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ProLoco: Jusistas € teigicos, dois imaginitios rivais Uma gravura em madeira de 1497, inspirada no poema.A naw dos snsensatos de Scbastian Brant, representa a Justica numa postura bastante curiosa: um visionatio, tendo 4 cabega um gorro provido de orelhas de bur- 10, venda-the os olhos com uma faixa... ¢ cla doravante munida de uma cspada que brande as cegas e de uma balanca no mais legivel. A imagem ilustra uma narrativa satitica sobre litigantes que se perdem em chieanas vas ¢ arrastam a Justica a querelas ociosas.! Eno entanto... E no entanto, algumas dezenas de anos mais tarde, em toda a ico- nografia curopéia, os olhos vendados da Justica passaio a simbolizar sua imparcialidade, a exemplo do olhar interior dos adivinhos antigos, prosi- mos da verdade porque apartados do mundo? O presente livro situa-se muito precisamente na falha entreaberta pot esse “e no entanto”: entre di- reito e narrativa, atam-se e desatam-se relagbes que parecem hesitar entre derrisio e ideal. E 0 direito vé-se abalado em suas certezas dogmiticas ¢ re- conduzido as interrogagdes essenciais. 1S. Bran, fy, dpe frances por Madeleine Hom, Strasbourg fdon dela Nude eae, 1977p. 267 Para am coment. D, Feria cd Cash, Ls Dea, Ps LA de Arche, ZAK, 2 eR, Jel, mag erie ip adie te Maen ee lip, a, a Leopard, 1994, p 232 2 Pfaenby ep tp 233, 10 FRANGOIS OST ‘Uma outra imagem, ainda para permanecer nas alegorias oficiais: a da estdtua da iberdade que Kafka evoca nas ptimeiras frases de seu roman- ce América. Karl Rossmann, que se prepara para desembarcar em Nova York, tem esta impressio: “Dir-se-ia que o brago, de espada em iste, aca- bara de erguer-se naquele instante”.’ Espada? Mas o que foi feito da tocha? A liberdade teria cedido o lugar a justiga? Mas entio o que é ela, essa justiga ameagadora cujo brago acaba de sc erguer e cuja sombra se estende por todo o romance? E 0 que a distingue da vinganca, ou mesmo da violencia pura e simples? Aqui também a eserita literaria est em operagao: um infi- ‘mo deslocamento, uma palavra por outra, ¢ todo um universo se racha. Compreende-se, nessas condicées, que Platio tenha desconfiado dos poetas ¢ dos trigicos. © tema é recorrente em sua obra. Na Repibtica, 03 guardiaes multiplicam as providéncias contra as seduces da poesia — uma poesia que poderia nos fazer recair na infincia.’ © mais seguro seré ainda banir os poetas da Cidade: sua arte corruptora, que mistura 0 verda- deiro € 0 falso, faz ver os mesmos personagens ora grandes ora pequenos, evoca fantasmas ¢ nio se atém a distingZo do bem e do mal. Num Estado regido por leis sibias, no deve haver lugar para essa espécie de arte que ali- menta o elemento mau da alma — aquele que comercia com o sensivel ¢ 0 prazers Nas Lais, 0s legistas da colénia dos Magnetes [povo da costa orien- tal da antiga Tessélia] op3em-se igualmente A entrada dos trigicos na Cida- de, ou, melhor, os admitem apenas sob condi¢o ¢ mediante uma severa censura: somente as autoridades decidirao se “a obra pode ser aprovada e é boa para ser ouvida pelo piblico”.$ Conscientes do temivel poder da fic- fo, os legistas querem manter os poetas & distincia para presctvas a inte- gtidade do diteito e da justiga. Aqui, portanto, as relacdes do direito e da literatura se inauguram sob 0 signo de um no-acolhimento ou, pior ainda, de uma censura recupe- Kata Hig in Ons ample. ea: por A Vine, Pais, Galimard Ped), 1976, 3 (2015, p40 Pla, La Rhy, ra porR, Baeou, Pas, Guiet-Raensio, 1966p. 373 lid». 370-372. CE amb p, 329: os poets rgiosconfunden os homens 0 exam ora. desma- sacs or en Pho, Ar Lai Vl, 67

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