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Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)

“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS” PEÇA EM QUATRO ATOS


Adaptação teatral de Paulo Vitor Grossi com base em poemas ameríndios

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS”

PERSONAGENS
A Índia, o Cacique, o Homem, um Menino, o Granjeiro
e demais índios da caravana.

ÉPOCA
Primeira parte do século XXI
LUGAR
Um calmo palco e seu fundo preto.
Projeções permeiam o discurso

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


ATO UM

[Ao abrir o pano, uma bela ÍNDIA está de pé no palco. Tem por volta dos vinte anos e
veste roupas modernas. Seu incrível tom de voz preenche o cenário.]

ÍNDIA
(enfática)
Por enquanto não precisa som algum! É a oportunidade de entendermos
o porquê de estarmos aqui (...)

[Algumas lufadas de vento são ouvidas e o palco é preenchido pela projeção de uma mão
mexendo uma câmera. Aos poucos a câmera vai se ajustando como se estivesse sendo
ligada e lentamente focaliza uma paisagem desértica.]

ÍNDIA
(cheia de energia)
(...) em uma paisagem árida com seu desenho que agora é nossa realidade.

[A projeção se mantém em um ponto fixo, é um deserto debaixo de um sol forte. A seguir,


a compenetrada voz da índia comenta enquanto um música tribal é tocada.]

ÍNDIA
(mais lenta)
O Estado moderno é resultado de várias conquistas que resultaram na
submissão dos mais fracos pelos mais fortes, na dizimação de culturas e
extinção de muitos povos.

[Após a última palavra, ouvimos um som provocado por algo similar a uma estática; o áudio
do teatro fica um tanto embolado, entre ruídos e picos agudos. A índia fica um tanto
abalada, chega inclusive a abaixar o corpo, mas em seguida se repõe.]

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


ÍNDIA
(indecisa)
Seria a sintonia? Mesmo confusos ou surpresos, continuamos escutando.
Temos que ser fortes.

[Mais sons de estáticas e ruídos elétricos e então o cenário é tomado pela projeção de outra
paisagem árida, um caminho de terra.]

ÍNDIA
(concentrada)
Assim também aconteceu com a América descoberta por Cristóvão
Colombo. Os grandes navegantes encontraram às costas do vasto oceano o
que chamaram de Atlântico, imensas paragens transbordantes de leite e
mel, de rios límpidos e solo fértil. O novo continente urdia por ser
explorado. Mas povos pagãos que nessas terras habitavam eram providos
de uma cultura paralela, de deuses próprios e filosofia voltada para a
Natureza, esses povos contrapunham aos desígnios dos conquistadores
europeus em tudo. Considerados ilidimos na sua fé, aos poucos os
americanos verdadeiros, chamados de ‘índios’ pelos europeus, e que
habitavam a América do Alasca à Terra do Fogo, foram conquistados,
catequizados, aprisionados, mortos e praticamente extintos, dando
passagem para fronteiras invisíveis de nações concretas, hummm.”

[Tum! Uma forte pisada da índia no chão corta o clima de passividade que suas palavras
evocavam. Ela fica ali parada respirando fundo enquanto o pano desce.]

FIM DO ATO UM

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


ATO DOIS

[O pano abre ao som de uma música compassada e muitas pessoas entram no palco, uma
a uma carregando seus pertences. É uma caravana. Eles se arrastam atravessando o palco
de fora a fora. São índios, mas não há bravura, apenas semblantes de cansaço. Crianças
acompanham os passos de seus pais e cantarolam a música enquanto projeções do caminho
de terra batida abrangem a visão do grupo coeso. O caminho é visto de vários ângulos. Já
a canção que chega aos ouvidos é a seguinte: “E eu te disse que a caravana quando passa
por terra ganha razão”. Não é tampouco alegre ou monótona, mas beira um coro de guerra,
tende a ser como a vibração de uma oração conjunta.]

