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EU VOU HIPNOTIZAR VOCÊ

O LADO B E O BEABÁ DA HIPNOSE E DOS ESTADOS DE


TRANSE

ADRIANO FACIOLI
ÍNDICE

Hipnose: quando é fraude?....................03


As primeiras impressões........................08
Hiperventilando e enlouquecendo.........15
“Tá podre...”............................................27
Ficando rico com a hipnose....................41
Baixando o santo.....................................57
Ofegante, fora de controle e rindo.........74
Coisas de outro mundo...........................84
Bibliografia..............................................95
Hipnose: quando é fraude?

Penso que existem alguns abusos (fraudes) de alguns que praticam a hipnose,
seja profissionalmente ou não:

1. Difundir a hipnose como uma panaceia.


Divulgar listas com os inumeráveis benefícios da hipnose, tenham estas listas
algum fundamento ou não. Particularmente desconfio das pesquisas vinculadas por
sociedades de hipnose. Sinto no ar o cheiro de procedimentos que não dizem respeito
ao espírito científico. Pesquisador trabalhando somente para provar a efetividade de

sua hipótese não está fazendo ciência. Como sugere a filosofia da ciência: deve também
tentar provar que sua hipótese é falsa. Deve possuir a capacidade para levar em conta
os dois lados da realidade. Deve estar aberto às duas hipóteses. A hipnose, apesar do
razoável volume de pesquisas existentes (e muitas, senão a maioria, repletas de
confusões conceituais; portanto suspeitas, na minha concepção), ainda não é um fato
consolidado, por diversas razões. As quais pude abordar em detalhe em meu livro
(Hipnose: fato ou fraude?).
2. Exagerar sua eficácia. Não falar de seus limites (do que ela é capaz e do
que não é).

Este segundo ponto é complementar ao primeiro (senão for o mesmo). Há uma


tendência, mesmo em muitos profissionais da área, a fazer vista grossa para os limites
da técnica hipnótica. A hipnose pode até ser útil em alguns contextos. Mas não deixar
claro quais são os seus limites é um procedimento enganoso.

3. Não citar pesquisas e experimentos que demonstram a sua ineficácia em


alguns contextos.
E estas pesquisas existem. Procuremos, por exemplo, só para começar, pelas
pesquisas de Theodore Xenophon Barber e Nicholas Spanos. Há uma ausência enorme
de autocrítica entre muitos dos que fazem uso da hipnose. Há uma tendência à
mistificação, ao exagero. A hipnose é um mito de grandes proporções. E veja bem, não
estou dizendo que ela não existe. Quando digo que “a hipnose é um mito”, estou me
remetendo à ideia de que há ainda muito a ser conhecido, de que ainda é tratada como

algo fantástico, fabuloso. Ou seja, é um tema envolto em mal-entendidos e


mistificações. Quando dizemos que algo é um mito, estamos também dizendo que já não
se sabe mais o que é verdade e o que é mentira sobre o assunto. Não tenho dúvidas, a
hipnose é um mito alojado dentro da própria ciência. Ainda sabemos pouca coisa:
“Mais de um século de pesquisa em hipnose não levou a provas conspícuas da
existência de um "estado hipnótico", porém há evidências de que comportamentos
"dramáticos" associados à hipnose podem ser executados por voluntários não
hipnotizados que não mostram evidências de terem estado em um "estado de transe".
Comportamentos hipnóticos seriam mais condizentes com representações dirigidas a
metas (goal-directed enactments) e indivíduos altamente hipnotizáveis seriam aqueles

capazes de responder a interações interpessoais sutis e ao mesmo tempo se mostrar


mais motivados para cumprir com demandas sociais de situações de hipnose para se
apresentar como "bons" indivíduos. Sugestões para levantar o braço seriam na verdade
sugestões para usar habilidades cognitivas para se comportar como se o braço estivesse
levantando por si mesmo; sugestões para amnésia, significariam não apenas falha na

lembrança da informação em questão, mas definir-se como tendo esquecido o material


e, portanto, criar o cenário contextual que inclua não apenas o comportamento
desencadeado, mas a experiência subjetiva apropriada” (Negro-Junior, Palladino-
Negro e Louzã, 1999).

4. Realizar demonstrações de palco com recursos de ilusionismo e depois


não esclarecer isto ao público, mostrando onde houve truques (o que ocorre com
certa freqüência entre hipnotistas de palco).

5. Utilizar pré e pós-sugestão, por meio delas produzir espetáculo no palco,


e depois não explicar como isto foi feito, sob o risco de tudo parecer mágica ou
fruto dos poderes excepcionais do hipnotista ou de uma técnica somente acessível a
iniciados ou prodígios.

6. Esconder os fundamentos técnicos básicos, camuflados em um arsenal


pretensamente infinito de técnicas, somente para poder vender mais e mais cursos.
Ressalto que os ítens de 4 a 6 ainda serão talvez melhor contemplados, em um

próximo artigo, futuramente.


Atualmente há dois grandes ramos de pesquisas ou teorias sobre a hipnose:
teorias de estado e de não-estado. As primeiras postulam que a hipnose é um estado e
uma técnica especial. As teorias de não-estado, por sua vez, postulam que não há nada
de especial ou inédito tanto na técnica hipnótica quanto nos estados que ela produz. Há

também visões intermediárias, as quais vislumbram a possibilidade de estados


especiais (alterações reais de consciência), os quais são atingidos por técnicas simples
ou já conhecidas há muito pela humanidade, principalmente no plano religioso. Nesta
concepção, a hipnose seria somente o modo criado pela Medicina para produzir
alterações de consciência há muito já obtidas, por exemplo, pelas religiões.

As primeiras impressões

As primeiras impressões que tive da hipnose datam de minha infância, da pré-


história de minha vida. Eram impressões de algo fantástico, completamente fora do
comum. E levaria muito tempo para deixar de sê-lo. Eram imagens e histórias de
desenhos animados: um personagem dominava o outro com um olhar magnético, com
comandos repetitivos de “você vai dormir” ou “fazer o que eu quero”. E este abria mão

de sua própria vontade, transformando-se em um completo zumbi.


Meu sobrinho de seis anos está fascinadíssimo com a possibilidade do tio
hipnotizá-lo. O fato de residir em outro país e de não nos vermos há mais de um ano
somente reitera e aumenta o mito de que o tio é capaz, como num passe de mágica, de
hipnotizar a qualquer ser que se mova. Tio longe é tio mais mistificado ainda. Ele quer

ser hipnotizado. Óbvio, passar pela espetacular experiência que os personagens de


desenho animado passaram. E depois, talvez, testar em seus amiguinhos na escola.
Para a criança, a hipnose é mágica. Para os adultos a coisa talvez não seja muito
diferente. Como fazer com que o outro “durma” instantaneamente? Ou que aja como um
zumbi, perdendo totalmente o poder que tem sobre si mesmo, sobre suas próprias
escolhas? A hipnose é, de certo modo, para muitos, esta mágica. Acaba com tudo o que
uma pessoa é e começa tudo de novo. Transforma instantaneamente o outro em um
fantoche.

Enquanto, durante a infância, a hipnose foi para mim uma coisa de cinema, de
televisão; na adolescência não deixou de ser diferente. Somente, durante a faculdade, é
que meu entendimento passou a tomar outro rumo. Estudando o percurso de Freud,
podíamos ler claramente que ele havia feito uso da hipnose. E que vários outros
consagrados psicólogos haviam tido o mesmo tipo de experiência no decorrer da
história da Psicologia. Para minha total surpresa, a hipnose não era um mito do cinema
ou dos desenhos animados, mas sim um fato presente na história da Psicologia.
Porém, passei todo meu período de faculdade sem entender se a hipnose era
realmente possível ou não. As coisas começaram a mudar quando meu irmão mais
velho chegou em casa dizendo que estava fazendo um curso de técnicas de hipnose. Ele

fazia odontologia. Um professor do quadro ministrava o curso de técnicas de indução


hipnótica como um curso de extensão universitária. Edu chegava com alguns colegas de
curso em casa, falando do que haviam aprendido. Ele sempre tivera uma percepção
muito acurada para fraudes. Vê-lo impressionado com o que ocorria no curso me
deixava ainda mais confuso.

Chegavam todos e discutiam bastante sobre os fatos ocorridos nas aulas.


Percebi que Edu era uma das melhores cobaias. Colocavam-no em transe e o espetavam
com facilidade. Agulhas atravessavam sua pele, em diversos pontos do corpo,
geralmente sem sangramento e sempre na ausência de qualquer reação aversiva. Edu
relatava sentir um estado de completa tranquilidade e que não sentia dor ou que esta
não o incomodava.
Alguns colegas ainda mantinham-se incrédulos. Diziam que as regiões do corpo
envolvidas eram muito pouco sensíveis à dor: as costas da mão, por exemplo. Apesar

de confiar no tradicional e saudável ceticismo de Edu, eu não conseguia também deixar


de levar em conta as considerações de seus colegas. A hipnose continuava sendo para
mim um fenômeno totalmente incompreendido.
Certa vez, Edu estava sentado, havia quase uma hora, completamente imóvel,
em uma postura de meditação. Pediu para que eu levantasse sua mão, a qual estava
apoiada sobre a mesa, pela pele das costas. Ergui-a então pela pele. E com a outra mão,
Edu calmamente atravessou uma grande agulha de costura em si mesmo. Fiquei surpreso
com a frieza e com a ausência completa de sangramento. Pensei: “agora há um fato, mas
ainda estou completamente confuso. Como isto é possível? Edu é muito resistente à dor
ou a hipnose existe mesmo?”.

É evidente que se a hipnose chegasse em casa, deveria chegar pelas mãos de


Edu. Sempre tivera muito interesse pelo que é exótico, desde bem pequeno. Foi um
ilusionista mirim. Aos 10 anos de idade animava festinhas de criança com seus
pequenos espetáculos de ilusionismo. Colocava sua roupa de mágico, um paletó de
pijama, com dezenas de desenhos de escovas de dente estampados, o qual tinham alguns

bolsos secretos, costurados por minha mãe, e surpreendia a todos, até mesmo aos
adultos.
Possuía uma destreza manual muito grande. Por ser ambidestro, tudo ficava mais
fácil. Era capaz de proezas que poucos acreditavam. Tais como tocar um disco de vinil
com a mão. Introduzia o cabo de um pincel no orifício do disco e o girava. Com a outra
colocava a agulha, a qual situava-se na ponta de um cone de papel sulfite. Podia-se
escutar perfeitamente a canção ali contida em uma transmissão de baixa amplificação,
porém exclusivamente manual. Estas e outras proezas e peripécias sempre foram um

traço marcante de sua personalidade.


Outro traço a ser ressaltado era sua incredulidade. Por mais contraditório que
seja, parecia detestar toda e qualquer espécie de ilusão, enganação, mentira. Tanto que
sempre preferiu utilizar o termo ilusionismo em vez de mágica. Talvez sua fascinação
pelo ilusionismo fosse justamente esta, a de descobrir os truques, a desmistificação.
Eu tinha pouco mais de cinco anos, ele quase oito e Cako, o mais novo, quatro.
Era Natal e meu pai resolveu fazer-nos uma surpresa, trazendo um Papai Noel, talvez
um amigo dele. Edu não gostou nada nada daquilo. Sentia-se enganado, pois havia para
ele um fator que destoava dos cenários sublimes do Pólo Norte: o Papai Noel estava
calçando um Kichute - um tênis popular, bem baratinho, uma espécie de conga ou

Bamba da época:
“Esse Papai Noel é de mentira.”
“Por que, meu filho? Não gostou, não?”
“Ele tá de Kichute. Papai Noel de Kichute?”
Daí dá para se ter uma ideia do quanto Edu já era cético, desde pequeno. E

nunca deixou de sê-lo. Aliás, com a passagem do tempo, seu ceticismo foi se refinando.
Percebia erros e falhas como poucos. Detestava passar por ingênuo. Entre a ilusão e a
desilusão, preferia, por mais amargo que fosse o preço, ficar com a segunda. Ver Edu
praticando a hipnose parecia um contra-senso. Era novamente o ilusionista a nos
ludibriar com seus truques? Ou a hipnose não era somente a fraude que eu pensava ser?
A solução seria então pedir a ele que aplicasse a técnica em mim. Se eu fosse
também capaz de atravessar uma grande agulha em minha própria pele, sem dor ou
sangramento, ou se tivesse alucinações em virtude de seus comandos, pronto: a hipnose

passaria a ser para mim um fato.


