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COMO CONHECEMOS O PASSADO* David Lowenthal” Tradugdo: Licia Haddad’ Revisio técnica: Marina Maluf’* A poesia da histéria repousa no fato quase milagroso de que, por esta mesma terra, por este mesmo chéio familiar, jd caminharam outros homens e mulheres, tio reais quanto nds, com pensamentos préprios, levados pelas proprias paixdes, todos mortos agora, geragdes € geragdes completamente desaparecidas, da mesma forma que nds muito em breve desupareceremos como fantasmas ao raiar do dia. G. M. Trevelyan’, Autobtography of an historian Quando fatamos do passado, mentimos a cada respiragao. William Maxwell, So Long, See You Tomorrow" * “How we know the past”, in The past is a foreign country, T* reimpe. Cambridge, Cambrigde University Press, 1995. N.Ed. A tradug3o mantém as notas na forma original de publicagZo. As referéncias bibliograficas, a0 final da tradugdo, também conservam a forma original de publicagdo. +* Professor convidado de arquitetura paisagistiea em Harvard, de ciéncia politica no M.L-T., de psicologia ambiental na University of New York, de geografia nas universidades de California (Berkeley © Davis), Washington, Minnesota ¢ Ciark University. *** Professora de Tradugio Literdria da Associagao Alun **** Professora do Departamento de Histéria da PUC-SP. 1 1949, p. 13. 2 1980, p. 29. Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 63 A consciéncia do passado é, por intimeras razées, essencial ao nosso bem-estar. Este texto examina os caminhos pelos quais tomamos consciéncia do passado como uma pré-condigao para preencher tal necessidade, Como tomamos conhecimento do passado? Como adquirimos esse background im- prescindivel? A resposta é simples: lembramo-nos das coisas, Iemos ou ouvimos histérias e cr6nicas, e vivemos entre reliquias de épocas anteriores. O passado nos cerca e nos preenche; cada cenério, cada declaragao, cada ago conserva um contetido residual de tempos pretéritos. Toda consciéncia atual se funda em percepgdes € atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma drvore, um café da manha, uma tarefa, porque jd os vimos ou jé os experimentamos. E 0 acontecido também € parte integral de nossa propria existéncia: “Somos a qualquer momento a soma de todos os nossos momentos, © produto de todas as nossas experiéncias”, como coloca A. A. Mendilow.* Séculos de tradigéio subjazem a cada momento de percepgio € criagdo, permeando nao somente artefatos € cultura mas as proprias células de nossos corpos. Nao temos consciéneia da maioria desses residuos, atribuindo-os to somente ac momento presente; esforgo consciente é necessdrio para reconhecer que cles advém do passado. “Eu preciso ser moderno: vivo agora”, medita um personagem de Robertson Davies. “Mas assim como todos... vivo num emaranhado de épocas, ¢ algumas de minhas idéias pertencem ao agora, algumas a um passado remoto, € outras a tempos: que parecem mais relevantes a meus pais do que a mim.” O mélange de épocas ge ralmente passa despercebido, visto que é tido como a propria natureza do presente. As facetas do passado, que perduram em nossos gestos e palavras bem como em regras € artefatos, surgem para nds como “passado” somente quando as reconhecemos como tais. Reconhecer 0 passado como um Ambito temporal distinto do presente, afirmam alguns académicos, é uma caracteristica inerente ao pensamento ocidental.’” No entanto certa consciéncia do passado é comum a todos os seres humanos, com excegiio dos bebés, dos senis ¢ dos portadores de lesdes cerebrais. No minimo, lembramos 0 que 3. Time and the Novel, p. 223; vide também p. 230. 4 Bergson, Creative Evolution, p. 20; Shils, Tradition, pp. 34-8, 169-70. 3 Rebel Angels, p. 124. 6 Heller, Theory of History, p. 201 7 Kelley, Foundations of Modern Historical Scholarship, p. 3 64 Proj. Histéria, Sée Paulo, (17), nov. 1998 ssos organicos de repetimos crescer ¢ envelhecer, de desabrochar ¢ de definhar. Uma consciéncia do passado mais recordamos que houve um ontem ¢ perechemos os proc completa envolve familiaridade com processos concebidos ¢ finalizados, com recor- dagdes daquilo que foi dito e feito, com histérias sobre pessoas ¢ acontecimentos — coisas comuns da meméria ¢ da histéria. “O passado nunca esté morto”, na frase de Gilbert Highet; “cle existe ininterrup- tamente na memoria de pensadores ¢ de homens imaginativos”.* De fato, ele existe na meméria de todos nés. Constantemente tomamos conhecimento nao somente de nossas agGes ¢ pensamentos anteriores, como também daqueles de outrem, seja por testemunho: direto ou de terceiros. Até sinais de experiéncia excessivamente remota podem sc tornar conscientes. Herbert Butterfield revela como isto acontece: Todas as mentes contém um emaranhado de imagens ¢ historias... que constituem 0 que construfmos do Passado para nés mesmos,... que entra em agdio a um vislumbre de rufnas antigas ... ou a uma sugestio do romantico... Um sino de catedral ou a mengao a Agin- court, ou © proprio soletrar da palavra “nomear” (ycleped) podem bastar para acionar a mente a perambular por suas préprias galerias de quadros da histéria.” rico quanto ao da O pa meméria: seus cenarios ¢ experiéneias antecedem nossas proprias vidas, ado, para Butterfield, refere-se tanto ao Ambito hist © que ja lemos, ouyimos e reiteramos tornam-se também parte de nossas lembrangas Na verdade temos consciéncia do passado como um Ambito que coexiste com o presente ao mesmo tempo que se distingue dele. O que os unc & nossa percepgao sa autoconsciéncia — amplamente inconsciente da vida organica; 0 que os separa é no: © pensar sobre nossas memérias, sobre histéria, sobre a idade das coisas que nos rodeiam. A reflexio freqiicntemente distingue 6 aqui e agora — tarefas sendo feitas, idéias sendo formadas, passos sendo dados — de coisas, pensamentos © acontecimentos pa tanto como parte do presente quanto separado dele. “N6és realmente damos vida ao (0; 0 passado precisa ser sentido sados. Mas uniao ¢ separagao estéo em continua tensa passado, como tal, ao rememorar ¢ pensar historicamente”, escreveu R.G. Collingwood; > 40 “mas 0 fazemos desvencilhando-o do presente no qual ele de fato existe”, 8 Classical Tradition, p. 447. 9 Historical Novel, p. 1 10 “Some perplexities about time”, p. 150. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 65

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