[Terminada a melodia da música de fundo, entram duas pessoas descalças. Dois homens
adultos, um deles é o CACIQUE, o orador daquele grupo em caravana. É um ancião. O
outro é o HOMEM, sucessor e futuro pajé.]

CACIQUE
(fatigado)
(para o Homem)
A Terra então diminui sua rotação! É como uma película velha se
esticando e retorcendo enquanto ressoam os sons finais de nossa melodia.
Agora temos o horizonte. E calor! É debaixo do forte sol a pino que se
aproxima a caravana composta hoje por três “etnias” vistas como
‘indígenas’ – melhor não se envolver em discussões contra ou a favor de
tais designações miscigenarias! Contemplem a diversidade, meus amigos.
Logo vocês guiarão uns aos outros (...)

HOMEM
(para o Cacique)
Eu vou ajudá-los, estou atento.

[Sai o Homem na direção dos outros índios da caravana. O Cacique fica sozinho no palco.]

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


CACIQUE
(olhando a plateia)
Eu sei que vai.

[A narração do Cacique é lenta, seu olhar vai para todas as direções, ele é o mais velho do
grupo. Tem não só a idade avançada, mas também uma fala que se desenrola a partir de
um longo suspiro. Um suspiro e ele fala! Usa um tom de desabafo para uma sentença
seguida da outra.]

CACIQUE
(compenetrado)
Fico sendo nosso orador por mais esse momento, venho com essas
palavras, alguém tem que dizer; meu rosto marcado é de todo jeito
amigável. Vimos o cenário paralisante de nossa gente pouco a pouco
passando mais perto da comentada área da ‘civilização’; essa é a minha
fonte energética. Uma energia acima da idade. Alguma respiração a mais
para falar de nosso povo. Temos tanto lirismo, muitas sociedades também,
mas hoje vamos contá-las. São antiquíssimas poesias das travessias
indígenas, sempre relembradas através das gerações. Isso não é apenas um
novo alerta, não é um choramingo, aqui assistimos uma cerimônia. Eu
estendo meus braços, eu aconchego essa gente e a elas mostro meu
respeito. Nossa gente... Humana!

CACIQUE (cont.)
(caridoso, estendendo os braços)
No local onde a água se divide, nós nos pusemos em movimento,
chegamos desse campo de batalha... nos dispersamos. Sou um antigo,
rogo não haver mais muito o que salvar para mim, pensem então nas
próximas vidas. Prestem atenção, é o mínimo que podemos fazer; algumas
pessoas se refugiaram nas margens; então essas águas estão repletas de
homens, repletos de homens estão os caminhos.
(pausa) Somos fugitivos? Em nosso próprio planeta? Aqui fugimos, e
assim muitos se acabaram. Nas saídas das cidades os conquistadores
vasculhavam e inspecionavam todos os nossos farrapos, foi assim que o
povo se dispersou, quando não se escondendo nos recantos, aos soluços.
Quando iremos nos reunir de novo lá onde a água se divide? Quando
estaremos sem escudos e não mais sofrendo pelo que comer?
(tom) Tudo isso contemplamos com nossos olhos, tudo isso querendo nos
sobrecarregar!

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


[Algumas pessoas chegam com punhados de madeira, ganhos secos, capim e outros
materiais, incluindo restos inflamáveis de utensílios modernos. Entregam nas mãos do
Cacique e ele arruma no chão do teatro. Vem alguém com uma tocha cenográfica nas mãos
e atira no local que o ancião indica. Uma fogueira rapidamente se faz projetada por cima
deles, a chama se propaga de forma espantosa. Mais pessoas jogam restos no chão que
seria a fogueira. Por cima disso o Cacique se prepara para falar, seus gestos denunciam
alguma apreensão, indicando com as mãos o movimento do fogo.]

