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Nova Classe Média ou Novo Proletariado? Barbara Heliodora Franca Retomamos neste artigo a sempre dificil discussio te6- rica sobre as chamadas “classes intermediérias” ou “classes médias”, este enorme contingente de pessoas que carecem de definigdo sociol6gica, pois nao sio burgueses, proprieté- rigs dos meios de produgao, nem operérios, trabalhadores manuais. A importincia e a atualidade da questi, no Brasil, re- fere-se ao fato de que foram todos reunidos na protegida — embora nfo confortével — classificagiio de “classe m termo consagrado hoje no interior da sociologia brasileira. Ora, como as famosas “classes médias” para alguns,! e “classe média” para outros nunca foram bastante estudadas, podem ser graves as conseqiitncias desta imputagao. Baseados, principalmente, em dois estudos clissicos fei- tos para os capitalismos americano e inglés da metade deste século,? temos nos contentado aqui em repetir as caracteris- ticas politicas ¢ ideol6gicas que jé tinham sido atribuidas 20 conjunto deste extenso grupo. 1hara Hellodora Franga — Socidloga, Profesor a Universidade Federal Fumi sense, Dovtorana da Universidade de Paci VIL TE" Nora, que recouhecem as dificsldades em he tb homogenidad, 2 MILLS, W. A Nova Clase Médio, Rio de Jncico, Zhar Editors, 1969. LOCWOOD.D.ETTrahajadordetaClaseMedia—umestuioscbrelaconsclenla de cle. Mari, Ail, 1962, 42 Em nome disto, pode-se dizer hoje que a CUT ¢ 0 PT so drgios de classe média, que as classes médias exer- ‘cem a vanguarda do sindicalismo brasileiro, que a impor- tancia estratégica do proletariado diminui e, até mesmo, ‘que marchamos, sem diivida, para uma sociedade de classe média, E assim que entendemos a necessidade de “remexer” nesta questo antiga, que diz respeito ao conhecimento ¢ reconhecimento da sociedade brasileira em um dos seus as- pectos fundamentais: sua estrutura de classes. final, quem somos nés hoje? Que diferengas e identi dades nos separam e nos unem em grupos antagdnicos? E aqueles que ficam “no meio”, constituem-se como um gru- oa parte? Tém seus contomos delimitados? Que conseqlién- cias politicas envolvem essas definigdes? Estas sfo algumas das questdes que estio por detrds deste artigo, ainda que nossa intengao seja mais a de problematizar do que a de buscar respostas nem sempre féceis. No desenvolver deste texto discutiremos a pertinéncia da atribuigo do conceito de “classe média” a certas catego- rias de trabalhadores assalatiados, tomando como referén- cia os funcionérios piiblicos brasileiros. Voltemos, entéo, & formulagao inicial: todo proble- ma comeca a surgit quando nos propomos a estudar um ‘grupo social que nao se enquadra nos critérios de defini: do de burgués, proprietério privado, capitalista, enfim a classe dominante, e que também ndo exerce um trabalho assalariado manual, ou seja, o conhecido operério ou proletitio. Dizemos que o problema comega af porque estamos con- siderando que a grande maioria dos cientistas sociais reco- nhece, na relagao capital-trabalho, os pardmetros definidores das grandes classes sociais em oposi¢ao antagdnica numa sociedade de classes, A aceitagdo destes pardmetros, no en- tanto, nem sempre é explicita, sendo comum a utilizago de expressdes e conceitos novos para a formulacdo deste mes- mo conteddo. Pouco esforgo tem sido feito, por exemplo, para definir conceitos e nogdes tais como exclufdos, domi- nados, desprivilegiados ou subalternos.? Por outro lado, a sociologia de inspiragio americana, que estratifica as sociedades em um sem-niimero de classes, no fez carreira entre nds. So raros os estudos que, fazendo uso da estatistica, classificam as populagdes segundo critérios de propriedade de bens, em classes de A a X. No entanto, a questio nfo esté ainda centrada correta- mente: 0 fato € mais delicado porque, mesmo os cientistas, sociais que adotam uma postura metodolégica critica, ten- dem a reunir também todas estas categorias profissionais na rubrica de “classe média”. Neste caso, tomam como critério certas caracterfsticas atribuidas & subjetividade