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22 Rio Branco - Acre, domingo, 13, e segunda-feira, 14 de janeiro de 2007 Jornal Página 20

Papo de Índio
Txai Terri Valle de Aquino & Marcelo Piedrafita Iglesias

Tempo da Memória: uma homenagem


ao velho pajé Carlito Kaxinawá Txai Terri

P
Txai Terri Valle de Aquino porque não convive com um corpo
poluído. E que o trabalho de cura
róximo a completar um de um pajé indígena é justamente
ano do seu falecimen- trazer o espírito de volta ao corpo
to, não posso deixar de para que a cura possa ser realizada.
homenagear o velho Assim era o Carlito, um velho pajé
Carlito Cataiano Neto, cheio de prosa!
também chamado Inka Muru em
hãtxa kuin, a língua verdadeira de Aldeia Morada Nova - Co-
seu povo Huni Kuin. Carlito foi nheci o velho Carlito em Morada
um dos primeiros Kaxinawá que Nova, dos então chamados “cabo-
conheci no Acre, quando, em 1975, clos Katukina”, hoje denomina-
iniciava os primeiros levantamen- dos “povo Shanenawa”. À época,
tos demográficos e socioeconômi- a aldeia era chefiada pelo velho
cos das populações indígenas dos Inácio Brandão, o patriarca da-
rios Envira, Tarauacá e Jordão, nos queles “caboclos”. Morada nova
municípios de Feijó e Tarauacá. era então constituída basicamente
Na mesma época em que ele por sua família extensa, formada
fez a sua passagem, em abril de por seus numerosos filhos e filhas
2007, aqui em Rio Branco, estava casados, com seus genros, noras,
em Manaus me curando de uma sobrinhos e netos, além de agrega-
doença chamada hidrocele, água dos, como Carlito Kaxinawá. Ain-
no testículo, que me fazia andar li- da hoje a aldeia está situada nas
teralmente de “saco cheio” por lon- proximidades da cidade de Feijó.
gos sete anos. Enquanto ele viajava Em Morada Nova passei a residir
para o astral, eu recebia o sonho da na casa do Cristóvão Brandão, bem
cura, em que meu espírito andava ao lado da casa do seu pai, o velho
viajando pelo espaço, olhando a Inácio, com quem fiz uma grande Pajé Carlito Cataiano Neto, Inka Muru, preparando a bebida sagrada da ayahuasca (“cinema de caboclo”), em 1994
Terra de longe. De repente, sentia amizade. Gostei muito daquele ve-
que o aparelho, uma nave antiga lho, que me dizia que seu povo mo- depois, fugiram novamente para como caçador e pescador para o bia “chupar a doença” e conhecia
e diferente, nada lembrando um rava antigamente nas cabeceiras do as cabeceiras do rio Envira, onde patrão daquele seringal, mas em muito bem quase todas as coloca-
avião, começava a descer lenta- igarapé Paturi, no alto rio Gregório, passaram a trabalhado para o fa- decorrência da crise da borracha ções e seringais do rio Tarauacá e
mente em direção ao nosso Planeta. e que lá no seringal Caxinauá eles moso matador de “caboclo bra- decidiram baixar para as proximi- de seus afluentes, onde viviam as
Abria uma velha e surrada cortina eram conhecidos como Iskunawa bo”, Pedro Biló, tido como “chefe dades da cidade de Feijó, indo se famílias Kaxinawá.
e me postava diante de uma janela. (povo do japó). Disse-me ainda que das correrias nas cabeceiras do fixar em Morada Nova, em terras Por conta disso, procurei logo
Comecei a ver paisagens terrestres por causa de acusações de feitiçaria, Envira, a mando da família Prado, do antigo seringal Liege, que havia fazer amizade com o Carlito, per-
mais próximas. E, calmamente, a haviam saído do Gregório, porque o proprietária e patrão do seringal sido comprado pelo governador guntando-lhe por que vivia entre
aparelho aterrizava. Saia da nave velho cacique Yawanawá, Antônio Califórnia no alto rio Envira”. Geraldo Mesquita, com a finalida- os “Katukina” de Morada Nova?