Edu procedeu então uma indução hipnótica padrão:
“Estou amarrando um balão em seu braço direito”.
Simulava o movimento de quem amarrava um balão em meu braço direito. “E
ele está sendo puxado para cima. Está cada vez mais leve”. Este comando, como manda
o manual, era repetido várias vezes e de diversas formas.
Sua voz, porém, foi ficando embargada: “o seu braço esquerdo está leve,
leve...” e ele começava a trocar os comandos. Primeiro falava “braço direito”, depois
“esquerdo” e tudo foi ficando muito confuso. Pensava comigo mesmo: “Poxa, Edu, é
braço esquerdo ou direito?”. Estava difícil ser envolvido por sua fala atrapalhada.

Quando ele mesmo resolveu interromper tudo:


“Não vai dar, meu irmão. Eu mesmo tô ficando confuso e meio hipnotizado...”.
De fato, Edu era muito facilmente hipnotizável...
Hiperventilando e enlouquecendo

Éramos bons amigos. Nossa amizade era tranquila e um pouco esculachada. Não
havia nove horas entre nós. A amizade entre homens permite a coexistência pacífica de
brutalidade e solidariedade. Há uma certa hostilidade lúdica alinhada a altíssimos
graus de respeito e fidelidade. São casos onde a polidez e a aparência são
dispensáveis. Os homens se respeitam muito mais entre si do que as mulheres. E creio
que os homens se respeitam mais justamente pelo risco de sérios danos físicos ou
morte. As mulheres se provocam infinitamente, pois o risco de serem seriamente feridas

ou mortas por outra mulher é menor. A violência física, a criminalidade, ainda são
terrenos prioritariamente masculinos. Os homens costumam resolver ou finalizar
desentendimentos extremos na porrada e a dissimulação tem um papel menor do que no
universo feminino.
Toda a energia de reserva, que outrora era utilizada na caça ou na guerra, fica
disponível também para uma certa hostilidade lúdica. As amizade masculinas são muito
frequentemente repletas de gozações. A caricatura é a de que os homens se tratam mal e
se respeitam; e que as mulheres se tratam com polidez, mas se apunhalam pelas costas.
Hugo era recém-formado em Psicologia, mas não exercia a profissão. Era
aquele tipo que nunca deixaria de ser sempre um universitário. Circulava por todos o

meios alternativos, devorava livros como ninguém, um rato de biblioteca. Só para se ter
uma ideia, havia lido todos os títulos de Nietzsche traduzidos no Brasil. Usava óculos
fundo de garrafa. Cabelos curtos, meio dentuço e magro. Sua aparência era a de um
típico nerd. Porém, muitas de suas atitudes não se enquadravam em tal estereótipo.
Levava uma vida, no sentido literário, de maldito. Vivia a ler os malditos. Gostava do

baixo meretrício e raramente dispensava a oportunidade de se entorpecer.


Tanto era o seu apreço pelos estados alterados de consciência, que aos 16 anos
fora internado com uma overdose de noz-moscada. Havia lido, como sempre, em uma
revista de divulgação científica, sobre a ação das drogas psicotrópicas, que a noz-
moscada era alucinógena. Fez o quê, então? Segundo a dose recomendada na absurda
revista, bateu uma vitamina com a noz-moscada.
Tomou tudo e continuou lendo, enquanto esperava o início de suas fabulosas
visões. Contudo, ao dar sequência à leitura, deparou-se com um dado assustador: a

dose alucinógena era extremamente próxima da overdose. Minutos depois, os temíveis


efeitos começaram. Tudo à sua volta se amarelou. Passou a enxergar em tons de
amarelo e começou a padecer de um desesperador mal-estar: náuseas e vômitos. Além
do fato de não mais poder controlar adequadamente seus movimentos e equilíbrio. Tudo
se distorceu: visão, audição, equilíbrio, coordenação motora, fala. Mal conseguia
articular as palavras e teve de pedir socorro. Emergiu em um pesadelo, o qual só
começaria a ter fim já no hospital, tomando soro, depois de algumas horas. Falemos a
verdade: culpa da revista.
Àquela época eu cursava o doutorado e dava aulas para a graduação. Hugo me
via como uma espécie de modelo a ser seguido.

Certo dia, chegou em minha casa um pouco entorpecido:


“Adriano, é verdade que você manja de hipnose?”.
“É, um pouco”.
“Teria como, uma hora dessas, você me hipnotizar?”.
“Sim, teria”.

Eu respondia a tudo monossilabicamente. Era parte do jogo tratá-lo com


grosseria. Afinal, Hugo gostava de ser esculachado. Fazia sentir-se importante.
“Então, o que a gente faz, quando pode ser?”.
Pensei: ele já está um pouco entorpecido. Talvez o psicotrópico que ele tomou
forneça um impulso para uma indução completa.
“Faça o seguinte. Vá para o quarto, deite-se naquele colchão e faça 20 minutos
de hiperventilação. Enquanto isso, eu termino aqui de assistir a novela”.
“Ok. Ah, posso pedir uma coisa?”.

“O quê?”, indaguei, já meio impaciente.


“Eu gostaria de poder fazer um retorno a vidas passadas. Seria possível?”.
“Se é isso que você deseja, podemos tentar”.
É desta maneira que devem ser encaradas as coisas. Se existem ou não vidas
passadas não é a questão. O mais importante é sempre levar em conta o repertório de
crenças de quem irá se submeter à hipnose e conduzi-la em função disso. As crenças de
nossos pacientes, se boas para a vida deles, devem ser respeitadas.
Hugo não tinha crença alguma, se dizia um ateu. Mas tinha curiosidades. Porém,
eis aí uma contradição. Se é mesmo ateu, que história é essa de curiosidades? Não sei,
nunca conversei com ele acerca deste aspecto. Talvez fosse uma curiosidade de cunho

experimental: “Não acredito, mas não custa nada testar”. E acreditar não é saber. Não
confundamos uma coisa com a outra. A crença dá sempre margem a outras
possibilidades.
Vidas passadas são uma crença, não um saber. Alguém que dissesse: “Eu sei
que existem vidas passadas”, seria somente um tolo que tem fé. Ou o contrário: “Eu sei

que não existem vidas passadas”: tolo também que não sabe a diferença entre crer e
saber. Portanto, talvez fosse acerca destas outras possibilidades que Hugo estivesse
curioso.
Assim que terminou a novela, vinte minutos depois, fui até o quarto. Hugo já
respirava de modo intenso e rápido por cerca de 20 minutos. Eu estava meio sem
paciência: esse negócio de hipnose quase nunca dava certo, além de ser muito cansativo
e entediante. Boa parte dos métodos de indução demandam muita paciência. Deve-se
repetir comandos. A fala deve ser monótona ou ritmada, estabelecendo ciclos de

repetição para fazer dormir, dominar, ou focalizar a atenção da presa. Sim, presa. Pois
é isto que muitos predadores fazem com suas presas. Ou que as presas fazem consigo
mesmas, para sua própria proteção, para não despertarem a atenção de um predador
próximo.
Às vezes eu também me sentia um idiota, repetindo comandos simples e óbvios,
em tom solene e calmo, para fazer marmanjo dormir. Não me apetecia a ideia de ser o
representante sacerdotal de uma mentira, de uma fraude. Mas era preciso conhecer
aquilo, e eu estava disposto a utilizar as técnicas dramáticas e de oratória que fossem
necessárias. Se tivesse de encarnar a postura de um padre ou pastor a conduzir seu
rebanho em seus sermões escandalosos, o faria, pelo espírito experimental, pela

necessidade de teste, para saber se aquilo funcionava em alguma medida. Façamos


então o que fazem pastores, padres, xamãs. Tentemos reproduzir a atmosfera dos rituais
que conduzem multidões ao delírio. Testemos então a hipnose.
Como eu e Hugo éramos bons amigos, não havia a necessidade de qualquer
formalidade ou mesmo polidez. Assim, fui bem breve e enérgico.

“Você está em um túnel. É um túnel do tempo. Ele gira muito rápido e você gira
junto. É um turbilhão. Sua mente está mergulhada neste turbilhão. O túnel vai girando e
assim você vai retornando no tempo”.
Pedia para que fosse retornando na idade. De vez em quando pedia para que
parasse em alguma e que revivesse alguns momentos de sua vida, com a maior
intensidade e realidade possíveis. Como eu não estava com muita paciência, até que
chegamos bem rápido ao seu nascimento e à sua concepção. Dali em diante seria uma
incógnita.

“O túnel gira cada vez mais rápido e violentamente. Tudo está extremamente
caótico. Seu ser está se fragmentando em milhões de pedaços. Farei uma contagem até
cinco, e no final desta contagem ocorrerá uma grande explosão. A explosão de seu
próprio ser. Após esta explosão, você acordará em um outro lugar, em um outro tempo:
1...2...3...4...5. Um outro lugar, uma outra dimensão, um outro tempo...
Onde você está? O que você vê?”.
Disse-me que estava numa tribo, na África. Tudo o que faziam era acompanhado
de música ou dança. Ainda respirava muito intensamente e tremia bastante. Como
cantavam para tudo o que faziam, pedi para que começasse a cantar. Não foi capaz.
Estava tão ofegante e trêmulo que era impossível a articulação de qualquer palavra.

Emitia gemidos ao invés de canto. Adentrou um estado frenético de movimentação


corporal descontrolada. Seu estado convulsivo foi se intensificando cada vez mais. Não
parava de se debater. O caso não era mais preocupante. Era desesperador. Perdi o
controle da situação, pensei. Por sorte era um grande amigo. Talvez assim os erros
fossem mais facilmente perdoados.

Além disso, para minha surpresa, fui tomado por um acesso incontrolável de
risos. Nossa relação era esculachada, sempre ríamos um do outro por qualquer
besteira. Nada mais lógico do que cair na gargalhada diante do ataque bizarro pelo qual
ele passava. Estava com o corpo todo retorcido, debatia-se e babava em urros
ininteligíveis. Era o fim dos tempos de sua sanidade, ali, naquela noite, em minhas
mãos. O ridículo agora movia nosso mundo e implorava urgentemente para que
baixasse em mim um pastor ou um pai de santo que tirasse Hugo daquele inferno.
Eu estava completamente impotente. A cada palavra que tentava articular

transbordava de mim uma infame risada. Minha voz estava toda entrecortada de risos.
Risos idiotas e altamente impróprios, diante da aparente gravidade da situação. Eu
tinha plena consciência dos difíceis problemas que poderiam brotar dali. Assim, tive
uma boa e estranha ideia:
“Vou contar até 3. E após o 3 você ficará surdo, completamente surdo, por cerca
de 1 minuto.
1,2,3...Surdo, completamente surdo!”.
Assim pude permitir a mim mesmo a descarga completa de minha gargalhada
contida. Nestas horas, a tentativa de contenção às vezes se revela pior, pois riso
proibido é riso infinito. Soltei toda gargalhada a que tinha direito. Ri alto, tranquilo,

solto e bem gostoso. Esgotado o riso, a missão impossível agora era salvar Hugo
daquele processo incontrolável de enlouquecimento.
Deixei que o espírito de todos os xamãs da história baixassem em mim e fui
enérgico com minha pobre cobaia. Ele sairia daquele infeliz estado de possessão, nem
que se fosse na porrada.

Fiz sugestões no sentido de sua calma e tranquilidade: “Conforme eu vou


falando, o tempo vai passando, você vai se sentindo mais e mais relaxado e calmo.
Farei uma contagem regressiva de 10 a 0. Quando chegar no 0, você dormirá”.
É recomendável que estas contagens sejam sempre feitas de modo paulatino e
intercaladas por palavras-chave ou comandos: 10, relaxe, relaxe... 9, cada vez mais
calmo... 8, mais tranquilo...
E assim caminhamos lenta e tranquilamente até o zero de sua loucura. Hugo
agora era um bebê que dormia plenamente em sua bonança, após a tempestade de seu

ser.
Era hora de despertar: “Farei uma contagem até 3 e no 3 você despertará.
Retornará à sua vida normal, de Hugo. Retornará a este mundo aqui, sem quaisquer
sequelas ou traumas”. Era necessário assegurar que seu retorno fosse pleno. Era
importante que não restasse qualquer resquício daquele surto, para que sua recuperação
fosse total.
Porém, é possível que eu não tenha sido muito enfático. Hugo abriu os olhos e
começou a chorar ao olhar para as próprias mãos ainda enrijecidas e contorcidas:
“Minha mão... Eu não consigo mexer... O que aconteceu com a minha mão?”. Chorou
como uma criança ao sentir-se impotente para mover as próprias mãos.

