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Instinto de nacionalidade Ensaio escrito em 1873 por Machado de Assis sobre as suas expectativas para a literatura brasileira. Machado de Assis NOTICIA DA ATUAL LITERATURA BRASILEIRA Quem examina 2 atual literatura brasileira reconhece-Ine logo, corno primeiro trago, certo instinto de nacionalidade. Poesia, remance, todas as formas literdrias do pensamento buscam vesti-se com as cores do pais, e nao ha negar que semelhante preocupagao ¢ sintoma de vitalidade & abono de futuro. As tradiqbes de Gongalves Dias, Porto Alegre e Magalhdes sao assim continuadas pela gerado ja felta © pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as, de José Basilio da Gama e Santa Rita Durao. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo, Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharao all farto manancial de inspiracao e iro dando fisionomia propria ao pensamento nacional Esta outra independéncia nao tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; nao se fara num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; nao serd obra de uma geragao nem duas; muitas trabalhardo pata ela até perfazé-la de todo. Sente-se aquele instinto até nas manifestagdes da opinido, alids mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solicita, ¢ ainda menos apaixonada nestas questées de poesia e literatura. Hé nela tum instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literéria, sobretudo, faz deste ponto uma questo de legitimo amor-préprio, Nem toda ela terd meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atengao que fais obras estéo pedindo; mas os nomes de Basilio da Gama e Durdo sao citados e amados, como precursores da poesia brasileira A razo 6 que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os. primeiros tracos de nossa fisionomia literéria, enquanto que outros, Gonzaga por exemplo, respirando alias 08 ares da patria, nao souberam desligar-se das faixas da Arcadia nam dos preceitos do tempo. Admira-se-thes 0 talento, mas no se Ihes perdoa o cajado e a pastora, e nisto hha mais erro que acerto Dado que as condigées deste escrito 0 permitissem, néo tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos poetas arcadicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas iteraturas Portuguesa e brasileira. Nao me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas colonials, iscados daquele mal; nem igualments justa a de nao haverem trabalhado para a independéncia Iteraria, quando a independéncia politica jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo a metrépole e a col6nia criara a historia a homogeneidade das tradiodes, dos costumes e da educagao. As mesmas obras de Basilio da Gama ¢ Durdo quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a iteratura brasileira, literatura que nao existe ainda, que mal poderd ir alvorecendo agora Reconhacido 0 instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes tiltimos tempos, conviria examinar se possuimos todas as condigdes e motivos histéricos de uma nacionalidade literdria, esta investigagao (ponto de divergéncia entre literatos), além de superior as minhas forgas, daria em resultado levar-me longe dos limites deste escrito, Meu principal objeto é atestar 0 fato atual; ora, o fato € 0 instinto de-que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente. ‘A aparigao de Gongalves Dias chamou a atengao das musas brasileiras para a histéria ¢ os costumes indianos. Os Timbiras, |-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio poeta avenderam as imaginagdes; a vida das tribos, vencidas ha muito pela civlizagao, foi estudada nas ‘memérias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todas alguma coisa, qual um idilio, qual um canto épico. Houve depois uma espécie de reagao. Entrou a prevalecer a opinido de que ndo-estava toda a Poesia nos costumes semibarbaros anteriores a nossa civilizagao, o que era verdade, - € nao tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existéncia da raca extinta, tao diferente da raga triunfante, - 0 que parece um erro: E certo que a civlizacao brasileira ndo esta ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo. algum: e isto basta para nao ir buscar entre as tribos vencidas os titulos da nossa personalidade lteraria. Mas se isto 6 verdade, nao é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condigdes do belo ou os elementos de que ele se compbe. Os qua, como o Sr. ‘Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste pais, esses podem logicamente exclut-los da poesia contempordnea, Parece-me, entretanto, que, depois das memérias que a este respelto. escreveram os Srs. Magalhaes e Gongalves Dias, nao ¢ licto arredar o elemento indiano da nossa aplicagao intelectual. Erro seria constiui-lo um exclusive patriménio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusdo. As tribos indigenas, cujos usos e costumes Joao Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tacito e os achava tao semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, & certo, da regio que por tanto tempo fora sua; mas a raga dominadora que as freqUentou colheu informagbes preciosa € no-las transmitlu como verdadeiros ¢elementos poéticas. A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inctinar a imaginagdo dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regides, ‘consorciando na literatura os que a fatalidade da histéria divorciou Esta @ hoje a opinio triunfante. Ou jé-nos costumes puramente indianos, tais quais os vemos n'Os Timbiras, de Gongaives Dias, ou ja na luta do elemento barbaro com o civilizado, tem a imaginagao literdria do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito dos quais. citarei, por exemplo, a Iracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante-escritor. Compreendendo que nao esté na vida indiana todo o patriménio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tao brasileiro como universal, no se limitam os nossos escritores a essa so fonte de inspiragdo. Os costumes civilizados, ou jé do tempo colonial, ou jé do tempo de hoje, iguaimente oferecem a imaginagdo boa e larga matéria de estudo, Ndo menos que eles, 08. convida a natureza americana cuja magnificéncla e esplendor naturalmente desafiam a poetas & prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invengdo, a que devemos, entre outros, 08 livtos-dos Srs. Bemardo Guimaraes, que brilhante e ingenuamente nos. pinta'os costumes da regio em que nasceu, J. de Alencar, Macedo. Silvio Dinarte (Escragnolle ‘Taunay), Franklin Tavora, e alguns mais. Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se as vezes ‘uma opiniao, que tenho por errbnea: 6 a que 86 reconhece espirito nacional nas.abras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura, Gongalves Dias por exemplo, com poesias préprias, seria admitido no pantedo nacional; se excetuarmos Os Timbiras, 0s outros poemas americanos e certo numero de composigbes, ertencem 08 seus verses pelo assunto a toda @ mals humanidade, cujas aspiragdes, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; ¢ excluo dai as belas Sextiihas de Frei Antio, que essa, pertencem unicamente iteratura portuguesa, nao s6 pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habiimente fez antiquado. (O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria longe se tvesse de citar outros exemplos de casa, e nao acabaria se fosse necessario recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se 0 autor do Song of Hiawatha nao & 0 mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admiravel é; e perguntarei mais se o Hamlet, 0 Otelo, o Julio César, a Julieta e Romeu tém alguma coisa com a hist6ria inglesa nem com o territério britanico, e se, entretanto, Shakespeare nao é, além de um génio universal, um poeta essencialmente inglés. Nao hé davida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principal- mente alimentar-se dos assuntos que Ihe oferece a sua regio, mas néo estabelegamos doutrinas t8o absolutas que a empobregam. que se deve exigir do escritor antes de tudo, ¢ certo sentimento intimo, que o tome homem do = ‘seu tempo e do seu pais, ainda quando trate de assuntos remotos no:tempo-e no espago.Um | notével critico da Franga, analisando ha tempos um escritor escocés, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretao sem falar sempre de'tojo,/assim Masson era_| bem escooés, sem dizer palavra do.cardo, e explicava 0 dito acrescentando‘que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial. Estes e outros pontos cumpria @ critica estabelecé-los, se tivéssemos uma critica doutrinaria, ampla, elevada, correspondente ao que ela & em outros paises. Nao.a temos. Ha @ tem havido escritos que tal ome merecem, mas raros, a espagos, sem a influéncia quotidiana e profunda que deveram exercer. falta de uma critica assim & um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister {que a andlise corrja ou anime a invengdo, que os pontos de doutrina e de historia se investiguem, que as belezas se estudem, que o8 sendee se apontem, que o gosto se apure e-eduque, e 8e desenvolva € caminhe aos altos destinos que a esperam. OROMANCE De todas as formas varias as mais cultivadas atuaimente no Brasil sto o romance @ a poesia lirica; ‘a mals apreciada € o romance, como aliés acontece em toda a parte, creio eu. Séo faceis de perceber as causas desta prefaréncia da opinido, por isso néo me demoro em aponté-las. Nao se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de flosofia, de lingUistica, de critica historica, de alta politica, e outros assim, que em alheios paises acham facil acolhimento e boa extragao; raras so aqui essas obras e escasso 0 mercado delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. Nao hé:nisto motivo de admira¢o nem de censura, tratando-se de um pals que apenas entra na primeira mocidade, e esta ainda nao nutrida de sblidos estudos. Isto nao & desmerecer o romance, obra d'arte como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota. ‘Aqui 0 romance, como tive ocasio de dizer busca sempre a cor local. A substancia, nao menos que os acessérios, reproduzem geraimente a vida brasilelra err seus diferentes aspectos € situagdes, Naturalmente 08 costumes do interior S80 08 que conservam melhor a tradigo nacional; | 08 da capital do pais, e em parte, os de alguma cidades, muito mais chegados a influénoia européia, trazem ja: uma feigdo mista’e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma Sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns ha de mérito real. ‘Nao faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observago e de anélise, 6 um ‘estrangeito no familiar com 08 nossos costumes achara muita pgina instrutva. Do romance uramente de andlise, rarissimo exemplar temos, ou porque a nossa indole nao nos chame para ai, ou porque seja esta casta de obras ainda incompativel com a nossa adolescéncia lterria © romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da atureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espirito.do nosso povo. Ha. em verdade ocasibes em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra ‘conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante, muita realmente bela. O ‘espetéculo da natureza, quando 0 assunto.o pede, ocupa notavel lugar no romance, « da paginas.

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