e havia uma pessoa me esperan- Luiz, queria matá-lo e a outros mem- Depois de trabalhar vários anos de de fixar os seringueiros que es- Bom de papo, alegre e expressi-
do. Caminhava em sua direção e, bros de sua família extensa. com Pedro Biló, decidiram descer tavam migrando para a cidade de vo, foi logo me dizendo que esta-
quando chegava bem pertinho, via Por conta disso, havia fugido o Envira “porque ninguém dava Feijó por conta justamente da crise va passando apenas “um verão por
que era eu mesmo. Dava-me então junto com todos os seus parentes mais valor a borracha nos altos da borracha. ali”, visitando uma de suas entea-
um forte abraço, como se meu es- para um seringal no rio Tarauacá, rios”. Disse-me ainda que ele e seu Quem me apresentou o Carli- das, filha apenas de sua esposa Na-
pírito, que estava ausente por lon- onde foram atacados “pelos ca- povo trabalharam alguns anos no to, se não me engano, foi o Cristó- zaré, que era casada com um sobri-
go tempo, de repente se fundia no pangas do velho Antônio Luiz”. seringal Canadá, colocando roça- vão Brandão, filho do velho Inácio nho do velho Inácio Brandão. Mas
meu próprio corpo. Ao acordar, E que ele só havia escapado por dos e abrindo os campos de gado e um de seus principais ajudantes. que logo iria retornar à Tarauacá,
tive a certeza da cura, porque Car- pouco, porque o tiro acertou no nas proximidades do barracão, Cristóvão foi logo me dizendo que de onde recentemente tinha vindo.
lito havia me ensinado que, quando cano de seu rifle, desviando a bala onde também viviam. Alguns de Carlito gostava muito de tomar “Lá é o lugar onde vive a maioria
se está doente, o espírito se afasta, que deveria tê-lo matado. Logo seus parentes também trabalhavam cipó, que era um pajé formado, sa- dos Kaxinawá do Acre”.

Seringais onde viveu


Disse-me, naquela ocasião, colocação Vai Quem Quer, no se- de preparar ali mesmo na Morada subirmos o Bariya ou “rio de mui- pedir sal, porque estavam comen-
que tinha nascido no seringal Oci- ringal Universo, casando-se pela Nova. to sol”, como o Envira é chamado do insosso “feito onça”, como
dente, no alto rio Muru, no dia 24 primeira vez com uma enteada De noite, fui até a casa de seu em hãtxa kuin, Carlito sugeriu que disse uma delas. Dormindo nessa
de fevereiro de 1933. E que ain- do famoso pajé Julião Rodrigues genro, onde armei a minha rede e o baixássemos ainda mais para aldeia, recebi até um sonho “be-
da muito novo, com apenas cinco da Silva, com quem aprendeu a tomei pela primeira vez a “bebida iniciar os trabalhos pelas “colo- bendo coca-cola geladinha”, sím-
anos de idade, acompanhou sua ser um “pajé curador e ayahuas- sagrada da ayahuasca”. Carlito cações Paredão e Paroá”, onde bolo urbano por excelência. Acor-
família que havia varado pela queiro”. cantou a noite inteira e, de vez em viviam várias famílias Kaxinawá. dei com a sensação de que para
mata das cabeceiras do Muru para Por se dedicar pouco ao corte quando, vinha me perguntar como Disse-me ainda que nas proximi- ver tanta pobreza assim, não preci-
as cabeceiras do rio Tarauacá, vin- da seringa, foi expulso daquela me sentia, se estava de “porre do dades de Paroá viviam duas famí- saria ter ido tão longe, bastaria ter
do morar por três anos na coloca- colocação pelo novo patrão do cipó” e vendo “filmes do cinema lias norte-americanas da Missão andado pela periferia das cidades
ção Cachoeira Grande, no seringal Universo, o famoso Pedro Correia. de caboclo”. E ficou muito decep- Novas Tribos do Brasil. E que satélites de Brasília. Dias depois
Independência. Dali mudou-se de- “Porque a gente fazia pouca borra- cionado comigo, quando lhe disse eles, certamente, “por serem mui- do nosso retorno das cabeceiras do
pois para a colocação Boca do Pa- cha, o novo patrão do Universo foi que aquela bebida só estava me to desconfiados com estranhos”, Enviara foram tantos os pedidos,
tuá, do seringal Boca de Pedra, no logo dizendo que não queria cabo- causando uma profunda náusea. não iriam me receber bem em suas que resolvemos dar todo o rancho
alto rio Tarauacá, onde aprendeu a clo preguiçoso no seu seringal”. Embora tenha sido uma expe- casas. Dito e feito! que tínhamos para aquelas pobres