Não permiti que este sofrimento se prolongasse:


“Contarei até 3 e no 3 você dormirá, ao toque em sua testa”.
Nesta hora, em que a pessoa acabou de despertar, ela ainda está totalmente
suscetível à sugestão hipnótica. Basta um comando simples e imediatamente entra em
hipnose. Contagem simples e rápida e toque na testa: Hugo despencou no sono. Parte 2:

agora era necessária somente a sugestão de que suas mãos iriam amolecer, voltar ao
normal. Feito isto, pedi para que despertasse.
Hugo abriu os olhos. Estava fraco, muito fraco. Parecia que tinha acabado de
voltar de uma cirurgia ou tomado uma tremenda de uma surra. Não conversamos sobre
isso, mas suspeito que ele mesmo concebia aquela experiência como um tratamento
para seu espírito. Entrar em transe não era coisa nova para ele. Havia lido sobre
xamanismo, psicoterapias psicodélicas, além de ter feito o uso recreativo de diversas
drogas. O transe, mesmo quando infernal, era visto por ele como uma possibilidade de

cura, de acesso ao indizível, aos sentimentos e visões mais genuínos.


Fiquei tão impressionado com o ocorrido que, durante seu surto, fui chamar
Marina, minha namorada, para que visse tudo o que estava ocorrendo. Ela adentrou o
quarto, intrigada. Afinal, de fora, ouvira gemidos de um homem e risadas
descontroladas de outro vindos de um quarto escuro. Nada mais estranho e suspeito
para a virilidade dos sujeitos em questão. Ela tinha acabado de sair do banho e ainda
ostentava uma toalha enrolada em sua cabeça.
Já acordado e completamente desfalecido, Hugo bebia um copo d’água,
prostrado no sofá, contando-nos como havia se sentido.
“Nossa, quando vi a Marina, pensei que eu estivesse no Egito”, completou.
“Tá podre...”

Certa vez, em sala de aula, expondo os motivos pelos quais Freud havia
abandonado a técnica da hipnose, dispus-me a fazer uma demonstração. Até aquele dia
eu havia tentado inúmeras vezes, por anos a fio, mas sem sucesso. Disse aos alunos que
era uma técnica muito cansativa e que era muito difícil hipnotizar as pessoas, que a
maioria não era hipnotizável. Ou seja, eu estava não somente falando de minha
experiência, mas também do que Freud havia relatado há cerca de um século atrás e dos
dados científicos consolidados sobre suscetibilidade hipnótica.

Eu havia aprendido os fundamentos com meu irmão mais velho, o


dentista. E tentara, assim como ele, em vão, hipnotizar amigos e familiares. Não
tínhamos qualquer reflexão ou concepção teórica sobre o assunto. Como ele havia sido
uma excelente cobaia em meio aos dentistas com os quais fizera o curso de hipnose,
alimentávamos a expectativa de que poderíamos obter os mesmos resultados com
qualquer outra pessoa. Ele havia sido um excelente sujeito para a demonstração de
anestesia hipnótica. Seu professor e colegas espetaram agulhas por todo o seu corpo. E
esta é geralmente uma espécie de demonstração derradeira, a mais convincente. Uma
coisa é fingir alucinações e delírios, outra, bem mais difícil, é a capacidade de
continuar fingindo, mesmo diante de estímulos dolorosos.

Havia, para nós, alguma realidade na hipnose. Porque, senão, Edu, bom
cético que era, teria sido o primeiro a rejeitá-la. E pelo contrário, lá estava Edu sendo
trespassado por agulhas em diversas partes de seu corpo. Dando seu valioso
testemunho, prático e vivo, de algo fenomenal.
Porém, saindo da dimensão de excelente sujeito para a hipnose que era

Edu, a coisa ficava bem menos convincente. Era tentar hipnotizar, a quem quer que seja,
e os resultados eram sempre bem mais modestos e frustrantes. Nesse aspecto, pelo
menos, o determinante mais evidente não é técnica de indução hipnótica, mas sim o
próprio sujeito que a ela se submete. Dispondo de sujeitos facilmente hipnotizáveis,
basta pedir que se concentrem e todo o processo assim se desenrola.
Mas, e se estes sujeitos, tidos como facilmente hipnotizáveis, não
tiverem tido qualquer espécie de treinamento hipnótico? Iogues, por exemplo? O que
dizer deles? Possuem outros métodos de concentração, os quais podem não ser

exatamente os mesmos que nós ocidentais chamamos de hipnose. Ou poderiam ser


vistos como fundamentalmente os mesmos? Se forem os mesmos, a hipnose não é a
única via para se obter determinados estados de consciência. Neste caso, ela perde sua
aura de técnica única, exclusiva, especial. Por outro lado, se os fundamentos forem os
mesmos; ou seja, se tanto hipnose quanto ioga, por exemplo, possuírem os mesmos
fundamentos técnicos, ela (a hipnose) não representa nada de novo e nem de especial
também.
Se é diferente, mas obtém os mesmos resultados que outra coisa já existente,
porém mais simples e acessível, por que seria mais vantajosa? E se compartilha dos
mesmos fundamentos técnicos, por que tratá-la como absurdamente diferente? Qual é

função de se fazer a mesma coisa que os outros e, contudo, dar um nome diferente? Sim,
não podemos esquecer que existem histórias diferentes. Ioga e hipnose nascem em
contextos totalmente diferentes e suas especificidades devem ser resguardadas. Porém,
por outro lado, perceber semelhanças em seus fundamentos técnicos pode também, por
meios comparativos, ajudar a compreender melhor estas práticas.

Porém, não há como negar, tanto hipnose quanto ioga são muito mistificadas. A
ioga está tradicionalmente mais próxima de práticas religiosas. A hipnose, por outro
lado, volta e meia aparece e reaparece reproduzindo mitos dentro até mesmo do
próprio universo científico. Chega com pose de ciência e quebra as pernas de muitos
pesquisadores, expondo feridas metodológicas e confusões conceituais.
O hipnotista ordena e o hipnotizado realiza o que é ordenado. Esta talvez seja
ainda uma boa definição: pertinente, objetiva e simples. Ainda não é possível dizer
exatamente o que se passa na cabeça dos hipnotizados. Se estão somente colaborando

ou se há mesmo significativas alterações de consciência. Há teorias e evidências em


ambas as direções. Ainda não há consenso científico.
Por que Freud abandonou a hipnose? Este era o tema da aula que comecei a
relatar no início. Vamos então aos motivos de Freud:
1. A hipnose não mais servia aos seus objetivos específicos. Sua intenção era
recuperar memórias esquecidas, recalcadas. Percebeu que a hipnose deixava os
pacientes em um estado muito primário de funcionamento mental. Fantasias eram
produzidas em profusão, o que facilitava a produção de falsas memórias.
2. A hipnose tinha se transformado para Freud em uma técnica muito cansativa.
Não tinha mais paciência para ficar repetindo comandos indefinidamente, com o

objetivo de fazer com que adultos “dormissem”. Tinha dificuldade em hipnotizar todos
os pacientes, além de não concebê-la como uma ferramenta eficaz em termos
etiológicos. Ou seja, além de não servir ao seu propósito principal (a recuperação de
memórias), era também enfadonha.
Sua dificuldade em hipnotizar todos os pacientes é atestada pelas pesquisas de

suscetibilidade hipnótica. Somente cerca de 15% das pessoas são facilmente


hipnotizáveis. Para o restante, a maioria, é necessário mesmo uma certa dose de
paciência.
Minhas ideias sobre a hipnose, até aquele dia, naquela aula sobre a relação de
Freud com esta técnica, era totalmente endossada pelos argumentos do pai da
Psicanálise.
“Mas, a hipnose, professor? Existe mesmo?”, perguntavam alguns alunos,
mortos de curiosidade.

“Vocês querem fazer um teste? Podemos realizar um teste. Quem se dispõe a ser
sujeito de alguns testes?”, indaguei.
Um aluno levantou a mão. Era um rapaz muito jovem. Tinha menos de 20 anos
de idade. Cursava o terceiro semestre e sempre aparecia com perguntas ora muito
suaves ora constrangedoras, muitas vezes ingênuas e até pueris.
Fiz tudo o que recomendam os mestres e manuais da área, com paciência e
perseverança. Em um determinando momento, depois de muito relaxamento, pedi para
que ele me dissesse o que estava vendo. Disse que não via nada, que estava escuro.
“Então acenda a luz”, sugeri, buscando estimular sua imaginação.
“Acendeu” e começou a descrever onde estava. Estava em casa, lendo. Pedi

para que me descrevesse tudo o que estava fazendo e onde estava.


Passado um certo tempo, resolvi fazer alguns testes, sugerir algumas imagens e
sensações. Em um determinado momento peguei um estojo de lápis, feito de borracha, e
ordenei que o comesse, pois era uma maçã. O rapaz morde o estojo e o arremessa ao
chão. Pensei: falhou novamente! Ele obviamente percebeu que não é uma maçã. Eu

sabia! Eu e Freud, juntos, não poderíamos estar duplamente enganados.


“O que houve?”
“Tá podre!”, respondeu.
Sim, para meu espanto e de todos os presentes, ele se comportava tipicamente
como alguém hipnotizado.
Quem observava, como costuma ocorrer neste tipo de situação, ficou perplexo.
A partir deste momento, o entendimento do que pode ou não estar ocorrendo geralmente
fica comprometido. Os eventos podem se suceder de modo inusitado. Algumas pessoas

parecem perder o controle. Podem falar ou agir de modo bizarro. E é exatamente isso o
que acho de interessante nas induções hipnóticas.
“Quanto mais bizarra é uma experiência, mais proveitosa ela é”. Conheço esta
frase, deste modo, há muito pouco tempo. Mas manifestações bizarras sempre me
despertaram grande interesse. O diferente, o inusitado, abrem novas perspectivas. São
rupturas de padrão, fluidez. Abrir-se para o que é estranho é parte importante de um
processo de exploração que se expõe a novos horizontes, mesmo que ainda não dotados
de sentido.
Um colega meu dizia assim: “o ridículo move o mundo”. E sempre compreendi
da seguinte maneira: agir sem medo de errar, de ser diferente. Assumir nossos próprios

defeitos e deles tirar algum proveito. Daí meu apreço pelas formas inusitadas, pelo
non-sense, pelo bizarro. Novas formas de expressão e, portanto, de compreensão
também. Novas alternativas, brotadas da loucura.
Dou valor ao insólito, ao bizarro, na proporção de uma crença que carrego há
um certo tempo: a crença no poder da expressividade. As psicoterapias, de modo geral,

e as artes, como um todo, possuem esta crença: expressar e, brincar, curam. A


expressão é curativa. E o que seria expressar bem? Não seria esta a principal tarefa das
artes, expressar melhor? Ou de formas alternativas, que possam abrir novos horizontes
de compreensão e, portanto, de solução para uma infinidade de dilemas humanos?
Vejo a hipnose como um tremendo recurso expressivo. Acerca disto, para mim,
não há qualquer questão. Muito frequentemente expressões inusitadas ou mais intensas
são despertadas. Possui um significativo valor catártico. E a catarse, a purgação dos
afetos, a qual é popularmente conhecida como desabafo, desempenha um papel muito

importante na psicoterapia. Sem desabafo não há terapia. E as artes estão todas aí para
nos ensinar a expressar melhor o que sentimos e ainda não sabemos colocar em
palavras. E esta expressão pode se dar das mais variadas formas.
Acredito nisto. Tenho um percurso em Psicanálise. A influência que ela
absorveu do Romantismo diz o seguinte: a loucura, enquanto método, enquanto caminho,
pode ser de grande valia. E o que é sua regra principal, a da associação-livre? Dizer
tudo o que ocorre à mente, sem restrições, nem ponderações, do modo mais imediato e
espontâneo possível. Isto tem nome: loucura, como método, como meio. Jamais pode
ser feito fora de seu ambiente propício, onde o inusitado e o censurável não sejam
acolhidos. A associação-livre é um legado romântico que Freud aproveita a favor de

seus objetivos psicanalíticos. A loucura como meio (associação-livre), a razão e a


saúde como fim.
A paranoia freudiana de que nada é por acaso ou de que tudo, em termos
inconscientes, tem um sentido, exige a loucura como um meio: deixar o inconsciente
fluir. Permitir um pouco de loucura. Ela é o caminho para uma razão libertadora. Para

saber melhor o que sentimos, ou o que nos move, é preciso soltar um pouco os bichos.
É preciso viver, envolver-se, atuar, relacionar-se. Ou permitir, em sessão, que isto de
alguma forma se manifeste.
Naquele dia havia um funcionário da universidade a observar pelo vidro da
porta tudo o que ali se passava. Comentava com algumas alunas que não acreditava em
nada do que estava acontecendo, que tudo não passava de encenação. Terminei a sessão
com o aluno e este funcionário adentrou a sala, dizendo que também queria ser
submetido à hipnose. “Temos pouco tempo, somente cerca de quinze minutos. Mas

