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RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM O DIA EM QUE ARIADNE NOS DEIXOU NA MAO: NOTAS SOBRE O LEITO DE PROCUSTO, A VERDAD! DO SEXO E OS SUJEITOS DE CARNE, OSSO E MINISSAIA Ederson Luis Silveira- CAPES/UFSC ‘Agnaldo Almeida ~ CAPES/ UEMG ‘Nesse labirinto que €a sua obra, existe uma criatura que ronda, tal como no mito do Minotauro. Inquietacéo ou angiistia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que acuada, ataca, Vive dentro do artista ou é parte dele. Exoesqueleto que 0 controla e 0 direciona, Pode ser o préprio Laerte, criatura entre ns, Ele, meu familiar pai, um monstro, (COUTINHO, 2014, s.p.) No ano de 2014, a Fundacdo Itai Cultural inaugurou na cidade de Sao Paulo uma exposic&io que contava com mais de duas mil obras do cartunista Laerte Coutinho com objetivo de realizar uma retrospectiva sobre a arte de Laerte. Na abertura da exposicao estava, na entrada, 0 texto destacado acima. Foi escrito pelo curador da exposi¢ao, Rafael Coutinho, o filho do cartunista. Nao é a toa que o filho do artista retome a figura do labirinto, j4 que a exposicao foi instaurada a partir da construgao de um labirinto em que estao obras de varias épocas de Laerte. 0 formato de exposiciio também faz referéncia a uma histéria criada por ele, intitulada “O minotauro” escrita entre 1987-1989 para a revista “Geraldao” do artista Glauco (1957-2010) em que © personagem-heréi da trama adentra 0 espaco de um labirinto e, ao derrotar 0 minotauro, acaba por se transformar no animal 177 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM mitolégico. Se levarmos em consideragao os personagens ¢ tematicas da obra de Laerte, o labirinto serve muito bem de metafora-m6r, j4 que entre suas obras esto os Piratas do Tieté, Hugo e a personagem mais recente, Muriel, além dos moradores do condominio, entre outros trabalhos. O que chamamos aten¢ao aqui nao é para a versatilidade da obra de Laerte Coutinho, mas para parte do texto de seu filho: “Inquietagado ou angtistia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que acuada, ataca. Vive dentro do artista ou € parte dele. Exoesqueleto que 0 controla e © direciona. Pode ser o préprio Laerte, criatura entre nos”. Levando em consideragao a presenca de Laerte Coutinho e sua inscrigao discursiva e corporal nos terrenos do crossdressing’, ‘© que nos interessa no presente trabalho é analisar as relagdes entre sexo e verdade, tomando como pontos de escuta o texto de Foucault sobre a histéria de Herculine Barbin e uma entrevista com o cartunista acima citado. Desse modo, retomamos uma pergunta realizada por Foucault (1982a) no prefacio do diario de Barbin: Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Para o filésofo, essa compulsao em atribuir o verdadeiro sexo por muito tempo nao existiu. A partir da histéria da medicina e da justica em relagdo a questao dos hermafroditas, o pensador menciona que levou anos até que se lhes fosse estipulado como exigéncia o dever de estes terem designados para si um tinico e verdadeiro sexo jé que, durante muito tempo, admitia-se que o hermafrodita tivesse dois sexos. © que mais me surpreendeu no relato de Herculine Barbin foi que, no seu caso, nao existe verdadeiro sexo. © conceito de pertenca de todo individu a um sexo determinado foi formulado pelos médicos e pelos juristas somente no século XVIII, mais ou menos. [...] Na civili- zagio moderna, exige-se uma correspondéncia rigorosa 1 Sobre erassdresser ou CD, trata-se de uma “[..] pessoa que gosta de se vestir com roupas do sexo dito oposto ao seu sexo bioldgico, independentemente de sua exieatagdo sexual ¢ que, comumente, nfo realiza mudangas defintivas no corpo como o implante de prteses para ‘08 Seios ~ eventualmente fazendo uso de horménios —e se contentando com uma montagem restrita a algumas horas por dia/semana ou periodos mais significativos da vida” (LEITE JR, 2011, p. 142), 178 RertexOts SOBRE 0 ENSINO DE LiNGuAfS) E OUTRAS QUESTOES DE LINGUAGEM entre 0 sexo anatémico, o sexo juridico, o sexo social: esses sexos devem coincidir e nos colocam em uma das duas colunas da sociedade. Antes do século XVIII, havia, no entanto, uma margem de mobilidade bastante grande. (FOUCAULT, 2014b, p. 86) Entre os anos de 1970 e 1971, Foucault inaugura uma série de anilises que intitula “morfologia da vontade de saber”. Neste instante, ele situa o olhar para o pensamento Ocidental percor- rendo pesquisas de cunho histérico especificas noutras vezes partindo de reflexdes sobre as implicagdes tedricas da vontade de saber. A partir disso, ele situa o lugar da vontade de saber numa histéria dos sistemas de pensamento, analisando estes sistemas a partir das praticas discursivas (FOUCAULT, 2014d). Situando as praticas discursivas no modo de fabricagao dos discursos, Foucault alerta que, a depender das escolhas e de onde se parta para este movimento que propée, haverd inevitavelmente exclusdes, devido ao recorte efetuado. Dessa forma, ao analisar as sexualidades, trata-se de tomé-las como “experiéncias historicamen- te singulares”. Essa atitude se volta para um gesto interpretativo que associa a sexualidade com um dominio de saber, normatividade e modos de relacaio consigo e (re)interpretar como a sexualidade se institui como experiéncia complexa ligada ao conhecimento (teorias, conceitos, disciplinas) com regras (permito e proibido, normal ¢ patoldgico, natural e monstruoso) e a partir da relacao do individuo consigo mesmo (pelo meio da qual ele se reconhece como sujeito de determinada sexualidade) (FOUCAULT, 2014c). Para prosseguir- mos com as reflexdes nas quais estamos adentrando, seguem dois fragmentos de matérias veiculadas em diferentes épocas que possi- bilitarao, articuladas com o referencial te6rico de Butler e Foucault, para pensar sobre a verdade do sexo no Ocidente: L Echo Rochelais, 18 de julho de 1860. Como nao se fala em outra coisa nessa cidade, a nao ser numa estranha metamorfose, extraordinaria na fisiologia médica, diremos algumas palavras a esse respeito, aps informagées recebidas de boas fontes: 179

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