cortar seringa. Dali havia baixado Foi dali do Universo que veio mo- riência decepcionante, pois não famílias Kaxinawá. Tomei, então,
o rio com toda sua família, passan- rar, no início de 1975, na aldeia conseguia ficar “de porre”, tam- Subindo o Envira - Logo no uma decisão que iria influenciar
do a residir no seringal Massapê Morava Nova, onde o encontrei pouco ver nenhum filme do seu primeiro dia de viagem, dormi- todo o restante do nosso trabalho
e, logo depois, tornou-se caçador em fins daquele mesmo ano. “cinema de caboclo”, foi muito in- mos no seringal Curralinho, onde nos rios Tarauacá e Jordão, andar
de uma turma de madeireiro, que Fiquei muito impressionado teressante ouvir suas intermináveis viviam várias famílias Kaxinawá, com pouca ou nenhuma comida,
extraia aguano (mogno) no igara- com o jeito desinibido e falante “cantorias de cipó”. Lembro-me, que ainda hoje lutam pelo reco- só para se livrar de tantos pedidos:
pé Mato Grosso, de 1953 a 1955. de Carlito e mais ainda com o seu vagamente, que logo após aquela nhecimento de uma terra indígena “pelo amor de Deus, me dá sal, me
E que quando acabou a madeira, conhecimento sobre os Kaxinawá cerimônia, convidei-o para viajar naquele local. dá isso, me dá aquilo”.
mudou-se para o seringal Xapu- que viviam nos rios Muru, Humai- comigo pelo Envira, Tarauacá e No outro dia, continuamos Nos poucos dias que passamos
ri, onde cortou seringa por cinco tá, Tarauacá, Jordão e Breu. Logo Jordão, já que ele conhecia muito a subir o rio até o seringal Nova na Nova Olinda, Carlito preparou
anos na colocação Trovão. me convidou para tomar cipó, um bem esses rios onde brevemente Olinda, onde moravam outras fa- novamente a sua bebida sagrada da
Afirmou ainda que, em 1962, chá feito da mistura de um cipó iríamos navegar. mílias Kaxinawá lideradas pelo ayahuasca, porque fora convidado
havia baixado novamente o rio chamado huni e de uma folha de- velho Nilo. Viviam numa miséria por um chefe de família Kaxinawá
Tarauacá, indo cortar seringa na nominada kawa, que ele acabara Paredão e Paroá - Em vez de lascada. As mulheres vinham nos a curar a doença de uma de suas
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Papo de Índio
Marcelo Piedrafita
filhas menor. Assisti a cerimônia resta. O mundo dos homens ainda nara Carlito.
e só depois de muita insistência me assombrava.
dele, tomei novamente o cipó. No- Na Vila Jordão - Como o rio
vas náuseas. Vomitei mais do que Caminhando pela BR-364 estava muito seco, estávamos em
urubu novo. Foi então que decidi - De volta à cidade de Feijó, fo- pleno verão amazônico, decidimos
que nunca mais tomaria aquela mos bem recebidos pelo prefeito alugar uma pequena canoa sem
bebida, que me fazia lembrar o Palheta, amigo do governador toldo, com capacidade para apenas
amargo mais profundo. Geraldo Mesquita. Aliás, essa 200 quilos. Mesmo assim a viagem
Três dias depois, continuamos minha viagem ao Acre decorreu foi demorada. Fomos direto para
subindo o Envira. E nas proximida- justamente de uma carta do então Vila Jordão, navegando de 6 da
des da sede do seringal Califórnia governador Mesquita à presidên- manhã às 6 da tarde, parando ape-
havia velhas barracas de paxiúba e cia do órgão indigenista federal, nas para dormir e nos locais onde
palhas ocupadas por “caboclos” Ku- denunciando a precária situação Carlito indicava que havia famílias
lina, também vivendo numa preca- em que se encontravam as popu- Kaxinawá, como na sede do serin-
riedade de dar dó. Fiquei muito im- lações indígenas no estado, face gal Alagoas, onde dormimos, e na
pressionado de como seres humanos às transformações econômicas e sede do seringal Massapê, onde
viviam assim tão despojados na vida. fundiárias decorrentes da implan- passamos o resto do dia fazendo
Não tinham nada, mas viviam tocan- tação da frente agropecuária dos os levantamentos da família ex-
do flautas, cantando e numa alegria “paulistas”. Seus integrantes ha- tensa do Reginaldo Paulo, pai do
contagiante. “Como podem ser feli- viam comprado quase metade dos professor Joaquim Maná, e de seus
zes assim tão despojados de tudo?” seringais acreanos, inclusive com irmãos Severo, Adalto e outros que
Pensei com meus botões. índios e seringueiros dentro que não recordo os nomes agora.
