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“SERGIO GIVONE Dizer as emocées construcao da interioridade no romance moderno Em sie fora de si ipletamente fora de si, e no entanto mergulhado em si, vitima de suas aluci- Ges: eis Dom Quixote. Bastou se distrair um pouco, deixar vagar a imaginacao, Quijano, “outrora cognominado o Bom’, ja no é mais quem costumava t. Tudo culpa, como se sabe, de sua paixao desenfreada pela leitura dos livros -cavalaria, a qual se dedica com tanto arrebatamento que logo: - Encheu-se-Ihe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de contendas, batalhas, desafios, ferimentos, galantarias, amores, borrascas € disparates impossiveis; e se lhe assentou de tal maneirana imaginagao que era verdade toda aquela maquina daquelas soadas sonhadas invengdes que lia, que para ele nao “havia no mundo historia mais certa.! espécie de duplo sentido confunde o protagonista daquele que pode ser con- lo 0 primeiro romance moderno. Quanto mais o mundo se afigura uma M. de Cervantes, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha (1605-1615), Primeiro livro, trad. Sérgio Molina. 4? ed. Sao Paulo: Editora 34, 2007, parte I, Cap. 1, P. 57: asemonies 46) pcocagera da mente na realidade terrena. E, muito paradoxalmente, ensina-Ihe | ete petdeemarroubos fantasiosos. Prova diso éa necescdade dea, ene s i . tea ome seat oper Quan en eaenem ein pecacs pada TSE scent nba er coma el dota. inp Eats , ee a cae ee Aldoaza Loresay cecvurmorrendoa tapes deaem .de parte tragam-me um confessor ei © rocim até ens, (pe me confess ¢ um excrivdo que faa meu testament pois em as transes como ‘andnimo passa a se chamar Rocinante, ¢ assim por diante. Mas nio. ‘homem nio se ha de burlar da alma; e assim suplico priamente de um novo batismo ou de uma regeneracio,e sim de une ane oo) eee tate: pei eae aE pa oie me cones, wo chamaroescivi’ Profandezas imemoriaissignificados desde sempre ali preseats ¢ Se ee ee Anon cmeta 4. doenga que mata Dom Quixote é a melancolia; mas, mais profunda do que a ee banalidade e da insignificincia, visto ser a fabols mas ‘dancin, que pune quem acreditou no mundo tirando-he oss ¢ com oss Vea =e apa. €atomada de consciéncia de seu aturdimento. A quem cabe “morrer sibio | __Essas profundezas memoria: naturalmente ninguém ainda sabe dizer oqu cexiverlouco’,a morte ndo pode fazer mal, nem mesmo com a morte. O que pode S30 clas; Dom Quixote nio sabe, e tampouco o sabe Cervantes, simplesmente ‘qcorrer, no maximo, € 0 contrario. Porque faltam as palavras para dizé-lo. O eu: 0 que é 0 eu? Claro, pars a gramitic: ‘No entanto, se Alonso Quijano se liberta de Dom Quixote, Dom Quixote se um pronome, um substantive. Mas a emancipacio do sujeito frente aotecidoéa Iberta de Alonso Quijano. E vive para sempre aquela sua vida fabulosa, a “mais Inguagem, até se converter em principio psiquico nao s6 auténomo, mas produtor yerdadeira” de todas as vidas. Dom Quixote ndo tem nenhuma necessidade de de sentido e de realidade, ¢ um processo ainda incipiente. Se a teologia havia coc- yoltara si Seu eu mais intimo est no mundo ¢ 0 mundo é a expressio de seu mais cebido a alma em oposicao a0 mundo, semente divina que germinaria no munda, intimo eu. Infindavel, o movimento do interior ao exterior € do exterior a0 inte- ‘mas para vir a consumar seu destino no proprio local de origem, ou seja, noalém, rec Parafraseando Santo Agostinho, diriamos que, para Dom Quixote (no pars agora a literatura ¢ a filosofia (primeiro a literatura, depois a filosofia) trabalham ‘Alonso Quijano, certamente), o mundo Ihe é mais intimo do que ele mesmo. para restabelecer um nexo nao simplesmente antitético entre a alma ¢ 0 munds ae eo ened Perguntas que, nos séculos seguintes, iriam dar muito o que pensar. Un ip ques soe Semen nena ‘© “engenhoso fidalgo” sobre o que Ihe esta acontecendo, 0 que sabe sobre 0% O mesmo vale para Robinson Crasoé. Mas com uma diferenga. Ambos cavaleeo rele se anuncia e adquire forma? A concepgo quixotesca da alma ¢ exatamenté ¢ marnheir, se detxaram tenta pelo mundo: mas no mundo, MBF 2 a mesma que foi elaborada pela tradicdo teol6gica — ¢ Cervantes a adota, Dom Quixote perde a razio, vindo a recuperi:-la apenas no retoo 20 ars Ro- Para finalidades literarias ou por conviccio intima. A alma: ou a perdemos 0 tinson pelo contririo,reencontraa rao ne mundo mais amplo e mais distante, 4 salvamos. Perdemos a alma deixando que o mundo a seduza e a capture oa 496s 0 irracional abandono do lar paternd. ca ‘ seus enganos, suas lusdes, suas quimeras. Salvamos a alma redespertando net ‘Acondigio de Robinson, enquanto condiqioexemplarments humans. £2! ° ' ‘a meméria daquilo a que esta destinada. Como indica essa coisa divina que €* «rem se encontra, contra a vontade e sem escapatéia, nam agar descon propria razio. ts No final da vida (no final do livro de sua vida), Dom Quixote recobra 2 + M.decerate Oeil Dee dea nach a 2) SF zio e, com a razio, a salvacdo da alma ~ aquela salvagio que equivale aside trad. Sérgio Molina, Sao Paulo: Editor 32007 parte. 