boca, histéricas do momento em que gesticulam. A visio que se tem das mulheres funciona como um indicador: elas sao consideradas raramente por si mesmas, mas com freqiiéncia como sintoma de febre ou de abatimento, O SILENCIO DOS ARQUIVOS Os procedimentos de registro, dos quais a histéria € tributéria, sao fruto de uma selecdo que privilegia o ptiblico, tinico dominio direto da intervengao do poder ¢ campo dos verdadeiros valores. O século XIX claramente distingiiu as esferas, publica ¢ privada, cuja disposigo condiciona o equilibrio geral. Muito provavelmente essas esferas no recobrem exatamente a divisdo dos sexos, mas, grosso modo, 0 mundo piublico, sobretudo econémico e politico, é reservado aos homens, e é este que conta. Essa definicao, clara ¢ voluntarista, dos papéis se traduziu na retirada das mulheres de determinados lugares: a Bolsa, os bancos, os grandes mercados de negécios, o Parlamento, os clubes, os circulos de discuss4o ¢ cafés, locais privilegiados da sociabilidade masculina; e mesmo as bibliotecas piblicas: Simone de Beauvoir, mais tarde, na Bibliothéque Nationale, é uma figura de transgress&o intelectual. A cidade do século XIX € um espaco sexuado. Nela as mulheres se inserem'como ornamentos, estritamente discisplinadas pela moda, que codifica suas aparéncias, roupas ¢ atitudes, principalmente no caso das mulheres burguesas cujo lazer ostentatério tem como fungao mostrar a fortuna e a condi¢ao do marido. Atrizes no verdadeiro sentido do termo, elas desfilam nos sales, no teatro ou no passeio piblico ¢ a forma com que se vestem que interessa aos cronistas (vide as Lettres Forisipanes [Cartas Parisienses], do Visconde de Lannay, alids, Delphine de Girardin) Quanto as mulheres do povo, sé se fala delas quando seus murmiirios inquietam no caso do p4o caro, quando provocam algazarras contra os comerciantes ou contra os proprietérios, quando ameagam subverter com sua violéncia um cortejo de grevistas. Em suma, a observag¢ao das mulheres em outros tempos obedece a 3Madame de Girardin, Lettres parisiennes du Viconte de Lannay (1837-1848), apresentadas ¢ anotadas por Anne Martin-Fugier, Paris: Mercure de France, 2 vol., 1986. 10 critérios de ordem e de papel. Ela diz respeito mais aos discursos que as praticas. Ela se detém pouco sobre as mulheres singulares, desprovidas de existéncia, ¢ mais sobre “a mulher”, entidade coletiva ¢ abstrata A qual se atribuem as caracteristicas habituais. Sobre elas nao h4 uma verdadcira pesquisa, apenas a constatac’o de seu eventual deslocamento para fora dos territ6rios que Ihes foram reservados. Um tiltimo exemplo dard uma idéia dessa deficiéncia documental e da complexidade de sua significado. Os arquivos criminais, to ricos para 0 conhecimento da vida privada, pouco dizem sobre as mulheres, justamente na medida em que o peso destas na criminalidade € pequeno e decrescente (de cerca de um tergo no inicio do século XIX, cai para menos de 20% no final daquele século), no em virtude da natureza doce, pacifica ¢ matemal, como pretende Lombroso*, mas devido a uma série de préticas que as excluem do campo da vinganca ou do confronto. A honra viril quando atingida se vinga através da morte. O banditismo de estrada ou 0 roubo com arrombamento, 0 assalto A mAo armada ou 0 atentado eram, até uma data recente, negécios de homens. Assim, os arquivos puiblicos, olhar de homens sobre homens, calavam as mulheres. “Seria necessdrio, entretanto, ndo esquecer as mulheres em meio a todos esses homens que, sozinhos, vociferando, clamavam o que tinham feito ou o que sonhavam fazer. Fala-se muito delas. Mas 0 que sabemos sobre elas?”, escreve Georges Duby na conclusao do livro que consagrou ao casamento na Franca feudal, Le Chevalier, la Femme et le Prétre [O Cavaleiro, a Mulher e o Padre] (Paris: Hachette, 1981). Eis portanto toda a questo. OS SEGREDOS DOS SOTAOS Os atquivos privados, outro sétdo da histéria, fornecem outras informagées? Sim, certamente, na medida em que as mulheres neles se exprimiam de forma bem mais abundante, e, até mesmo, foram as produtoras desses arquivos, nos casos em que fizeram as vezes de secretarias da famflia. Livres de raison [livros de raz3o]° nos quais elas preservam os anais do lar, correspondéncias familiares cujos escribas habituais so elas, didrios intimos cujo emprego € recomendado as jovens soltciras pelos confessores e, mais tarde, pelos pedagogos, como uma forma de controle sobre si, constituem um refigio de escritos de mulheres, dominio cuja 4C. Lombroso ¢ G. Ferrero, La femme criminelle et la prostituée, trad. fr., Paris: Alcan, 1896. STipo de livro de anoiagdes que acaba funcionando como “atas” da vida familiar, (N.T.). i

You might also like