CACIQUE (cont.)
(solene, mãos para o alto novamente)
Pai-Céu, Mãe-Terra, somos vossos filhos, e nas costas cansadas trazemos
as dádivas. Por favor, ouçam nossas súplicas! Venho recontando a canção
do tear dos Tewas, mas bem que estas letras poderiam ser Astecas, Maias,
Quíchuas, Guaranis, Tupis.
Para nós mesmos trazemos as vestes esplendorosas. Que seja a urdidura a
luz branca da aurora, que a trama seja a luz vermelha da tarde, que sejam
as franjas a chuva que tomba, que a orla seja o arco-íris que se levanta.
(tom) Para nós mesmos tecemos as vestes esplendorosas. Para poder
caminhar por onde cantam os pássaros, para poder caminhar por onde é
verde a erva, Pai-Céu, Mãe-Terra.

[O calor se propaga na projeção. O ancião caminha ao redor da fogueira imaginária, ele


olha para cada um daqueles seres de pé ao seu redor. As pessoas estão concentradas,
muitas olhando para o alto. Nesse momento, novas projeções são exibidas com mais
pessoas, elas estão suando e têm seus corpos em alerta. A fogueira trepida cada vez mais e
por fim uma enorme fumaça sobe o mais alto possível. Diante disso, o Cacique volta a
falar.]

CACIQUE
(rodeando a fogueira)
Há suor, é como se de seus poros estivesse sendo expelido anos de
impurezas e tratamentos hostis.

CACIQUE (cont.)
(sorridente)
A Terra inteira é uma só alma, somos parte dela.
(pausa) Mudar, sim, mudarão as nossas cascas, mas não morrerão nunca
as nossas almas. Somos uma alma única como única é a Terra.

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[Aos poucos uma música é ouvida enquanto uma sequência de imagens do Cosmo é
exibida.]

CACIQUE (cont.)
(gesticulando)
Cobre a Terra, minha Mãe, quatro vezes de flores inumeráveis. Que os
céus se cubram de nuvens acumuladas. Que a Terra se cubra de névoa;
cobre a Terra de chuvas. Grandes águas, chuvas, cubram a Terra.
Relâmpago, cobre a Terra. Que se ouça o trovão por cima de toda a
Terra; que se ouça o trovão. Que se ouça o trovão por cima das seis
regiões da Terra.

[O Cacique termina de falar e abaixa a cabeça em reverência. A música termina. Todos


saem do palco e o pano se fecha.]

FIM DO ATO DOIS

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


ATO TRÊS

[Abre o pano e novamente a caravana está ali, dessa vez fixada em cabanas e tendas
projetadas pelo telão, ainda que muitos dos índios estejam realmente sentados no palco.
Seu descanso pelo telão é um local de sombra, parece ser um vale. À frente alguns
conversam, o som é rico neste cenário. Um HOMEM está falando para o Cacique e um
MENINO, é como uma confissão entre eles.]

HOMEM
(cansado)
Cada parcela deste solo é sagrada, no modo de ver do povo. Meu povo é
este mundo! Cada encosta, cada vale, cada planície e bosque foi
santificado através de algum acontecimento triste ou alegre em dias há
muito desaparecidos. O pajé sabe, eu disse para os brancos, minha
consciência não mente. Falei para muitos que a própria poeira sobre a
qual eles agora se erguem responde mais amorosamente aos seus passos
do que aos outros, porque foi enriquecida com o sangue dos nossos
antepassados e os nossos pés nus estão conscientes da empatia do contato.
Até as criancinhas que aqui viveram e se divertiram durante uma breve
estação irão amar estas solidões sombrias e, ao cair da noite, saudarão os
assombrados espíritos que regressam.
(tom) E quando o último Pele-Vermelha tiver perecido e a memória das
tribos se tiver tornado um mito entre o homem branco, os mortos
invisíveis das tribos irão pulular por suas praias; e quando os filhos dos
nossos filhos se julgarem sós no campo, no armazém, na loja, na estrada
ou no silêncio das florestas sem caminhos, não estarão sós. Pela noite,
quando as ruas das vilas e das cidades brancas estão silenciosas e os
homens as supõem desertas, estarão apinhadas com as hostes que
regressam e que outrora encheram e ainda amam esta bela terra.

