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ALEXANDRE KOYRE Estudos de Histéria do Pensamento Cientifico 2 Edigio ‘Tradugo ¢ Revisfo Técnica de: MARCIO RAMALHO FORENSE UNIVERSSTAR A GALILEU E PLATAO* ‘0 nome de Galileu esta indissoluvelmente ligado a revolugdo cienti- fica do séeulo XVI, uma das mais profundas, sendo a mais profunda revo- lugo do pensamento humano desde a descoberta do Cosmo pelo pense mento grego, revolugZo que imptica uma radical “mutagao” intelectual, da ‘qual a ciéncia fisica moderna é, ao mesmo tempo, o fruto ¢ a expresséo'. Por vezes, e854 revolugdo é caracterizada e, a0 mesmo tempo, expli- ‘cada por uma espécie de revolta espiritual, por uma transformagdo comple- ta de toda a atitude fundamental do espirito humano. A vida ativa, vita activ, tomando 0 lugar da theoria, vita contemplativa, que até entéo tinha sido considerada como sua forma mais elevada, O homem modemo pro- ‘euca dominar 2 natureza, enquanto o homem medieval ou antigo se esfor- «2, prineipalmente, por contempli-a. Portanto, deve explicarse por esse desejo de dominar ¢ de atuar a tendéncia mecanicista da fisica cléssica ~ a fisica de Galileu, de Descartes, de Hobbes, seientia activa, operatina, que devia tomar © homem ‘senor e dono de natureza”. Deve-se consideré-la ‘como resultante tZo somente dessa atitude, como aplicegdo a natureza das + Tradugfo feia pola Sra. Georgette P, Vignuux do artigo "Galileo and Pisto, publicado no Journal of the History of Ideas (vol. TY, n® 4, outubre de 1943, pp. 400-428), 152 categorias de pensamento do homo faber®. A ciéneia de Descartes — @ for. tori a de Galileu ~ nada mais & (como se tem dito) do que a cigncia do ar- tesio ou do engenheiro*. Devo confessar que esse explicago nfo me parece intetramente satis- fatéria. E verdade, bem entendido, que a filosofia modema, tanto quanto a ética e a religlio modemas, dé énfase & ago, & praxis, muito mais do que 0 faziam o pensamento antigo ¢ medieval. Isso € t3o verdadeiro quanto 0 que se refere & ciéncia moderna: penso na fisica cartesiana, em suas compara- ‘g®es com polias, cordas ¢ alavancas, Entretanto, a atitude que acabamos de Gescrever é mais a de Bacon — cujo papel na hit6ria das ciéncias nfo & da mesma ordem* — do que a de Galileu ou de Descartes. A ciéncia destes nfo é © produto de engonheiros ou de artesdos, mas de homens cuja obra raramente ultrapsssou 0 dominio da teorid®. A nova balistica foi elabora- da, nfo por fabricantes de munigfo ou artilheitos, mas “contra eles”. E Galileu nfo aprendeu sew oficio com os homens que labutavam nos arse- nais e estaleiros de Veneza. Muito pelo contritio: ele thes ensinou 0 oficio deles®, Além disso, essa teoria explica demasiadamente pouco. Explica 0 prodigioso desenvolvimento da ciéncia do século XVII pelo desenvolvi- mento da tecnologia. Porém, este foi infinitamente menos impressio- nante do que aquele. Ademais, ela despreza os sucess0s técnicos da Idade Média. Esquece o apetite de poder e de riqueza que inspirou a alquimia em todo o decurso de sua historia, Outros eruditos-tém insistido na luta de Galileu contra a autoridade € contra a tradiefo, em particular a de Aristbteles, contra a tradigfo cienti- fica e filos6fice que a Igreja mantinha e ensinava nas universidades. Tem sulinhado 0 papel da observacdo e da experitncia na nova ciéncia da natu 1, E verdade que a observagio ¢ a experimentacdo constituem um dos tragos mais ceracteristicos da ciéncia madema, £ certo que, nos escritos de Galileu, encontramos inémeros apelos & observacdo e & experiénciae uma amarga Ironia em relagdo a homens que nfo acreditavarn no testermunho de seus olhos, porque o que viam éra contrario 20 ensinamento das autotide- es ou, pior sind, que nfo queriam (como Cremonin’) olhar através do te Iesc6pio de Galileu por medo de ver algume coisa que contradissesse suas teorias e crengas tradicionais. Ora, foi precisamente constnuindo um teles- c6pio ¢ utitizando-o, observando cuidadosamente a Lua e os planetas, des- cobrindo os satélites de Japiter, que Galileu desferiu um golpe mortal na astronomia ¢ na cosmologia de sua époce. Todavia, nfo se deve esquecer que a observa ou « experiencia, no sentido da experiéncia espontinea do senso comum, no desempenhou wt 153 papel maior ~ ou, se 0 fer, tratowse de um papel negativo, o papel de um obsticulo — na fundagéo da ciéncia modemnS¥? A fisica de Arisidteles e, ‘ais ainds, a dos norinalistas parisienses, de Buridano e de Oresme, se- jgundo Tannery e Duhem, era muito mais préxima da experiencia do senso comum do que a de Galileu ¢ de Descartel®” Néo foi a “experiéncia”, mas 1 “experimentagio™, que desempenhou ~ mais tarde, somente — um papal positive cousiderivel. A experimentagdo comsiste em interrogar metodica- ‘mente a natuteza. Essa interrogagdo pressujGe e implica uma linguagem na «qual se formulam a8 perguntas, como