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O BRINCAR NA EDUCACAO INFANTIL* Gisela Wajskop Professora do Centro de Educagao da PUC-SP RESUMO © texto aprasonta uma concepgao séclohistrica do brincar © faz um panorama de sua evolugo nas teorias e praticas peda égicas pré-escolares ocidentais. Baseado em trabalhos de Brougere, Henrit © Vygotsky, desenvolve a idéia de que a var lonizagao do brincar na educagao infantil esté associada a uma ova imagem de crianga que ver sendo construida em tungo do sau status social, a partir dos séoulos XVI e XVIl, Levanta, questdes a respeito de algumas competéncias profissionais ne cessarias para o trabalho pedagdgico em creches e pré-escolas BRINCAR — EDUCAGAO INFANTIL — PRATICA PEDAGOGI: CA — TEORIA PRE-ESCOLAR, ABSTRACT PLAY IN PRESCHOOL EDUCATION: SOME QUESTIONS. This reading presents a socio-historical view of play and forms of the theories and pre-school educational practices of the Western word the panorama of the evolution of play. Based on the works of Brougére, Henrot, and Vygotsky, the author develops the idea ‘that the merit aftibuted fo play in the education of the young chid is associated win a new image of the chid. Since the sixteenth and seventeenth canturies, this image has been building on the base of the chic's social status. The author Faises questions concerning some professional capabilties necessary to educational work in day centers and preschools, Aigo preparado iniiaimente para aula proferida para o Grupo Gastar do Projeto de Formacao de Educadores infantis da regiao metropoltana de Belo Horizonte, em 5 de juho de 1934, 62 Cad. Pesq., S40 Paulo, n.92, p. 62-69, fev. 1995 Nas sociedades ocidentais atuais, sempre que se pensa na crianga e nos seus cuidados e educacao, faz-se uma referéncia ao brincar. Normalmente, a aceitagao da brincadeira como parte da infancia consequéncia de uma visao social de que brincar é uma atividade inata, inerente @ na- tureza da crianca. Contudo, a concepgao de educagdo da crianca que a vincula a uma determinada forma de brincar tem origem nas concepgdes romanticas de homem e educagao, tendo contribuido também a crescente dis- tingao entre crianga e adulto, como categorias socials, com direitos e deveres diversos, que vem sendo cons- truida pelos homens depois da Idade Média, Essa di- ferenciagaio entre crianga @ adulto, em nossa socie- dade, ¢ equivalente aquela estabelecida entre brincar @ trabalhar, pelo menos teoricamente. E apenas com a ruptura do pensamento roman- tico que a valorizagao da brincadeira, da forma como a entendemos hoje, ganhou espaco na educagao das criangas pequenas. Para situar algumas questoes so- bre 0 papel da brincadeira na educacao infantil, hoje, faremos uma pequena introdugao historica sobre 0 as- sunto nas sociedades ocidentais, DA ANTIGUIDADE AOS NOSSOS DIAS Na’ Antiguidade, as criangas participavam, tanto quan to os adultos, das mesmas festas, dos mesmos ritos @ mesmas brincadeiras. Segundo Ariés (1981. p. 94), nessa época 0 trabalho nao ocupava tanto tempo do dia e nem tinha 0 mesmo valor existencial que Ihe atribuimos neste ultimo século. A participagao de toda a comunidade, sem discriminagao de idade, nos jogos @ divertimentos era um dos principals meios de que dispunha a sociedade para estreitar seus lagos cole- tivos e para se sentir unida, Gradativamente, ainda segundo Arias, esses jo- 190s, brincadeiras @ divertimentos passam a sofrer uma atitude moral contraditéria. Por um lado, eram admitidos sem reservas pela grande maioria das pes- 0a, por outro, eram proibides e recriminados pelos moralistas @ pela Igreja, que os associavam aos pra- zeres camnais, 20 vicio e ao azar. Entretanto, essa atitude de reprovagao total mo- dificou-se ao longo do século XVII, principalmente sob a influéncia dos jesuitas. Segundo Mary Del Priore’, @ partir do século XVI, difundiam-se duas repre sentagées infantis que estavam na base da educagao das criangas indias e mestigas no Brasil: © mito da crianga-santa © 0 da crianga que imita Jesus, cujas brincadeiras serviriam de base para uma educagao disciplinar e integradora, Os humanistas do Renascimento perceberam as possibilidades educativas dos jogos e passaram a uti- liza-los. Passou-se a considerar as brincadeiras e jogos como uma forma de preservar a moralidade dos “miniadultos”, proibindo-se os jogos considerados 0 brincar na educagao. “maus “bons Em seguida, uma preocupagao dos