[Acabada a narração do Homem, o Cacique se cala enquanto contempla sua gente


seguindo, indo ou vindo; muitos passam ao seu redor. O Cacique olha e olha os índios,
então ele por fim se detém em um ponto longínquo, na direção da plateia. Bem ao lado, o
Homem que falava também olha para o que o Cacique vê. O menino chega mais perto e
questiona.]

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MENINO
(curioso)
Velho, por que dizem isso do nosso povo? Chamam nossa gente de índios
bêbados... da Amazônia?

[O Cacique então responde para o menino e para o Homem ali ao lado. Não é nem sério
nem triste, é realista.]

CACIQUE
(maneando o rosto)
Eles não entendem; nunca entenderam e tampouco querem tentar.
Representamos o passado; e isso quer dizer que devemos ser sepultados.
Somente nossas terras e o interessante do que podem furtar da maneira
que lidamos com as curas e medicamentos pode se salvar disso.
(tom) “É uma corrida’, eles dizem. No fundo já entenderam que o tempo
passa para as sociedades deles também, e seu tempo se estreita... a ponto
de ruir e voltar ao estágio zero; para eles quer dizer estágio primitivo. Mas
tudo acaba mesmo, não quer dizer que devemos acabar uns com os
outros. O mundo é um aprendizado temporário; as eras são suplantadas
umas pelas outras, e as extinções são um fato comprovado. Os humanos
então retornam ao natural e forçosamente se deparam e convivem com a
Mãe Natureza. Lendas relatam, em termos quase idênticos e utilizando as
mesmas imagens, o grande naufrágio, a queda da estrela, o
desaparecimento de muitas nações, outrora possantes e soberanas, isso
tudo indo para o fundo das águas. Assim aprendemos a lição da tribo dos
brancos, entre sangue, lágrimas, entre memórias!

HOMEM
(esperançoso)
Que pena, Velho, vamos rezar por suas almas, pedir ao Pai Celestial que
tenha piedade dos erros dos socializados.

[O menino olha para o Homem com admiração também. Todos ali se conhecem, todos
são pais e filhos.]

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CACIQUE
(leve sorriso para o menino)
Sim, isso podemos rogar!

MENINO
(entusiasmado)
Foi meu Pai! Ouve, meu Velho! Peço que sim, eu lembrei!!
(tom) Ele me fez ver que se me ponho a cantar, se faço como a trepadeira
vermelha meu canto se entrelaça; igual a flor que cheira a milho torrado,
onde se ergue a Árvore; que perfume de flor de cacau, dança junto ao
tambor, dança libertando o teu perfume. Ergue-se além o Sol num vaso de
esmeralda coberto de Quetzal; cinge ele um colar de turquesas, e as flores
caem entre todas as cores.

CACIQUE
(sorrindo melhor)
Sim, sim, a fé!

[Depois o Homem fica com a vista mais corada também, e coloca a mão no ombro do
menino. Os dois olham para os lados e veem alguns índios passando. O Cacique fica
contente com o carinho entre eles.]

CACIQUE
(relaxado)
Vamos aproveitar e ficar mais perto dos outros no centro da caravana.

[Ele caminham juntos. Crianças correm por perto, mulheres falam umas com as outras;
em projeções alternadas, pássaros sobrevoam por sobre as cabeças daquelas pessoas em
um céu ao entardecer. Então o Cacique, o menino e o Homem se falam outra vez e os
outros ouvem.]

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MENINO
(alegre)
(se adiantando para frente)
Como desejaria vaguear na noite. Contra os ventos. Vaguear na noite
quando a coruja ulula. Como desejaria vaguear como antes. Como
desejaria vaguear na alba contra os ventos e sem pressa nem fuga.
Vaguear na alba quando a gralha grita. Como desejaria vaguear, ah, e
respirar fundo.

