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26/01/2019 Com Ciência - SBPC/Labjor

REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO

Artigo

A política da biossegurança: conexões e tensões


na tecnociência
Por Joel Paese
10/10/2013

Presenciamos nos últimos tempos a proliferação de extensos debates a respeito de temas


que envolvem a saúde humana e o meio ambiente. Nesse contexto, diferentes atores
sociais formularam agendas de atuação em torno de abordagens discordantes sobre a
biossegurança, o que gerou inúmeras controvérsias a respeito do assunto. Considerando
que devem ser tratadas como parte da família das controvérsias tecnocientíficas, impõe-
se, portanto, definir primeiro o que são controvérsias, o que é biossegurança e o que é
tecnociência.

As controvérsias pressupõem a relação entre duas pessoas, ao menos, que empregam a


linguagem e se dirigem uma à outra, confrontando opiniões, argumentos, teorias etc. São
discordâncias que envolvem atitudes e preferências opostas, bem como desacordos sobre
os métodos vigentes para solucionar os problemas. Na maioria das vezes não há solução
para as contendas; resta apenas inclinar a “balança da razão” a favor de um dos lados. O
resultado é seu prolongamento e recorrência. (Dascal, 1994; Paese, 2007).

Conforme o Protocolo de Cartagena, a biossegurança envolve a “proteção no campo da


transferência, da manipulação e do uso seguro dos organismos vivos modificados
resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e
no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde
humana”1. Pode-se defini-la também como o “ conjunto de medidas voltadas para
prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa,
produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, que podem
comprometer a saúde do homem, dos animais, do meio ambiente ou a qualidade dos
trabalhos desenvolvidos”2. Em síntese, a biossegurança é um conjunto de iniciativas que
buscam minimizar os riscos causados pela intervenção da ciência e da tecnologia nas
áreas da saúde humana e do meio ambiente.

A tecnociência, por sua vez, refere-se às interações emergentes resultantes da


combinação da ciência com a tecnologia. Embora sejam processos distintos, o
desenvolvimento científico e tecnológico no contexto da economia capitalista ensejou o
crescente aprofundamento da fusão entre a busca de entendimento da natureza e a
solução de problemas.

A conexão entre esses três conjuntos de eventos é uma das características definidoras de
nossa época. Se o avanço da ciência e da tecnologia sobre as diversas estruturas da vida
é uma realidade, estão marcadas também por uma crescente politização. Dessa
combinação derivam controvérsias. E qual é a razão, então, para se formular tais
discursos polêmicos? Em outras palavras, por que existem controvérsias na área de
biossegurança? Dentre suas várias causas, algumas podem ser identificadas:

A incompletude inerente a todo conhecimento. Significa que o saber cresce sempre,


amplia-se de modo incontrolável, imprevisível e sem destino determinado. Há
sempre algo por conhecer, por descobrir. O que tomamos hoje como verdade,
amanhã pode não valer mais Quando isso estava circunscrito aos laboratórios dos
pesquisadores, as discussões travadas entre os cientistas não despertavam maiores
reações da sociedade. No momento em que se deslocaram para a esfera pública
pela ação de indivíduos e organizações, observou-se uma profunda alteração na
amplitude e nos termos do debate;
Some-se a isso o fato de que mais e mais áreas da vida humana e do meio
ambiente são modificadas pelo avanço científico e tecnológico;
Observa-se, também, uma progressiva modificação na postura da sociedade a
respeito da ciência e da tecnologia. Propaga-se um entendimento difuso de que são
saberes portadores de riscos e não apenas de benefícios e de progresso.

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Em outras palavras, se o conhecimento é incompleto, ou seja, o que o especialista


garante hoje pode deixar de ser garantido amanhã devido a novas descobertas; se mais e
mais nossa vida é influenciada e dependente dos achados científicos e tecnológicos; e se
passamos a entender que esse tipo de conhecimento pode significar riscos, é muito
provável que surjam discordâncias profundas entre os indivíduos a respeito do
enfretamento dos problemas. Ocorre, principalmente, quando estão em jogo questões tão
sensíveis como a “saúde do homem, dos animais” e o meio ambiente, enfim, o que
envolve diretamente a biossegurança. No caso, a probabilidade de envolvimento do
público é alta. Quando o problema se desenvolve sobre tais bases geram-se condições
fundamentais para que essa controvérsia se estabeleça.