2. 2506 PP 462 Narracao e mentlidode host pleno de ameagas reais ¢ imaginérias. Para descrevé-Ia, Defoe . Defoe usa as mes tas palavras que os antgos gnésticos jé haviam usado em seus di s dias, € que se ree etomadas pels exisencalistas: o homem é “langado” num lug 3 lugar est sem qualquer relagdo com seu local de origem. Por acaso ou por um _ 2 um misteio to divino® Defoe dé a entender que seu her6i se inclina para a a 8 segunda 0 que faria dele um herdeiro da gnose em ver de um precursor d cursor do decre hipotese, existencialismo. Minhas perspectivas sobre a situaglo em que estava ram negra Havia nauraga nnaquelaitha depois deter sido impelido[..] por uma tempestade violenta para a Jonge do curso de nossa viagem programad, Estava a grande distancia, qua sea dealgumas centenas de léguas do curso ordindrio do comércio humano. Tinh - a ce center Cn cece lugar desolado e dessa maneira desolada eu haveria de terminar meus dias. As ir: ‘mas rolavam em profusdo por minhas faces quando eu fazia essas reflexdes. As veus Be ceeb eta neevescarsctrte mmiseriveis, tio desamparadas, tio completamente deprimidas, que nao seria mada razoavel ser grato por uma vida assim? eee, ee subjetividade que pareciades- pares Paae (um segundo naufrégio ainda mais irrepardvel do eae eee de irremediivel aturdimento que s© apodera doe, omnes ey ee céue terra, vem a se converter numa tomadade ae econ a jomnn saat voltasse a se orientar no mundo depois Se ee ce een ET entre pensamento€ ati ee solidao élastimavel, mas nao seré verdade ee ae no ser? Assim avanga-se um passo rume ® outed eT aa do pesadelo que oacompanka, saber. 38 ideias fixas pentane ee cae porém, toldar 0 bem. A tal ponto que® dad co eae ho, imparcial espirito contabilista. A inter” ‘aacneaaeldia eo i, Onde os debitos os créditos resultam num ica aoe binson langa na coluna dos débitos a reclusio sem esperanga de salvagio, mas na coluna dos créditos an? 3D. Defoe, Rabinson Crus eee Life and Strange Surprising Adventures of Robinson crsoe) 5 iso M. Paciornik Sio Paulo: Iuminuras, 2004, p- 60. el eee Dizer as emocbes mas nos créditos uma nos débitos, uma solidio pavorosa, ma promessa; nos dé- jortanto, encerra Ui ao desconhecido, nos créditos © barco sa de faa de estar VO paca que em algo de milagros0 e, Ps fans. a perda do essen al ea exposicio ce oferecendo-se como reserva precio: pense asim por dian: vsjamente como partida dobrad {assim que Robinson mpocncia. A qual: pis, deixa de ser 0que ear um severo cemento de avaiagio de sua condicdo. Robinson conch 1 que sejao estado em que ele se: ‘encontra, isso nao significa rar dai “alguma coisa para obter conforto: O néufrago olha a0 para escrutar apenas a linha do horizonte¢ sim 9 perfil das tao hosts, visto que, apesar de estranbas, parecem necessidades e, assim, revelam 0 espago de uma Robinson parte para a conquista do mun- «e desesperada. E 0 mundo do. A aga, o dominio da ‘mitem 1a distancia da orla, n faz as contas com tribunal particular, spor sua garasetornar um instr mais infelize miseravel que no possa t redor. Mas naio mais ‘qisa proximas, que jd ndo S40 sersr para a satisfacio de suas vida possivel. Depois de té-lo perdido, Tp anancando-se as trevas de uma introversio esti! ‘crib permitindo-Ihe que ele vejaseurosto al espelha vesidade natural, a subordinagio mesmo do hostia seus ProPrio® fins per vemanizar 6 mundo atalponto que ohomem reconhece asi mes nesse mundo. rev" do homem néo se oculta nas profundezas, mas ess na superficie, ali fora. Fobinson adquire careza de seu destino na medida em av aprende a se mover comp senor naquela aun “iba do Deseaperis io «cDamaia ASE 4. Papéis sociais, méscaras e desenvolvimento da personalidade «eso assim consegue encontrar seu centro: sta ao cunha- ‘Numa carta em respo vm todos os conhecimentos que Ihe \do duividas: interno deve se inverter em externos 6 que gera perplexidade em Wilhelm Meister do, que Ihe sugeria que extrafsse de sua viage! poderiam ser diteis em suas atividades, Wilhelm responde levantan« interior est cheio de esc6- bom ferro, se meu proprio dade rural, secomigo De que me serve fabricar um yma propries tas? E de que me serve também colocar em ‘ordem ut ‘mesmo me desavim?* as: Osanos de aprendizado de Wilke 4 W.Goethe, Wilhelm Mester Lehrahre [795-96] la P 2006, p. 2841: Meister, tad. Niolino Simone Neto. io Paulo: Favors + 463

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