CACIQUE
(para o menino)
Era digno de se ver, esse mundo novamente criado. Sobre toda a largura e
amplidão da Terra, a nossa, estendia-se o reflexo verde da sua cobertura e
os perfumes que ascendiam eram doces de respirar. A consciência estava
ligada à Natureza, os mundos sutis eram percebidos por nossos espíritos
de forma normal, tudo era simples. Ainda tivemos algo disso, mas agora a
era é outra; esta é a era da desconexão, como dizem, a expiração após tão
longa e bela inspiração. As pessoas é que complicaram o mundo para
nada, e para nada serviu. Vivemos uma transição, e em uma transição
impera o inesperado.

MENINO
(repete para o Cacique)
A transição.

HOMEM
(ansioso)
(para o Cacique)
Até eu estou curioso por mais revelações. Por favor, adiante!

CACIQUE
(agitado)
E morte inevitável! Ouçam mais, aonde iremos que não haja morte? Por
isso, chora meu coração. Tenha coragem, menino, ninguém vai viver aqui!
Mesmo os príncipes são levados pela morte: assim, desolado está meu
coração. Oh! Meus amigos, onde é a terra em que não se morre? Mais

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coragem: ninguém vai viver aqui! (para a plateia) Leia, leia em meus olhos,
você que deve descobrir nos tempos futuros, isso se seus deuses lhe
tiverem dado o poder de ler. Leia, oh filho do futuro, aprenda os segredos
do passado, para você é longínquo mas na verdade tão próximo.
Os homens não vivem somente uma vez para em seguida desaparecerem
para sempre; eles vivem várias vidas em lugares diferentes, mas sempre
neste mundo. E entre cada vida, há um véu de trevas.
(pausa) Vamos na transição, é uma passagem.
(sussurrando) Logo chegaremos ao limite entre nossos territórios, e pode
ser que vejamos a gente branca.

[O menino meio que sorri, sem graça. O Homem se movimenta, completando tardiamente
o que o Cacique falara.]

HOMEM
(para a plateia)
Ver
(pausa) de novo. Só por breve tempo viveremos nesta terra; mas não será
sempre assim, já que nos espera a região do mistério.

[O Cacique se agita, levanta as mãos e canta de olhos fechados. O Homem e o menino


abaixam suas cabeças em respeito. Entra a projeção de um morro.]

CACIQUE
(tenso)
Ali onde o morro se acaba; lá em cima, nem eu mesmo sei aonde, vagueei
por ali, por onde a minha cabeça e o meu coração pareciam perdidos.
Vagueei lá longe. Vagamos todos! A minha casa lá longe, lá mesmo! A
minha casa lá longe, agora me recordo! E quando vejo esse morro lá
longe, pois bem, choro. Ai! Que posso fazer? Que posso fazer?
(tom) Ai! Quê? A minha casa lá longe, agora me recordo. Lá existe alegria,
amizade?

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CACIQUE (cont.)
(já mais calmo)
Já eu que sou velho, nasci qual planta que no deserto irrompe sem seiva e
sem calor: no caule que sobe, ríspido, hirto, abrolha um germe, não abre a
flor. Que não vi estrela assim tão áspera: fechada nas trevas, nunca arder.
E sobre o meu berço agras lágrimas: porque eu nasci só para morrer.
Acabará minha estéril história que a si própria se liga por dentro: a vida, o
nome, a minha memória, gravados fundo no esquecimento. Glória ao
Criador! Eu me zero por Ti!!!

[Começa uma música suave. Novamente a movimentação das pessoas que compõem a
caravana domina o palco, alguns estão comendo, outros cuidando de animais, outros
confeccionando utensílios. Uma extensa série de gestos e emoções são representadas pelos
atores da caravana. A longa música toca até que se feche o pano.]