podemos tentar...”, respondi. Ele topou. Pensei: vou pedir para que se recline na
cadeira, para que fique na posição mais confortável possível, que procure dormir.
Afinal estávamos praticamente no horário de almoço, um horário muito propício ao
sono.
Em um mesmo dia, duas situações novas e diferentes. Primeiro um diz que “tá
podre” ao morder um estojo de borracha. E logo em seguida adentra a sala alguém que
duvidava daquilo tudo, em tom desafiador. O que eu, por sorte, nem havia percebido.
Senão nem tentaria nada, pois eu não tinha objetivo nenhum de provar nada, nem de
defender a hipnose como uma técnica eficaz ou legítima.
A sessão prosseguiu. E lembro, com ele, de ter feito algo parecido: pedi para

que comesse um estojo ou coisa semelhante, dizendo que era um barra de chocolate. Ele
fez tudo o que pedi. Mas não tive muita confirmação se somente obedecia ou se estava
em um estado alterado de consciência.
Quando terminamos, ele disse que havia sido uma experiência fascinante. Não
tivemos tempo para conversar mais nada. Era o fim da aula. Fomos todos embora. Dias

depois, uma aluna veio me contar que ao perguntar a ele, nos corredores, como fora a
experiência, ele descreveu a ela que havia comido, durante a sessão, uma barra de
chocolate.
“Não. Ele te deu um estojo. Você ficou mordendo um estojo”, respondeu ela.
“Que isso? Você tá louca. Não paguei esse mico não. Lembro bem, era uma
barra de chocolate.”
Ele tinha a firme convicção de que havia comido chocolate e não estojo. A
aluna relatou isso em sala. Os alunos ficaram muito impressionados. E eu continuei sem

entender nada.
Que mecanismo é este? Duvidar, desafiar e em seguida dobrar-se ao espetáculo,
à influência de outra pessoa? O que fez com que perdesse sua capacidade de oposição,
de ver com os próprios olhos? De sentir por si próprio? Sentiu o que lhe foi ordenado
(ou sugerido) sentir. Isto é de fato possível? Foi “hipnotizado” por mim.
Ser hipnotizado, segundo algumas teorias que já li a respeito, pode tanto ser
fruto de uma sedução quanto de uma opressão, de um medo. Tanto sedução quanto medo
são hipnotizantes. Faz o sujeito agir e perceber como queremos. E no caso deste
funcionário, o que aconteceu? O que foi determinante para que ele fosse dominado do
modo como foi? A pressão do grupo? : “Colabore conosco. Veja e sinta o que estamos

todos ordenando. Senão você será linchado”. Seria esta a mensagem implícita,
inconsciente? Ou seria a imagem que ele tinha de mim, o efeito da pré-sugestão, da
expectativa de que o hipnotista é infalível?
A pré-sugestão, não podemos nos esquecer de seu poder, ela sim é infalível.
Penso que muitos hipnotistas se iludem, ao pensar que possuem uma técnica infalível.

Pré-sugestão é fundamental. Ela pode ser definida como todo o conjunto de sugestões
que bombardeiam o sujeito antes de qualquer procedimento. Está mais do que
evidenciada, seja por pesquisa sistemática, seja de modo informal. Quanto maior a
expectativa depositada no hipnotista de que ele possui uma técnica eficaz, fulminante e
especial, maior a pré-sugestão. Assim, mais da metade do trabalho já está realizado.
Muitos hipnotistas já fizeram este teste.
Anunciam ao público a apresentação de um “grande” mestre da arte da hipnose.
E basta o sujeito a ser hipnotizado depositar bastante autoridade na figura do hipnotista,

que este se transforma num grande mestre, independente de quem seja. Se o público
acreditar não importa nem mesmo se há experiência na área ou não. Pensam, e dizem: é
um grande hipnotista que veio da Europa, dos Estados Unidos, professor e um dos
maiores conhecedores do assunto, e com certeza isto já desempenha um papel absurdo
na indução.
Basta pegar alguém que possua pelo menos a aparência de ser um grande
hipnotista. Pode ser simplesmente um leigo. É muito interessante. Isto com certeza
demonstra que a técnica não é o mais importante. É mais relevante o valor que as
pessoas depositam no sujeito. Acreditar e confiar constitui a maior parte do processo.
Autoridade vale mais do que técnica, habilidade ou conhecimento. E esta autoridade,

mesmo que falsa, pode funcionar muito bem.


Daí o fato de ser geralmente tão difícil desvincular a hipnose do ilusionismo, da
enganação. Há profissionais que se apoiam totalmente nesse aspecto. Vivem
praticamente da imagem de competência que nutrem diante de seu público ou clientes.
Universo, muito geralmente, em que o parecer vale bem mais do que o ser competente.

É o efeito placebo alçado à sua dimensão talvez mais elevada.


Dias depois, eu uma outra professora, reparamos que aquele funcionário, tido
por muitos como arrogante, era agora bem simpático e receptivo para com minha
pessoa.
“Ué, Adriano? Esse funcionário não é simpático assim com ninguém...”, indagou
ela, um pouco espantada.
“É verdade. Acho que foi a hipnose. É assim mesmo, depois que a gente
hipnotiza, a pessoa fica apaixonada.”
Ficando rico com a hipnose

A hipnose é um técnica mergulhada em mistificações. Abordo este tema,


detalhadamente, em meu primeiro livro sobre o assunto: “Hipnose: fato ou fraude?”.
Antes, porém, tive algumas experiências interessantes.
Vi muitos dizerem que se utilizam da hipnose em sua prática terapêutica, sejam
psicólogos ou não: médicos, terapeutas alternativos, psicólogos, dentistas e outros.

Infelizmente, boa parte das pessoas com quem tive contato, utilizava a hipnose de modo
mistificador e, em alguns casos, até mesmo de modo fraudulento e charlatão. Existem
obviamente muitos profissionais conscientes de suas limitações e das técnicas que
fazem uso. Porém, a hipnose, com toda sua aura lendária, parece atrair legiões de
enganadores.
Está muito próxima do truque. O ilusionismo é de certa forma uma espécie de
hipnose. Ao chamar a atenção para um ponto específico e produzir a percepção de uma
ilusão, é gerado um efeito muito semelhante ao que se faz durante uma indução

hipnótica. O objeto muitas vezes já se encontra ali e nem nos damos conta, pois nossa
atenção está focalizada em um outro ponto. Isto é muito comum em apresentações de
ilusionismo. Deste modo, em algumas práticas, não é estranho que uma coisa comece a
se confundir com a outra.
Um exemplo. O sujeito faz hipnose de palco e está mais preocupado em
impressionar o público do que em fazer compreender o que de fato está ocorrendo ali.
O mais importante é mostrar-se como o detentor de um dom espetacular e misterioso,
como alguém poderoso, senhor de conhecimentos profundos acerca do controle da
mente e comportamento alheios. Habilidades que somente seriam adquiridas mediante
um aprendizado especial, guardado às sete chaves, por centenas de anos.

O sujeito aquece o público com estórias de casos bem sucedidos, de


espetáculos já propiciados. Relata curas incríveis. Às vezes possui sotaque estrangeiro,
o qual reforça ainda mais a assimetria entre ele, hipnotista, e nós. Possui uma retórica
envolvente, provoca carisma e/ou temor. Geralmente bem vestido e dito bem sucedido.
Um jogo fulminante de aparências. Ilusionismo e inebriação do começo ao fim. Sem

qualquer aviso, será realizada a hipnose de todos. O auditório acaba também sendo
hipnotizado, mas assim não concebe.
A pessoa já está no palco, sendo submetida a uma indução. O hipnotista começa
a sussurrar em seus ouvidos. O que será que diz nestas horas? Quais são as preciosas e
“mágicas” palavras que sussurra ao pé do ouvido daquela pobre vítima de seu poder
avassalador? Logo, a presa está lânguida e sob o completo controle deste mago. É
assim que este tipo de hipnotista quer fazer parecer.
Uma vez um deles perguntou ao público:

“Quem aqui acha que não é facilmente hipnotizável, levante a mão.”


Algumas pessoas levantaram a mão. Escolheu uma jovem de expressão doce.
Utilizava uma técnica de fixação do olhar, na palma de sua mão, bem acima da cabeça
da jovem, com o ombro direito dela apoiado em seu peito. Sussurrava em seu ouvido e
a abraçava, estando ela de lado para ele. Em poucos minutos, ela já pendia a cabeça em
seu peito, caindo literalmente em seus braços.
Este excesso de proximidade física pode produzir um efeito de opressão ou
proteção corporal. Retoma na pessoa hipnotizada estados de estar sendo possuída,
seduzida ou dominada. Em termos pavlovianos, é a conquista da presa, o beco sem
saída. A consumação de um domínio, de uma caça, de um ato de sedução. O que resta

então à presa? Congelar. Freezing.


Percebi que este hipnotista, quase nunca trazia homens ao palco, e se os
trouxesse era somente para deixá-los absortos num canto. Com as mulheres era um
intenso contato corporal. Com os homens, uma distância fria.
“Meu caro colega, você já percebeu que utiliza quase somente mulheres em suas

demonstrações?”, indaguei.
“É verdade. Às vezes penso que sou guiado pelo meu tesão. Você viu a última
menina? Que gracinha. Foi muito bom tê-la nos braços.”
Ele se realizava ao perceber que havia hipnotizado uma mulher atraente, que
esta havia caído em seus braços, como se tivesse de fato consumado uma sedução.
Preferia sempre mulheres bem mais jovens. E não raro enamorava-se de suas alunas ou
pacientes. Todas as últimas companheiras que tivera tinham sido alunas ou pacientes.
Outro detalhe é que sempre fora um sujeito muito ambicioso. Sempre muito atento para

seus proventos financeiros. De seu círculo de conhecidos, não havia quem não
percebesse isto.
Para piorar, no final, depois de ter hipnotizado a jovem que dissera não ser
facilmente hipnotizável, soltou a seguinte pérola:
“Pois como eu digo: jamais duvidem do poder de um hipnotizador”.
Convenhamos, para ser hipnotista é preciso também ser uma besta?
Seu desejo mais íntimo era talvez hipnotizar o mundo todo e dele apropriar-se
como seu senhor supremo. E a hipnose não seria um caminho para isso? Não é isto o
que fazem alguns, senão todos os sacerdotes via-satélite, o quais podemos acompanhar
a qualquer hora da madrugada em programas religiosos transmitidos pela televisão?

Uma vez, inclusive, eu estava a assistir um destes programas. Alguém chegou.


Percebeu que eu perseverava em assistir e não entendeu.
“Ué, Adriano? Por que você tá assistindo isso aí?”
“Rapaz, tô aqui tentando compreender quais são as técnicas que esse povo
utiliza. Olhe a oratória desse sujeito. A emoção, a música. Tá construindo um mundo

inteiro dentro da cabeça do povão somente com a boca. Haja recurso dramático, haja
repetição...”
Sim, dá pra ficar abismado. E não foi diferente quando, em um curso que fiz,
mencionei que o maior centro de hipnose estava ali, ao lado. Mas as pessoas não
entenderam.
“Sim, gente, aqui, do outro lado da rua. Aquele enorme templo ali, oh, é o maior
centro de hipnose daqui das redondezas.”
Algumas pessoas, não sei por que, ainda não compreendiam. Desculpem-me,

mas esses cursos são repletos de antas.


