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O MUNDO A REVELIA Joko Lum Larerh “118, 60 mundo & revel...” foi 0 jcho. do que Zé Bebelo folou” {(Gendanies Ross, Grande Sendo: Veredas) 1. Dois capitulos perdidos de S. Bernardo — trés concentradas or boa quantidade de informagio, leclenado @ propésito do narzador livro “pel do trabalho", somos lan- sgados em meio a um torvelinho de nomes, ocupagées, prefe- éncias © aptidées: Padre Silvestre, Jodo Nogueira, Arqui- medes, Liicio Gomes de Azevedo Gondim, © proprio narra- dor, todos esse apenas um parégrafo, q \gio que cada um ‘eumprir do, projeto. Euférico, eclara a seguir que esteve “uma semana bas: y, vendo jé os “volumes expostos, um milheiro lainadas pela manobra que, ycutaria. E logo, sem sem énfase, sem lastimagio, anuncia o fra- gua na fervura, aguda de patriotismo revolucfondrio, de cara torcida pera o narrador. Este, em ambos os casos, denotando altiva. su- perioridade, afasta-os com comentérios secos e diretos. E con- centra suas esperancas no dltimo que Ihe resta, Azevedo Gondim, agora caracterizado como “periodista de boa indole © que esereve 1e mandam”. O projeto livro pela divisio do trabalho, comega as -gamos uma fazen Azevedo Gondim pe la estrada de rodagem que Casi- miro Lopes Ipendre da cas do con foma) melho da serraria. O narrador se entusiasma de novo, es- quece as duas goradas tentativas iniciais com Joio Nogueira ¢ Padre Silvestre, Ajeitando o enredo, as idéias. fervilhando, ‘chega a considerar 0 Gondim “uma espécie de folha de papel”, destinado a receber — passivamente, como folha de papel — ‘© que the passa pela cabeca. Mas de novo, e brusco como antes, sem tr énfase (como antes), declara: “O resultado foi Os dois capitulos que 0 Gondim Ihe trouxera estéo chetos de besteira. yguagem ganha uma bru- talidade extraordindr Va para 0 inferno, Gondim, Vocé acanalhou 0 trogo. Esté. pernéstico, esta safado, esté idiota, Ha 1é quem fale dessa formal” Gondim replica, amuado, “recothendo os cacos da. sua pequenina vaidade", que nao se escreve como se.fala. Seu Paulo (sabemos apenas agora que 0 narrador se chama sim) parece conformar-se, afas zido por Marciano, vé a velha Margarida, mma cigarra e um pio de coruja. jores e enquanto se mata, o telhado ver- as pastando, vé um touro condu- paredo do agude. , Gondim, O mingau vi Thadas num més, Beba conhaq Nesta parifrase talvez, um poi ga (@ com certeza multo fascinada pelo vivo andamento estilistico de Graci- liano Ramos) gostaria de assinalar uns pontos importantes ¢ elementares de técnica narrativa, O que ressalta primeiro, naturalmente, 6 a maneira direta de tratar o assunto. HA algo para ser dito ese val até If som rodeos, hi um projeto a ser cumprido ¢ se tenta cumpri-lo de imediato, As difi- 174 culdades aparecem e, numa penada, sao explicadas ¢ postas de lado: Joao Nogueira, Padre Silvestre e Azevedo Gondim, ‘95 parceiros da empreita fracassada, sio afastados com segu- ranga pelo narrador, que demonstra saber 0 que deseja ¢ ter energia suficiente para executé-lo, Energia — 6 0 que ressuma destas trés primeiras paginas. O leitor danga entre nomes, profissdes © caracteristicas dos personagens que vio surgindo nio se sabe de onde, Que é o Cruzeiro, a Gazeta, S. Bernardo? Que paisagem & essa que surge aos pedagos, aqui uma estrada, ali um pasto, adiante uma serraria? E, por fim, quem é este narrador que nos fala e parece dispor assim das pessoas que 0 cercam? Que livro é esse, que de- seja tanto escrever? © leitor foi — de chofre — empurrado para dentro de um mundo que desconhece. Nao hé, na entrada de S. Ber- nardo, nem uma palavra que sirva para localizé-lo, nenhum painel descritivo que Ihe permita conhecer de antemio 0 mundo que vai agora visitar. Foi langado diretamente na ago, no meio dos fatos. Apenas uma voz narrativa, falando em primeira pessoa, o dirige. E dirige o resto também — os outros personagens eo projeto em execugio, Sua forga co- tudo, e aquilo que de mais forte nos fica das paginas iciais é a impressio da sua figura. Sem nos dizer nada explicitamente sobre si mesmo, fornece-nos no entanto a sua imagem: um homem empreendedor, dinémico, dominador, obstinado, .que conecbe uma empresa, trata de executé-la, utiliza os outros para isso e nfo se desanima com os fra: cassos. Paulo Honério surge quase inteiro no primeiro capitulo. Mais tarde fremos compreender a gramatiquice do advogado Joo Nogueira, o patriotismo do Padre Silvestre, a literatice Servil do Azevedo Gondim. Mais tarde saberemos quem & 0 Casimiro Lopes que conserta a estrada, quem é 0 