destas cate- gorias: seja tracos de sua ideologia, seja limites de sua cons- ciéncia. © que pretendemos é demonstrar que nenhum dos elementos tomados para caracterizar a “classe média” € capaz. de distinguir ou dar uma identidade prépria ao con- junto assim considerado. Por isto, nos estudos de casos con- cretos, em que se deparam com a diversidade do real, 0 cientistas sociais sfo obrigados a fazer uso de novos con- ceitos para exprimir a pluralidade interna deste grupo: pe- quena burguesia tradicional, nova pequena burguesia, alta classe média, baixa classe média, “nova” e “velha” classe média, 2 Atumente, oa Fangs, subsite 0 pomposo “lumpemprolcariads” «, me mesmo, oimpreciso “pobre” por“SDF" (Sem Domiti Fixe), por vezes também hamados de "ercldoe” 44 SAES, D. Clase Média Sutema Pottico no Brat. Sto Paulo, T. A. Quevoz ator, 1985, p. 1-26. |. Nto impor, neste caso, que 0 propitro sje © Extado-pat trabalho nto se materialize mum objeto-mereadora 6 SAES,D.Op. cl. p4 Refer-saopequenopropsicuso que abut jmtaente om sia fafa eeu com um pequeno admero de assis, nem que 0 ‘0 Paulo em Perspectiva, 8(1):42-51,Janeiro/margo 1994 Classe mé “saco de gatos” Pequena burguesia e assalariados “improdutivos” Décio Saes é um dos tedricos que tém contribufdo para relativizar o estatuto conceitual de “classe média” ¢ cujos trabalhos tém servido de referéncia a estudos empfricos pos- teriores. Este autor, ainda que localize suas andlises no inte- rior do que tem sido considerado “um problema de classe média”, chama a atengio para a “incoeréncia légica de um tal conceito: a jungio de ‘classe’ ", que é definida ao nivel das relagdes sociais de produgao, e de “média”, que sugere a posig&io num sistema de estratificagio social. Defendendo a tese do fracionamento ideol6gico e poli- tico desta “classe” ao longo da nossa histéria, reconhece que “ ‘classe média’ recobre um leque de grupos profissio- nais € sociais bastante diversos cuja unidade ideolégica e politica seria no minimo problemitica.”* E preciso ir mais adiante, ‘Trata-se, em primeiro lugar, de distinguir dois grupos que so, em geral, considerados como parte da “classe mé- dia”: a pequena burguesia (rural ¢ urbana) ¢ os trabalhado- res assalariados do setor chamado “improdutivo” ‘Nao passa de uma grande confusio considerar que tra- balhadores nZo-manuais do setor de servigos — como ban- cArios, comercidrios, trabalhadores de escritério, os pequenos funcionérios pablicos, etc. — fazem parte de uma mesma classe social, juntamente com diferentes setores da peque- na burguesia rural ou urbana, como pequenos produtores agri- colas, artesanais, pequenos comerciantes e profissionais liberais. Os primeiros séo trabalhadores assalariados, sub- metidos a relagdes de compra ¢ venda de seus servicos no mercado. Do seu tempo de trabalho, uma parte Ihes ser re- tirada como sobretrabalho, valor que deve retornar ao pro- prietario dos meios de produg&o que utilizou.’ Os segundos so trabalhadores auténomos, no submetidos ao assalaria- mento, proprietarios de seus capitais e, portanto, dos meios que precisam para produzit No caso da realidade brasileira, éposstvel ainda —como Saes o assinala — que nfo tenhamos entre nés a constitui- do de uma pequena burguesia consistente enquanto classe. De fato, no Brasil, nunca foram expressivos nem econdmica nem politicamente, seja o campesinato, seja a pequena pro- ducdo industrial e comercial, nos moldes como ocorreu na Europa.* Nossa pequena burguesia constituiu-se, principal- mente, dos chamados profissionais liberais, prestadores de servigos independentes. Classe e categoria Uma primeira afirmagao se faz possfvel: a pequena ‘burguesia ¢ definida enquanto classe social porque se deter- mina, essencialmente, pelas relagSes sociais de produgo que engendra. Por outro lado, os trabalhadores assalariados néo- manuais, nas suas diversas profissdes ¢ atividades, 86 po- dem ser definidos enquanto categorias sociais, uma vez que no so as relagdes sociais de produgao que thes constituem enquanto sujeitos soci Michael Lowy, a propésito dos intelectuais, afirma: “Os intelectuais no so uma classe social mas uma catego- ria social; eles ndo se definem por seu lugar no processo de produgio, mas por sua relagdo com instincias extra-econd- ‘micas da estrutura social; assim como os burocratas e 05 mi- litares definem-se por sua relagdo com a politica, da mesma forma os intelectuais definem-se por sua relago com a su- perestrutura ideol6gica.” Em decorréncia destas afirmagGes, alguns pontos pre- cisam ser aprofundados, Primeiro, estudantes, clero, inte- lectuais, funciondrios piiblicos, por exemplo, nfo podem ser reunidos enquanto membros de uma mesma classe social Nao € 0 corte de classe que permite delimité-los; nio € af que se definem os tragos capazes de Ihes fornecer sua espe- cificidade. Esta especificidade s6 pode ser buscada no conjunto das relagdes engendradas por sua insergio na es- trutura social, ainda que fora da produgao direta de merca- dorias. Segundo, estas categorias sociais podem ser origindrias de todas as classes e camadas sociais, portanto, existem es- tudantes ¢ funcionétios piblicos, por exemplo, oriundos das diferentes classes sociais. Por iltimo, vale lembrar que, em decorréncia da possibilidade de mobilidade social, mesmo ‘em sociedades altamente estratificadas como a nossa, hé uma relativa independéncia entre a origem de classe e 0 fato de diferentes membros de uma categoria pertencerem a esta, Um militar ou um médico nfo pertencem necessariamente “classe média”, nem pelo fato de terem sido oriundos de algum setor da pequena burguesia, nem de realizarem um trabalho chamado “improdutivo”: tudo é diferente se 0 mé- dico é assalariado de um hospital municipal ou proprietario de uma clinica, se 0 militar é soldado ou general 7. LOWY, M. Pour ane Sociologie des Intelectuels Révoluionncies, Pats, PUF, 1976, p18 & MILLS, W. Op cit 44 Ser médico ou funcionétio piblico ¢ nfo trabalhar no setor produtivo da economia ndo confere a estas categorias a homogeneidade necesséria para sua inserg%o como classe nem, a0 mesmo tempo, 0 atributo da mediania. E grande a dificuldade em encontrar tragos de unidade para este grupo to heterogéneo que, na verdade, no cons- titui uma classe tinica. Diferentes autores buscaram, no en- tanto, distinguir esses elementos unificadores capazes de permitir a caracterizaglo da “classe”. Eles serio analisados a segui Prineipais contri atribuigdo de classe isGes tedricas segundo critérios de Renda, status, poder Préximo & metade deste século, os pafses de capitalis- ‘mo avangado tiverem fortalecidos no s6 uma importante camada pequeno-burguesa, como também certos setores as- salariados. Nessas circunstfincias, alguns autores, como Mills € Lockwood, passaram a ter seus nomes praticamente iden- tificados ao estudo dos “empregados”, como foram chama- dos os assalariados trabalhando fora da producZo. Grande parte de suas afirmagées permanece ainda aceita parao con- junto da chamada “classe média”. Por esse motivo, retoma- ‘mos alguns de seus resultados em forma de sfntese. SociGlogo estudioso das camadas médias americanas, ‘Wright Mills apontou, jé no infcio da década de 50, a apro- ximagdo crescente entre os trabalhadores de colarinho bran- ‘co—o empregado modemo —e 0s operstios trabalhadores do setor produtivos Afirmava, entdo, que do ponto de vista da propriedade, asituagio de classe do empregado € igual Ado operdrio, uma ‘vez que ambos nio so proprietérios dos seus meios de pro- ducio. E o mercado de trabalho, ¢ nao 0 controle da propri- edadle, que pode thes dar acesso a0 dinheiro, prestfgio ou algum poder. Por outro lado, os trabalhos que os dois grupos execu- tam sto de naturezas diferentes: aos operarios caberia a pro- dugio direta dos objetos e aos “colarinhos brancos” toda a ‘maquinaria social que coordena e organiza o trabalho dos primeiros. Ainda assim, para Mills, esses dois critérios — a ausén- cia da propriedade dos meios de produgao e a natureza dife- rente do trabalho — nfo sfo suficientes como princfpios distintivos da real situagZo de classe de um grupo ou catego-

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