FIM DO ATO TRÊS

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ATO QUATRO

[O quarto ato se inicia como que à distância, com mais profundidade, de forma
compassada. Abre o pano e a projeção aos poucos mostra uma rua de terra batida e uma
varanda, cada vez mais nítidas; folhas são dispersas pelo vento, o clima é seco e o som
ambiente calmo. Começa o chiado de um rádio e entra um homem com uma cadeira na
mão, seu rosto quase não é visto atrás do chapéu. Ele senta na cadeira e se recosta o
máximo que pode. Seguramente é um homem comum, alguém de ‘beira de estrada’, um
GRANJEIRO acomodado como se estivesse na varanda de sua modesta casa. Ele se mexe.
A fisionomia bem morena contrasta com feições europeias, como o nariz e a cor clara dos
olhos; seguramente nascera de uma união de pais indígenas e brancos. Sentado, o granjeiro
busca estações, sintoniza uma delas para melhor entender a narração feminina que vem
pelas ondas radiofônicas. O aparelho está longe e ele se levanta e regula até definir aquela
estação. A voz que se faz ouvir é pausada, algo monótona e distante, quase um lamento. A
voz é da Índia. Entra ela esquerda e se dirige ao centro palco para narrar, agora
caracterizada como repórter.]

ÍNDIA
(...) e agora falamos novamente da aculturação, da perda de identidade, da
utilização de um produto comercial e turístico de nossos bens naturais;
podemos comentar sobre monetarismos, futilidades. Nosso país fornece
uma estranha gama de explicações étnicas que se intercalam ao meio
ambiente. Uma prova disso é a superação dos povos ameríndios.
Atualmente, a moda das passarelas até tenta reproduzir sua pintura
corporal; nas músicas populares imitam seus tambores e até mesmo a
linguagem dos seus corpos; imitam sua expressão de vivacidade, cores,
natureza das danças e manifestações artísticas. Tudo isso é um desafio
para a compreensão moderna se notarmos a situação real dessa gente!
(pausa) Será mesmo que a população indígena não passa de mero
zoológico a céu aberto perante a sociedade imbecil e consumista? Que
estão todos bêbados, vagabundeando estigmatizados? Ou que são
dizimados, roubados em suas posses cada vez mais? Como se dará a
transmissão de valores em um contexto de apenas sobrevivência?
Generalizando
(pausa) toda uma cultura
(tom) incalculável, brutalizada pelo riso e desleixo cultural. Dessa forma.
Olha, qual o teu passado? Esquece não. Você veio da cultura antiga, é a
evolução natural dos teus antepassados! Que triste saber que fazem isso
com a população indígena, esta por demais pega na tal da ‘defasagem de
raciocínio e compreensão’, relegada às tais comunidades autossustentáveis

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toleradas apenas com fins lucrativos, eleitorais ou humanitários para
postagens em redes sociais. O ritual está esvaziando
(pausa) as flautas vendidas para comprar alimentos às crianças (...)

[O granjeiro vira um pouco o rosto ao se recostar mais na cadeira, e em nenhum momento


repara na Índia narrando à sua frente. Ele então estica um pouco os pés se espreguiçando.
Após isso, uma projeção mostra os campos à sua frente, detrás da rua de terra batida. A
Índia volta à sua narração enquanto outra projeção apresenta uma plantação de cana
balançando ao vento.]