“Ou vocês acham que o sacerdote daquele templo utiliza técnicas muito
diferentes das que estamos a aprender aqui?”
Era bom não insistir muito. Fanatismo também existe fora daqueles templos e
rituais histéricos.
Aliás, num destes cursos, os quais geralmente são caros e cheios de conversa
fiada, vi e ouvi cada uma.
Entrei no site do curso, para verificar mais especificamente do que se tratava,
se valeria à pena pagar pra ver. A home page tinha uma concepção visual de última
categoria. Além de graficamente pobre, era repleta de clichês. O que talvez seja até

meio difícil de se escapar completamente. Para dar um exemplo, a primeira edição de


meu livro possui também alguns espirais. Sutis, mas não deixam de ser espirais. E,
portanto, para a área, clichê.
Mas o problema não era somente este. Não somente clichê, mas também
graficamente pobre, muito pobre. Todo seu conteúdo era voltado para a promoção dos

cursos. Faziam também referência a uma associação de hipnose que teriam fundado. E
muitos fazem isto. Criar uma associação, mesmo que esteja evidente que é somente de
fachada, produz, para muitos, ingênuos, uma outra impressão.
Além de site, tinham uma associação. Qualquer um que fizesse o curso já
automaticamente ficava inscrito na “associação” de caráter nacional. Verifiquei os
preços dos cursos. Caríssimos. Turmas sempre lotadas, sem limite de inscritos.
Sinalizavam inclusive o recorde de participantes em um de seus cursos. Fiz as contas.
Os lucros eram altos, muito altos: um negócio da China. O sujeito tinha criado uma

máquina de fazer dinheiro. Mas ainda era um negócio familiar, nada ainda em grande
escala, como uma PNL, por exemplo.
Alias, não sei por que. Talvez seja até preconceito de minha parte. Mas não
confio em nada que venha com um ™ do lado. Inventam um nome e uma embalagem
diferente para uma coisa que todo mundo já conhece, para disfarçá-la, e botam lá o
famigerado ™. Ainda não me acostumei com este tipo de coisa. Mas já pensaram
nisso? Freud lançando seu livro “A interpretação dos sonhos” com a capa assim: “A
interpretação dos sonhos™”. Estranho. Muito estranho.
Outro fato interessante no site do dito curso era a bibliografia. A grande maioria
era de livros de autoajuda. Como montar alguma coisa séria com base em livros de

autoajuda? Como era um curso totalmente focado em técnicas de indução hipnótica,


pensei que seria interessante fazê-lo. Eu estava mais interessado no que chamo de
layouts de técnicas. Pagaria então pra ver se havia alguma técnica nova, que me
surpreendesse. Com o termo lay-out pretendo dizer que a estrutura é a mesma e o que
muda são somente alguns detalhes, os quais eu não tenho criatividade suficiente para

tirá-los da cartola.
Existem fundamentos básicos da técnica: repetição, focalização da atenção,
privação sensorial. Abordo também esta questão em meu primeiro livro (já citado)
sobre o tema. Adotando estes fundamentos, o restante é somente uma roupa, uma
embalagem diferente em cima de uma mesma coisa, sempre, ou seja: lay-outs,
molduras. Fui então em busca de molduras diferentes. Uma hora o sujeito fixa o olhar
em sua própria mão, na outra, na mão do hipnotista, em algum ponto do ambiente,
pêndulo, com os olhos voltados para cima ou para baixo, em posição fatigante, e por aí

vai.
O curso contudo foi, em termos teóricos, bem fraquinho, sem a menor
consistência. A cabeça do professor era totalmente modelada por débeis considerações
de livros de auto-ajuda. Incapaz de qualquer questionamento ou reflexão mais
profundos. Uma voz muito calma e a retórica mais do que necessária para inebriar
muitos dos presentes, já há muito inebriados, talvez pelo tema, ou pela própria pressão
do grupo a endossar cegamente os milagres de que era capaz a hipnose.
Em muitos momentos a cena beirava a comicidade, o ridículo. Aliás, hipnose,
se não tomarmos cuidado, pode muitas vezes nos mergulhar no ridículo. Não sou muito
temeroso com o ridículo, desde que assumido e conscientizado. O que não era o caso.

Ele enumerou, e até de modo inútil, uma aparente infinidade de técnicas. Somente
aparente. Ao meu lado, um aluno, inconformado com a perda de tempo, a observar tanta
debilidade mental, chegou a comentar:
“Esse curso é oco, vazio. Não tem nada dentro. Tudo em função somente das
aparências, mais nada.”

E durante o coffee-break:
“Este foi o coffee-break mais caro de toda a minha vida.”
Outro, mais nervoso, mais revoltado, com um jeito efeminado, também não se
conteve:
“Vou pedir meu dinheiro de volta. Estou me sentindo em um ritual da Seicho-no-
ie. Não vim aqui para isso. Não estou acreditando nisso.”
Fizeram, durante o coffee-break, destilar seu veneno, e queriam minha
solidariedade à sua revolta. Eu não estava nem um pouco contrariado:

“Desculpem-me, mas vocês deveriam ter avaliado melhor do que se tratava


antes de terem se inscrito. Dessem uma olhada na bibliografia e logo veriam que a
teoria aqui não passaria de conversa fiada.”
Para mim não havia surpresa. Sabia que ouviria mesmo muito papo furado.
Minha meta eram as molduras, as pinturas eu já as tinha.
Não sei se o professor assim concebia, mas muita coisa que falava colocava em
xeque sua malícia e inteligência:
“Minha esposa disse que estava cansada e doida pra estar numa praia. Fiz uma
hipnose com ela e pronto: foi para a praia, sem precisar sair do lugar, sem gastar um
tostão”, comentava.

E fez aquela lista enorme de curas. Hipnose como remédio pra tudo, como
panaceia. A ausência de qualquer limite, de qualquer critério. Parecia um caixeiro
viajante, de cidade em cidade, a vender seu tônico miraculoso. E não assim que também
agiam os sofistas, vendendo sabedoria de cidade em cidade? E sempre a promessa de
mundos e fundos, de resultados imediatos. Sem uma grande promessa, não há bom

negócio. Deve-se resguardar muito bem o campo das aparências, da perfumaria, usar e
abusar da repetição e da retórica e, por fim, mesmerizar o público, com a anestesia
completa de sua capacidade crítica.
O rapaz revoltado foi à frente, como sujeito de uma demonstração:
“Não estou hipnotizado”, em tom afetado.
“Foi exatamente isto o que eu disse à primeira vez em que eu havia sido
hipnotizado”, respondeu o mestre.
Em toda sua dificuldade, o professor tinha uma habilidade: a de não estender

uma discussão, de não esquentá-la. Estava sempre em baixíssima temperatura. O que


não interessava, ele simplesmente nem dava ouvidos. Calmo, sempre muito calmo.
“Não estou hipnotizado”, repetiu um outro.
“Está sim, você que não está percebendo...”
Esta sua última réplica retomou à minha memória Milton Erickson, em um de
seus livros. Às vezes fazia exatamente esta mesma coisa. Desculpe-me a autoridade de
Erickson neste campo, mas isso é patético. O sujeito está dizendo que não está
hipnotizado e retrucamos que sim? E fim de papo, sem qualquer justificativa ou
explicação plausível? Não compreendo. Tosco.
As demonstrações deste nosso mestre meio atrapalhado eram também muito

rápidas. Queria demonstrar todas as suas “infinitas” técnicas. Então tudo adquiriu um
ritmo de amostragem, se é que ele assim concebia. Às vezes parecia pegadinha ou
brincadeira de criança, de tão idiota. A pessoa ia até a frente, ele lhe passava a mão na
testa, ou fazia qualquer outro sinal e pluft!: “durma, durma”. E claro, a maioria não
sentia absolutamente nada, deixando nitidamente de exibir qualquer alteração.

Brincadeirinha inócua. O menino efeminado não perdoava:


“Palhaçada isso aqui.”
Tentei acalmar o rapaz. Mas minhas intervenções o deixavam ainda mais
histérico e inconformado.
Em outro momento, senti que era importante fazer algumas considerações, pois
o professor acreditava que a hipnose fosse uma eficiente ferramenta para a recuperação
de memórias. Pedi a palavra e falei de uma questão fundamental: as falsas memórias.
Utilizar a hipnose para recuperar memórias é um grande equívoco. Isto está

mais do que estabelecido, inclusive em nível experimental: a hipnose pode induzir a


produção de falsas memórias.
Vários autores perceberam isto, inclusive Freud, há mais de um século atrás.
Em nível experimental, as pesquisas mais conhecidas são as de Elizabeth Loftus.
Realizou uma série de experimentos e pesquisas sobre o tema, além de ter escrito
vários artigos e livros a respeito.
Em um de seus experimentos mais conhecidos, submeteu diversos sujeitos a um
vídeo de curta duração, o qual retrata dois carros se colidindo. Depois, foram
formulados dois tipos de questionamento, para dois grupos diferentes:
1. A que velocidade os carros estavam quando se colidiram? Houve algum

vidro quebrado?
2. A que velocidade os carros estavam quando se estraçalharam? Houve algum
vidro quebrado?
Como se pode ver, a única diferença é entre os verbos “colidir” e “estraçalhar”.
Os resultados são significativos. Os sujeitos do segundo grupo tendem a atribuir

velocidades maiores aos veículos e a dizer que viram vidros quebrados, apesar de não
haver vidros quebrados no vídeo. Ou seja, foi produzida uma falsa memória.
Fiz minhas considerações e deixei claro sobre os perigos de uma concepção que
confere à hipnose o poder legítimo na recuperação de memórias. Não somente pelas
demonstrações experimentais, mas também pelos estragos históricos que já foram
produzidos por este tipo de prática na clínica. Houve diversos casos nos Estados
Unidos, principalmente na década de 80. Alguns pacientes, submetidos à hipnose para
recuperação de memórias, saiam das sessões com a convicção de que haviam sido

abusados sexualmente na infância. Os supostos infratores (os acusados) eram


geralmente os pais, parentes ou amigos bem próximos. Em alguns casos, o que é ainda
mais grave, estes acusados chegaram a ser presos.
O professor, sempre muito diplomático e suave, ouviu atentamente minhas
considerações e, mesmo que não tenha compreendido nada, endossou tudo para que
pudéssemos logo passar adiante. Mestre da polidez, sem dúvida.
No final do curso foi muito gentil. Entregava os certificados e abraçava a todos,
sem distinção. Por um momento pensei que eu até poderia ser desprezado ou
hostilizado. Mas não, o sujeito era um doce. Fazia o que tinha de fazer e não olhava
muito para os lados. Era um manual de autoajuda ambulante. Sempre sorrindo, sempre

educado, otimista.
Mas ficou-me a seguinte impressão, a que geralmente tenho quando me deparo
com sucessos da autoajuda, sejam livros ou pessoas: era cego, era a vitória completa
do auto e do heteroengano. No caso dele, mais especificamente, pareceu-me um
autoengano tão estrutural, que o engano dos outros deixava de ter uma aparência tão

maquiavélica.
E assim foi um final de semana inteirinho. Um festival de ilusões e dogmas
cafonas. Nenhum surto, nenhum vexame, nenhuma agulha atravessando a carne de
ninguém. Nada muito excitante, a não ser as cifras volumosas que o professor tinha
botado no bolso.
Baixando o santo

Era um churrasco entre amigos, em uma chácara, longe da movimentação da


cidade. Muito espaço, campo de futebol, piscina, carne à vontade (de todos os gêneros)
e, o toque mágico: cerveja, muita cerveja.
A mistura de todos estes ingredientes pode ser muito prazerosa, mas também
inflamável. Já estava anoitecendo, meio fim de festa. Até que um amigo teve uma ideia
meio perigosa:
“Adriano, vamos fazer uma sessão de hipnose?”
De repente, eram praticamente todos, em coro:

“Ah, vai, somos todos adultos, nos responsabilizamos pelo que der e vier. Será
uma atividade de todos nós.”
Diziam que a curiosidade era enorme, que deveríamos experimentar, por que
não? Se estávamos todos em meio a amigos, por que não experimentar algo novo,
curioso e talvez fascinante?
Fizemos uma roda de cadeiras. Alguns bem lúcidos, só no refrigerante, outros
mais alegres, e alguns já bem alterados pela bebida.
Pautei-me novamente pela hiperventilação: respirar rápida e profundamente.
Júlia, uma menina inteligente, cheia de malícia, resolveu levantar-se. Afinal, não estava
acontecendo nada com ela. Foi até seu carro buscar um CD.

Outros foram desistindo, pois nada ocorria. E eu ali fazendo um esforço enorme
para aquele povo dormir, concentrar-se de modo intenso, relaxar, imergir talvez em um
outro estado, ter visões, obedecer meus comandos, não me deixar fracassar, colaborar,
fingir, encenar, ter um ataque histérico ou psicótico, ou seja, tudo o que pudesse
sinalizar de algum modo a existência da hipnose ou coisa parecida. Pelo menos que se

parecesse com a hipnose. Como ficaria meu show sem a entrega cega, sem alguém que
despirocasse? Sem que o artista ou o médium brotasse em alguém e explodisse seu
espetáculo a olhos vistos?
Logo um efeito tomou conta de uma pessoa. Ademir estava absorto. Cheio de
cerveja na cabeça, Ademir, um negro de mais cem quilos de puro músculo, lutador de
diversas artes marciais, fazia tudo o que eu ordenava. Estava numa guerra. Corria,
pulava, rastejava, atirava e se assustava com os horrores que via. Ademir era agora
nosso soldado. Um rapaz muito sociável e de bem com a vida, mas sempre muito

discreto, não dado a qualquer tipo de baixarias. E estava ali, para que todos vissem,
encarnado em um soldado no meio da guerra.
Este é um dos eventos mais surpreendentes na hipnose de palco: a transmutação
que sofrem algumas pessoas. Às vezes aquele sujeito tranqüilo, discreto, tímido, parece
se transformar em outra pessoa. Alguém que nunca se expõe, logo está lá, para que
todos vejam, atuando de modo nunca antes visto. Andrew Colman (1993), em seu belo e
esclarecedor ensaio sobre a hipnose, também chama a atenção para este fato. Quando
tinha onze anos de idade assistiu a uma demonstração de hipnose de palco. Ficou muito
surpreso ao ver uma colega de sala, muito tímida e inteligente, expor-se de modo
inesperado.

