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Identidade da Classe Operdria no Brasil (1880-1920): ipicidade ou Legitimidade?* Claudio H. M. Batalha** Este artigo, ainda que fundamentalmente calcado na experiéncia da classe operaria no Brasil, aborda quest6es que transcendem os limites dessa experiéncia concreta e que me parecem relevantes também para a andlise de outras classes operdrias, particularmente na América Latina. Varias dessas questées, a comegar pela problemética central da “atipicidade” da classe operdria, surgiram nas discussdes ocorridas durante os semindrios de Robert Paris, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, entre 1983 e 1986, em que tomaram parte varios pesquisadores latino-americanos. Por conseguinte, este texto tem origem nesse processo de discussdo coletiva, sendo que meu débito para com Robert Paris e os demais colegas transcende, em muito, os pontos especfficos referidos nas notas de rodapé. No entanto, cabe ressaltar que as conclusées a que chego nestas paginas, bem como os eventuais equivocos nelas contidos, sio de minha inteira responsabilidade. UMA CLASSE OPERARIA “ATIPICA” “De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, s6 0 proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionaria. Outras classes degeneram e perecem com o desenvol- vimento da grande indiistria; o proletariado pelo contrério € seu produto mais auténtico.” * Versdes preliminares deste texto foram apresentadas no V Encontro Internacional de Historiadores Latino-Americanos e do Caribe, em Siio Paulo, em outubro de 1990, e no XVII Congresso Internacional da Latin American Studies Association (LASA), em Los Angeles, em setembro de 1992. “* Departamento de Hist6ria UNICAMP. | MARX e ENGELS, “Manifesto do Partido Comunista”, in: Textos, So Paulo, Edig6es Sociais, s.4., vol. III, p. 29. Rev. Bras, de Hist. | §. Paulo | v.12, n° 23/24] pp. 111-124 | set. 91/ago. 92 O proletariado descrito por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista como a “classe verdadeiramente revolucionéria” era composto pelo “opetario moderno”, leia-se fabril. Fruto da inddstria, esse proletariado cresceria em nimero com o crescimento daquela, aumentaria sua forga e viria a adquirir consciéncia dessa forga, conforme previam os autores do Manifesto de 1848." Anos mais tarde, a criagdo da Asso- ciagdo Internacional dos Trabalhadores dirigit-se-ia a esse proletariado fabril, considerado portador privilegiado da potencialidade revolucionéria. Entretanto, no Brasil, como em outros paises latino-americanos, entre as tiltimas décadas do século XIX ¢ as primeiras deste século. a principal dificuldade, para muitos observadores, para o desenvolvimento do potencial revolucionario parece residir precisamente na auséncia ou extrema fraqueza desse “operdrio moderno”. Tanto na andlise dos contemporaneos, como ainda para muitos estudiosos nos dias de hoje, a ignorancia, a heterogeneidade étnica, a falta de contornos de classe precisos, a passividade e a conseqiiente falta de organizagao, sio os atributos desse proletariado ainda nao inteiramente submetido ao trabalho fabril.? Deixando de lado, porém, os estudos acad@micos que j4 foram objeto de diversas oriticas,* vejamos a descri¢éo da situagao do proletariado na fala da militancia operdria, como na anilise feita em 1911 pelo tipégrafo portugués Mota Assungao: “..a Repiiblica encontrou aqui um proletariado atrasa- dfssimo, a um ou dois séculos de distancia do proletariado europeu. Na parte indigena — pretos, mulatos, e brancos — predomina a subserviéncia da escraviddo, abolida havia um ano; porque os habitos ¢ as tradigdes daquele nefasto