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LEONOR ARFUCH ANTIBIOGRAFIAS ? Novas experiéncias nos limites Quando comecei, ha mais de 10 anos, a pesquisa sobre o que chamei de “o espaco biografico”,’ fazendo um corte sincré- nico, & maneira saussuriana, do que entendia como um estado da cultura ~ um espaco onde se entrecruzam velhas e novas formas, desde a auto/biografia classica ou o didrio intimo até a intimidade piblica da televisao; do testemunho ou a histéria de vida a autoficgao ou ao reality show ~ nao imaginei que esse espago, dilatado por si s6, continuaria sua expansio no futuro, difundindo ainda mais seus limites, impulsionado pelas novas tecnologias da comunicacao — blogs, forologs, redes sociais — e que despertaria o interesse reflexivo e analitico nao somente da critica e da teoria literdrias como também das ciéncias sociais, da filosofia, da psicologia, das artes visuais, da educagdo, campos com 0s quais tenho tido dislogos frutiferos em diversos paises = como aquele semindrio sobre Arquivos Literérios, em Belo Horizonte em 2005. tudo faz supor que o “futuro do presente” trard inerentes e novas experiéncias nos limites — ou fora deles— tanto no que diz respeito as teorias quanto as priticas. E nesse umbral que quero deter-me hoje, retomando alguns postulados com relagio a esse espaco para pensar na singularidade de certas formas que talvez. possam ser definidas como “antibiografias”. Sem pretender tracar uma genealogia, cabe recordar que o que hoje reconhecemos, apesar de suas incessantes transformagoes, como auto/biogrdfico, se inscreve em uma ampla tradicao, cuja ancoragem mitica remonta s escrituras autografas do século 18 que moldaram a sensibilidade do sujeito moderno ~ confissses, autobiografias, memérias, didrios intimos, correspondéncias, géneros que se tornaram “cannicos” sem perder a vigéncia e que esto em didlogo com as novas, novissimas formas. E esse universo narrativo, onde 0 eu se desdobra em suas miiltiplas méscaras, em uma mistura heterdclita e até impertinente que imprime sua marca na cultura contemporénea, 0 que tenho pretendido abranger com o conceito de “espaco biogrdfico”, que tomo de Philippe Lejeune, pioneiro dos estudos sobre o tema, para reformulé-lo sob outra perspectiva. Com efeito, Lejeune, levado pelo afi estruturalista dos anos de 1970, tentava definir as caracteristicas da autobiografia como tum “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz da prépria existéncia acentuando sua vida individual, em particular a hist6ria de sua personalidade”,’ definicao que deveria refazer-se diante de cada exemplo contrario, desencorajando assim toda tentativa de formalizagio. Uma busca que culminou finalmente com a aceitagio do caréter elusivo das escritas do eu, em que © principio de identidade fracassa,e fic¢do e factualidade se unem de modo indissocidvel, mas que deixou como saldo a ideia de um “pacto autobiografico” que se estabeleceria na cumplicidade da leitura e operaria como regime de verdade — uma ideia que a Paul de Man, que também se interessou pelo tema, Ihe parece restritiva demais—ea de um “espago biografico”, que encerraria de forma undnime os distintos modos como se podem narrar a vida e a experiéncia humanas. Esse foi justamente o ponto de partida de minha pesquisa: 0 ir mais além da mera inclusao de “exemplos” ou géneros dentro de um reservat6rio das formas cambiantes que essa narra¢ao pode assumir ~ sem degradar o interesse de tal propésito ~ para lex, na simultaneidade dessas formas, em sua heterodoxia, em sua avassaladora busca pela presenca ~ 0 eu, 0 corpo, a vor, a pessoa, a vivéncia -, ¢ em sua insisténcia nos mais diversos regis- tros do discurso social, wn traco sintomdtico da subjetividade de nosso tempo. Por que sintomético, caberia perguntar, se 0 relato de uma vida, apesar de suas reconhecidas raizes hist6ricas, tem a aura de um “mito de eternidade”, nas palavras de Lejeune? £ um Arduo caminho o que leva, nas tiltimas décadas, a essa reconfiguragao da subjetividade que pode traduzir-se - com uma acentuagao negativa - em um declive da vida e da cultura piblicas, na multiplicagéo de “pequenos relatos” que desagregam a miriade do social ~ para alguns, um trago da p6s-modernidade -, na ceescente indistingdo entre 0 piblico e 0 privado e a radical abertura da intimidade, na énfase narci- sistica, no individualismo e na competigio feroz, no mito da realizagao pessoal como objetivo maximo ~ se nao 0 tinico- da vida. No entanto, essa “guinada subjetiva” também poderia ser entendida, com uma acentuagao positiva, como estratégias de autoafirmagao, recuperagdo de memérias individuais ¢ coletivas — sobretudo, com relagio a experiéncias trauméticas ~, busca de reconhecimento de identidades e minorias ~ no conceito de Deleuze -, afirmagio ontoldgica da diferenga ~ sexual, étnica, cultural, de género -, registros todos em que 0 autobiogrifico tem um papel determinante. Esse notério privilégio da voz “propria” se manifesta também no auge atual do testemunhos no “documentério subjetivo” ~ aquele que, sem abdicar de dar conta de “fatos”, inclui o proprio cineasta como protagonista = até na crescente tendéncia da literatura a distanciar-se da histéria da ficcdo para transformar-se, quase genericamente, em “qutoficeao”, Fala-se inclusive de uma “guinada autobiogréfica” na literatura argentina.’ Nessa multiplicagdo das vozes, nessa tensio derridiana entre o que pode ser uma coisa e seu contratio, podemos ler, talvez ~e aqui o sintomético -, angistia, solidio, desencanto, perda dos grandes ideais, monotonia, dificuldade das relagdes afctivas ~ apesar da “hipercomunicacio” tecnol6gica -, mas também opressio, rebeldia, inadequago a nossas sociedades que exaltam modelos impossiveis de alcancar. Significantes — uns ¢ outros ~ que operam, talvez, na busca de sentidos da vida distanciados de nossos predecessores, seja no modo “light” do cuidado consigo ou em exercicios de liberdade e autonomia ~ ainda que possam redundar em maior sujeigo —, na exaltagao das singularidades frente & crescente uniformidade dos destinos, na necessidade de identificagao “horizontal” com o proximo, 0 “semelhante”... Abordar essa constelagao problematica, este “espago biogré- fico” que vai além da caracterizacao de géneros discursivos com “parecidos de familia” para transformar-se em um vetor analitico € critico da sociedade contemporiinea, requereria, por certo, a articulagéo de diferentes olhares disciplinares - da psicandlise, da filosofia, da semiética, da critica literéria e cultural -, articu- lacdo nao como um mero “somatério” de saberes, e sim como a postulagao de relagbes nao necessairias nem evidentes, tendentes a uma visdo superadora da parcialidade, uma visio, além do mais, politica em todos os sentidos da palavra, Tal leitura implicaria uma reelaboragao das proprias ideias de espaco, sujcito, subje- tividade ¢ identidade © uma definigdo adequada dos géneros discursivos e da narragio. ‘A concepeao de sujeito da psicandlisc, sobretudo em sua vertente lacaniana, foi funcional em nosso empenho: um sujeito constitutivamente incompleto, modelado pela linguagem, cuja dimensio existencial é dialdgica, aberto a (e construido por) um Outro: um outro que pode ser tanto o voc? da interlocugio quanto a prépria condigdo de ser outro da linguagem ea ideia de tum Outro como diferenca radical, Falar de subjetividade nesse contexto ser, entio, falar de intersubjetividade. No entanto, ha também a ideia de um “puro antagonismo” como auto-obstaculo, autobloqueio, limite interno que impede o sujeito de realizar sua identidade plena, que, contudo, busca através de processos de identificagio: nessa busca, as narrativas do eu sao parte essencial. Se a identificagao com outros se desdobra desde as figuras primarias, parentais, até as interagGes sociais ea todos os registros significantes, ndo ha divida de que as narrativas que remetem a personagens “reais” introduzem uma tonalidade particular na identificacao, seja esta glamorosa, com ricos ¢ famosos, ou com a debilidade, a falha, 0 infortiinio, o “poderia ser eu”, tal como opera a insisténcia miditica no registro da adversidade, agora “globalizada”: um estado de violéncia perpétua, onde convivem a crdnica vermelha e guerras, atentados, migragdes forcosas catastrofes “naturais”, ¢ onde se naturalizou também a perda das vidas e a destruig4o dos corpos. Curiosamente, também 0s retalhos dessas vidas e a oferenda publica dos anedotirios pessoais—como restos depois da tragédia ~ fazem parte, de modo crescente, do espago biogréfico. © caso recente dos mineiros resgatados no Chile, onde a vida triunfou sobre a morte, mostrou. igualmente a preeminéncia do biogrAfico por sobre os outros registros do acontecimento. A nogio de espaco exigiu, do mesmo modo, um questio- namento. Enquanto se tentava tragar uma “cartografia do presente”, a ideia de um espago-temporalidade pareceu a mais apropriada: 0 espaco nao como uma superficie plana, sem riscos, onde se acumulam diversos objetos ~ em nosso caso, géneros discursivos -,¢ sim essencialmente como multiplicidade, plura- lidade, heterogeneidade, relacio, interagdo, um espago sempre inacabado, aberto a transformacao com cada novo elemento que o habita. Em outras palavras, um espaco que se refaz constante- mente através das interagdes que o constituem. Em harmonia com tais conceitos, a definigio de identidade se volta obrigatoriamente para o plural, as identidades, para enfatizar seu carater nao essencial, relacional ¢ contingente — ainda que sem desdenhar ancoragens, tradigées, materialidades-, uma identidade que se constr6i na temporalidade e na narraco, suscetivel invenco, apesar da necessidade de autorreconheci- mento e permanéncia. Nos termos de Ricoeur,’ uma identidade

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