Marciano que conduz © touro, quem é a velha Margarida. Depois co- nheceremos Madalena, saberemos por que o pio da coruja se associa & sua lembranca. Por enquanto sio apenas nomes gue, fo tetemos, personagens “que, surgem confusamente liante de nés, Mas desde jf — e embora nem lhe saibamos ‘© nome — 0 “eu” que narra se imprime em nossa meméria, Agindo sem parar, imitindo opiniGes sbbre os outros, con- cebendo e buscando realizar um plano, este narrador avulta 175 fe toma forma, A imagem de seu estilo, & direto © sem ro- deios, concentrado sobre si mesmo e sobre seu trabalho, de- cidido, brusco. E, no segundo capitulo, quando se decide a iniciar livro valendo-se de seus proprios recursos, nds 0 vemos de novo obstinado, Iutando agora com as dificuldades de tarefa que nunca antes acometera, Ficamos sabendo entio que é a sua hit jue deseja contar. E. ficamos sabendo que tem cinglienta anos, que é fazendeiro, “versado em esta- fistica, pecudria, agricultura, escriturago mercantil, conhe- cimentos intteis” para esse novo género que pretende en- frentar: a narrativa. E impacienta-se: “Dois capitulos per- didos.” © caso é que nfio o foram. Sua figura dominadora e ativa esta criada, Fomos jé introduzidos em seu mundo — um mundo que, em iiltima andlise, se reduz & sua voz dspera, ‘a0 seu comando, & sua maneira de enfrentar os obsticulos ¢ vencé-los. Um mundo que se curva & sua vontade. Em termos de técnica narrativa nao poderia haver so- luglio mais coesa; totalmente imbricados surgem, A nossa frente, personagem e agio, Paulo Honério nasce de cada ato, mas cada ato nasce por sua vez. de Paulo Honério. Nés o vemos através das agées; mas, por outro lado, é ele quem deflagra todas as agées. Este cardter compacto e dindimico, esta li- gacio {ntima entre o homem e o ato (espelhada pela lingua- eta, brutal, econémica, pelo ritmo répido dos dois capitulos), esta interagao entre 0 ser € 0 fazer vio compor fa eonstrugio do romance, que parece correr fluentemente diante de nés, em diregio.a um objetivo marcado. 2. A posse de 8. Bernardo E sem mais delongas comeca a histéria de Paulo Ho- lo (0 terceiro) recua no tempc wvés de um modo de narrar concis carta 0s episbdios menos importantes e conta por alto os mais, decisives, ficamos sabendo sua infincia miserdvel, o crime que o deixon “trés anos, nove meses e quinze dias” na cadeie 9s primeiros negécios e violé no sertéo. Algumas paginas cobrem toda sua vida, da mi penal! ice A idade de homem feito. 176 ico. mais acelerado, O seu primeiro ” (0 esfaqueamento de Joio Fagun- wana) narrado apenas no essen ies espec ficativas, sem. reflexdes: “Depois botou os quartos de banda e enxeriu-se com o Joo Fagundes, um que mudou o nome para furtar cavalos. O re- sultado foi eu arrumar uns cocorotes na Germana e esfaquear Joio Fagundes.” ‘A distingio tedrica entre “sumério narrative” ¢ “cena”, is modos bisicos da narragdo, pode ser aqui de alguma ide, para entendermos melhor 0 processo compositivo q sendo usado. (O “sumério narrativo”, explica-nos ‘Norman Friedman, “6 a exposigdo generalizada de uma série de eventos, abrangendo um certo periodo de tempo e uma variedade de locais”; a cena, por sua vez, implica a apre- sentagio de detalhes concretos ¢ especificos, dentro de uma estrutura bem determinada de tempo @ Iugar. A diferenca fundamental entre os dois modos reside, pois, na oposigio entre 0 geral (sumério narrativo) e particular (cena). Ou ainda, colocando em outros termos: quando o que interessa 60 acontecimento em si, temos a cemta, ¢ aparecem entao os de- talhes; mas, se 0 que releva no é 0 acontecimento, e sim a atitude do narrador, se 0 dominante nao é o evento, mas © tom em que ¢ narrado, entio temos o sumério narrativo,! ‘Ora, neste terceiro capitulo o tempo & vasto e os even- tos so muitos. O fato ¢ que Paulo Honério nao se detém neles, narra-os por cima e depressa. Sobre os violentos ne- gécios no sertio diz apenas que brigara com gente que fala ‘aos berros e efetuara transagdes comerciais de armas enga- tilhadas. A titulo de exemplo conta o caso do Dr. Sampaio. Nem al, entretanto, se pode falar de cena: apesar dos de- talhes que surgem, o que importa é 0 tom do narrador, a atitude dominadora e dura que Paulo Honério assume diante das dificuldades, arrostando-as e vencendo-as, O que fica, portanto, dos episédios nerrados, & menos a sua lembranga do que a lembranga do personagem narrador. Guardamos » “Point of View in 1, Fara, ein distnggo ver Noman ie sory of the Novel. New York, i, (ed.) The 177

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