O fato é que a vida foi politizada, seja ela humana ou não-humana. Diferentes indivíduos
e organizações passaram a atuar na cena política, tendo em vista a alegação de preservar
e conservar a vida em nosso planeta para as atuais e as futuras gerações. Seus
posicionamentos nos debates públicos se fundamentavam em algumas evidências que
poderiam indicar prejuízos à saúde e ao meio ambiente, ocasionados por eventos como
acidentes em usinas nucleares, transgênicos ou mal da vaca louca (encefalopatia
espongiforme bovina). Inúmeros atores como ONGs, partidos ou movimentos sociais
passaram a se aliar em um enfrentamento contra empresas, think tanks empresariais ou
mesmo governos. Entre os objetivos da ação estava a formulação de uma legislação que
permitisse regular a manipulação da vida em suas várias formas, com a meta de controlá-
la e aumentar sua segurança.

Que a ciência sempre foi marcada por controvérsias sua história deixa bem claro. O
caráter conjectural dos enunciados, aliás, é um de seus componentes estruturais
específicos. Como afirma Karl Popper, a trilha da ciência é restritiva. Participa do jogo
científico tão somente quem se disponha a expor suas ideias à eventualidade da
refutação. Os demais estão fora. As verdades eternas não lhe pertencem. Muitas vezes
cabe ao cientista contentar-se com o que é efêmero, não mais do que isso.

Ora, tal realidade transportada para fora das paredes do laboratório teve como
consequência inevitável aguçar a percepção do público quanto aos limites da ciência e da
tecnologia. Todas as intervenções científicas e tecnológicas que passaram a envolver
temáticas relacionadas à vida humana e ao meio ambiente, tornaram-se alvo de acirradas
polêmicas. Estabeleceram-se clivagens, com apoiadores e opositores se posicionando em
relação a inovações em áreas como as ciências da vida. (Guivant, 2002). Ambas as
posições, é preciso enfatizar, foram assumidas com o apoio de cientistas e técnicos,
característico, diga-se, das controvérsias na biossegurança. Dada a especificidade da
ciência, como vimos acima, é algo previsível, esperado.

A controvérsia que envolveu o processo de aprovação e regulamentação da lei de


biossegurança no Brasil foi exemplar nesse aspecto. Um dos eixos do conflito articulava
dois posicionamentos opostos que contavam com respaldo científico e técnico, assim
enunciados:

O atual estágio do conhecimento permite afirmar que, em vista da probabilidade de


risco, não se deve retardar a autorização para comercializar transgênicos;
O atual estágio do conhecimento permite afirmar que, em vista da probabilidade de
risco, deve-se postergar a autorização para comercializar transgênicos. (Paese,
2007).

Isso denota a forte conexão entre a trajetória do saber científico e técnico e o


desenvolvimento da vida. Sua progressiva dependência da tecnociência, em que saúde
humana, meio ambiente, ciência e tecnologia se entrelaçam, cria uma situação paradoxal.
Por ser área de máxima sensibilidade, a vida requer o que há de mais seguro para tratá-
la; no caso, o conhecimento científico e tecnológico. Ao mesmo tempo, trata-se de um
saber conjectural, provisório; instala-se a dúvida, portanto, sobre quão segura está a vida
nas mãos de cientistas e técnicos.

Esse necessário entrelaçamento entre vida e saber perito torna-se, assim, uma razão
forte para o desencadear das controvérsias na biossegurança. Dada a crescente
dificuldade de contornar o entrelaçar dos fatores, o surgimento de tais discursos
polêmicos tende a ser uma constante no horizonte de eventos sociais e políticos de nossa
era.

As controvérsias na biossegurança tornaram-se, em certa medida, nosso modo de


enfrentar uma tensão fundamental em nosso tempo. Ela emerge da dissonância entre o
anseio da vida à perenidade e sua crescente dependência daquilo que não pode oferecer
mais do que o provisório. Alguém poderia propor que a reiteração e proliferação
descontrolada desses discursos polêmicos são uma consequência imperiosa da
modernidade, em vista de seu niilismo e relativismo essencial. Pode ser.

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É ainda, entretanto, uma conjectura a ser mais detalhada. O que é certo, porém, é a
centralidade da política enquanto eixo estruturante de nossa sociedade. E é essa natureza
política definidora do meio social em que vivemos que está na base das dificuldades de
encerrar as controvérsias em questão, mesmo com seu ímpeto arrefecido pela
acomodação relativa dos atores. Lidamos com valores, em última análise, e o valor da
vida se apresenta como o bem supremo.