Continuamos subindo o rio até a não tinham direito a nada. E o pró- Cinco dias depois, chegamos à
sede da Fazenda Califórnia, do grupo prio governador tinha comprado o Vila Jordão, na margem direita do
Atalla-Coopersucar. Lá encontrei o antigo Seringal Liege para dividi- rio Tarauacá, bem em frente à foz
velho Enzo Pizano, servidor do antigo lo em lotes familiares de 50, 80, do rio Jordão, que, na época, tinha
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) 100 hectares. Só que os Katukina apenas cinco casas. A maior parte
que era o administrador da fazenda. e Kaxinawá, que ali viviam, não de seus moradores vivia na mar-
Ele era o “grande chefe” de mais de aceitavam lotes individuais, mas gem oposta, onde estava os dois
400 peões, que derrubavam a grande terras coletivas. barracões dos Farias e dos Melo. Carlito Cataiano com o menino João Manuel Tui Tavares Piedrafita
floresta, abrindo uma pista de pouso Por sugestão de Carlito, deci- Nas proximidades do barracão dos
para pequenos aviões e campos de dimos viajar de Feijó a Tarauacá Farias morava o seu Carlos Farias, e aqui e acolá por uma varação. patrão Ribamar Moura que sempre
pastagens para o gado. Entre eles des- por terra, na nova estrada de terra considerado o “patrão chefe” e ar- Dormimos na casa de um velho lhe chamava pra descer os rios Jor-
tacavam-se os “caboclos” Katukina, batida da BR-364, levando apenas rendatário de quase todos os serin- seringueiro, seu Girardo. Ele nos dão e Tarauacá em grandes balsas de
liderados pelo Bruno Brandão, filho o necessário em nossas mochilas, gais do Jordão, e os seus irmãos recebeu muito bem em sua barraca, borracha; do significado da renda das
mais velho do velho Inácio, e ain- porque decidimos imitar os Kuli- Turiano (que viria a ser prefeito oferecendo um farto jantar de carne estradas de seringa, dos barracões dos
da índios Kulina e Ashaninka. Estes na que viviam com pouco ou qua- do novo Município de Jordão no fresca de caça. No outro dia, subimos patrões cariús e do aviamento.
últimos viviam nas proximidades da se nada. Uma viagem de pobre, início deste novo século, suicidan- em sua velha ubá, que alugamos por Enfim, depois de navegar qua-
foz do igarapé Xinane, bem acima da despojado de tudo que fosse su- do-se no último dia de seu manda- um mês, porque não tínhamos pressa se três meses por três rios acreanos,
sede daquela fazenda. pérfluo. E assim fomos. Era verão to) e Didi Farias. de voltar, como alertara Carlito. havia finalmente descoberto o lugar
Fiquei impressionado com o e a estrada estava boa para cami- Do lado do barracão dos Melo, Carlito ia varejando lentamente. onde poderia realizar o trabalho de
grande desmatamento e uma moe- nhar. No final do dia, chegamos vivia o velho Hilarino Melo e o Quando cansava de ficar sentado, campo para elaborar a minha dis-
da própria com que o velho Enzo ao acampamento do Sétimo Bata- seu filho, ainda solteiro, Hilário preferia caminhar pelas praias e pelo sertação de mestrado no Programa
pagava aqueles peões “cariús e lhão de Engenharia e Construção Melo, atual prefeito de Jordão. As leito seco do rio. Levamos três dias de Pós-graduação em Antropologia
caboclos”. Diante daquele grande do Exército (7º BEC), que estava mesmas famílias que dominavam até chegarmos ao pequeno grande Social, da UnB.