ÍNDIA
(mais nítida)
‘Os costumes vão se dissolvendo’, dizem, ‘perdendo seus significados e
usos tradicionais’, mas muita gente ainda precisa dos remedinhos e plantas
das florestas que a burguesia renomeou, sim, esses fitoterápicos ou essas
receitas de manipulação! As grandes corporações sugam o conhecimento
indígena enquanto há tempo, enquanto existe uma mistura ou outra para
patentear!! Tal é o ‘capitalismo’ e a mania de
(pausa) souvenires! Tamanha analgesia da mente.
Este país imediatista virou as costas para o lado do pulmão do mundo,
suas belas matas foram devastadas, todo um passado sepultado; que será
das próximas gerações? Não conhecerão suas raízes além do que está nos
livros? Serão meros manuais reorganizados cada vez mais para atender às
necessidades econômico-sociais de blocos mundiais, e para você...
mediante rápidas conclusões. Não teremos mais anciões contadores de
histórias, só gente caquética atrás de pílulas!
(pausa) A destruição de antigas culturas não é um problema atual, vem
sendo um processo sem dó nem piedade; parece até que há um medo
desse relembrar das próprias origens. Fica também a impressão de que a
onda continua sendo a de ‘apartamentar’ o Ser Humano, fazer com que
decaia nessa visão horrível sob a égide de cidades abarrotadas. Vistas do
alto, são semelhantes a formigueiros.
(tom) E vocês pertencem às formigas!! Essa imagem já está batida.
Formigas trabalhadoras da ‘rainha’ do pedaço… Quem é tua
(tom) rainha? Anda difícil descobrir ou está à espera das férias após aquele
ano sofrido?? Sua cabeça pende, cai aos poucos.
(pausa) Mas contra os espíritos maus há aqui e ali os cânticos, vestuários,
utensílios, arte plumária

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(pausa) a realidade que fora idealizada nos megatotens, pensada para
gerações após gerações, ela reside no sangue de cada um de nós. Você
sabe o que é patrimônio? O que disseminar? Não como o disseminar de
educação e amor pelo próximo?
(pausa) Não é igual ao concreto que esfarela com os anos.
Mesmo sendo a população indígena efêmera, transitória, grupal; mesmo
sendo vistos como nômades ou seminômades, tudo ali está correlacionado
harmonicamente... porque vivem do planeta!
Até o sentido artístico
(tom) que não é o mesmo entre os diversos povos indígenas
(gracejo) nem sempre quer dizer o mesmo que para nós, urbanizados
cheios de padrões que sobrepõem padrões; o normal seria achar ‘belo’
aquilo que em sua utilidade atinja o ápice. E, ainda assim, variando de
tribo para tribo! São artes indígenas, não há uma só definição, há uma
gama.
Elegância, majestade; o meio, sua valorização, seu lugar e funções
específicas. No meio natural, por exemplo, e de maneira muito singular, o
indígena desconhece esse conceito de
(riso) inveja; quem criou esse defeito!?
O futuro dará sua sentença; a Terra julga o que dela nasce.
(pausa) Um bom argumento sempre salva do sufoco do inesperado.
Quem puder acreditar em si, aprender com o passado, continue a falar
sem interrupção. Seguramente uma arte!
(pausa) Muito bem, agora vamos para nossos comerciais e (...)

[Tum! A Índia joga o microfone no chão e sorri. Atrás dela, o granjeiro estica a mão
fazendo movimento para desligar o rádio, quase ao mesmo tempo. A seguir, o granjeiro
comenta em voz alta com seu sotaque acentuado. Ele fala e sorri também.]

GRANJEIRO
(divertido)
(para a plateia)
Eu é que não vou assistir desmoronando, não demora a chegar por aqui.

[O granjeiro suspira, continua olhando para o horizonte. Uma leve brisa é projetada na
varanda imaginária em que ele está.]

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


GRANJEIRO (cont.)
(calmo)
O sol forte da estrada enfim atrai algo.

[Ele aperta os olhos, sorri mais abertamente e se espreguiça em sua cadeira. Então aos
poucos o granjeiro começa a discernir algumas pessoas caminhando em sua direção, vindos
das duas direções para o centro do palco, são os índios da caravana. Eles passam bem na
frente do granjeiro.]

GRANJEIRO
(relaxado)
A caravana que se aproxima, é.

ÍNDIA
(para a plateia)
É a hora de nossa reunião, que bom!