Sempre procuro de algum modo investigar se as pessoas estavam ou não


encenando. Apesar de não ser um procedimento absolutamente confiável, após as
demonstrações costumo indagar se estavam encenando e o que sentiam. Obviamente, o
relato subjetivo não confirma nada. Mesmo quando digo que já fui hipnotizado, isso não
prova nada. Uma evidência que não seja pública, passível de constatação universal,

objetiva, não serve como dado conclusivo para coisa alguma.


Já ouvi disparates até mesmo de doutores. Um deles, pesquisador em Biologia,
disse que havia obtido a prova de que existem espíritos, pois teria se comunicado com
eles. Reclinou-se em uma poltrona, em uma posição bem confortável e relaxante.
Passado um certo tempo, já bem relaxado, começou a fazer perguntas, assim como
naquele procedimento em que o copo desliza sobre letras, dando respostas às questões
dos presentes. Conforme fazia as perguntas, para sua surpresa, segundo seu relato, elas
começaram a ser respondidas com incrível precisão.

Procurava demonstrar que as respostas eram dadas do modo mais


objetivo possível. Neste caso, não faz muita diferença. Nem que um ET tenha entrado
na casa dele, ou que as panelas todas da cozinha tenham voado para a sala, e nem que
houvesse outras testemunhas. Enquanto um estudo não pode ser replicado por uma fonte
independente, nada feito, nada de conclusivo pode ser estabelecido. Isso pode provar
alguma coisa para ele, em nível pessoal, mais nada.
Tentar provar que algo existe pelo simples argumento de que viu não é
suficiente. Uma outra colega e também, por incrível que pareça, doutora, soltou esta
pérola:
“Deus existe, está provado, tal filósofo provou...”

Citou um nome que ninguém ali tinha ouvido falar. Este seria o tal
filósofo. Porém, isto pouco importava. O mais importante era o argumento, as
evidências.
“Sim, mas qual é a teoria, o argumento, as razões, as evidências?”,
indaguei.

“Ele diz assim”, respondeu ela: “Deus existe, simplesmente porque eu


o vi”.
O que, convenhamos, não é muito diferente do “experimento” de nosso
doutor em Biologia. Se ver alguma coisa comprovasse a sua existência, então existiriam
sacis, cabras-cegas, duendes, etc. O fato de alguém ter dito que viu não prova
nada.
Houve alguns episódios de minha adolescência que também merecem ser
narrados. Um colega nosso, morador da mesma rua, colecionador de revistas de UFOs,

tinha várias estórias sobre discos-voadores. Teria, em várias ocasiões de sua vida, tido
contato com óvnis. Era chegarmos de viagem e ele dizia ter visto um, bem perto de
casa. E uma coisa eu, com 14 anos de idade, não entendia: nós nunca estávamos por
perto para poder dividir com ele aquelas experiências fabulosas. Por que ele detinha tal
privilégio? Sonhei a vida toda em ver um UFO. Passei minha infância e adolescência
todinhas a olhar para o céu, esperando pelo grande momento e nada.
Um dia, este colega, Rogério, chega com uma suposta foto de um óvni, a qual
ele mesmo teria tirado, durante os dias em que estávamos viajando. Cako, meu irmão
mais novo, chegou fascinado, contando-me tal estória. Ora bolas, eu também queria ver
a foto. Dias depois vieram até mim com a dita cuja nas mãos. Para minha própria

surpresa, fiquei decepcionado com o que via. Era simplesmente uma foto queimada.
Fundo negro com um borrão no meio.
“Gente, me desculpe, mas isto é somente uma foto queimada.”
Meus comentários foram prontamente desqualificados. Porém, cerca de um mês
depois, a mentira foi desvelada.

“É, negão, você tinha razão. O pilantra do Rogério confessou. Era mentira. Era
mesmo uma foto queimada”, reconheceu Cako.
Outra também interessante foi quando fizemos a brincadeira do copo, aquela
para chamar e conversar com os espíritos. Um amigo tinha o tabuleiro próprio para tal
procedimento. Havia comprado uma coleção chamada “Ciências proibidas”, em um
banca de jornais, e o tabuleiro vinha junto. Era uma coleção de revistas com temas de
ciências ocultas. Este fascículo, especificamente, tinha um demônio na capa. Dava
medo só de olhar para aquilo.

Mesmo com todos os medos e riscos sobrenaturais e eternos envolvidos,


resolvemos encarar. Iríamos fazer a brincadeira macabra do copo. Resolvi então
colaborar. Sugeri que a vizinha, a qual era mãe-de-santo, participasse. Combinamos
hora e lugar (a casa do Tijela, um grande amigo de infância). A mãe do Duda, o dono do
tabuleiro também viria. Ela era médium em um centro espírita. Trouxemos flores.
Passamos talco no tabuleiro, por onde o copo deslizaria. Éramos então uns cinco
adolescentes mais uns quatro adultos, sendo que uma era mãe-de-santo e a outra
médium. Ou seja, tudo em altíssimo estilo.
Antes de começarmos, liderados pela mãe do Tijela, rezamos todos um Pai
Nosso e uma Ave Maria. Todos concordávamos que era necessário o máximo de

respeito com gente de outro mundo, com os mortos.


Diziam que o copo andaria sozinho, que era assim que costumava ocorrer.
Fiquei muito ansioso para ver tal espetáculo. Se eu visse aquele copo andando sozinho,
acreditaria também. Por que não? Ficamos ali cerca de duas horas. E nada do copo
andar sozinho. Mas muitos já estavam bem impressionados e satisfeitos. Os supostos

espíritos respondiam a algumas coisas, na base do sim e do não. Mas nada de copo
andar sozinho, nada de poltergeist. Aliás, o bichinho estava é com preguiça. Quase não
andava. E o tédio começava a tomar conta de todos. Então, chegou um momento que
resolvi comandar o copo. Perguntavam e eu respondia. Eu mesmo guiava o copo para
onde quisesse. Percebi que estavam muito abismados e confessei:
“Gente, perdão. Até agora fui eu que respondi. Como o copo praticamente não
andava, resolvi fazer um teste e ver a reação de vocês.”
Contudo, o mais marcante daquela noite foi a reação de Tijela e sua

mãe, logo no início, quando viram o copo deslizando sobre o escorregadio tabuleiro,
pavimentado de talco:
“Tá abismado, filho?”, ela indagou-lhe.
E Tijela estava de boca aberta, olhos arregalados e quase babando.
Parecia mesmo estar vendo e conversando com espíritos.
Cako, durante dias, ria e olhava para Tijela, completando:
“Tá abismado, filho?”
Indagação que frequentou nossas bocas durante anos. Momento que se
eternizou em mais uma troça. Porque para Cako tudo sempre foi motivo de troça, sejam
as coisas de Deus ou do Diabo.

A hipótese de que, em hipnose, as pessoas possam estar encenando, obedecendo


ou colaborando com o hipnotista, devem, no atual estado da arte, ser sempre levadas
em consideração. Para tanto, muitas pesquisas estabelecem o seguinte e importante
procedimento: a utilização de simuladores.
Os dados não são conclusivos. Porém, em 1971, Martin Orne e Frederick

Evans[1] fizeram um experimento, intitulado “o hipnotizador desaparecido”, utilizando-


se de dois grupos de sujeitos: altamente hipnotizáveis e simuladores. Realizaram
primeiramente o procedimento de indução hipnótica padrão e os próprios
experimentadores simularam então uma interrupção de energia. Retiraram-se, como se
fossem à busca da solução de falta de energia elétrica, abandonando os sujeitos na sala.
O resultado é que, após um certo tempo, os simuladores abriram os olhos,
pararam de representar e também deixaram a sala. Diferentemente dos sujeitos
altamente hipnotizáveis, os quais permaneceram prostrados em seus lugares e, somente

muito mais tarde e aos poucos, vieram a abrir os olhos, levantar-se e também sair.
Por outro lado, os resultados sobre os efeitos anestésicos da hipnose são mais
conclusivos. Foram evidenciados tanto por pesquisadores céticos quanto os não-
céticos[2].
Porém, também não podemos desprezar contribuições como as de Theodore X.
Barber, o qual propõe, segundo suas evidências experimentais, que a hipnose não seria
nenhum estado especial. Segundo ele, a hipnose não seria uma condição extraordinária
obtida por uma técnica peculiar. Seria somente uma intensa focalização sensorial obtida
por uma tarefa motivacional mais prolongada. O chamado transe hipnótico nada mais
seria do que estados que experimentamos cotidianamente, tais como, por exemplo, a

compenetração ao se assistir a um filme, o mergulho em determinadas atividades, as


quais nos absorvem, bloqueando todo o restante de nossa percepção.
Posso, apesar das limitações científicas de tal procedimento, falar também da
minha experiência de ter sido hipnotizado ou ter estado em transe. Em uma delas, o
objetivo do condutor da vivência era somente fazer uma sessão de relaxamento.

Estávamos num grupo com cerca de 10 pessoas. Colocou uma música relaxante e
sugeriu diversas imagens: riacho, vale, montanha. Porém, quando disse que subiríamos
a montanha, passo a passo, entrei em transe.
Dali em diante as visões foram tão nítidas e vivas como num sonho. Contudo eu
sabia que estava ali, naquela sala, com aquelas pessoas. De acordo com os proponentes
das teorias de dissociação, houve de fato uma dissociação mental. Minha cabeça
parecia ter se dividido em duas: uma subia a montanha e a outra estava naquela sala.
Senti-me imerso num sonho. Era muito real. Quando simplesmente imaginamos, não

passa de algo que está somente dentro de nossa cabeça. Entretanto, eu estava imerso,
vivendo passo a passo aquilo tudo ao meu redor.
Somente vim a ter novamente tais sensações intensas quando bebi ayahuasca, o
chá alucinógeno ingerido nos rituais de algumas religiões oriundas da Amazônia, tais
como o Santo Daime e a União do Vegetal. Não foi muito diferente do que senti quando
fui hipnotizado na sessão de relaxamento. Houve diferenças, talvez, de gradação e em
relação à possibilidade de retorno. Com o chá você entra em transe e não tem
simplesmente à sua mão a opção de abrir os olhos, reagir, e sair quando quiser. O efeito
da ayahuasca é fulminante. Trata-se comprovadamente de um psicotrópico. Tiro e
queda.

Quando alguém diz que possui um desejo enorme de experimentar o transe, mas
não sabe se é hipnotizável, logo penso na ayahuasca. Sendo hipnotizável ou não, não há
como fugir de seus efeitos alucinógenos.
A experiência que tive com a ayahuasca foi muito intensa e proveitosa. Fui
acometido por imagens inusitadas, a torrente das imagens de um sonho tomou conta de

minha mente e meu corpo. Fui tragado por um turbilhão de sensações e visões
surpreendentes, as quais mexeram muito com minha estrutura psíquica. Ao ponto de
imaginar que de fato o potencial de mudança deste tipo de vivência seja realmente
grande. Depois que bebi o chá passei a ouvir os relatos de mudança pessoal com menos
desconfiança.
Os relatos de quem vivenciou o transe intenso, independentemente do contexto,
seja ele religioso ou não, são de arrebatamento e pungência. A minha impressão é a de
que não há como passar incólume por este tipo de experiência. Mobilizam muitas

estruturas de nosso ser. Para os religiosos a coisa acontece no nível mais profundo
possível: o espiritual. E, de fato, mexe com nosso espírito. Balança tudo o que está lá
dentro. Somos postos de cabeça pra baixo e por vezes virados pelo avesso. Parece uma
busca extrema de algo perdido nos meandros de nosso destino e de nossa alma.
Não era muito diferente do que o Padre Johann Gassner[3] (1727-
1779) fazia com seus fiéis. Ele protagonizava um ritual exorcístico de cura em que o
sujeito era conduzido a vivenciar sua própria morte e renascimento. Sem dúvida, uma
experiência extrema e arrebatadora. Após a vivência desse horror, os pacientes
costumavam relatar melhoras.
Mesmer (1734-1815), inspirado nas observações que teve dos procedimentos

de Gassner, passou a realizar o mesmo ritual, só que em um outro ambiente (o


consultório médico) e com um outro nome. Provocava ataques convulsivos em seus
pacientes. Conduzia-os até seu limite, ao êxtase. Ou seja, eram “postos de cabeça para
baixo”, “virados pelo avesso”.
É portanto possível que as pessoas adentrem estados mais descontrolados

quando postas em hipnose. Podem “surtar” e exibir comportamentos bizarros. Porém,


não me esqueço de uma frase da qual não me lembro mais o autor: “quanto mais bizarra
uma experiência, mais proveitosa ela é”.
E foi exatamente isto o que ocorreu neste churrasco. No momento em que eu
comandava Ademir, nosso valente soldado em sua batalha campal, apareceram alguns
colegas, desesperados:
“Adriano, corre aqui! Acode aqui!”
Apontavam para o estacionamento, onde já havia um certo tumulto. Era

Mariana, a moça que havia abandonado nossa roda de hipnose porque não estava
sentindo nada. Com ela não estava funcionando. E agora Mariana estava lá, deitada no
chão do estacionamento, tendo um ataque mesmeriano.
“Sai de mim...!!! Sai de mim...!!! Sai...!!!”
Chorando, babava, raspava o rosto no chão, caia e pedia sofridamente para algo
sair de dentro dela. Todos logo interpretaram aquilo como uma espécie de possessão.
Queriam que eu fizesse alguma coisa. Olhavam pra mim na expectativa. Eu é quem teria
de liderar qualquer que fosse o procedimento a ser adotado. Não era a primeira vez que
eu tinha um cenário fora do controle em minhas mãos. Pensei: o negócio vai ser então
combater isto no terreno dela.