um dicionério nos permite ler e inter- pretar as respostas. Como sabomos, para Galieu, era através de curvas, cit. culos e triéngulos, em linguagem matematica ou, mais precisamente, em inguagem geomeétrica — no na linguagem do senso comum ou através de pros simbolos —, que nos devemos dirigi & matureza e dela recober res- postas. A escolha da linguagem ¢ 2 deciszo de empregila nfo podiam, evidentemente, ser determinadas pela experiéncia que © proprio uso desta linguagem devia tomar possivel. Era preciso que ease escolha e esse decisdo tivessem origem em outras fontes. Outros historiadores da ciéncia e da filosofia'® procuraram, mais. modestamente, ceracterizar a fisica modema, enquanto fisica, por alguns de seus tragos marcentes como, por exemplo, o papel que nela desempenha ‘© principio da inércia, Aqui, novamente, ¢ exato que o principio da inéreia ‘ocupe um lugar de relevo na mecanica clissica, em contraste com a meci- nice da Antigtidade. £2 lei fundamental do movimento. O principio reina implicitamente na fisica de Galileu, explicitamente na de Descartes e de Newton. Mas limitarse a essa caracteristica me parece um tanto superfi ial. A meu ver, nfo basta simplesmente estabelecer o fato, Devernos vom preendéto e explicé-lo, explicar porque a fisica moderna foi capuz de ado- tar esse principio; compteender porque e como o principio da inércia, que ‘nos parece tdo simples, to claro, to plausivel e até evidente, adquiriu esse status de evidéncia ¢ de verdade a priori, enquanto que, para os gregos, (anto quanto para os pensadores da Idade Média, a idéia de que um corpo, ‘uma vez em movimento, continuaste a se mover para sempre parecia evi- dentemente fala e até absurda"*. Nao tentarei, aqui, explicar as razdes e as causas que provocaram a revolugdo espiritual do século XVL Para nossas finalidades, basta descre- véla, caracterizar a atitude mental ou intelectual da clénciz moderna atra- vés de dois tragos que se completam um 20 outro. Sio eles: 19) a destrui- gH do Cosmo e, consequentemente, o desaparecimento, na ciéncia, de todas as considerag6es buseddas nessa nolo? 29) 4 geomotrizaglo do es- 154 aco, isto é, a substituigdo, pelo esparo homoganio e abstrato da geometria euclidiana, da concepgao de um espago cbsmico qualitativamente diferen- ~ ciado ¢ concreto, o espayo da fisica pré-galileana. Podemse resumir ¢ ex- primir essas duas caracteristicas da seguinte maneira: a matematizagio (geometrizagfo) da natureza e, por conseguinte, a matematizago (geo- rmetrizagio) da cléncia. ‘A dissolugZo do Cosmo significa a destruigfio de uma idéia, aidéia de um mundo de estrutura finita, hierarquicaraente ordenado, de um mundo qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontologico. Essa idéla & substituida pela idéis de um Universo aberto, indefinido e até infinito, uni- ficado e governado pelas mesmas leis universais, um universo no qual todas, as coisas pertencem a0 mesmo nivel do Ser, contratiamente a concepgdo tradicional que distinguia ¢ opunha os dois mundos do Céu e da Terra. Do- snyanie. a es do CEu eat leis da Tera we fundegy A stronomis 8 fi. sica tommam-se inter denies, unificadas ¢ unide . Isso implica o desa- pealnntor Ur poepesta cnt ica ds Tol consideragbsbaseadss no valor, na perfei¢a0, na harmonia, na significagdo e no designio™. Tais Consideragder desaparceem no espago intinito do nove Universo. B nesse novo Universo, nesse novo mundo, onde uma geometria se faz realidade, ‘que as leis da fisica classica encontram valor e aplicagao. A dissolugdo do Cosmo, repito, me parece a revolugdo mais profunda realizada ou softida pelo espirite humano desde a invongio do Cosmo pe- Jos gregos. E uma revolusio to profunda, de consequéncias to remotas, ‘que, durante séculos, os homens — com raras exceges, entre as quais Pas- cal — nfo Ihe apreenderam o alcance ¢ 0 sentido. Ainda agora, ela é muitas ‘vezes subestimada ¢ mal compreendida. © que of fundadores da cléncia modems, entre os quais Galileu, ti nham de fazer nifo era criticar e combater certas teorias erradas, para corti- ghHlas ou substituélas por outras.melhores. Tinham de fazer algo inteira~ ‘mente diverso. Tinham de destruiz um mundo e substitu‘-lo por outro. Ti- nham de reformar a estrutura de nossa propria inteligéncia, reformular no- ate ever tus conte, enero Ser de uma nove mani abe far um novo conceita do conhecimento, um novo conceito da ciéneia, e até substituir um ponto de vista bastante aatural — o do senso comum — ‘por um outro que, absolutamente, nfo 0 63. Isso explica porque a descoberta de coisas ¢ de ieis, que hoje pare- ‘cem to simples ¢ tao Faceis que sfo ensinadas as criangas — leis do movi- mento, lei da queda dos corpos —, exigiv um eeforgo to prolongado, tio arduo, muitas vezes véo, de alguns dos maiores génios da humanidade, 155

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