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VALE QUANTO PESA (A ficgao brasileira modernista) SILVIANO SANTIAGO Para Davi Arrigucci Jr., que precipitou. ta altura do século XX, seria imprudente comegar a escrever sobre ficcdo brasileira contemporanea sem se levar em consideragio o de que é veiculada através de um objeto a que chamamos livro. \correrfamos em, pelo menos, dois defeitos grosseiros, embora jus- icaveis pela natural vaidade que os escritores costumam ostentar: a ela uma importancia que nao pode ter, pensar que o texto lite- atinge camadas sociais diferentes, conscientizando-as. O objeto de ficcAo (como, alids, 0 objeto livro em geral) circula de ma- ‘a limitada, deficitaria e claudicante, numa média de 3.000 exem- es (cada edicio) num pais de 110 milhdes de habitantes, segundo Uiltimas estatisticas. No melhor dos casos, 12 a 15 mil cépias (quatro ou cinco edigdes sucessivas) circulam pelo pais no correr 15 anos, sendo que o total de leitores do romance pode ser cal- culado na base otimista de 50 a 60 mil. proporcao de 60 mil leitores para 110 milhdes de habitantes, ja vantada por Roberto Schwarz em 1970 e retomada por Carlos ilherme Motta em 1977, é ridfcula e deprimente, mais € por essa : ‘itavel assimetria que comegaremos a nossa meditago pouco or- todoxa sobre o conhecimento que o objeto livro de ficc&o tem tra- zido para os habitantes deste pais chamado Brasil. ir De imediato fica exclufda a possibilidade de desvincular o leitor le ficcAo de um cosmopolitismo cultural burgués, j que ele vem man- ndo Contato direto e duradouro com os classicos do género tanto ‘angeiro quanto nacionais. Dai sem divida a primeira dupla de Constatagdes: sendo o leitor de ficgio brasileiro pouco xendfobo, a qualidade universal é necessariamente uma componente importante 161 no novo romance. Tais constatagdes se comprovam com a obser. vacao de que as discussdes sobre tal e tal romance sio sempre pre. cedidas da situacao da obra tanto na histéria do género, quanto no panorama atual da pesquisa romanesca em outros pafses (isto 6, Eu- ropa, Estados Unidos e, recentemente América Espanhola). Além disso, 0 romance nao é criticado sem prévio exame da técnica oy sem cuidadosa andlise formal. E como ricochete da auséncia de xenofobia e de universalismo burgués, temos uma situagdo e uma descoberta tristes: por um lado, © romance estrangeiro tem melhor mercado que o nacional entre nds, e, por outro lado, nao tivemos sucesso internacional com a nossa pro- dugao. Assim sendo, os estudos criticos scbre obras brasileiras nao conseguem apreender a qualidade da ficcdo brasileira em si. Pro- curam, nos trabalhos tradicionais, rastrear as influéncias estrangeiras sobre o autor e, nos trabalhos académicos recentes, configurar os intrincados caminhos da dependéncia cultural. Dentro dessa linha de pensamento, pode-se dizer que, apesar de tudo, o luxo nao é a componente técnica ou formal, inerente ao ro- mance-século-XX, mas o luxo é 0 livro. O livro em edicgdes de 3.000 exemplares num pais de 110 milhGes de habitantes. Objeto caro, por um lado; um tanto ao quanto “dificil”, por outro lado; impréprio para circular num pais de analfabetos ou semi-analfabetos, por um terceiro lado; marginalizado numa nacao onde tudo é feito para incrementar os meios de comunicagéo de massa e nada para incentivar a rede bibliotecdria, por mais outro lado, e finalmente censurado quando ameaga arreganhar a boca e engulir outros leitores que nao os seus 50 ou 60 mil. No centro dessa esirela de cinco pontas e pouca grandeza, cerceado, é que o livro de ficcio encontra © seu espaco e o seu orgulho. Area minima, um ponto talvez; or- gulho limitado, uma ponta de vaidade