Quando o tratamento desses valores e as decisões a ele associadas são tomadas em um


contexto de informação limitada, em que dificilmente são coligidos indícios suficientes
para se chegar a enunciados mais conclusivos, o poder dos atores pode depender da
capacidade de manipular o conhecimento e desafiar as evidências apresentadas para
apoiar determinadas escolhas. Nesse ambiente de incerteza, as decisões que
implementam políticas, como no caso da biossegurança, embora dependentes do
conhecimento dos especialistas, são tomadas com base no que é valioso em determinado
tempo e lugar, para determinadas pessoas.

Cientistas e técnicos assumem posição ambígua nessas controvérsias, que são


fundamentais, pois a biossegurança é debatida pelo público e requer avaliações de
especialistas para tranquilizar as pessoas comuns quanto à segurança da saúde humana e
do meio ambiente. Por outro lado, são coadjuvantes nos debates, uma vez que as
decisões não podem se basear apenas na ciência e na tecnologia. Nesse momento, diga-
se, a comunidade científica é instrumento nas mãos de entes investidos de mais poder. E
se assim não for, jamais se chegará a uma decisão, visto que a possibilidade do
surgimento de novos dados e de revisões das explicações aceitas está sempre no
horizonte de ação dos atores envolvidos na controvérsia.

O saber técnico se torna um recurso explorado por todas as partes para justificar suas
visões, criar legitimidade e controlar os termos do debate. Durante o processo, os fatos
científicos, usados seletivamente, convergem com os valores políticos, fazendo com que a
expertise se torne uma arma a mais em um arsenal de armas políticas. (Nelkin, 1987).

As controvérsias na biossegurança envolvem valores, de modo fundamental. Em


determinadas situações prevalecem os objetivos da indústria. Em outras, a persistência
dos grupos de protesto permite ampliar seu leque de apoio. Se estamos diante de
discursos polêmicos que refletem interesses em disputa, pode-se resolver os conflitos e
levá-los a uma solução pela negociação ou medidas compensatórias. Se, no entanto, são
valores morais que estão em jogo, a negociação e o compromisso pouco podem fazer
para se chegar a uma resolução da controvérsia. (Nelkin, 1995).

As controvérsias na biossegurança são um caso clássico da impossibilidade de


encerramento das polêmicas na esfera de alternativas científicas e tecnológicas,
exclusivamente. Por circunscreverem-se ao âmbito dos organismos vivos, da
biotecnologia moderna, da conservação e uso sustentável da diversidade biológica e à
área dos riscos à saúde humana, os discursos polêmicos em torno de medidas de
proteção de seres vivos, quando manipulados, enfrenta o problema crucial do valor
supremo de uma sociedade, o que lhe desperta maior sensibilidade, a vida. A dinâmica de
funcionamento das controvérsias na biossegurança denota uma estruturação
incontornável, de natureza ontológica, da vida social e política: a persistência da arena
dos valores como instância final dos conflitos de uma sociedade.

Joel Paese é doutor em sociologia política (UFSC) e professor adjunto da Universidade


Federal de Mato Grosso (UFMT).

Notas:

1-Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/sdi/ea/documentos/convs/prot_biosseguranca.pdf


Acesso em: 21 set. 2013

2-Disponível em: http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/StartBIS.htm Acesso em: 21 set. 2013.

Referências

Dascal, Marcelo. “Epistemologia, controvérsia e pragmática”. Revista da SBHC, n. 12, p. 73-98, São Paulo, 1994.
Guivant, Júlia Silvia. “Heterogeneous and unconventional coalitions around global food risks: integrating Brazil into
the debates”. Journal of Environment Policy and Planing, v. 3, n. 4, p.231-245, 2002. (Volume especial: Food Risks
and the Envrionment).
Nelskin , “Dorothy. Science controversies: the dinamics of public disputes in the United States”. In: Sheila Jasanoff,
Gerald E. Markle, et al. (Ed.). Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks/London/New Delhi: Sage,
1995.
“The controversies and the authorithy of science”. In: Engelhardt Jr., H. Tristram.; Caplan, Arthur. L. (Ed.) Scientific
controversies: case studies in the resolution and closure of disputes in science and technology. Cambridge University
Press, 1987.
Paese, Joel. “Controvérsias na tecnociência: o caso da lei de biossegurança no Brasil”. Florianópolis: Programa de
Pós-Graduação em Sociologia Política, 298p, 2007. (Tese de doutorado).

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