GRANJEIRO
(para a plateia)
A gente um dia foi simples, tomara que isso volte. Penso alto.

[Nesse ponto algo diferente ocorre, pois se somando à voz do granjeiro e da Índia, as vozes
de todos os atores deste drama narram em uníssono. Cada vez mais pessoas se somam à
narração enquanto entram no palco. Todos agora estão de pé.]

GRANJEIRO E DEMAIS ATORES


(juntos)
Oh, irmão, veio a um lugar semeado de numerosos perigos, muitas penas
e horrores.
(pausa) Veio a um
(respiração profunda) lugar em que os nós e as malhas estamos
interligados e superpostos, de forma que ninguém possa passar sem cair.

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


(pausa) Teus pecados são os nós e malhas, os poços onde pode cair, mas
além deles também existem animais ferozes que matam e despedaçam o
corpo e a alma.
(pausa) Quando você foi criado e enviado por Ele, teu Pai e Mãe, nosso
Deus, te moldou como uma pedra preciosa.
(pausa) Mas você se sujou por tua própria vontade.

GRANJEIRO
(sozinho, sorriso amarelo)
E, agora, confessa!

GRANJEIRO E DEMAIS ATORES


(juntos)
Descobrindo e manifestando todos os teus pecados a nosso Senhor, que é
o protetor e purificador de todos os pecados. Não considera isso com
superficialidade, pois, na verdade, você entrou na fonte da misericórdia,
que possui aquela água muito clara com a qual nosso Deus, protetor de
todos, lava as impurezas da alma (...)

GRANJEIRO
(sozinho, olhando para cima)
Deus, protetor de todos, lava as impurezas dessas almas.

[Acabada a narração, tudo fica em silêncio, desde os atores até a sonorização. Eles se
acomodam sentados no fundo do palco enquanto algumas crianças entram em cena. Outra
vez aparecem projeções da rua de terra batida e das plantações.
Após algum tempo, vem o Cacique caminhando devagar, ele ao chegar é rodeado pelas
felizes crianças. Ele fala olhando para elas.]

CACIQUE
(sorridente)
Agora vocês nasceram de novo, aqui, de novo começam a viver e, neste
mesmo momento, nosso Deus nos ilumina com um novo Sol. Vocês estão
então a florir e brotar como umas outras pedras preciosas, muito puras,
saindo do ventre da suas mães.

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)


[Depois dessas últimas palavras, o Cacique fica junto das crianças e uma delas entrega a ele
um cajado de bambu.]

CACIQUE
(tranquilo)
(para as crianças e plateia)
Convém que façamos nosso trabalho, é a casa de Deus! Para que enfim
sejam perdoadas as falhas cometidas, as palavras e injúrias pelas quais más
línguas nos feriram; o homem branco, tão próximo mas também tão
injusto pela sua ingratidão que já mostrou em relação às bondades de
nosso Senhor, e pela inumanidade que um dia demonstrou em relação a
eles mesmos
(suspiro) não partilhando com os pobres os bens temporais que nos foram
dados, bem, o homem branco percebe suas ofensas, está confuso. Cabe a
nós dizer. Vocês terão que oferecer aos que têm fome, os que têm sede,
aos que não têm para vestir, mesmo que precisem retirar de suas bocas
parte do que será dado. Não esqueçam que a carne deles é como as tuas, e
que eles são, tal como vocês, humanos.

[Termina de falar o Cacique e começa uma música. As crianças da caravana se divertem,


são vários tipos de sorrisos; uns meninos correm e quase esbarram na figura dócil do
Cacique.
Um tempo depois dessa diversão, também as crianças se juntam aos outros no fundo do
palco, ficando apenas uma menina. Ela sorri de forma doce durante alguns minutos. Por
fim, todos os atores da peça se movem e pisam forte no chão do palco enquanto cantam
uma melodia tribal. Depois se aquietam e aplaudem.]

FIM

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)

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