regime nio se limitavam as suas presas diretas: refletiam- se como ainda hoje se refletem, sobre todos os que trabalham para outrem. (.) As conseqiiéncias depressivas deste funesto ambiente ainda se notam hoje em muitos trabalhadores, que experimentam como que um supersticioso medo diante do patrio, p. 28. } $0 muitos os exemplos na historiografia académica de recurso a todos ou a alguns desses atributos para explicar os “desvios” da classe operdria brasileira dos caminhos da revolugio. Para citar apenas uma das contribuigSes mais recentes ao coro dos que insistem na tese da “jmaturidade” da classe operéria antes da formagdo do Partido Comunista, ver CARONE Edgard , Classes Sociais e Movimento Operdrin, Sio Paulo, Atica, 1989, “Introdugdo”. ai Yer, por exemplo, HALL Michael ¢ PINHEIRO Paulo Sérgio, Alargando a histéria da classe operdria: Organiza¢io, luta ¢ controle", Remate de Males, Campinas, (5), 1985. 112 raramente ousando discutir com ele os seus interesses. Mas, como se tudo isso nao bastasse para retardar a emancipagio do trabalhador brasileiro, veio-nos ainda o contingente europeu das aldeias e cantées atrasadfssimos, que, com suas idéias ¢ costumes feudalistas, nos obrigam ao estacionamento vergonhoso em que nos achamos. Neste ponto a acio nefasta da imigragdo é (...) das mais sensiveis,”> Ja 0 italiano Alceste De Ambris (editor do Avanti!), apesar de apontar para as fraquezas do movimento operdrio, vé a imigragio como uma contribuig&o positiva para o fortalecimento dese movimento. “No Estado de Sao Paulo.iam-se entdo fortalecendo novos elementos sociais, A corrente migratéria, italiana em sua quase totalidade, aumentando a populagdo, permitia o nascimento da grande inddstria, ¢ a formagio de um verdadeiro proletariado.”° Nas palavras de De Ambris aparece de forma cristalina a relagao entre grande indiistria e verdadeiro proletariado. Este ultimo parece dever sua existéncia & presenga da primeira. Ora, no Brasil da Primeira Republica, diferentemente do que afirma a tese do predomfnio da grande inddstria,’ (fundada na supe- restimagéio do peso dessas indistrias nos levantamentos industriais ¢ nos censos econdmicos disponiveis), tudo indica que as pequenas oficinas, pouco mecanizadas e empregando um némero reduzido de operrios, nao 86 cram majoritérias, mas também eram responsdveis pela ocupagao da maioria dos trabalhadores do setor manufatureiro. 5 ASSUNGAO, Mota, “A Questio social no Brasil”, A Vanguarda, Rio de Janeiro, 1 (3), 20/05/1911, p. 1. As transcrighes de textos extrafdos diretamente das fontes primérias, como neste caso, conservam a ortografia e a acentuagio do original, sem qualquer revisio ou atualizago. Neste artigo de Mota Assungiio hd 0 emprego de uma ortografia simplificada ‘com relagdo & ortografia corrente na época, procedimento comumente adotado por alguns militantes da imprensa operéria como Assungio ¢ Neno Vasco. © DE AMBRIS, Alceste, I! Movimento operaio nello stato de Sdo Paulo, in: Il Brasile e gli Italiani, Florenga, 1906, reproduzido em PINHEIRO P.S. e HALL M. (orgs.), A Classe Operdria no Brasil: Dacumentos (1889-1930), vol. I, © Movimento Operdrio, Si Paulo, Alfa-Omega, 1979, p. 36. 7 Yer particularmente SILVA, Sérgio, Expansdo Cafeeira ¢ Origens da Indistria no Brasil, Sao Paulo, Alfa-Omega, 1976, pp. 81-91. Entre os trabalhos que contestam a tese do predominio da grande indtstria, figuram com destaque os de Eulalia Maria Lahmeyer LOBO, ver, por exemplo, sua Historia do Rio de Janeiro (do Capital Comercial a0 Capital Industrial © Financeiro), Rio de Janeiro, IBMEC, 1978, Vol. 2, Cap. 4. 113

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