“Gente, vamos segurá-la. Não deixemos que caia ou se machuque. André, você!
Fique de lá que eu fico de cá!”.
Ela estava de lado para mim e André, entre nós dois. Comecei a passar as mãos
de sua cabeça até o final de seus braços, nas mãos, em um movimento de retirada.
André fez o mesmo.

“Saaaaiiiii!!! Sai desse corpo!!”, gritávamos, bem alto, várias vezes.


Ela foi ficando cada vez mais calma. No final das contas, estava prostrada,
como no final de uma batalha. O desespero havia ido embora. Acabara de ter um
ataque, de passar maus bocados. Era isso o que dizia sua aparência. Tomava um copo
d’água, recolhida e constrangida.
Eu havia gritado tanto, que ficara rouco.
Disse que era espírita, que isto já havia ocorrido no centro que frequentava.
Esta explicação tornava as coisas mais compreensíveis para nós. Porém, aquele cenário

todo parecia não ter qualquer ressonância com a pessoa de Mariana, sempre crítica e
tão senhora de si. Mas também, convenhamos, contradições fazem parte da vida de
todos nós.
“O que houve, Mariana?”, perguntavam todos, atônitos.
“Não sei, gente. Só sei que de hipnose eu não brinco mais”, finalizou.
Ofegante, fora de controle e rindo

Em meus cursos de técnicas de hipnose procuro, antes de tudo, desfazer alguns


mitos. Demonstro aos alunos que a hipnose é uma técnica como outra qualquer. É
importante ressaltar que o Conselho Federal de Psicologia autoriza a sua utilização
como uma técnica auxiliar[4] e não como uma abordagem. Uma psicoterapia não pode
se reduzir ao fetiche da simples utilização da hipnose. É um processo muito mais
abrangente, no qual a hipnose pode desempenhar o que lhe cabe: um papel coadjuvante.
Faço questão de demonstrar a meus alunos que a hipnose não é uma panaceia, e

que podemos sim utilizá-la de modo mais crítico. Ou seja, atentos a seus limites. Acho
altamente suspeitos os cursos que se divulgam por meio de uma lista infinita dos males
que a hipnose pode curar. Se usarmos um pouco do nosso bom senso, logo nos damos
conta de uma proposta séria não propõe o infinito. A hipnose não é eficaz nem boa pra
tudo. Isto é evidente.
A técnica, em si, também é muito explorada. Há um mito muito grande sobre
como colocar as pessoas em transe. Não faltam cursos ou pacotes que prometem a
melhor técnica, a infalível, a mais rápida.
Segundo a compilação de pesquisas realizadas por Nash e Fromm (1992), a
resposta à hipnose depende mais da suscetibilidade do sujeito e da relação

estabelecida com o hipnotizador do que da técnica utilizada. Ou seja, a promessa de


uma técnica diferenciada, muito superior às outras, é bobagem, enganação.
Mas este tipo de propaganda sempre reaparece. O mito de se poder hipnotizar
qualquer pessoa com facilidade é muito sedutor e, portanto, vendável. É um mito de
poder: o de controlar a vontade e a ação dos outros no mundo. Então, faço questão de

ressaltar: “A propaganda de uma técnica mais eficiente ou instantânea de indução


hipnótica é enganosa. Não é isso o que dizem os dados científicos até o momento”.
No curso que ministro procuro também desmistificar a ideia de que existem
inúmeras técnicas para os mais diversos contextos. A enumeração infinita esconde os
princípios fundamentais, as leis básicas de procedimento, dando a falsa impressão de
que sempre pode surgir algo novo, melhor dizendo, um produto novo.
Há um roteiro básico a ser seguido, independentemente da abordagem ou
enquadre adotados:

• A utilização de voz serena e monotônica.


• Repetição exaustiva de comandos.
• Fixação da atenção, a qual é geralmente adotada como a do olhar fixo em um
ponto específico.
• Utilização de contagens, após as quais frequentemente se estabelece um sinal
hipnógino. Este sinal é geralmente composto por um toque, seja na testa ou em outra
parte do corpo, durante o qual é ordenado ao sujeito que “durma” ou “relaxe”
profundamente. O objetivo do estabelecimento deste sinal é o condicionamento. O
sujeito entraria em hipnose cada vez com mais facilidade, praticamente bastando este
sinal e seu comando correspondente.

Em um de meus cursos, primeiro procedi uma triagem no grupo de participantes.


O objetivo era saber qual era, aproximadamente, o nível de suscetibilidade de cada um
dos presentes. Pedi para que, em pé e de olhos fechados, estendessem os braços à
frente, com as palmas das mãos voltadas para baixo.
“Em seu braço esquerdo está sendo amarrado um barbante preso à balões de gás

hélio. Eles flutuam e puxam seu braço para cima. Há uma força intensa que puxa seu
braço para cima, deixando-o bem leve, bem leve... Há então uma tendência muito forte
de que seu braço esquerdo vá subindo, subindo....Ele sobe, sobe, sobe...”
“Por outro lado, sobre seu braço direito são colocados pesos. Há um saco de
arroz sobre seu braço direito e ele vai ficando mais e mais pesado e cansado... Mais e
mais pesado e cansado... Tende a mover-se para baixo, a descer. Assim, vai descendo,
descendo, descendo...”
Para reforçar o comando, é também interessante sugerir ao sujeito que diga

mentalmente para si mesmo o que está sendo ordenado:


“Diga mentalmente para si mesmo: meu braço está pesado, muito pesado.
Pesado... pesado...”
Isto pode ser realizado em poucos minutos. De três a cinco minutos são
suficientes. Basta seguir o roteiro básico: a utilização de voz serena e monotônica; e a
repetição exaustiva de comandos.
Os efeitos, em algumas pessoas, são muito rápidos. Vão de fato movimentando
seus braços conforme vamos ordenando.
Após uns três ou cinco minutos, alguns exibem uma diferença enorme entre a
posição dos braços. O esquerdo pode estar apontado e direcionado para cima, enquanto

o direito pode estar quase que junto ao corpo. Quanto maior esta diferença de
posicionamento, maior a suscetibilidade.
Eram somente cerca de dez pessoas. O que é um número pequeno para uma
hipnose de palco, a qual vise uma demonstração fabulosa, impactante. Quanto maior o
número de sujeitos presentes, mais facilitado é o espetáculo. De 10 a 20% das pessoas

são altamente suscetíveis à hipnose. Então, para obtermos quatro bons sujeitos é
necessário um público de, no mínimo, 40 pessoas.
É incrível, mas falou-se em hipnose, estamos falando em gente querendo ver
espetáculo. Não adianta nada falar em hipnose e não realizar uma demonstração
espetacular, impactante. Pois é exatamente isso o que intriga a todos. Portanto, faço
demonstrações de palco e depois, na medida do possível, as desmascaro.
Hipnotistas de palco geralmente iludem a todos, observadores e hipnotizados.
Utilizam também técnicas de ilusionismo. Dramatizam em excesso, fazem cena.

Por exemplo. Depois de uma demonstração, pede-se para que o sujeito acorde,
saia do transe e volte ao seu lugar. A interação com ele, depois que “saiu do transe”, é
instantânea. Para hipnotizá-lo novamente basta alguns comandos rápidos, pois ainda se
encontra sob nosso poder de sugestão. Fazer isso, e dar a entender que existe uma
técnica fulminante responsável por tal resultado, é ilusionismo. É iludir o público que
assiste à demonstração.
Neste dia, éramos somente cerca de dez pessoas. Eu mesmo não estava me
iludindo quanto à possibilidade concreta de eventos impactantes e inusitados. Porém,
cerca de três pessoas demonstraram alta suscetibilidade. E com estas foi possível
demonstrar efeitos mais intensos. Choravam diante da sugestão de que se lembrassem

de algo muito marcante e emocionante em suas vidas. Manifestavam a expressão de


diversas sensações sugeridas: frio, calor, medo, alegria, tristeza, alucinações positivas
e negativas, incapacidade de falar, embriaguez, e outras.
Como era um curso de técnicas, houve um momento em que comecei a
demonstrá-las somente por amostragem, para poupar tempo e tornar a aula mais prática.

Não havia a necessidade de esperar que cada um entrasse em hipnose. Feitas algumas
demonstrações reais, depois bastavam amostras de outros procedimentos que obteriam
os mesmos resultados.
Assim, em nível de amostragem, convoquei para demonstração um rapaz que
havia apresentado baixa suscetibilidade na triagem inicial. Era somente uma amostra.
Não era esperado que ele entrasse em transe ou coisa semelhante.
“Estenda um de seus braços à frente. Feche a mão, e erga somente seu polegar.
Olhe atentamente para ele. Conforme você o observa fixamente, seu braço vai pesando.

O tempo vai passando e seu braço vai ficando cada vez mais pesado. Há um peso muito
grande em seu braço. Diga isto mentalmente a si mesmo (que seu braço está pesado,
muito pesado). Assim, há uma tendência de que ele vá descendo, descendo... E ele vai,
devagar, descendo, descendo. Quando por fim irá tocar sua perna. E ao tocar sua perna,
eu tocarei sua testa e você entrará em hipnose.”
Conforme o tempo foi passando, o sujeito, com o olhar fixo em seu polegar, foi
abaixando bem vagarosamente o braço, como o esperado. Porém, também ficava cada
vez mais ofegante. Seu braço ia abaixando e ele ia ficando cada vez mais ofegante. Foi
muito rápido. Em menos de um minuto sua respiração se acelerou de modo
incontrolável e passou a ter acessos explosivos de uma risada insólita.

Ofegante, rindo assustado e fora de controle. Era este o cenário. Os outros


alunos ficaram nitidamente tensos. Algo parecia estar saindo fora do script. Era uma
manifestação intrusa, não esperada e claramente bizarra. Opa, deviam pensar, a hipnose
é muito interessante... Até sair do controle. Até o momento em que explode em um
surto.

Por outro lado, muitos psicólogos irão ver uma virtude nestes descontroles, ou a
evidência de que a hipnose existe mesmo. Não tenho dúvida de uma coisa: é um
tremendo de um recurso expressivo. Às vezes é capaz de produzir um índice extremo de
expressividade e descarga afetiva e inconsciente.
Mesmo que a hipnose não exista e seja somente uma simulação entre dois
personagens (o hipnotista e o hipnotizado), não há como negar a expressividade que
toma conta de muitos hipnotizados. E esta expressividade, real ou encenada, não
importa, pode ser muito útil para um trabalho psicoterápico. Porque, antes de tudo, ela

está fazendo com que a pessoa se expresse, flua, aconteça. Um dos fatos mais
importantes a serem resgatados e estimulados em uma psicoterapia é a expressão. Por
meio dela muito material inconsciente pode ser coletado e trabalhado.
As expressões inusitadas e explosivas produzidas por uma indução hipnótica
servem de alimento para o desenrolar de uma psicoterapia. Abrem portas, fornecem a
valiosa permissão para que desejos e percepções mais profundos apareçam e tenham
voz. Assim, a espontaneidade pode brotar, revelando conexões antes encobertas pelos
recalques e comedimentos de nosso regrado cotidiano. Brotam o absurdo, o bizarro e
com eles a verdade.
E assim, de forma descontrolada, se comportava este aluno, após sua indução.

Ofegante, fora de controle e rindo. Quem não está acostumado, estranha. Os outros
alunos ficaram tensos. Afinal seu colega estava tendo um ataque. Por sinal, os pacientes
de Mesmer se curavam após ataques convulsivos. As sessões de magnetismo animal
eram geralmente em grupo. Eram induzidos ataques. E após estes advinha alguma
resolução, resposta ou apaziguamento.