empreendimento dos “paulistas”, reabrindo aquele trecho da BR- o Jordão, em 1975, são as mesmas Fortaleza, onde finalmente conheci
como eram conhecidos na região 364 entre Tarauacá e Feijó. Al- que se revesam no poder do novo Sueiro e muitas famílias Kaxinawá. Agradecimento e despedida-
os novos donos dos seringais acre- moçamos naquele acampamento, município, criado a partir de 1992. Foi amor à primeira vista! Por questão de espaço nesta coluna
anos, fiquei com a sensação de es- onde, após mostrar o documen- Não mudou nada, desde então. Chegar finalmente naquele “se- vou ficando por aqui, mas antes que-
tar assistindo uma transformação to que o presidente da Funai me Seu Hilarino nos recebeu muito ringal de caboclo”, como era co- ro agradecer ao velho Carlito que me
histórica. No futuro, os povos in- apresentava às autoridades locais, bem em sua casa, nos hospedando nhecido o Fortaleza, foi como se levou até aquela Fortaleza dos Kaxi
dígenas acreanos deixariam de ser fomos bem recebidos pelo oficial na barraca de um de seus emprega- estivesse chegado em um lugar há e também por ter me trazido de volta
seringueiros para se transforma- de plantão, que nos arranjou uma dos e nos convidou para almoçar em muito tempo sonhado. Adorei tudo, a a Tarauacá, varejando todo o rio Jor-
riam em peões das grandes fazen- carona numa caçamba do batalhão sua casa. Já o seu Carlos Farias nos ampla barraca de Sueiro, sua família dão numa velha ubá, enquanto ardia
das agropecuárias, que estavam se para o dia seguinte, pois ela volta- recebeu com muita desconfiança, até extensa e todos os seus moradores. em febre alta e a boca amarga pela
instalando àquela época no Acre. ria descarregada para Tarauacá. porque tínhamos a intenção de subir Passei uma semana extremamen- malária que havia contraído durante
Também fiquei chocado com Chegando a Tarauacá, conhe- o rio que ele controlava através de te agradável naquela Fortaleza, con- uma epidemia que grassava naquele
essa constatação, ainda mais cemos o seu Jaime, que tinha uma uma rede de “gerentes aviados”. versando com Sueiro. Aonde ele ia, rio em fins de 1975.
porque tinha que conversar com grande baleeira no porto de frente a Quase desisti de subir o Jordão, eu ia atrás. Se ia limpar seus roçados Um ano depois, novamente com
todos os índios que encontrava, sua casa, onde ele vendia gasolina e porque o dono do barco que viajáva- de terra firme ou de praia, também ia, Carlito, retornei ao rio Jordão e com
perguntando-lhes seus nomes e óleo lubrificante. Compramos logo mos decidiu regressar logo à Taraua- só pra ficar conversando com ele so- ele fiz outras inúmeras viagens pelos
dos integrantes de suas famílias, os combustíveis, porque já estavam cá. E os patrões locais diziam não bre o modo de vida dos Kaxinawá. rios Jordão, Tarauacá, Breu, Humai-
idades, graus de escolaridade, do- em falta na cidade e pretendíamos dispor de ubás indígenas para subir- Foi ele quem me ensinou que os tá, Envira, Amônia, Riozinho Cru-
cumentos de cidadania, situação subir logo o rio Tarauacá no rumo mos aquele rio, que mais parecia um Kaxi se dividiam em duas metades: zeiro do Vale, Moa e Juruá, encami-
econômica e de saúde, vacinação, do Jordão. Fizemos amizade com riozinho cheio de pausadas e de leito inubake e duabake; que essas metades nhados projetos para as cooperativas
como conseguia se tratar quando seu Jaime, que nos ajudou a arran- muito seco. No verão, só dava para eram exogâmicas, que um homem dua indígenas e integrandos Grupos Téc-
ficasse doente, como conseguia jar canoa e motorista e nos ofereceu navegá-lo varejando nessas peque- só podia se casar com mulheres inani, nicos da Funai que identificaram e
remédio, a situação da terra, as o seu barco para que pudéssemos nas ubás. “Elas passam até no seco e da metade oposta, e um homem inu delimitaram terras indígenas naque-
relações com os patrões seringa- descansar e dormir. Tínhamos que em pausadas com ajuda de cascas de só podia casar-se com mulheres banu, les rios.