Estados Na- cionais com a moral, a satide ¢ 0 bem comum con- tribuiu para a elaboracao de propostas e métodos ba- ‘seados em jogos — sobretudo ligados educagao fi- sica — cada vez mais especializados, de acordo com {as idades @ 0 desenvolvimento infantil. A brincadeira, ‘como um comportamento infantile espontaneo, ga- nhou um valor em si © prazer, caracteristico da atividade de brincar, passou a ser visto como um componente da ingénua personalidade infant, como uma atividade inata e que protegia dos males causados pelo trabalho arduo desgastante do mundo aduito. A brincadeira passou a ser concebida como a maneira de a crianca estar no mundo: préxima natureza e portadora da ver dade. Em contraposigéo ao racionalismo, o romantismo inaugurou um periodo em que a infancia vai ser as- sociada a natureza, ao imediato, a intuigao; a inocén- Cia ¢ fragilidade da crianga garantiriam um investimen- to educacional voltado para a verdade contida no brin- car e para a preservagdo de sua pureza. Os trabainos de Comenius (1593), Rousseau (1712) e Pestalozzi (1746), na Europa, contribuiram, 0 lado do protestantismo, para 0 nascimento de um novo sentimento de valorizagao da infancia. Essa va. lorizagdo, baseada numa concepgao idealista € pro- tetora’ da crianga, aparecia em propostas voltadas Para a educago dos sentidos da crianga, fazendo uso de brinquedos e centradas na recreagao. Deu-se inicio & elaboragao de métodos proprios para a edu- cago infantil, seja em casa, seja em instituigdes es- pecificas para tal fim. Sob a influéncia dos pensamentos @ das filoso- fias de suas épocas, cada um & sua maneira, os pe- dagogos Friedrich Frébel (1782-1852), Maria Montes. sori (1870-1909) @ Ovide Décroly (1871-1992) elabo- raram pesquisas a respeito das criangas pequenas, legando & educacao grande contribuicéo. Com Frobel, por exemplo, inaugurou-se uma educacdo institucional baseada no brincar. Os médicos que 0 sucederam, € se tornaram os primeiros pedagogos da educacao pré-escolar a romper com a educagao verbal e tradi cionalista de sua época, propuseram uma educagaio sensorial, baseada na utilizacao de jogos e materiais didéticos, que traduzia a crenga em uma educagao natural dos instintos infants. Frobel, na Alemanha, organizou seus jardins de infancia em torno dos dons, termo que designava os brinquedos de livre manipulagao pelas criangas. Pau- line Kergomard, na Franga, propés, um pouco mais tarde, as escolas matemais, em substituigéo aos asi- aconselhando-se aqueles considerados 1 Constatamos, ene Aris @ Prior, uma defasagem na dell mitagao dos sécuios que marcaram uma mudanga nos sen timentos sociais de infancia, Mantiveros essa clerenca na madida om que ela incica a atualidade do tema e a neces- sidade de mais pesquisas @ estudos que comprovem a te ses desenvolvidas pelos autores. 63 los infantis. Com base principalmente na observacaio das criangas, ela elaborou uma pedagogia cientifica que propunha a brincadeira como atividade livre de aprendizagem e espaco educacional, Em outta dire- 40, as Casas di Bambini montessorianas foram or- ganizadas em torno de atividades dirigidas e de tra- balho (antecipagao de trabalhos praticos e de vida didtia), para contrapor-se a brincadeira, considerada uma atividade inata infantil, sem fins educativos, As concepgées de educagdo infantil que vém sen- do construidas historicamente tém reiterado e/ou to- mado de empréstimo as idéias propostas por esses tedricos de fins do século XIX @ inicio do século XX, ou seja, a insercao das criancas nas brincadeiras, nos materiais pedagogicos nos “treinos’ de habilidades @ fungdes especificas. A espera de que a crianga se torne adulta e se insira_no sistema de producéo do qual foi excluida gradativamente no decorrer da histéria do capitalismo, a ela € designado um oficio préprio nas instituigoes de educagao infantil, transformando a pré-escola numa espécie de grande brinquedo educativo, ‘A conquista de um espago diferenciado para a erianga, transformada em “enfant-roi" (crianga-rei) den- tro da familia nuclear burguesa e da vida urbana nas- cente, a partir da revolueao industrial, as primeiras pe- dagogias cientificas ¢ 0 estudo aprofundado do de- senvolvimento infantil a partir do final do século XIX modificaram, ainda mais, 0 sentido da brincadeira na educagao ¢ sua aceitacao social © movimento da Escola Nova europeu e ameri- cano (1889-1918), por seu tuo, herdou as concep- goes de