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O siléncio das sereias’ Franz Kafka Prova de que também meios insuficientes e mesmo infan- tis podem servir para a salvagao. Para preservar-se das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e deixou-se amarrar ao mastro. Naturalmente, hé muito tempo qualquer viajante poderia ter feito algo semelhante (salvo aqueles que as sercias seduziam de longe), mas em todo o mundo se reconhecia que isso nao seria de ajuda. O canto das sereias a tudo traspassava, até a cera ¢ a paixdo dos seduzidos teriam feito saltar mais do que mastros e cadeias. Contudo, embora talvez tenha ouvido falar a respeito, nisso nao pensou Ulisses, que, com plena confianga no bocado de cera ¢ nos lagos das cadeias, na ale- gria inocente de seu estratagema, navegou ao encontro das sereias. Mas as sereias tém uma arma mais terrivel que seu canto: seu siléncio. Embora nao haja sucedido, seria contudo pensavel sity, em devzembro de 1990), na qual o autor agradece observagées impor- tantes, sobretudo referentes & indecidibilidade dos textos de Kafka. Tradugao de Luiz Costa Lima. Hi outra uradugio brasileira deste texto in- cluida em Franz Kafka. Pardbolas e fiagmentos. Tradugao ¢ introdugao de Geir Campos. Rio de Janeiro: Edigdes de Ouro, 1967 (nota do tradutor). 2LE Mrmesiy © a reflexdo contemporainea que alguém se salvasse de seu canto, mas por certo nao de seu siléncio. Ao sentimento de havé-las vencido com a propria for- ¢a, @ exalragao avassaladora consequence, nada de terreno pode resistir. E, de fato, quando Ulisses chegou, as potentes cantoras nao cantaram, fosse porque ci jam que a esse adversdrio s6 0 si- léncio poderia arrebatar, fosse porque a aparéncia de felicidade, estampada na face de Ulisses, que sé pensava na cera e nas ca- deias, as fizera esquecer todo 0 canto. Mas Ulises, por assim dizé-lo, nao escutou seu siléncio: acreditava que cantavam e 86 ele estava isento de ouvi-lo; fugaz- mente, viu primeiro o menear de seus pescoges, o arfar de seus peitos, os olhos chcios de ligrimas, os ldbios entreabertos; mas acreditava que isso pertencesse As arias que, inaudfveis, 0 circun- davam. Logo, porém, tudo deslizou de seu olhar preso a distan- cia; as sereias expressamente desapareceram e, justo quando se encontrava mais préximo delas, nada mais soube a seu respeito. Elas, mais belas que nunca, porém, se erguiam e contor- ciam, deixavam a horrenda cabeleira ondular ao vento, cravavam as garras nas rochas; jf n&o queriam seduz senao que apenas 0 quanto possivel prender 0 fulgor dos grandes olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciéncia, teriam sido naquele momento aniquiladas; mas assim permaneceram; apenas Ulisses delas escapou. De resto, um apéndice foi aqui legado. Diz-se que Ulises era tao astuto, era tamanha raposa que mesmo as divindades do destino nao conseguiam penetrar em seu intimo; embora isso nao seja concebivel pelo entendimento humano, notou realmen- te que as sereias s ilenciaram e a elas opds e aos deuses, como uma espécie de escudo, a dissimulagao acima mencionada. O titulo do relato, “Das Schweigen der Sirenen’, nao foi dado por Kafka, mas por Max Brod, que o editou pela primeira ver no volume, publicado O silencio das sereias 215 por ele © Hans-Joachim Schoeps, intitulado Beim Baw der chinesivchen Mauer, Ungedruckte Erzdhlungen und Prosa aus dem Nachlass (Berlim: G. Kiepenheuer Verlag, 1931). Originalmente, o relato aparece no chamado “caderno em oitavo”, em anoragao de 23 de outubro de 1917. Porque se desligava da moldura de disirio — ou, mais corretamente, de reflexdes dentro de um didtio — sua primeira frase era: frth im Beer “de manha cedo nna cama”). (Naturalmente, ela seré omitida em suas transcrigdes como relato auténomo.) A presente tradugio foi feita de acordo com Franz Kafka, Nachgelassene Schrifien und Fragmente, 11. In; Jost Schillemeit (org.) Fassung der Handschriften. Frankfurt am Main: Fischer, 1992, pp. 40-42. As diferengas com 0 texto editado por Brod, mantidas pelas edigdes comuns, concernem & pontuacio da primeira frase do relaco, em que © ae final do original era substituide por dois-pontos, ao segundo pardgrafo, em que © paréntese do original (“salvo aqueles que as sereias seduziam de Jonge”) esa substituido por virgulas e, no mesmo parigrafo, 3 eliminagao, supostamente por Brod, de passagem ainda menor, gar Wachs (“até a cera”), contida na frase que comeca por Der Gesang der Sirenen (SO canto das sereias”) (nota do tradutor).

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