listas acreanos e fazendeiros pau- subir sem demora o rio. Dessa fei- imbaúba”, como dizia o Carlito.. da outra metade; que eles tinham seus Nossa última viagem foi em
listas. E assim por diante. Foi um ta, compramos rancho apenas para nomes indígenas transmitidos por ge- 1994, quando identificamos, junto
choque para minha expectativa de chegar até a Vila Jordão. A Fortaleza do Sueiro- Diante rações alternadas e por linha paterna; com o antropólogo Marcelo Piedra-
querer conhecer os índios da mi- No dia seguinte, Carlito me aler- das dificuldades, Carlito tinha uma que eles ainda praticavam alguns de fita, quatro terras indígenas nos rios
nha terra vivendo em aldeias e em tou que precisaríamos conhecer a grande firmeza e sempre me ani- seus rituais tradicionais, como as fes- Tarauacá e Jordão. Ainda trabalha-
harmonia com a floresta, aprender Colônia 27, na periferia de Taraua- mava. “Olha, Txai, vamos subir o tas do mariri, ou Katxanawa, de ba- mos juntos, em 1996, quando reali-
suas línguas, conhecer seus mitos cá, onde viviam várias famílias Ka- Jordão a pé mesmo. Se chegamos tismo, ou nixpupima, do gavião real, zamos pesquisas para a Enciclopédia
e festas tradicionais, seus sistemas xinawá que haviam migrado para até aqui, não podemos deixar de co- ou tirin, da abelha, ou buna. Com seu da Floresta, da qual ele foi um exce-
de parentesco e político. Percebi, aquela cidade com a crise profunda nhecer os caboclos do Sueiro. Ele é jeito calmo de um bom professor, lente colaborador.
desde logo, que não dava para ser na economia da borracha nos altos dono de um seringalzinho chama- conversador, mas bem diferente de Onde você estiver velho Car-
um antropólogo clássico, aquele rios daquela região. Fomos lá e co- do Fortaleza. E esse rio Jordão é Carlito, que era um pajé imodesto e lito, que Deus lhe receba em sua
que vai longe para estudar o outro, nhecemos o velho Carlos Feitosa, a força do povo Kaxinawá desde farofeiro, Sueiro me cativava com seu morada. Muito obrigado por tudo,
apreender o exótico e o diferente, tido como chefe daquelas famílias o tempo do Felizardo Cerqueira, jeitão humilde e modesto. Falava-me meu amigo. Sem você não teria
conhecer sua cultura e rituais. E Kaxinawá. Ele gentilmente nos o maior amansador de índio dos ainda da vida dos seus parentes nos conhecido tão bem o Acre pintado
que se meu trabalho tivesse algum apresentou a todos os moradores altos rios de nossa fronteira, que seringais dos cariús e de como ele de urucu e jenipapo. Valeu Txai!
fôlego e utilidade social tinha que indígenas. Fizemos o censo demo- trouxe os Kaxinawá do Envira para herdou o pequeno Fortaleza de sua A melhor homenagem que
me engajar como um mensageiro gráfico e o levantamento socioeco- o seringal Revisão nas cabeceiras madrinha Marcolina do Forno; ora se posso lhe fazer agora, Inka Muru,
desse novo tempo dos direitos que nômico daquelas famílias, retornan- do rio Jordão”. dizia filho de Felizardo Cerqueira, ora é navegar na minha memória e re-
se avizinhava. E o pajé Carlito era do no final da tarde à cidade, porque Lá fomos nós caminhando no- de Chico Curimim; que os três Chico lembrar a nossa viagem inaugural
o meu guia. Só que demorei muito no outro dia já íamos subir o Taraya, vamente, não mais por uma estrada (Curumim, Mirim e Menezes) deram pelos rios e seringais onde vivia e
para entrar no seu cinema. E me “rio de muitos balseiros ou pausa- de terra batida, mas pelo leito de origem às famílias Kaxinawá que vi- ainda vive o seu povo Huni Kuin/
encontrar com os espíritos da flo- das”, em hãtxa kuin, como me ensi- um riozinho seco e por suas praias, viam ali no Jordão; falava ainda do Kaxinawá.

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