crianga ativa e lidica ja elaboradas por Fro- bel. Dewey, principal teérico do movimento escolano- vista, concebia a brincadeira como uma agao livre € espontanea. A brincadeira, na sua teoria, 6 a ex- Pressao dos sentimentos, necessidades e interes- ses da crianga e por isso tem um fim em si mesma (Kishimoto, 1992. p.61), Os ideais escolanovistas, no Brasil, embora ja es- tivessem presentes nos primeiros jardins de infancia dos tempos imperiais, ganharam espago na educagao infantil nos anos 20 © 90 deste século. Nas escolas Primérias, utiizavam-se os jogos como meio de ensi- no; nos parques infantis paulstas, sob a influéncia do movimento modemista © da recuperacéo do folelore como elemento da cultura, as brincadeiras foram uti lizadas como um fim em si mesmas, lugar de expe- riéncia cultural, fisica e de recreagao das criangas. A constatagao @ valorizagao da brincadeira, con siderada atividade espontanea da crianga pela ciéncia psicolégica e pela propria psicandlise, auxliaram e es- timularam também a criagao de uma crianga brincan- te. As teorias psicoligicas de desenvolvimento — de Piaget, Wallon, Vygotsky — e pedagdgicas — Kergo- mard, Frobel, Décroly © 0s te6ricos da Escola Nova — contribuiram para a constituigo de uma crianca que se define socialmente pelo ndo-trabalho @ pelo brinear ativo. 64 A divulgaco da psicologia do desenvolvimento e da psicanalise, entre nds, a partir dos anos 60/70, & sua influéncia nas creches @ escolas maternais atra- vés de revistas especializadas, manuais para profes- sores € cursos de formacdo em servico contribulram para a afirmagao da infancia como periodo primordial do desenvolvimento do ser humano, enfatizando 0 pa- pel da brincadeira na educagao infant Em Sao Paulo, podemos constatar que, a partir da década de 60, a psicologia piagetiana do desen- volvimento @, posteriormente, a critica ao espontaneis- mo escolanovista, a difusdo das teorias psicanaliticas € das psicologias socioconstrutivistas. — Winnicott, Vygotsky, Elkonin e Wallon, principalmente — deixa- ram suas marcas no imaginario do profissional de educagao infantil Frébel, Montessori e Décroly contribuiram, @ mui- to, na superagdo de uma concep¢ao tradicionalista do ensino pré-escolar, inaugurando um perfodo histérico, no qual as criangas passaram a ser respeitadas & compreendidas como seres ativos. Entretanto, € pre- ciso apontar as limitagdes do uso de suas idéias nos dias de hoje. Ao influenciar a pedagogia pré-escolar brasileira — a partir de sua entrada no pais por meio do movimento da Escola Nova —, os pensamentos, {frébeliano, montessoriano e decrolyano tém-se trans- formado, principalmente apés os anos 70, com a prio- rizagao dos programas de educagao compensatéria, em meros instrumentos diddticos. ‘As propostas dos trés, apesar de diferentes, con- tm estratégias de ensino com as quais pretende-se que as criancas aprendam noges de forma, tamanho, cor, assim como a dominar movimentos corporais @ fungdes basicas de aprendizagem. Sao marcadas por uma conoepgao cumulativa e progressiva de conheci- mento, cuja elaboragao vai dando-se a partir de uma exploragao empirica da realidade que parte do sim- ples ao complexo e do concreto ao abstrato. Conce- bem a lingua como cédigo linguistico de comunicagao ‘@ ndo como um sistema de representacao, sugerindo exercicios mecanicos baseados no treino visual, au- ditivo e de meméria Podemos observar, mais recentemente, uma ten- déncia das pré-escolas brasileiras a utilizar materiais didaticos, brinquedos pedagégicos e métodos lidicos de ensino e alfabetizagao, cujos fins encontram-se no préprio material, dessa forma descontextualizando seu uso dos processos cognitivos @ histéricos experimen- tados pelas criancas. Assim, a maiotia das escolas tem didatizado a ati- vidade lidica das criangas, restringindo-a a exercicios repetidos de discriminagao visomotora e auditiva, me- diante 0 uso de brinquedos, desenhos coloridos @ mi- meogratados e miisicas ritmadas. Ao fazer isso, blo- queia a organizacao independente das criangas para a brincadeira, infantiizando-as, como se sua ago simbolica servisse apenas para exercitar e faciltar (para 0 professor) a transmissao de determinada visao do mundo, definida a priori pela escola. = * ‘A partir da introducao das teorias da privagao cul tural no pais, as classes de educagao pré-escolar nas Cad. Pesq. n.92, fev. 1995

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