Sua respiração era cada vez mais rápida. Parecia que ia entrar em um colapso.
Cada vez mais ofegante. Seu estado era desesperador, para quem não soubesse que
induções de hipnose podem também resultar nisso. E que se assim o fosse, bastava não
se esquecer de uma coisa: tudo está sob nosso controle, do hipnotista. Basta ter
autoridade, ser enérgico no momento certo. E depois acolhedor.
“Vou contar até cinco, e no cinco você irá dormir.”
Era necessário fazê-lo dormir. Entrara repentinamente em uma movimentação
intensa. Seu estado frenético demandava tranquilização imediata.

“Durma... durma... durma...”


Comandos firmes, simples e repetitivos são suficientes.
O rapaz enfim relaxou. Todos olhavam atônitos.
“Professor, afinal, o que ocorreu aqui?”, perguntaram.
“Não tenho a menor ideia...”
Coisas de outro mundo

Não tem jeito, basta saberem que você trabalha com hipnose e aparece todo o
tipo de pessoas, curiosas com as possibilidades de tratamento.
“Eu vim aqui porque eu quero fazer uma regressão, doutor.”
“Sim. Mas o que você está querendo dizer com ‘regressão’?”
Esta senhora ficou espantada. Pois, para ela, eu deveria, afinal de contas, já
saber de antemão o que ela estava querendo dizer com o termo “regressão”.
Esta palavra pode, por sua vez, significar tantas coisas. É uma volta no tempo,

mas esta pode ser dar em memória (mentalmente) ou em ato (comportamento). Para a
Psicanálise é em ato. É geralmente um retorno a formas remotas de comportamento. É
comportar-se como em uma fase anterior do desenvolvimento. Resumindo, regredir,
neste sentido, é agir como criança.
Para as chamadas terapias de regressão é a recuperação de memórias
esquecidas. Para tanto é utilizada a hipnose. O paciente é hipnotizado e assim seria
feita a recuperação do que foi esquecido.
Contudo, o senso comum vai mais além. Quando algum leigo diz que quer fazer
regressão, geralmente está dizendo que deseja recuperar memórias de uma vida
passada. Fazer regressão é, neste sentido, “ir”, “retornar” a uma outra vida. E este

retorno a uma outra vida teria, por si só, propriedades curativas. Lá estariam todas as
razões. E bastaria somente saber quais são para que a mudança venha a ocorrer
espontaneamente. A pessoa informa-se de quem foi em outra vida ou de como foi sua
morte e isto já seria suficiente para a sua cura.
O mecanismo é mais ou menos assim. Ouvem dizer que certo profissional

trabalha com hipnose e logo já associam com regressão, a qual, por si só é eficaz.
Aí eu tento esclarecer algumas coisas importantes a esta pessoa:
“Veja bem. O termo “terapia de regressão” não é reconhecido pelo Conselho de
Psicologia. A chamada regressão, para a própria vida, é uma recuperação de memórias
por meio da hipnose. E este procedimento é comprovadamente perigoso, pois pode
implicar na produção de falsas memórias...”
E eu tenho paciência, explico tudinho:
“O transe hipnótico é um estado psíquico muito primitivo e de intensa

fabulação. É um estado de sonho, propenso aos mais diversos tipos de fantasias e


invenções de nosso inconsciente. Logo, a evocação de memórias sob este estado é
perigoso, um equívoco. E isto possui comprovação consolidada...”
“Então quer dizer que o senhor está vendendo uma coisa na qual não acredita?”,
indagou, certa vez, indignada, uma senhora vestida de joias até os dentes e com ar de
superioridade.
Eu era um mero psicólogo-funcionário de uma clínica grande em um bairro onde
residiam muito segmentos da alta sociedade de Brasília. Ela queria fazer a regressão,
de qualquer jeito, não importava o que aquilo quisesse dizer, e que eu a obedecesse.
Declinei, encaminhando-a à recepção. Saiu, pisando duro, sem compreender

qualquer palavra do que eu dizia.


Outra coisa que também já ocorreu, mais de uma vez, é aparecer homossexuais
querendo se converter, por meio da hipnose, para a heterossexualidade.
Também costumo declinar desta complicada proposta. Tanto os conselhos de
Medicina quanto os de Psicologia são claros em alertar que a homossexualidade não

deve, em hipótese alguma, ser concebida como doença. Portanto, qualquer


procedimento que se aproxime deste tipo de concepção, pode despertar penalizações
severas ou dores de cabeça desnecessárias.
Mas o fato interessante é a crença nos poderes miraculosos da hipnose. O
sujeito chega em nosso consultório com a firme esperança de que sua estrutura
psicológica e humana mudará, de modo rápido, por completo. É realmente espantoso o
poder de um mito, do que vira moda. Funciona como uma onda. As pessoas mal
avaliam e já estão disponíveis para se submeter a algo que foi dito ser bom. Uma onda

mesmo. Passa e carrega todo mundo. Passa por cima do razão, do espírito crítico.
Por outro lado, algo fundamental não deve ser desconsiderado: o sofrimento. E
muitas dessas pessoas estão, por este ponto de vista, sendo sensatas. Estão tentando de
tudo para conseguir alívio para seus males. Nesta situação, praticamente todas as
tentativas são válidas.
Porém, o que pretendo enfatizar aqui é a associação entre hipnose e algo
miraculoso. Do ponto de vista da verdade, isto não é bom. A ideia de algo miraculoso
não cheira à ciência. Está mais próxima do sensacionalismo, da ilusão, da enganação,
do marketing. Para quem possui bom senso, promessas em excesso são sempre alvo de
desconfiança. Geralmente, onde há muita promessa, há também muito desejo de poder.

Como paciente, como alguém que precisasse de cura ou alívio para algum tipo
de enfermidade eu também procuraria todas as alternativas possíveis. Não iria esperar
os demorados resultados conclusivos da ciência. Obviamente, se algo ainda não teve
sua eficácia comprovada pela ciência, isto não quer necessariamente dizer que não é
eficaz. A ausência de provas não implica necessariamente em prova de ausência.

Porém, um pouco de espírito crítico também não faz mal a ninguém. Informar-se
um pouco mais, agir com um pouco de malícia, também facilita muitas coisas nessa
vida. Ajuda a encontrar bons profissionais, a reconhecer de longe o que é conversa
fiada, o que são promessas infundadas e qual tipo de discurso é charlatão.
A hipnose é uma dentre várias técnicas das quais a Psicologia dispõe. Não é
miraculosa e possui limites de eficácia e aplicação. Não cura tudo e não serve para
todo e qualquer tipo de problema. Deve-se desconfiar de profissionais que exageram
sua eficácia, principalmente aqueles que costumam fazer uma lista infinita de curas da

hipnose. Ou seja, fazem a propaganda de que a hipnose é uma panaceia, de que pode
curar tudo. Este tipo de abordagem não possui consistência, é enganadora.
Contudo, o mito em torno da hipnose, ao mesmo tempo em que alimenta o
desconhecimento, também parece facilitar algumas reações dos pacientes, as quais
podem ser muito fecundas em uma psicoterapia.
Tive uma paciente, a qual apareceu na clínica, interessada em
submeter-se à hipnose para poder fazer um retorno a outras vidas. Pretendia descobrir o
que havia ocorrido em suas vidas passadas, e acreditava que com isso encontraria as
respostas necessárias ao alívio de seus males. Era kardecista, e sentia muita falta do
rituais em que podia incorporar outros espíritos. O centro que frequentava não mais

realizava este tipo de ritual. Estava ali à busca de preencher esta lacuna. Dizia que a
incorporação sempre fora muito importante para sua saúde espiritual.
Compreendi. Era perfeitamente compreensível. As religiões e seus
rituais são uma valiosa válvula de escape, de expressão. Rituais em que o transe ocorre
geralmente tiram um peso enorme da vida destas pessoas. A incorporação, o sair de si,

são extremamente catárticos. Propiciam níveis profundos de descarga afetiva. Permitem


que o sujeito expresse todo o absurdo de sua existência. Estimulam a expressão (o
chamado desabafo) em níveis extremos, radicais, profundos. Uma religião sem rituais é
um corpo de crenças morto. O ritual é a parte experiencial e viva das religiões. É onde
as coisas acontecem. Onde o drama humano é encenado e elaborado da forma mais
autêntica possível.
Procedi uma indução hipnótica convencional. Ela entrou rapidamente
em transe. E assim que incorporou, o negócio foi violento, escandaloso. Começou

chorando, muito, muito. Seu choro era convulsivo. Berrava. Em ganidos estridentes, ora
muito altos ora bem baixinhos, entremeados por fortes soluços. E de repente, no meio
do choro, uma estridente gargalhada irrompeu. Assim foi: gargalhava e esta
instantaneamente transmutava-se em choro, sem escalas, somente esta absurda mudança
brusca e incompreensível.
Era nitidamente uma entidade, alguma coisa que havia tomado conta
dela. Fiz as perguntas que o script mandava:
“Quem é você? O que você quer?”
“Margarida”, respondeu, agressiva, com a voz distorcida.
“E o que você quer, Margarida?”

“Ela roubou meu marido. E agora ela não vai se casar! Não vai
conhecer o amor de sua vida! Isso pra ela aprender a não roubar o amor dos outros. Irá
padecer. Jamais amará! Aha-há-há-há-há-há-há!!”
E sempre finalizava assim, em uma risada diabólica, estrondosa.
Um espetáculo acontecia diante de meus olhos. Personagens e mais

personagens entravam em cena. Fossem eles espíritos legítimos ou não, eu nem pensava
nisto. Entrei também em cena. Meu papel era mediar um diálogo ponderado e sensato
entre Margarida e minha paciente. Outros espíritos compareciam, geralmente tentando
ajudar. Era muito difícil conversar com Margarida. Estava cega por um ódio eterno.
Dissera não somente ter perdido o marido, como a tudo que tinha. Sofrera inclusive um
acidente, devido a estes infortúnios, o qual queimara-lhe o rosto, deixando-a
deformada. Enfim, morrera na solidão, em extremo sofrimento, e o pivô disso tudo era a
alma da senhora que acabara de entrar em meu consultório.

Prossegui, tentando apaziguar. Mas, antes, deixei que Margarida


falasse e expressasse tudo o que lhe estava engasgado em séculos de sofrimento
contido. Fosse Margarida a expressão de alguma faceta da própria paciente, botar pra
fora deveria também ajudar.
Esta primeira sessão foi inteiramente voltada à catarse, à expressão
quase irrestrita de tudo o que vinha sendo contido durante muito tempo. O trabalho de
interpretar e trazer estes conteúdos para sua própria vida seria mais lento e gradual, e
disposto em várias sessões subsequentes.
E foi exatamente isto que passou a ocorrer, com o passar do tempo. Ela
mesma começou a trazer seus conteúdos de “vidas passadas” mais para perto de sua

vida atual. Aos poucos foi percebendo que poderia trabalhar aqui e agora para a
construção de seu próprio destino, que as determinações de outras vidas não eram e
nem deveriam ser irrevogáveis.
Margarida acalmou-se. Desapareceu das sessões. E é assim que Ana,
esta senhora, foi emergindo. Ela era uma quarentona bem conservada e solteira. Tinha

uma vida financeira estável, porém ainda morava com a mãe, com a qual tinha diversos
problemas de convivência. Trazia um forte sentimento de ter sido mal amada pelos pais
e pela família, a vida toda, o qual desdobrava-se por várias esferas de sua existência. E
foi, predominantemente sobre estes aspectos, que sua psicoterapia caminhou.
De volta à sua primeira sessão, é ainda interessante mencionar como
ela se encerrou. Foi uma sessão movimentada, composta por diversas entidades. Ora a
paciente chorava, sofrida e convulsivamente, ora dava gargalhadas vigorosas e
diabólicas. Eram oito horas da noite. A clínica estava completamente vazia. Na

recepção havia somente Alex, o funcionário do turno noturno. Católico praticante e


muito temeroso quanto a questões e assuntos sobrenaturais. Tinha verdadeiro pavor de
espíritos e almas penadas.
Terminada a sessão, me despedi da paciente, e ela saiu discretamente. Olhei
para Alex e sua aparência era próxima ao pavor.
“Doutor, Nossa Senhora, o que estava acontecendo lá dentro? Ecoou por todo o
prédio...”
“Psicoterapia, Alex. Somente isto: psicoterapia...”
BIBLIOGRAFIA

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Disponível em: . ISSN 1516-4446.
1

[1] Citado por Benham, Kyoko e Nash (2005).


[2] Ver Facioli (2006), p. 88.
[3] Ver Chertok, L. (1969). L’ hypnose. Paris: Payot.

[4] Resolução, CFP, nº 013/00, de 20/12/2000.

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