talvez. Mas nem por isso sem importéncia, como veremos. O autor de ficcg&o nao pode escolher os seus leitores. Faz o livro para que possa ser escolhido (ou eleito) pelo leitor, e, por isso, qualquer desagrado que o romance possa causar aos seus hébitos austeros o torna de imediato desclassificado criticamente. Isso é bom e isso € mau. Bom porque o livro de ma qualidade (ultima- mente caracterizado pela industria editorial tupiniquim com a velha etiqueta de best-seller) nado encontra 0 sucesso facil que o glorifica nos Estados Unidos e na Europa; mau porque o livro um pouco estranho (isto €, experimental) nao chega a surpreender, a despertar a curiosidade, j4 que nao se espera dele que inquiete, mas que antes agrade ao gosto refinado, cosmopolita e auto-suficiente dos happy few. Como exemplo, cite-se 0 fato de que os textos mais audacio- sos dos anos 20 s6 comecaram a ser consumidos regularmente na 162 década dos 60, ou mesmo no ano da comemoragao do cingiientend- rio da Semana de Arte Moderna. E 0 caso dos romances experimen- tais de Oswald de Andrade (Memédrias sentimentais de Jodo Miramar e Serafim Ponte Grande), ou de Mario de Andrade, Macunaima. £ podemos levantar a hipotese de que ainda estariam negligenciados pelo leitor comum caso nao existisse, por detras da publicidade de Qswald, os agressivos grupos Concreto e Praxis de Sao Paulo, e, por detras do romance de Mario, a versao cinematografica de Joa- quim Pedro de Andrade. Temos assim um ptiblico de ficcao reduzidissimo, ao mesmo tempo sofisticado e conservador, petulante e cosmopolita, e ultimamente apressado. Puiblico que hoje se dé os ares de viver na grande me- trépole, onde tempo é dinheiro, dedicando maior simpatia ds narra- tivas curtas (0 conto), ou mesmo a esta sub-literatura desenvolvimen- tista que é a crénica de revista ou de jornal, reunida posteriormente em livro, servindo de pasto para os nossos indigentes alunos de gindsio e suas deslumbradas professoras. O piiblico de ficg4o no Brasil vive na grande cidade e é formado por camadas mais ou menos previsiveis e semelhantes de Ieitores, reproduzindo-se identicamente de estado para estado. Leitores que yao desde o proprio produtor de literatura (um romancista, poeta ou critico 16 um romance), passando pelo diletante (n&o sei por que leio, acho que o habito vem de familia), esbarrando no professor e aluno universitarios (o professor indica e exige a leitura do aluno) e se espraiando, aleatoriamente, pelos muitos e poucos que necessi- tam dar uma ordem as suas asperezas de temperamento, ao seu in- conformismo individual e ao seu mal-estar politico e social. Todos esses leitores, estamos vendo, vivem dentro do bem-estar, do lazer e das comodidades educacionais inerentes 4 classe média, classe esta privilegiada por todos os milagres brasileiros desde os anos 30, tanto os econdmicos e sociais quanto os culturais. livro & pois, objeto de classe no Brasil, e, incorporado a uma rica biblio- teca particular e individual, é signo certo de status social. Como tal, dirige-se a uma determinada e mesma classe, esperando dela o seu aplauso e a sua significacéio mais profunda que é dada pela lei- tura, leitura que se torna um eco simpatico de (auto) revelagiio e de (auto) conhecimento. Nao podendo ser profissional numa sociedade em que a sua mer- Cadoria nao circula e nao é rentavel, em que tao pouco pode crer em dispositivos estatais ou empresariais que 0 amparem economicamente e em que © produto estrangeiro e concorrente € adquirido com mais Constancia — 0 escritor acaba sendo aquele que dispde do lazer que a sua classe lhe possibilita, que as suas atividades profissionais 163

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